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Da Amazônia ao Norte Global e de Volta: As Várias Ayahuascas da II Conferência Mundial da Ayahuasca 1

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Abstract

Introdução Este texto tem como objetivo desenvolver algumas reflexões sobre a II Conferência Mundial da Ayahuasca (II World Ayahuasca Conference), realizada em outubro de 2016 na cidade de Rio Branco, Acre, na Universidade Federal do Acre. A conferência foi realizada por uma organização não governamental nascida na Espanha, o International Center for Ethnobotanical Education, Research & Service (ICEERS). O ICEERS tem como um de seus principais objetivos a legitimação, num contexto internacional, do uso de plantas psicoativas como a iboga e a ayahuasca, empreendendo ações que visam um enfrentamento das perseguições sofridas pelos diversos grupos e sujeitos que recorrem ao uso destas plantas. A primeira conferência, realizada pelo ICEERS, voltada para o debate sobre questões relacionadas à ayahuasca, ocorreu na cidade de Ibiza, na Espanha, em 2014, tendo enfocado, entre outros temas, os problemas resultantes de uma perseguição ou proibição jurídica relativa ao consumo desta bebida. A II Conferência Mundial da Ayahuasca, ocorrida em Rio Branco, tinha como objetivo, segundo seus organizadores, ampliar as discussões sobre a utilização global da ayahuasca, procurando reunir diferentes sujeitos relacionados a esta bebida, com a proposta de abranger seus usos indígenas, os usos religiosos ou não religiosos, as questões terapêuticas, os contextos originais, como o amazônico, e as circunstâncias culturais particulares da expansão de seu uso para outras regiões do mundo. Ela contou com um total de setecentos participantes, vindos de diversos países da América e Europa. Entretanto, se destacou uma preocupação com relação aos contextos originais 1
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Da Amazônia ao Norte Global e de Volta:
As Várias Ayahuascas da II Conferência Mundial da Ayahuasca1
Sandra Lucia Goulart2 & Beatriz Caiuby Labate3
Introdução
Este texto tem como objetivo desenvolver algumas reflexões sobre a II
Conferência Mundial da Ayahuasca (II World Ayahuasca Conference), realizada em
outubro de 2016 na cidade de Rio Branco, Acre, na Universidade Federal do Acre. A
conferência foi realizada por uma organização não governamental nascida na Espanha,
o International Center for Ethnobotanical Education, Research & Service (ICEERS). O
ICEERS tem como um de seus principais objetivos a legitimação, num contexto
internacional, do uso de plantas psicoativas como a iboga e a ayahuasca, empreendendo
ações que visam um enfrentamento das perseguições sofridas pelos diversos grupos e
sujeitos que recorrem ao uso destas plantas. A primeira conferência, realizada pelo
ICEERS, voltada para o debate sobre questões relacionadas à ayahuasca, ocorreu na
cidade de Ibiza, na Espanha, em 2014, tendo enfocado, entre outros temas, os problemas
resultantes de uma perseguição ou proibição jurídica relativa ao consumo desta bebida.
A II Conferência Mundial da Ayahuasca, ocorrida em Rio Branco, tinha como
objetivo, segundo seus organizadores, ampliar as discussões sobre a utilização global da
ayahuasca, procurando reunir diferentes sujeitos relacionados a esta bebida, com a
proposta de abranger seus usos indígenas, os usos religiosos ou não religiosos, as
questões terapêuticas, os contextos originais, como o amazônico, e as circunstâncias
culturais particulares da expansão de seu uso para outras regiões do mundo. Ela contou
com um total de setecentos participantes, vindos de diversos países da América e
Europa. Entretanto, se destacou uma preocupação com relação aos contextos originais
1 Texto apresentado ao V Congreso de la Asociación Latinoamericana de Antropologia -
XVI Congreso de Antropologia en Colombia, Bogotá, 6-9 junio de 2017.
