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GOVERNANÇA DAS REDES E
O MARCO CIVIL DA INTERNET
ORGANIZADORES
FABRÍCIO BERTINI PASQUOT POLIDO
LUCAS COSTA DOS ANJOS
LUÍZA COUTO CHAVES BRANDÃO
GLOBALIZAÇÃO, TECNOLOGIAS E CONECTIVIDADE
ANAIS DO II SEMINÁRIO
S471a Seminário Governança das redes e o Marco Civil da Internet
(2. : 2016 : Belo Horizonte, MG)
Anais [recurso eletrônico]: globalização, tecnologias e
conectividade / Fabrício Bertini Pasquot Polido, Lucas
Costa dos Anjos, Luiza Couto Chaves Brandão, organizadores.
Belo Horizonte: Instituto de Referência em Internet e Sociedade,
2017. 442 p. - Inclui bibliograas.
ISBN: 978-85-94202-00-0
1. Direito 2. Internet 3. Cibercultura 4. Globalização
5. Propriedade intelectual I. Polido, Fabricio Bertini Pasquot
II. Anjos, Lucas Costa dos III. Brandão, Luíza Couto Chaves
IV. Título
CDU(1976) 34:007
Ficha catalográca elaborada pela Biblioteca da Faculdade de Direito da UFMG
Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte. As
opiniões emitidas em artigos ou notas assinadas são de exclusiva responsabilidade dos
respectivos autores.
Projeto gráco: André Oliveira
Capa: Samira Motta
Diagramação: André Oliveira
Revisão: Luíza Brandão
Finalização: André Oliveira
GOVERNANÇA DAS REDES E
O MARCO CIVIL DA INTERNET
ORGANIZADORES
FABRÍCIO BERTINI PASQUOT POLIDO
LUCAS COSTA DOS ANJOS
LUÍZA COUTO CHAVES BRANDÃO
GLOBALIZAÇÃO, TECNOLOGIAS E CONECTIVIDADE
ANAIS DO II SEMINÁRIO
Organização :
Apoio:
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ARQUITETURA DA INTERNET E NEUTRALIDADE
DE REDE
Leonardo Parentoni
Muito bom dia a todos. Eu gostaria de agradecer o convite do GNet e do IRIS e
o faço na pessoa do professor Fabrício Polido, sem esquecer que ninguém sozinho faz
grandes obras. Então, todos vocês da Equipe merecem o meu muito obrigado. Cumpri-
mento também o Professor Demi e os demais colegas aqui presentes. Sem mais delon-
gas, inicio a apresentação.
Muito brevemente, estruturarei essa breve conversa em três partes, a saber: como a in-
ternet foi feita; como a internet vem mudando; e, ao nal, uma visão de neutralidade de
rede que foge do mainstream. Minha visão é diferente da maioria dos textos cientícos
sobre neutralidade de rede. Talvez não seja bem recebida pelos senhores, mas, de toda
forma, opiniões diferentes nos levam a reetir. Bem, como primeiro ponto, a internet
não pode ser tratada como “as given”. A internet não é assim. A internet está assim. A
internet é uma construção humana feita por algumas pessoas com determinados ob-
jetivos, para atingir certos resultados. Quando se modicam os objetivos, os valores
ou os resultados, a internet também muda. Então, nós temos uma internet altamente
cambiante. E aqui, vale fazer a comparação com as marés. As marés são um fenômeno
da natureza, guiadas por leis naturais, constantes. Jamais interprete a internet dessa
forma. A internet é muito mais uma construção cientíca. Assim, como construção que
é, pode ser modicada e essa alteração na estrutura da internet tem profundos reexos.
O professor Demi conhece innitamente melhor o tema do que eu, mas acredito pro-
fundamente que para tratar de qualquer assunto de Internet Law, ou chame como que-
ira, não é possível partir do Direito. Primeiro, devemos entender os fatos para depois
interpretá-los juridicamente. Sem estudar TI não acho que é possível tratar com profun-
didade e com correção essas questões, porque muitas vezes o que nós vamos sugerir é
inaplicável, inexequível na prática. Então, muito brevemente, vou comentar com os sen-
hores e já pulando décadas de construção da Internet, a respeito de dois aspectos técni-
cos da internet que me parecem indispensáveis para tratar de neutralidade de rede: os
protocolos TCP e IP, sendo IP, o protocolo de internet e TCP, o protocolo de controle e
transferência dos dados.
