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Recebido em 09 de dezembro de 2016. Aceito em 09 de janeiro de 2017.
Uma cultura mutante: o chimarrão e
seus artefatos analisados sob o viés do
design vernacular e do imaginário
A mutant culture: the chimarrão and its artifacts
analyzed under the vernacular design and imaginary
Alexandre Vergínio Assunção
http://lattes.cnpq.br/1426674469040108
Rafael Klumb Arnoni
http://lattes.cnpq.br/8769816614511557
Luiz Antônio Pereira Machado Júnior
http://lattes.cnpq.br/0732401371396501
Resumo
O chimarrão sofre ao longo do tempo mudanças,
tanto no seu simbolismo quanto na forma dos
artefatos necessários à sua utilização. Essas incor-
porações servem como uma rica fonte de pesqui-
sa ao design vernacular e aos estudos do imaginá-
rio. Neste artigo trazemos uma síntese analítica
sobre aspectos culturais, imaginários, simbólicos
e técnicos do chimarrão através de pesquisa bi-
bliográca e iconográca, no âmbito da herme-
nêutica simbólica - que se dene como interpre-
tação compreensiva do sentido das produções e
memórias humanas (RICOEUR, 2009; DURAND,
1996), buscando-se contextualizar sua utilização
nos dias atuais. As conclusões revelam que os gru-
pos e as segmentações de uso, em um tempo his-
tórico, sempre interpretam e reelaboram aquilo
que neste campo lhes é oferecido, transformando
esses artefatos em elementos heterogêneos.
Palavras-chave
Chimarrão. Design Vernacular. Imaginário.
Hermenêutica Simbólica. Dinâmica da Cultura.
Abstract
Chimarrão suers over time changes, both in its
symbolism and in the form of artifacts necessary
for its use. These embodiments serve as a rich
source of research to vernacular design and ima-
ginary studies. In this article we present an analy-
tical synthesis on cultural, imaginary, symbolic
and technical aspects of chimarrão through biblio-
graphical and iconographic research, within the
framework of symbolic hermeneutics - dened as
a comprehensive interpretation of the meaning of
human productions and memories (RICOEUR, 2009;
DURAND, 1996), seeking to contextualize its use
in the present day. The conclusions show that the
groups and the segmentations of use, in a histori-
cal time, always interpret and rework what is oe-
red to them in this eld, turning these artifacts into
heterogeneous elements.
Keywords
Chimarrão. Vernacular Design. Imaginary.
Symbolic Hermeneutics. Dynamics of Culture.
ARTIGO
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ALEXANDRE VERGÍNIO ASSUNÇÃO [et al]
Uma cultura mutante: o chimarrão e seus artefatos analisados sob o viés do design vernacular e do imaginário
Breves palavras introdutórias
O que é o chimarrão? Qual a sua história? Quais são os “avios” necessá-
rios para tomá-lo? De que materiais são feitos esses artefatos e como o
design pode analisá-los técnica e simbolicamente? Estas são algumas
das questões deste artigo. Vamos contextualizá-las. O chimarrão - bebi-
da resultante da infusão da erva-mate, depositada em uma cuia[1] e su-
gada através de uma bomba - está entre os costumes mais conhecidos
da região sul do Brasil e de países como Uruguai e Argentina, tornando-
-se um ícone representativo destas culturas. Pode ser associado a um
modo de vida ligado ao campo - e também à cidade - que está enrai-
zado historicamente nessas regiões, trazendo consigo aspectos que se
vinculam à sua tradição, à sua história e à sua identidade, ao imaginário,
à história, à memória e à identidade de um grupo social, e que vai modi-
cando os seus “avios” ou artefatos.
Toda “tradição” é uma expressão cultural de um tempo e espaço, cons-
tantemente ressignicada, modicada e também “inventada” por seus
agentes, para adaptar-se aos novos usos atribuídos por estes (ARÉVALO,
2004, HOBSBAWN,2015). Levando em conta essa armação, pode-se as-
segurar que o chimarrão e seus rituais fazem parte de uma tradição bas-
tante enraizada na Região Platina da América do Sul, incorporada pelos
jesuítas no período de colonização ibérica, difundida ao longo do tempo
e instituída como uma bebida típica desta região. Essa tradição cultural
sofreu, desde sua incorporação à cultura regional, mudanças relaciona-
das em especial aos seus rituais, simbolismos, portanto, a materialidade
de seus artefatos e seu “imaginário”. Este imaginário, como escreve Wu-
nenburger (2007), é “um conjunto de produções, mentais ou materiali-
zadas em obras, com base em imagens visuais e lingüísticas, formando
conjuntos coerentes e dinâmicos, referentes a uma função simbólica no
sentido de um ajuste de sentidos próprios e gurados” (p. 11). Por isso,
em função de um imaginário simbólico e criador, ao longo do tempo o
artefato/chimarrão foi modicando sua forma: agregaram-lhe adornos
[1] A cuia é nomeada de “mate” em países como a Argentina e o
Uruguai. Portanto, nesses países, “mate” é tanto o artefato que
contém a erva, como a própria infusão que lhe é sorvida.