2 Doutora em Ciências Sociais pela Unicamp (Campinas-SP/Brasil), Professora da Faculdade Cásper
Líbero (São Paulo/Brasil) e pesquisadora associada ao NEIP (Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre
Psicoativos). Email: sluciagoulart@gmail.com
3 Professora Visitante do Centro de Pesquisa e Estudos de Pós Graduação em Antropologia Social
(CIESAS), em Guadalajara, e pesquisadora associada ao NEIP (Núcleo de Estudos Interdisciplinares
sobre Psicoativos). Email: blabate@bialabate.net
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de uso desta bebida. Por isso, aliás, se escolheu a cidade acreana de Rio Branco para a
realização do evento. O entendimento dos organizadores do evento era que os indígenas
da Amazônia e os adeptos das chamadas religiões ayahuasqueiras brasileiras
expressavam (ao lado dos demais países Amazônicos) esse contexto original de uso da
ayahuasca.
Assim, foram convidados a participar do evento vários representantes de etnias
indígenas do Acre e do sul do estado do Amazonas. Ao todo, participaram da
conferência 150 indígenas, dos troncos Pano, Aruak e Arawa, das seguintes etnias:
Yawanawa, Shanenawa, Jaminawa, Huni kuĩ, Apurinã, Manchinery, Katukina, Nukini,
Puyanawa, Ashaninka, Madja, Jamamadi, Nawa, Shawãdawa, Apolima-Arara,
Jaminawa-Arara e Kuntawa. Igualmente, os representantes das principais religiões
ayahuasqueiras brasileiras, aquelas que surgiram na região amazônica, foram
especialmente convidados para participar do evento. A Conferência também contou
com a participação de estudiosos de diversas áreas (nacionais e internacionais), e de
representantes de usos da ayahuasca de demais contextos além do Brasil (de países
europeus ou de outros países americanos). Houve 160 palestras na conferência. Para
realizar o evento, o ICEERS contou com o apoio financeiro e institucional de algumas
organizações internacionais ligadas à luta contra a guerra às drogas e, também, com o
apoio de representantes do governo do Acre e da UFAC.
A nossa proposta aqui é empreender uma análise das perspectivas e
posicionamentos dos diferentes sujeitos relacionados ao uso da ayahuasca presentes
nesta Conferência. Identificamos, nesta, um cenário de intensa diversidade, o qual nos
parece expressar oposições entre formas e contextos de uso, entre tipos de
agenciamentos e estratégias políticas, entre tipos de discursos, entre concepções sobre
os significados da bebida e sobre as possibilidades de aplicação dos seus usos.
Destacaremos, neste texto, algumas destas distinções, tais como: os conhecimentos da
ciência ocidental e aqueles nativos; os posicionamentos das religiões ayahuasqueiras
“tradicionalistas” e a visão dos indígenas; as disputas em torno da “autenticidade” ou
“originalidade” ou “tradicionalidadade”, enfim, acerca da legitimidade, das formas de
uso da ayahuasca. Na nossa análise daremos atenção especial a discussões e embates
que nos pareceram sintetizar algumas destas oposições. É o caso da discussão sobre a
mercantilização da ayahuasca e, também, das discussões e mobilizações relativas ao
registro do uso da ayahuasca como patrimônio imaterial.
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Conhecimentos científicos e conhecimentos nativos
Neste tópico pretendemos apresentar diferentes perspectivas e posições que, a
nosso ver, estão relacionadas ao que denominamos, de um lado, conhecimentos
científicos e, de outro, conhecimentos nativos. Esta oposição, num primeiro momento,
pode ser vista por meio das diferenças entre a lógica mais geral dos organizadores da
Conferência e a lógica dos participantes não cientistas da mesma (indígenas e
representantes de religiões sincréticas ou de outros grupos mestiços que fazem uso da
ayahuasca, como os vegetalistas amazônicos ou o centro peruano Takiwasi, além de
pessoas advindas dos círculos da chamada Nova Era).
Um primeiro ponto que nos chama a atenção diz respeito a um conjunto de
críticas ou questionamentos que foram feitos justamente por aqueles que foram,
incialmente, entendidos pelos organizadores da Conferência como os representantes das
práticas mais tradicionais da ayahuasca, e que foram especialmente convidados a
participar com exposições e palestras: os indígenas e os representantes das religiões
ayahuasqueiras brasileiras. Nos dois casos, houve manifestação de receios e de dúvidas
quanto aos benefícios de se participar do evento, e acusações aos organizadores do
mesmo sobre a forma pela qual eles estavam administrando a inclusão dos participantes.