Para que serve o IP? Qualquer dispositivo conectado à internet, me perdoe se os sen-
hores já ouviram isso inúmeras outras vezes, e tomara que seja novidade para alguns,
mas não existe conexão à internet sem IP. IP é o número que identica o dispositivo
conectado. E, veja bem, identica o dispositivo não o sujeito. Para identicar o sujeito,
é preciso utilizar perícia forense. Eu posso ter um único IP utilizado sucessivamente por
vários sujeitos diferentes - IP dinâmico - e eu posso ter um único sujeito, simultanea-
mente utilizando vários IPs (pense numa pessoa que tem “n” dispositivos eletrônicos:
celular, tablet, computador xo, notebook, etc, todos funcionando simultaneamente e
conectados à internet. Cada um deles terá um IP diferente). Bom, IP, então, é a identi-
cação do dispositivo conectado. TCP, por outro lado, é o protocolo que faz o que nós
chamamos de “packet switching”, ou seja, fragmenta os pacotes de dados em parcelas
menores, os transmite simultaneamente por múltiplas rotas - buscando qualidade de
serviço e eciência - para que os pacotes cheguem o mais rápido possível ao destino.
Bom, TCP/IP são, portanto, o coração da internet. Constituem um “protocol suite”. Sem
esses dois protocolos não existe a Internet; não há que se falar na rede mundial de com-
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putadores.
A grande característica é que esses protocolos eram “estúpidos”. Na linguagem
norte-americana: “stupid network”. E, aqui, estúpido não é um adjetivo pejorativo, é um
elogio. Uma das maiores virtudes da internet como rede é ser “estúpida”. Signica o
seguinte: esses protocolos não levam em consideração o que está sendo transmitido.
Eles simplesmente transmitem qualquer conteúdo. Para o TCP/IP, na sua conguração
original, era indiferente se o que estava sendo transmitido era texto, vídeo, áudio. Não
importa se se tratava de um texto cientíco ou de uma foto retratando pedolia in-
fantil. Esses protocolos simplesmente se encarregam de buscar os dados na origem
e entrega-los no destino. Muito parecido com o serviço dos Correios. Neste contexto,
a identicação do conteúdo das mensagens era feita somente no destino. Quando o
carteiro entrega uma carta é o destinatário quem vai abri-la e saber se o conteúdo é um
novo cartão de crédito, uma conta para pagar, telegrama, convite de casamento, etc. O
destinatário somos nós e, em termos de internet, a identicação dos pacotes é feita na
camada superior da rede, chamada de camada de aplicações (“application layer”).
Ocorre que a internet está mudando e, dado o nosso curto tempo nesta apresentação,
eu quero destacar apenas aquela que é, a meu ver, a principal mudança: o DPI (“deep
packet inspection”). Todo pacote de dados tem um “header”, que é uma espécie de
cabeçalho. Numa carta comum, enviada via Correios, equivaleria aos campos remetente
e destinatário. O carteiro não sabe o que está ali dentro. Ele sabe apenas a origem e o
destino da correspondência. TCP/IP eram ótimos carteiros nos primórdios da internet.
Eram, porque há alguns anos, na verdade há um bom par de anos, não é mais assim.
Atualmente, o carteiro abre a carta, lê a carta, efetivamente faz juízo de valor e, depois,
entrega. Isso é o DPI. É uma tecnologia que permite a inspeção profunda dos pacotes, ou
seja, o carteiro não sabe apenas quem são o remetente e o destinatário, mas também
qual o conteúdo da correspondência, podendo fazer cópia daquele conteúdo e even-
tualmente discriminar determinados conteúdos. A foto constante do slide representa
isto: hoje é possível lucrar com o conhecimento que decorre do conteúdo dos pacotes
de dados. Essa tecnologia normalmente é utilizada pelos ISPs - os provedores de serviço
na internet -, quando o pacote de dados passa na rede, na parcela administrada por de-
terminado provedor.
Neste novo contexto em que vivemos, o que é, então, neutralidade de rede? O DPI traz
algumas consequências nefastas em termos de segurança jurídica, privacidade e outros
aspectos. Neutralidade de rede é uma das e talvez a principal resposta jurídica para es-
ses problemas. Voltando às consequências do DPI, já foi mencionado pela Luiza e pelo
André – no breve vídeo que exibiram antes desta minha apresentação - o trac shap-
ing. Isto é, você, ao inspecionar os pacotes de dados, dar maior qualidade de serviço
aos pacotes que lhe interessam e eventualmente prejudicar os que não lhe interessam.