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que demonstravam o status de seu possuidor e incorporaram-lhe novas
tecnologias em seus materiais (Figura 1). Por m, foi-lhe atribuído o sen-
tido e o estatuto de um dos representantes da identidade gaúcha.
Figura 1 – Da indígena cuia de porongo e bomba taquapi ao silicone e inox atual, entremeadas por
produções em madeira, metal e cerâmica, são interesses de ste trabalho. Elaborada pelos autores.
Do ponto de vista antropológico, preferimos o termo “artefato” ao
invés de objeto, pois se refere especicamente a “um objeto feito pela
incidência da ação humana sobre a matéria-prima” (CARDOSO, 2013, p.
47), em contraposição aos objetos naturais ou acidentais. A utilização do
termo “vernacular” é empregada aqui para denir aqueles artefatos au-
tênticos da cultura de determinado local, geralmente produzidos à mar-
gem do design ocial (FINIZOLA, 2010, p.30). O Design Vernacular, para
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este trabalho, é interpretado como um estudo aproximado de antropolo-
gia cultural material - no segmento de uma abordagem hermenêutica da
cultura (GEERTZ, 2012) - sendo neste trabalho interpretado, de um modo
geral, como a expressão histórica e cultural de artefatos produzidos e
usados por grupos em sociedade (FORTY, 2013; Cardoso, 2013; Meggs,
2010), somado a especicidade de produções realizadas, com apropria-
ções e imaginações vernaculares, por prossionais da área de design.
Assim, o estudo do “artefato do chimarrão”, sob a ótica do vernáculo,
irá se interessar pela forma de utilização e pelas variações realizadas a
partir da experiência da cultura, da memória e do imaginário popular
local, por elementos decorativos inseridos com o objetivo de reforçar
determinadas identidades de grupos ou indivíduos, e pelo simbolismo
associados a essas modicações.
Para a operacionalização desta pesquisa adotamos a abordagem
antropo-fenomenológica (DURAND, 2002; BACHELARD, 1993, 2009)
com a vertente instauradora da hermenêutica simbólica (RICOEUR,
2009, 2013, 2005; GADAMER, 2011; DURAND, 1996, 1993, 2002), a qual,
segundo esses autores, busca a interpretação do mundo, seres e arte-
fatos, através da consciência do pesquisador, formulada com base em
sua experiência, utilizando todo o seu “maquinário imaginativo”, por
não existir corte entre o racional e o imaginário. Em resumo, o método
hermenêutico trata de interpretar, analisar, compreender e descrever
os fenômenos que se apresentam à percepção e à imaginação. Seu ob-
jetivo, neste caso, foi chegar ao conteúdo inteligível e sensível, portanto
simbólico, do fenômeno chimarrão.
A história do chimarrão
Com a intenção de fazer do Paraguai a colônia mais próspera da Espa-
nha, o General Domingo Martínez de Irala, Governador do Rio da Prata,
não media esforços para dominar o maior número de terras possível, e
foi em uma de suas expedições ao leste, em 1554, que Irala pisa nas ter-
ras da Província Del Guairá (atual Estado do Paraná/Brasil).
Ao chegar neste local, depara-se com uma populosa tribo guarani
que o recebe com alegria e hospitalidade. Não bastasse tamanha sur-
presa com a dócil recepção destes índios, caram ainda admirados
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com um hábito em especial. Tratava-se da utilização de uma bebida fei-
ta com folhas fragmentadas, depositadas em um porongo[2] e sugadas
por um canudo de taquara, que recebia um “paciencioso trançado de
bras” (LESSA, 1986), o qual impedia a ingestão de partículas da folha
(Figura 2). Os índios, quando questionados sobre a origem de tal bebida,
armavam que a caá-i (água da erva) era exclusiva para o uso dos pajés,
que posteriormente a estenderam para o restante da tribo. Os índios ao
ingerirem a bebida sentiam-se mais estimulados, com os corpos e espí-
ritos fortalecidos. No Guairá as folhas de caá (erva mate) eram colhidas
facilmente, devido à abundância de árvores no local.
Figura 2 – Tacuapi primitiva. Elaborado pelos autores.