Com relação às religiões ayahuasqueiras brasileiras, os maiores questionamentos
foram expressos pelos representantes dos grupos que se auto-classificam como os
“tradicionalistas”. De acordo com as impressões de uma das autoras deste texto, que
participou da comissão organizadora da Conferência4, durante os contatos entre os
organizadores do evento e representantes destes grupos religiosos ayahuasqueiros, estes
últimos hesitaram muito sobre a sua participação ou não na Conferência devido a
receios e dúvidas relativas a todo um conjunto de questões bastante diverso, como, por
exemplo, no que se refere a quais grupos ou instituições estariam patrocinando o evento,
se este estaria ou não ligado a interesses comerciais (como o de vender a ayahuasca) ou,
ainda, se o ICEERS, e a Conferência de Rio Branco propriamente dita, estavam
apoiando o uso ou legalização de drogas. Além disto, havia a recusa desses grupos de se
associarem a algo realizado em conjunto com vertentes religiosas ou sujeitos com os
quais eles discordam, como é o caso da religião ayahuasqueira brasileira do
4 Beatriz Caiuby Labate participou da Comissão Científica e da Comissão Organizadora da II
Conferência Mundial da Ayahuasca (II World Ayahuasca Conference).
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CEFLURIS, ou de grupos mais ligados aos contextos denominados de “ecléticos” ou
“neo-ayahuasqueiros”. Nesse sentido, o formato mais abrangente, inclusivo, “poroso”,
proposto pelos organizadores do evento, causava suspeita entre os representantes destas
religiões ayahuasqueiras tradicionalistas. Ao final, o potencial conflito foi mitigado por
um longa negociação entre os organizadores da Conferência e a Câmara Temática de
Culturas Ayahuasqueiras. A Comissão organizadora optou por dar autonomia total aos
integrantes da Câmara e seus representantes para que organizassem Mesas de
exposições com apenas quem desejassem convidar. Em paralelo, os responsáveis pelo
evento organizaram, também, outras Mesas com apresentações que mesclavam
integrantes do CEFLURIS, de demais grupos ayahuasqueiros do Acre (não convidados
a participar pela Câmara Temática) e de círculos neo-ayahuasqueiros urbanos, bem
como alguns estudiosos do tema. Entretanto, mesmo com essa solução inicial, ao longo
da Conferência, alguns representantes e aliados de religiões ayahuasqueiras
“tradicionalistas” criticaram duramente critérios, formatos e escolhas de palestrantes ou
convidados feitos pelos organizadores do evento. Conforme explicaremos em outros
tópicos deste texto, se tornaram mais constantes e agudas as críticas de representantes
destas religiões tradicionalistas aos modos de participação indígenas na mesma.
As polêmicas envolvendo os indígenas e os organizadores do evento se
mostraram evidentes e frequentes. Num primeiro momento, ainda antes do início da
Conferência, se disseminaram críticas de representantes de etnias indígenas ou de seus
porta-vozes não-indígenas a respeito do número de índios convidados a realizarem
palestras no evento, bem como do baixo auxílio financeiro dado aos mesmos. Por
exemplo, Taska Yawanawa questionou o valor em euros dos ingressos da Conferência,
e indigenistas acreanos, como Dedé Maia e Jairo Lima, também expressaram esse tipo
de crítica (em blogs e demais postagens de redes sociais), e alguns deles, inclusive,
consideraram esse fato como um indício do caráter “comercial” da Conferência. Outra
crítica destes indígenas e de seus porta-vozes se referia a não consideração da lógica
indígena na definição do formato de Mesas de debates e palestras.
Assim, Jairo Lima, em uma postagem no seu blog, denominou os organizadores
do evento como “doutores que entendem de tudo”, e que ao chegarem ao local onde
nasceu a “cultura da ayahuasca”, tem “a ousadia de ditar como deve ser o evento, quem
pode participar, quantos podem participar etc.”. Lima critica também fatos como o
tempo de fala dado aos indígenas convidados a serem palestrantes (segundo ele muito
pequeno), e a necessidade de envio de resumos das apresentações destes indígenas. A
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questão do formato das Mesas de apresentações e do tempo das exposições foi também
bastante ressaltada por indígenas das várias etnias presentes na Conferência, tendo sido
colocada como o primeiro ponto a ser destacado na Carta Aberta dos Povos Indígenas
do Acre/Brasil, apresentada à organização do evento ao final dele. O tempo das
exposições foi apontado como escasso nesse documento, e visto como um impedimento
para um diálogo maior entre indígenas e o público presente.