Imagine a NET, que é provedora do serviço de acesso à internet e também provedora
de um serviço de “streaming” de vídeo, chamado “Now”. Se ela inspecionar o conteúdo
dos pacotes saberá que o cliente da NET está acessando vídeos do serviço “Now”, ela
aumenta a qualidade do serviço e o vídeo corre “smooth”. Por outro lado, se ela vê que
o seu cliente está acessando vídeo no Netix, que é um serviço concorrente, o que ela
faz? Reduz automaticamente a qualidade do serviço, de um modo geral e, portanto, o
vídeo começa a travar. Essa prática é ilícita e constitui forma clássica de mau uso da
inspeção de pacotes. Agora, a grande questão é: neutralidade de rede é só para isso?
Consultando o “Google Ngram Viewer”, que avalia quando a expressão “neutralidade de
rede” começou a ser utilizada na literatura cientíca, nós percebemos que, na década
de 60, já se falava em neutralidade de rede e, como todos sabem, na década de 60 a
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internet ainda era experimental nos Estados Unidos. Então, anal, a neutralidade de
rede existe só para combater o trac shaping? Ou a neutralidade de rede é uma criação
contemporânea? Me parece que não. Ela é uma releitura de algo que tecnicamente já
existia, há décadas. Todavia, é inegável que com o desenvolvimento da internet a sua
importância aumentou. Basta ver como o gráco decola de 2.000 para cá. Prosseguindo,
eu lhes indago: o m da neutralidade de rede é totalmente ruim? Eu acho que ninguém
aqui gostaria que o carteiro visse as nossas cartas, mas toda analogia em matéria de
internet é perigosa... Não podemos confundir a internet com o serviço de correios reg-
ular. Existem, a meu ver, “n” razões que não só recomendam, como também impõem
que na internet o carteiro de fato leia o conteúdo das cartas. Isto é um assunto de TI,
denominado gerenciamento de redes (“network management”). O gerenciamento de
redes é algo absolutamente necessário. Ele, inclusive, permite melhorar a qualidade do
serviço. Portanto, o fato de a internet não ser mais neutra - e isso é uma constatação -
é bom em alguns aspectos e ruim em outros. Neutralidade absoluta é utopia e, ainda
que fosse possível alcançá-la, seria ruim. O resultado prático dela seria um retrocesso.
Imagine, por exemplo, a repressão ao spam. Para reprimir essas mensagens eletrônicas
indesejadas é preciso ver o conteúdo do pacote de dados para saber se aquilo é ou não
spam. Pense, ainda, no “streaming” de vídeo em relação ao “e-mail”. O provedor de aces-
so à internet pode dar maior velocidade para o vídeo e atrasar dois ou três segundos a
entrega de um “e-mail”. Aplicações de interesse público ou aplicações de telemedicina,
por exemplo, devem ser priorizadas. Isso tudo são vantagens de uma internet que não
é neutra. Portanto, nada é 100%. Não existe internet 100% neutra. O que a neutrali-
dade de rede dene é até onde podemos discriminar. Me parece claro que, em alguns
casos, deve haver discriminação. Portanto, a questão não está mais na existência de
neutralidade de rede. A Internet mudou: o que era uma “stupid network”, é hoje, uma
“very smart network”, e isso traz tanto vantagens quanto desvantagens. Eu gostaria de
pontuar com os senhores, o que, na minha visão, não viola a neutralidade de rede: dif-
erenciar pacotes de natureza diversa por motivos justicados. Dar mais velocidade para
um lme em relação ao e-mail, por exemplo, é absolutamente lícito. O que também não
viola a neutralidade de rede é diferenciar pacotes com base no interesse público. Con-
tudo, aqui é importante que a lei, pelo menos num rol exemplicativo, nos diga quais
são os pacotes de interesse público, para embasar o julgador. Anal, a manutenção da
qualidade do serviço também é muito importante.