Entusiasmados com os efeitos da bebida, os soldados do General Ira-
la quiseram prová-la. Caindo no gosto destes homens - provavelmente
os primeiros estrangeiros a experimentá-la - quando retornam a Assun-
ção zeram questão de difundi-la das mais diversas formas (LINHARES,
1969). Com essa difusão, se inicia, talvez, uma grande tradição cultural,
com o chimarrão sendo a sua manifestação por meio de criações, apro-
priações e transmissões de um bem simbólico no tempo e no espaço.
O historiador uruguaio Fernando Assunção, em sua obra El Mate, diz
que a esta sociedade, juntamente com seu chefe Irala, “es generalmente
aceptado que se debe la difusión del mate em las colonias españolas así
como sus primeros intentos de explotación, elaboración y comercio” (AS-
SUNÇÃO, 1967, p.27).
[2] Recipiente geralmente ovóide, fruto das plantas dos gêneros Lagenaria
e Cucurbita, depois de seco e desprovido de polpa é usado para esvaziar
canoas, beber (cuia) ou transportar líquidos, farinha, etc.
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Um século depois, na segunda fase das reduções do Tape, de 1682
a 1801, os jesuítas formam comunidades cristãs com os índios do lugar
(atual Estado do Rio Grande do Sul/Brasil). Esses missionários fundam,
primeiramente, São Francisco de Borja e São Nicolau, próximas a mar-
gem esquerda do Rio Uruguai e após, estabelecem mais cinco reduções
que deram início aos Sete Povos das Missões. Segundo Lessa (1986,
p.34), “toda a erva colhida no tupambaé era entregue aos curas [padres
missioneiros], para que - retida a quantidade necessária para cobrir as
despesas do culto - fosse depois distribuída à população”. Com o cres-
cimento e cultivo da erva-mate nas reduções estes povos passaram a
viver um período de grande opulência, chegando ao ponto de produzi-
rem um tipo único de erva-mate que cou conhecido por caamini (pura
folha), um pó grosso de erva, sem paus, que valia três vezes mais do
que a produzida no Paraguai. Segundo Bones da Costa (2004, p.55), “os
primeiros ervais foram implantados em 1707, e a primeira colheita se
deu dez anos depois”. Desta forma, os guaranis aclimataram os ervais
naturais dentro das reduções dos Sete Povos das Missões.
Sobre o início da difusão do chimarrão no Rio Grande do Sul, este
autor diz que os índios das reduções que saíam em viagem levavam
sempre a bomba de tacuapi, a cuia e uma boa provisão de erva-mate,
tornando-se assim também grandes promotores dessa divulgação nas
nascentes povoações portuguesas de Colônia do Sacramento e São Pe-
dro do Rio Grande (LESSA, 1986, p.35).
Chimarrão (Cimarrón) foi o nome que a infusão recebeu dos coloni-
zadores do Rio da Prata e que depois se difundiu para os demais terri-
tórios. A palavra tem origem atribuída ao vocabulário espanhol e portu-
guês. Para o primeiro, signica “chucro”, “bruto”, “bárbaro”, indicando
os animais que se tornaram selvagens. Por analogia, passaram a desig-
nar assim a bebida rude e amarga dos nativos, tomada sem a adição de
nenhum outro ingrediente que lhe viesse suavizar o sabor. Em portu-
guês, pode-se atribuir o signicado da palavra marron a “clandestino”,
o que vem ao encontro do signicado em castelhano para cimarrón. Em
anidade a este caso, não é difícil perceber a relação entre os primeiros
“mateadores” gaúchos e a ilegalidade do uso da erva, uma vez que, no
princípio, o comércio da erva-mate era proibido. Esse ser “clandestino”
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é vinculado à palavra gaúcho, palavra adotada para representar o ser
primitivo dos pampas da América do Sul, descrito por Bones da Cos-
ta (2004) como “aventureiro”, “ladrão de gado” e “malfeitor” – homem
“sem lei, nem rei”, que vivia nos campos desse pampa.
A erva-mate é também conhecida por Ilex paraguariensis, seu nome
cientíco, que tem classicação atribuída ao botânico e viajante Augus-
te de Saint-Hilaire (FAGUNDES, 1980, p.26), que por volta de 1820 per-
correu as terras do Rio Grande do Sul.