A indigenista Dedé Maia que, aliás, participou da Conferência como integrante
da comissão local, montada pelos organizadores do evento, e que visava incluir alguns
representantes (ou porta-vozes) de grupos indígenas, fez críticas similares. Numa
publicação do Blog Xapuri SocioAmbiental5, poucos dias após o fim da Conferência,
Maia também designou pejorativamente os membros do ICEERS (“os espanhóis”) de
“doutores do assunto”, argumentando que alguns organizadores do evento não
conseguiam estabelecer um diálogo com os indígenas devido à dificuldade de não
romperem com o formato puramente acadêmico das apresentações e palestras. A
indigenista, inclusive, entendeu essa atitude como o resultado de um “elitismo
científico”. A este respeito, Dedé Maia relatou, nesta mesma publicação, que os
membros do ICEERS, em vários momentos, pareceram incomodados com as demandas
de maior inclusão de indígenas nas Mesas de apresentações que abarcavam “cientistas
ocidentais”. Segundo ela, numa ocasião, um dos representantes do ICEERS teria
respondido a esta demanda afirmando que a Conferência não era indígena, mas sim
científica e que os índios eram apenas convidados. Com relação a esta crítica da
indigenista, vários dos organizadores do evento responderam, em diversas ocasiões, que
a Conferência de Rio Branco era plural, não necessariamente ou exclusivamente
científica, mas tinha um caráter amplo, visando abranger perspectivas de diferentes
sujeitos, não apenas indígenas (e não apenas de indígenas do Brasil). Maia, no blog
Xapuri SocioAmbiental, argumentou que esta posição da organização do evento se
opunha a visão dos indígenas, os quais entendiam que eles eram os verdadeiros
“anfitriões” daquele evento, pois estavam na sua terra e, por isso, eles se consideram os
“guardiões” dos assuntos abordados pelos cientistas nas Mesas do evento.
5 Ver: http://www.xapuri.info/amazonia-agenda/ayahuasca-um-balanco-cidadao-da-conferencia-no-acre/
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É importante chamar a atenção para o fato de que o termo “guardiões”6 foi
extremamente recorrente ao longo de toda a Conferência, sendo utilizado
constantemente por indígenas e seus porta-vozes (não indígenas) para se referir a temas
como a “originalidade”, a “anterioridade”, a “autenticidade” ou a “legitimidade” dos
usos e conhecimentos ligados a bebida genericamente conhecida como ayahuasca.
Analisaremos esse ponto mais detalhadamente ao final deste texto. Outra expressão que
se destaca nas discussões e polêmicas que acabamos de citar é a de “doutores”
(“doutores do assunto”, “doutores da ayahuasca” etc.). Como vimos, esta expressão foi
usada, em muitos casos, com um sentido pejorativo, para classificar cientistas,
organizadores do evento e, em geral, brancos vistos como não aliados dos índios como
sendo “elitistas”, “arrogantes” e incapazes de compreender tanto a lógica indígena
quanto o seu papel e sua relevância no que tange às questões relacionadas à ayahuasca.
Vale notar que no contexto do vegetalismo peruano os espíritos-plantas que pertencem
ou estão ligados à ayahuasca são considerados os verdadeiros mestres, conhecedores e
donos das bebidas (Luna 1986). Neste cenário, aqueles que trabalham com as plantas
podem ser chamados de “doutores”, “doctorcitos”, ou “médicos tradicionais”,
expressando uma influência de concepções e termos da ciência ocidental, os quais
migram e são ressignificados por populações mestiças e indígenas.