Outro ponto que me parece lícito, juridicamente correto: oferecer pacotes diferenciados
de serviço. Isso é polêmico, sem dúvida! Eu sou ferrenho defensor de pacotes diferencia-
dos de serviços. Acho que o Poder Público deveria xar um pacote mínimo de serviços,
com franquia, qualidade de acesso, velocidade instantânea, etc., assegurado a qualquer
usuário de internet, como o mínimo aceitável. Como se fosse, desculpem a expressão,
“um salário mínimo da internet”. E, abaixo disso, não poderia haver nada, porque seria
insuciente. Se o Poder Público quisesse e pudesse, forneceria gratuitamente esse pa-
cote para quem dele necessitasse, como organizações não econômicas ou a população
carente. Mas fora isto, tudo deveria ser contratual. Portanto, se eu contratei uma fran-
quia de 10GB e ela esgotou - inclusive na internet xa -, na minha opinião, é possível
fazer redução de velocidade, passando o cliente para o pacote mínimo, até que seja
renovada a sua franquia (normalmente, no mês seguinte). E isto por algumas razões:
se não for assim, “os justos acabam pagando pelos pecadores”, ou, em outras palavras,
o usuário comum paga pelo “heavy user”. Se eu tenho 20GB para “download” e minha
velocidade não vai ser reduzida quando eu esgotar este limite, quem usa 200GB e quem
usa apenas 20GB estará pagando o mesmo tanto. Obviamente, este paga mais do que
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seria devido enquanto aquele paga menos. Eu não consigo enquadrar corretamente
pers de consumo diferentes, proporcionalmente ao consumo de cada um. Quem quis-
er utilizar mais, deveria pagar mais por isso. Assim, eu não vejo os pacotes de serviço
violando a neutralidade de rede. Ademais, pacotes de serviço protegem o consumidor.
O Marco Civil da Internet diz que exceto por débito decorrente diretamente do serviço,
este não pode ser suspenso. Tudo bem, mas eu posso reduzir a velocidade? Sim, pelo
é assim que me parece dispor a lei. Ocorre que é tênue a fronteira entre reduzir e sus-
pender. Se eu reduzo a ponto de a velocidade restante ser tão baixa que eu não consiga
utilizar boa parte das aplicações de internet, de fato, eu suspendi e eu posso, formal-
mente, justicar que apenas reduzi a velocidade de acesso... Portanto, precisamos dos
dois: autonomia da vontade e contratualidade na parte de cima da pirâmide e pacote
básico regulamentado pelo Poder Público na base. Qualquer coisa inferior ao pacote
básico equivale a um corte.
E o que seria, então, ilícito, por violar a neutralidade de rede? Por exemplo, discriminar
pacotes de serviço da mesma natureza. É muito difícil uma razão justicada pela qual eu
vou discriminar um pacote de dados de um lme em relação a outro lme, ou de uma
aplicação de e-mail em relação a outra aplicação de e-mail. Portanto, o primeiro passo é:
discriminação entre pacotes de dados de mesma natureza, presume-se equivocada. É o
gerenciador da rede quem deve provar porque essa discriminação é válida. Segundo, se-
ria igualmente ilícito diferenciar pacotes de rede de natureza diversa fora das exceções
legais, porque a lei é que dene os limites. O terceiro e mais polêmico aspecto, na minha
visão, é o “zero rating”, que consiste em disponibilizar um serviço de forma gratuita, ou
seja, com tarifa zero. Por exemplo, algumas operadoras de telecomunicação dizem que
usando o Facebook ou WhatsApp não será desconto nada da franquia. A meu ver isso é
um ilícito concorrencial. O pior tipo de ilícito concorrencial, porque me parece ainda pior
do que uma prática desleal contra quem já está no mercado. Anal, o que se cria com o
“zero rating” é uma barreira à própria entrada de novos agentes no mercado. Esta práti-
ca é ótima para nós consumidores, no curso prazo. Mas lembre-se da frase americana:
“there is no free lunch!”. Se você está comendo de graça hoje, alguém pagou por isso. No
caso, o WhatsApp e o Facebook pagaram às operadoras de telecomunicação para que
vocês não precisem descontar isso da sua franquia. E se um concorrente quiser entrar
no mercado e não tiver o poder econômico (“budget”) dessas corporações? Ele nunca
entrará... Portanto, nós nunca teremos sequer a possibilidade de saber se existe algo
melhor do que o WhatsApp e o Facebook. Assim, o “zero rating” me parece uma clara e
nítida violação da neutralidade de rede, com nefastos prejuízos para a concorrência e a
inovação.
Dito isso, eu queria trazer uma breve conceituação para os senhores. Trata-se de um
artigo meu, recente, em que faço a minha denição de neutralidade de rede: “[neutral-
idade de rede é] a proibição de que os administradores da rede manipulem a conexão
dos usuários a m de discriminar pacotes de dados da mesma natureza, com base em
seu conteúdo, origem ou destino, fora das exceções legalmente admitidas.” É isso, sen-
hores. Muito obrigado!
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