A simbólica do chimarrão (mitos e ritos)
Se a tradição é uma expressão cultural de um tempo e de um espaço
(ARÉVALO, 2004) é porque proclama um mito, um costume, um uso, um
imaginário. Talvez, nada possa medir a exata projeção da incidência
original do mate. De qualquer forma, examinaremos a expressão recor-
rente do mito que conta a história da origem do chimarrão. O gaúcho,
Barbosa Lessa (1986), pesquisador das tradições gaúchas, assim com-
preende e narra a lenda da origem do chimarrão:
<< As tribos nômades de outrora derrubavam matos para plantar mandio-
ca e milho até o m dos recursos de cada terra. Certo dia, um velho índio,
já cansado de tantas andanças, preferiu car em uma tapera, esperan-
do a morte chegar, e não mais seguir com sua tribo. Este possuía uma
lha conhecida por todos como Jary, que por sua vez, não sabia se ca-
va para fazer companhia a seu pai ou se cumpria sua vontade e seguia
adiante com a tribo. Entretanto, apesar de contrariada pelos demais
índios, decidiu car. A atitude da moça merecia uma recompensa, visto
tamanho amor que ela representou ter pelo pai em querer acompanhá-
-lo. No rancho onde estavam, um dia chegou um pajé desconhecido,
que percebendo o que acontecera perguntou à Jary o que ela queria
para se sentir feliz: a jovem não pediu nada. Já seu pai, solicitou que o
pajé renovasse-lhe as forças a m de poder seguir com Jary ao encon-
tro da tribo. O pajé lhe entregou uma planta muito verde, perfumada de
bondade, e ensinou que ele plantasse, colhesse as folhas, secasse ao
fogo, triturasse, botasse pedacinhos num porongo, acrescentasse água
quente ou fria e a sorvesse. “Terás nessa nova bebida uma companhia
saudável mesmo nas horas tristonhas da mais cruel solidão.” Dada a
receita, partiu. E dessa maneira surgiu a caá, resultando dela a bebi-
da caá-y chamada posteriormente de chimarrão. Após o velho homem
preparar e tomar o caá-y, recuperou as suas forças e seguiu adiante
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Uma cultura mutante: o chimarrão e seus artefatos analisados sob o viés do design vernacular e do imaginário
com a lha, como era seu desejo. Quando encontraram a tribo, todos
os receberam com muita alegria e também passaram a beber a infusão
da verde erva, amarga e gostosa que prometia aos homens coragem e
força, bem como amizade nas horas tristes (LESSA, 1986, p.72).
Além das lendas, são inúmeras as homenagens feitas a este símbolo
gaúcho, seja em forma de poema ou de música. É nítido também o que
Lessa (1986) comenta em sua obra com respeito à criação de novas ami-
zades a partir do momento de uma “roda de chimarrão”, que acima de
tudo é um local de “descontração, companheirismo e amizade” (LESSA,
1986, p.67). Este autor indica que o “mateador” encontra, no isolamento
de um galpão e no silêncio, as perfeitas condições para trocar condên-
cias com seu outro eu, que se corporica na cuia.
Os hábitos e a forma de se bebê-lo também se apresentam de manei-
ra distinta em cada região. Na Argentina e Uruguai, na maior parte das
vezes, toma-se o chimarrão sozinho, em cuia individual. No sul do Bra-
sil, principalmente no Estado do Rio Grande do Sul, sorve-se em grupo,
em cuias médias e grandes, de vários formatos e tamanhos. Com isso,
pode-se observar que - em uma mesma região, com formação histórica,
econômica e cultural bastante semelhante - se atribui simbolismos e
formas de utilização especícas a esta tradição.
Lessa (1986) destaca três elementos como característicos ao gaúcho:
o cavalo, o galpão e o chimarrão. Entretanto destes três, arma que o
chimarrão é o mais perene, permanecendo como tradição fundamental
do gaúcho. O chimarrão está muito além do seu aspecto físico e de seus
benefícios para a saúde. O momento de se tomar um chimarrão é pra-
ticamente um ritual que se inicia com o preparo dos “avios”, ou seja, de
seus artefatos, e se estende até a última gota de água da chaleira.
O ritual do preparo do chimarrão começa com o despejo da erva na
cuia, de forma que ocupe 2/3 de sua capacidade. Em seguida, tapa-se
a boca da cuia com a mão esquerda e, fazendo uma inclinação, joga-se
a erva para a outra metade da cuia. Lentamente vai-se trazendo a cuia
à verticalidade anterior, de modo tal que o “barranco” de erva não des-
morone. Assim, numa metade está a erva, e na outra se irá despejar a
água. Desde o princípio, os gestos são lentos e cuidadosos. O “cevador”,
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aquela pessoa que prepara o chimarrão, vai também caprichar no “to-
pete” (parte superior) da erva. Depois de mais ou menos cinco minutos
a erva já “inchou” o suciente. Despejada a primeira medida de água na
cuia o primeiro chimarrão será do “cevador”, que examina se o mesmo
está em condições de ser oferecido aos demais (quase sempre, no Rio
Grande do Sul, o chimarrão é tomado coletivamente). Primeiro é ser-
vido quem está à direita do cevador ou de quem está servindo; e daí
segue invariavelmente sendo servido “pela direita” (LESSA, 1968).