Os organizadores do evento, membros da Fundação ICEERS, estavam cientes
desse conjunto de críticas. Em vários momentos, tanto antes do início da Conferência,
ao longo do processo da definição de sua formatação, como durante sua realização e
após o seu término, apresentaram publicamente respostas a vários destes
questionamentos. Com relação às críticas sobre o valor das inscrições, enfatizaram o
caráter não comercial da Conferência, e o fato de se pretender realizar uma apresentação
pública dos gastos com a mesma, além de salientarem as várias dificuldades de custos
de um evento de tão grande porte, e com o financiamento de tantos participantes, tanto
nacionais quanto internacionais. O ICEERS também argumentou que estabeleceu uma
quantidade de ingressos gratuitos para indígenas, além de destinar uma parte dos
recursos do evento para a garantia da vinda e permanência de indígenas na Conferência.
A respeito do tema da inclusão de um número maior de indígenas no evento como
expositores, os representantes do ICEERS lembraram, em alguns pronunciamentos, que
6 No contexto brasileiro, a palavra guardiões tem sido utilizada, também, mais recentemente, para
designar coletivos, associações ou organizações de ativistas indígenas e não indígenas, que visam garantir
tanto direitos para os primeiros quanto expressam suas recentes manifestações culturais e articulações
políticas.
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se esforçaram por incluí-los ao máximo, criando, inclusive, uma comissão especial com
integrantes de algumas organizações de indígenas do Acre, dando total autonomia para
esta comissão no que se refere à escolha daqueles que poderiam participar do evento, da
escolha dos temas e de suas Mesas.
Numa postagem na página do facebook da Conferência, o ICEERS publicou um
esclarecimento no qual afirmava, em resposta a algumas destas críticas, que a
conferência “é ampla, democrática e inclusiva”. Além disso, se ressalta que ela é
“mundial, e procurou combinar os diversos personagens e movimentos envolvidos na
expansão mundial da ayahuasca”. Entre estes personagens e movimentos são citados:
“indígenas, representantes religiosos, ativistas, terapeutas, jornalistas, cineastas, artistas,
legisladores, especialistas nas áreas de direitos humanos, saúde pública e política de
drogas, autoridades públicas e pesquisadores de diversas áreas do conhecimento”.
Nos parece, portanto, aqui, que à demanda de alguns indígenas e de seus porta-
vozes brancos, com relação à especificidade ou à particularidade da lógica, dos
conhecimentos, do modo de ação de índios, enfim, diante da reivindicação do respeito
ou do espaço para a “diferença” do outro indígena, os organizadores do evento (do
ICEERS) contrapuseram o caráter mais “amplo”, mais “inclusivo” e “mundial” da
Conferência. Assim, parece que este “mundial” quer dizer: não apenas indígena, ou não
apenas branco, não apenas religioso, não apenas terapeuta, ou não apenas cientista etc.,
mas talvez, signifique a pretensão de reunir e colocar lado a lado todas estas diferentes
perspectivas.
Na nossa percepção, a meta dos organizadores de realizar uma Conferência que
abarcasse a maior diversidade de usos, contextos e tipos de conhecimentos relacionados
à bebida ayahuasca foi bem atingida. A dificuldade de se estabelecer consensos e de se
visualizar uma homogeneidade neste cenário de usos da ayahuasca, durante a
Conferência, aponta, justamente, para a manifestação desta diversidade. Entretanto,
notamos, também, que a diversidade e o dissenso expresso ao longo do evento, por
diferentes sujeitos, foi sentido pelos organizadores do mesmo como bem maior do que o
esperado ou imaginado – sobretudo na medida em que a Conferência permitiu um
diálogo de vozes que normalmente não estão em comunicação.
Além das diferenças de entendimento sobre a organização da Conferência,
entre, de um lado, organizadores do evento, do ICEERS (brancos, estrangeiros e vistos
como cientistas) e, de outro lado, nativos não cientistas (índios ou não), ocorreram uma
série de controvérsias a respeito da validade, da legitimidade ou dos benefícios e
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malefícios de formas de uso e de tipos de aplicações da ayahuasca. Nesse sentido, um
tema que causou polêmica, em discussões geradas por apresentações feitas em algumas
Mesas da Conferência se refere à transposição do consumo da ayahuasca, ao mesmo
tempo, in natura e em contextos rituais, para formas entendidas como mais artificiais,
num contexto de laboratórios e hospitais que marcariam o cenário de experimentos da
ciência ocidental moderna. Importante dizer que o evento contou com Fóruns e Mesas
voltadas para apresentações de trabalhos e pesquisas da área das ciências biomédicas.