Bastam estes tópicos para demonstrar que, sendo o chimarrão uma
bebida social, implica todo um ritual e um simbolismo que vão se trans-
mitindo e se transformando através das gerações.
O chimarrão e seus artefatos
Chamam-se “avios do chimarrão” os artefatos necessários para tomá-
-lo. Quais são? Os artefatos são fundamentalmente a bomba e a cuia. É
claro que outros objetos poderão incorporar os “avios”, desde que pas-
sem a fazer parte deles (o recipiente para servir a água, o porta-cuia,
por exemplo). Para este artigo analisamos apenas a bomba e a cuia.
A bomba de chimarrão
A bomba de chimarrão é formada, segundo Fagundes (1980), por um
canudo metálico, de vinte a vinte e cinco centímetros de comprimento
por cinco a oito milímetros de diâmetro, pelo qual é bebido o infuso da
erva-mate. Na da ponteira, setor de contato da bomba com a boca do
usuário, uma das extremidades é achatada, deixando um pequeno orifí-
cio longitudinal para impedir o uxo excessivo de água. Na outra ponta,
possui o ralo, com a nalidade de coar a infusão da erva-mate.
Primitivamente, os índios guaranis criaram a bomba de taquara
(Mabea stulifera), por eles chamada de tacuapi: vocábulo guarani, ta-
cuá (cana oca), api (alisada). A bomba era retirada de um trecho de ta-
quara entre dois nós. Junto ao nó inferior eram feitos pequenos orifícios
laterais e brotos eram enrolados ou tramados por cima dos furos, for-
mando assim um coador. No outro lado cava a ponteira por onde era
sorvida a infusão. A criação do tacuapí permitiu que somente o líquido
fosse sorvido, sem que houvesse a preocupação de separá-lo das folhas
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ou grão de erva. Em um momento seguinte, aperfeiçoa-se a parte infe-
rior do tacuapí com o trançado de os ou furos menores para melhorar
a ltragem do líquido (Figura 3).
Figura 3 – Tacuapi - bomba de taquara. Elaborado pelos autores.
Depois da bomba primitiva de taquara surgiu a bomba metálica. Isso
possibilitou uma evolução formal, de durabilidade, de higiene e de er-
gonomia. Podemos dizer, por exemplo, que somente com o advento do
metal é que realmente foi possível propor um novo design da ponteira.
Fazendo-se um paralelo com os dias de hoje, pode-se notar que a
forma de ltragem - que impede a entrada de grãos, evita o entupimen-
to e facilita que a infusão seja sorvida - ainda é um aspecto importante a
ser considerado, que pode ser observado pela diversidade de formas de
coadores existentes nas bombas atuais, como se verá a seguir. A forma
terá, muitas vezes, relação com o tipo de erva que se está utilizando, o
tamanho de seus grãos e sua pureza.
Atualmente fazem parte da bomba: a haste (corpo, canudo), a pon-
teira (bocal, bico, chupeta, boquilha), o coador (bojo, ralo) e o resfriador
(anel, passador). A “haste” pode ser lisa, torcida, anelada, reta ou apre-
sentando uma leve curvatura ao aproximar-se da ponteira. A “pontei-
ra” é um bocal onde o mateador apóia seus lábios para beber a infusão,
que se inclina até a pessoa que tem a cuia em suas mãos (VILLANUEVA,
1995). Caracteriza-se por ter a extremidade achatada e que em algumas
situações pode ser adornada com capa de ouro. O “coador” é um ralo
perfurado que é colocado na parte inferior da haste e atua como um l-
tro, impedindo que a erva entre no bulbo (VILLANUEVA, 1995). Suas for-
mas mais comuns são: a de coco (em forma de bola), a de tipo 1001 (pelo
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número de orifícios), a de colher e a de mola (lembra a tacuapi primitiva,
apenas recoberta por uma mola). O “resfriador” é o nódulo que enlaça a
haste da bomba, próxima do bocal (FAGUNDES, 1980). (Figura 4).
Figura 4 - Bomba de chimarrão. Elaborado pelos autores.
De acordo com Tubino (2011), além da cana do tacuapí (material or-
gânico pouco usado hoje em dia), os materiais mais encontrados, atu-
almente, na confecção de bombas são os metálicos: o aço inoxidável, a
alpaca, o latão, o ferro e a prata. O ouro, em casos especiais, serve de
opção apenas aos detalhes, como na ponteira e no resfriador.
O “aço inoxidável”, talvez o mais usado atualmente em bombas de
chimarrão, é uma liga de ferro e cromo, apresentando propriedades físi-
co-químicas superiores aos aços comuns, sendo a alta resistência à cor-
rosão a sua principal característica (METALOPÉDIA, 2016). Sua resistên-
cia à corrosão, as suas propriedades higiênicas e estéticas fazem do aço
inoxidável um material muito atrativo, satisfazendo as necessidades de
durabilidade, limpeza e aparência à bomba de chimarrão. Tem, em al-
guns modelos, a possibilidade de abrir-se o ralo para uma higienização
mais perfeita (TUBINO, 2011).
A “alpaca” é outra das aplicações importantes para a construção do
corpo da bomba de chimarrão; são mais baratas que as de aço inoxidável,
mas são menos duráveis e mais frágeis. Conforme a Metalopédia (2016), a
alpaca trata-se de uma liga metálica constituída por Cobre, Níquel e Zinco,
que também é conhecida por metal branco, por causa do brilho e da colo-
ração semelhantes aos apresentados pela Prata. Utilizada na fabricação
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de bomba de chimarrão devido à sua composição que confere resistência
à corrosão e por ser uma alternativa mais econômica. É ainda uma liga
dúctil e maleável. Como bomba de chimarrão a alpaca “possui boa dura-
ção e não apresenta diculdades de manutenção” (TUBINO, 2011. p.11).
Com cuidados corretos no uso e na higiene, pode durar até dez anos.
O “latão” é um dos metais utilizados para compor o corpo de bom-
bas de chimarrão. O inconveniente é que, segundo Tubino (2011), por ser
um metal de baixa durabilidade que tende a descascar após cerca de
dois meses, pode interferir no sabor do mate. De acordo com a Metalo-
pédia (2016), o latão é uma liga metálica constituída por Cobre e Zinco.
As percentagens de Zinco na liga variam entre 3 a 45%. Esta liga é utili-
zada para fabricar objetos decorativos, dada a sua aparência brilhante
que se assemelha ao Ouro. Uma das principais características do latão
é ser altamente maleável tendo um ponto de fusão relativamente baixo
e as suas características em escoamento fazem do latão um material
de fácil fundição. Em síntese é uma bomba com um material de pouca
durabilidade e de difícil manutenção.
As bombas de chimarrão de “ferro” duram um pouco mais do que as
de latão, profere Tubino (2011). Alerta que deve-se evitar o uso da bom-
ba quando o metal começa a ganhar um aspecto escurecido. Elemento
químico com símbolo Fe, o Ferro encontra-se no estado sólido à tem-
peratura ambiente, sendo extraído da natureza sob a forma de minério
de Ferro. Dá origem a várias formas de aço após adição de Carbono e é
reciclável (METALOPÉDIA, 2016). Para a bomba de chimarrão, é de difícil
manutenção, “cando - após algum tempo de uso - com a cor acinzen-
tada/escura” (TUBINO, 2011, p.31).
A bomba de chimarrão de “prata” foi, nos primórdios, uma imitação
da bomba tacuapí primitiva. Segundo Villaneuva (1995, p.125), “de plata
se hicieran las primeras bombillas metálicas”. Este autor diz que primiti-
vamente a indústria dos metais se singularizou entre nós com as produ-
ções de prata. Tubino (2011) descreve que as bombas de prata são mais
requintadas, duráveis, especialmente as mais puras (o grau máximo de
pureza da prata é indicado pelo número 900). Geralmente, têm detalhes
como ponteira e resfriador em ouro. A prata ou argento (do latim vul-
gar argentum) à temperatura ambiente encontra-se no estado sólido.
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A bomba de prata, por ter um custo nanceiro maior, leva consigo um
valor simbólico hierárquico também mais elevado. Segundo Ricca (2009,
p.112), “desde o século XVI este material se impôs frente aos outros de-
vido a abundância, maleabilidade e resistência, acentuada pela combi-
nação com outros metais”. Desde o passado muitas vezes esse tipo de
bomba foi minuciosamente ornamentado com anéis e virolas, com mo-
tivos do campo e detalhes de aves ou plantas - além de estrias e espirais.
Finalizamos aqui a análise sobre as bombas de chimarrão, comen-
tando sobre sua medida mais ergonômica e alguns subsídios curiosos.
A indicação básica em relação à medida adequada da bomba é a de que
deve possuir, mais ou menos, o dobro da altura da cuia, ou seja, que
metade que para fora da cuia. Uma bomba muito pequena ou grande
demais torna a ação de matear inadequada. Por outro lado, recente-
mente, devido ao surgimento de ervas extremamente nas, foram cria-
dos ltros de tecido (“camisinhas” do mate), que servem para envolver
o coador, impedindo o entupimento do chimarrão. Outra informação
curiosa e atual é que existem na Argentina alguns mates econômicos
e descartáveis que incluem bombas de plástico, as quais, porém são
rechaçadas por consumidores mais ortodoxos.