Em algumas destas apresentações, foram expostos dados e resultados de usos
terapêuticos, medicinais, clínicos etc. feitos com a ayahuasca, sem a referência à ou a
consideração de aspectos religiosos ou rituais. Esse tipo discussão, em alguns
momentos, desagradou alguns sujeitos, como indígenas, adeptos de religiões
ayahuasqueiras brasileiras, ou representantes de centros terapêuticos que utilizam a
tradição de uso indígena (ou mestiça) da ayahuasca para tratar fenômenos típicos da
sociedade moderna (como o uso problemático de drogas).
Assim, por exemplo, causaram muito constrangimento, ao longo do evento,
algumas exposições que destacaram como importante ou benéfico a utilização, recente,
em alguns contextos europeus, da ayahuasca em psulas. Do mesmo modo, um texto
escrito por um dos integrantes do ICEERS, após o término da Conferência, no qual se
afirmava que já existia bastante comprovação científica da eficácia terapêutica da
ayahuasca “sem necessidade de rituais” gerou insatisfação e novas críticas por parte de
alguns. Para a ativista indígena Dedé Maia (2016), esse tipo de colocação exclui “todo o
valor espiritual que os “índios” milenarmente praticam com essa bebida”. Os
pesquisadores envolvidos, por outro lado, defendiam a realização de suas pesquisas,
questionando: “o que fazemos com os pacientes que não querem participar de rituais?”
A complexidade e diversidade de perspectivas que esse tipo de polêmica abrange
podem ser percebidas ao refletirmos sobre alguns posicionamentos de um personagem
como o médico francês Jacques Mabit, radicado no Peru e naturalizado peruano. Mabit
é o fundador do centro terapêutico Takiwasi7, voltado para tratamentos de dependências
de drogas através da combinação do uso da ayahuasca e outras plantas medicinais e
purgativas típicas do vegetalismo peruano com técnicas terapêuticas ocidentais e
aspectos do cristianismo. Num primeiro momento, e a partir de um olhar mais
7 Centro de Rehabilitación de Toxicómanos e Investigación de Medicinas Tradicionales, localizado na
cidade de Tarapoto, Peru (www.takiwasi.com).
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distanciado, como se diz em antropologia, mais “de fora”, poderíamos ficar inclinados a
entender o tipo de uso que Mabit desenvolve com a bebida como híbrido e
ocidentalizado, não característico apenas do contexto do vegetalismo peruano.
Entretanto, Mabit ao longo do tempo se posicionou como um crítico contundente de
usos da ayahuasca que ele classifica como não tradicionais ou profanos. Na sua
exposição, condenou os usos terapêuticos da ayahuasca feitos num contexto de uma
medicina ocidental que exclui as tradições rituais (Mabit 2016). Para ele, essa medicina
ocidental dessacralizada leva a usos inadequados da bebida. Por outro lado, nesta
exposição, bem como em outras apresentações públicas ou em demais textos seus,
Mabit deixou evidente que não considera os diferentes contextos rituais de uso desta
bebida como igualmente válidos ou legítimos. Na sua apresentação da Conferência de
Rio Branco, por exemplo, criticou duramente as manifestações que ele classifica como
pertencentes aos movimentos New Age, que segundo ele expressam uma espiritualidade
desencarnada que tende a profanar os usos tradicionais, sagrados da ayahuasca. Na
visão de Mabit esse tipo de uso da bebida poderia, inclusive, gerar problemas de
dependência. Também são antigas e conhecidas as críticas de Mabit aos contextos de
uso da ayahuasca das religiões ayahuasqueiras, os quais, na sua ótica, aparecem como
desviantes de ritos ou de tradições mais ancestrais e legítimos. Fez algumas críticas
também a certas concepções científicas, dos “antropólogos”, as quais classificariam os
rituais como apenas simbólicos. Para ele, esta noção nega os aspectos verdadeiros dos
rituais, os quais, em diversos casos, possuem um papel importante na proibição ou
evitação de malefícios reais, tais como os ataques espirituais que compõem a realidade
do xamanismo ayahuasqueiro peruano. No mesmo sentido, Mabit questionou os
serviços ocidentais de “integração do uso da ayahuasca”, uma vez que os psicólogos não
saberiam “exorcizar os espíritos, que são reais”, e que frequentemente afligiriam os
pacientes. Assim, um médico francês, tratando de um mal tipicamente ocidental (o uso
problemático das drogas) torna-se representante de uma visão mais ortodoxa – quando
comparado a outros tipos de sujeitos presentes na Conferência de Rio Branco que
opõe de alguma maneira usos tradicionais e ciência (isto é, pesquisa biomédica, em
ciências sociais) ou serviços de intervenções em saúde pública.