A cuia de chimarrão
A cuia de chimarrão é confeccionada, conforme Fagundes (1980), de
porongo (Lagenaria vulgaris), fruto do porongueiro, trepadeira rastei-
ra com folhas largas, encontrado no sul da América do Sul. O porongo,
depois de maduro, se torna oco, portanto sendo passível de tornar-se
uma vasilha para líquidos. Os porongos são chamados em guarani de
yeruá. A cuia é chamada de caiguá: caa (erva), i (água) e guá (recipien-
te). Literalmente: recipiente para a água da erva-mate. Em relação às
cuias originais, pode-se observar que pouco mudou em relação e a sua
forma. A origem da cuia vem, provavelmente, da necessidade de artefa-
tos que contivessem líquidos quentes, e que permitissem seu manuseio
sem que o calor chegasse às mãos de quem o carregava. Dos materiais
utilizados pelos indígenas, o que apresentou melhor funcionalidade foi
o porongo cortado, utilizado até hoje. A cuia de porongo necessita de
algumas etapas em sua confecção - que vão desde a forma de colheita,
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corte do porongo até a cura nal - para que possa ser utilizada sem que
o sabor do chimarrão se altere, conforme é descrita por vários autores
(LESSA, 1986; FAGUNDES, 1980).
Em alguns casos, existem trabalhos decorativos e simbólicos nas
cuias. Os desenhos são sempre inspirados na natureza, ponticando os
motivos orais, do campo, puros ou estilizados. Os bocais de alpaca são
muito comuns, assim como os de prata. Além disso, a partir do século
XVIII, a inuência da prataria religiosa, principalmente a de origem por-
tuguesa, se fez sentir em nossos costumes gaúchos, pois a matéria-pri-
ma existia em abundância. Os artesãos da época adaptavam sua arte
religiosa aos utensílios gaúchos. Surgem então os mates-de-cálice ou
mates-de-pé, usando vários tipos de metal (ASSUNÇÃO, 1967). As for-
mas e a ornamentação dos artefatos do chimarrão mudam conforme a
região de uso. Os artesãos da prata e do metal em geral seguiram inu-
ências dos estilos de cada época. As obras do século XVIII são de estilo
barroco e rococó; mais tarde incorporam decorações e simbolismos ro-
mânticos e a cuia de prata se converte em um objeto de adorno a partir
do nal do século XIX (DE LE COMTE, 2005).
Além das cuias naturais (extraídas da natureza: porongo, cana, mar-
m, guampa, coco), temos à venda cuias compostas artesanalmente
ou industrialmente de vários materiais, dos quais os mais comuns são:
prata, madeira, madeira forrada com alumínio, porcelana, porcelana
esmaltada, vidro, louça, plástico. Apesar de todas essas alternativas, a
cuia de porongo segue tendo uma maior aceitação. De acordo com Fa-
gundes (1980), quanto à forma temos a cuia gajeta ou galleta (bolacha
em espanhol), a cuia pêra, a cuia teto-de-vaca, a cuia coquinho, a cuia
torpedo, a cuia saco-de-touro e a cuia pescoço. (Figura 5).
Figura 5 – Formatos de cuia. Da esquerda para a direita: Gajeta, Pêra, Teto-de-vaca, Coquinho,
Torpedo, Saco-de-touro e Pescoço. Elaborado pelos autores.
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A gajeta, produzida com o porongo grosso, é executada basicamen-
te para quem consome o chimarrão individualmente. Por ser bastante
curta, a gajeta tem a vantagem de possibilitar o consumo rápido e antes
que a água esfrie. A gajeta tem um manuseio muito prático. O formato
de cuia coquinho é o tradicionalmente utilizado pelo gaúcho solitário
do campo. Destaca-se, também, por ser mais popular entre os mais jo-
vens. O tamanho do bocal de inox varia de acordo com a região. No Uru-
guai, por exemplo, é bastante discreto. Na Argentina o detalhe ganha
contornos mais chamativos. Já a torpedo não possui muitas diferenças
quando comparada com a do tipo coquinho. O grande avanço dela é
não necessitar de suporte móvel. O formato quadricular da base permi-
te o apoio sem quaisquer riscos de queda.
O que vem sendo dito nessa parte do texto deixa claro como as cuias
vão sendo criadas e alteradas de forma espontânea, atendendo às neces-
sidades de seus utilizadores e incorporando melhorias a partir de experi-
mentações que se dão ao longo de gerações e a partir das possibilidades
que o meio oferece para sua transformação. É possível perceber desta
forma, a origem vernácula dos avios do chimarrão, que ao longo do tem-
po irá incorporar novos elementos e assumir novas funções simbólicas.
Chimarrão: uma cultura mutante
Como vimos, a evolução dos equipamentos e a tecnologia associada a eles
é outro fator que vem acrescentar no universo do chimarrão. Um exemplo
são as bombas com diferentes tipos de coadores, especícos para cada
tipo de erva, desmontáveis para limpeza, elaborada em aço inox ou ou-
tro material resistente à temperatura e à ferrugem. As cuias por sua vez,
evoluíram especialmente no que diz respeito aos materiais. Mesmo com
a diversidade de formas de cuias elaboradas a partir de porongo, foi com
utilização de novos materiais que as cuias apresentaram maior diferencia-
ção. Às tradicionais cuias de porongo revestidas ou não e de louça, surgem
as cuias feitas de vidro, alumínio colorido, plástico ou silicone. As chaleiras
veem-se substituídas por jarras elétricas, algumas com marcação de tem-
peratura própria para o consumo do chimarrão. E em um último estágio
de incorporação do hábito pela cultura de massa e industrialização, sur-
gem ltros de pano chamado “camisinha” que se sobrepõem ao coador
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da bomba para uma melhor ltragem e também os “mates” descartáveis,
prontos para beber e serem jogados fora após o consumo.
Este panorama, que abrange questões históricas, culturais, simbóli-
cas, econômicas e sociais demonstra a amplitude que essa cultura mu-
tante do chimarrão abarca. Constitui-se um universo diverso e rico, em
que, por meio de uma bebida, indivíduos e grupos podem expressar sua
identidade, seja por tomar o chimarrão e explicitamente ou implicita-
mente declarar sua raiz gaúcha e platina, seja pela personalização dos
equipamentos que utiliza para tomá-lo, inclusive gravando seus nomes
nos artefatos. Coube-nos, sob a ótica do design vernacular, a partir da
observação e pesquisa dos equipamentos, evidenciar essa riqueza e
apresentar a diversidade de forma sistemática, analisando as mudan-
ças e as características explícitas e implícitas a estes artefatos.
Considerações nais
O chimarrão é essa grande instituição material e simbólica do sul do con-
tinente que nada fala e tudo diz. É esse milagre que não se agradece[3] e
se toma em parceria. É um lugar de memória que cria comunhão e iden-
tidade, sempre em trânsito: com novas formas e “enfeites” de cuias e
bombas. Hoje temos, paradoxalmente, o chimarrão ancestral em bom-
ba tacuapí convivendo com cuias de plástico. E foi isso que nos interes-
sou examinar: essas evoluções com rupturas simbólicas e técnicas. In-
teressou-nos e foi, acreditamos, uma pesquisa original para os campos
do imaginário e do design vernacular gaúcho. O design vernacular, em
relação ao tema desta pesquisa, foi tido como uma expressão histórica e
cultural de artefatos produzidos e usados por grupos em sociedade.
Para a compreensão dessas evoluções e rupturas foi necessário estar-
mos na experiência do fenômeno, como “mateadores”. Mas mais do que
isso tivemos que mergulhar na história do chimarrão, procurando enten-
der seu imaginário, sua materialidade e sua arquetipologia: a força da ideia
guarani - do porongo cru e do tacuapí e suas variações no tempo e espaço.
Com isso tentamos compreender a dinâmica da cultura do uso, dos mi-
tos e dos ritos em relação a esses artefatos. Através de uma hermenêutica
simbólica e compreensiva analisamos seus aspectos técnicos e estéticos.
[3] Agradece-se somente quando se vai sair da roda de
chimarrão. Regra que faz parte desse costume.
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Chegamos à conclusão que os grupos e as segmentações de uso, em
um tempo histórico, sempre interpretam e reelaboram aquilo que neste
campo lhes é oferecido, transformando esses artefatos em elementos
heterogêneos. Ou seja, tentamos compreender e apreender a dinâmi-
ca de um processo complexo (uma multidimensionalidade da experi-
ência da “roda-de-chimarrão” e seus artefatos) no qual todos os atores
transformam e são transformados, no dinamismo mútuo das ações e
das representações, contribuindo, através de motivações simbólicas e
imaginárias, para essas mudanças.
Finalmente, desejamos que neste campo de investigação, novas in-
terpretações surjam, pois o tema precisa ser mais desenvolvido na pes-
quisa técnica, do imaginário, do design vernacular e da antropologia
simbólica, de modo que nos permitam entender esse contexto cultu-
ral de uma forma mais ampla, dentro do qual os usuários do chimarrão
constroem e reformulam suas representações e suas práticas. Temos
a consciência de que não foi possível mapear todas as alternativas de
conguração deste campo. O resultado foi apenas uma síntese de apro-
ximações sucessivas da “nossa verdade” sobre o assunto: um ponto-de-
-vista “criando” um objeto.
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