Mercantilização
Uma discussão que se colocou logo no início da II Conferência Mundial da
Ayahuasca e que se intensificou ao longo da mesma, gerando várias polêmicas e
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conflitos, diz respeito ao tema da comercialização da ayahuasca. Entre as religiões
ayahuasqueiras brasileiras esse tema se faz presente de forma mais evidente ao menos
desde o momento em que se inicia a sua expansão para fora da região amazônica, que
coincide com o começo do processo de regularização do uso da bebida pelo Estado
brasileiro (a década de 1980). Assim, ele aparece já no primeiro documento público
elaborado por representantes destas religiões, em 1991, a chamada “Carta de Princípios
das Entidades Religiosas Usuárias da Ayahuasca”8. Neste documento estas religiões
(todas originárias da região amazônica) estabelecem um conjunto de princípios e
acordos, se comprometendo publicamente a mantê-los. Justamente, um dos princípios
mais destacados é o compromisso de não se comercializar o uso da ayahuasca.
Aqui é importante fornecer algumas explicações. Ao longo da história destas
religiões foram se delineando alianças políticas mais fortes entre alguns de seus grupos
e, por outro lado, alguns distanciamentos entre outros. O tema da comercialização da
ayahuasca foi, muitas vezes, acionado como categoria de acusação entre grupos de
religiões ayahuasqueiras que se contrapõem9. Tem sido comum, por exemplo, a
manifestação desta acusação por representantes de religiões ayahuasqueiras da
Amazônia, que atualmente se identificam como as mais “tradicionais” ou
“tradicionalistas” contra religiões ayahuasqueiras (também surgidas na Amazônia)
como o CEFLURIS, visto pelas primeiras como menos ligado à tradição do Santo
Daime fundada por Raimundo Irineu Serra, o Mestre Irineu, em 1930, na capital do
Acre, Rio Branco. Assim, se estabeleceu gradualmente uma forte aliança entre: o grupo
da religião fundada pelo Mestre Irineu (nos anos 1930 no Acre), o Centro de Iluminação
Cristã Luz Universal – o Alto Santo (CICLU-ALTO SANTO), conhecido popularmente
muitas vezes como Alto Santo ou Santo Daime; o Centro Espírita e Culto de Oração
Casa de Jesus Fonte de Luz, da tradição fundada pelo Mestre Daniel Pereira de Matos,
popularizada como “Barquinha” (e também nascido no Acre); e o Centro Espírita
Beneficente União do Vegetal, a UDV, fundada pelo Mestre José Gabriel da Costa no
estado brasileiro de Rondônia.
Esses três grupos foram desenvolvendo várias iniciativas conjuntas para a
ampliação do diálogo com representantes do poder público, e em especial com os
poderes públicos do estado do Acre. As alianças e estratégias políticas em comum entre
8ENTIDADES RELIGIOSAS USUÁRIAS DO CHÁ HOASCA, 1991 “Carta de Princípios das Entidades
Religiosas Usuárias do Chá Hoasca”, Rio Branco.
9 A tese de doutorado de Sandra Lucia Goulart, ao analisar os contrastes, conflitos e processos de rupturas
entre vários grupos destas religiões, se detém, também, neste tema (Goulart 2004).
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eles se aprofundaram ao longo dos anos 2000, com a disseminação dos esforços para
relacionar, no Brasil, o tema da ayahuasca às discussões sobre políticas culturais.
Foram, inclusive, esses três grupos que, em 2008, entraram com o pedido do registro do
uso ritual da ayahuasca como patrimônio imaterial da cultura brasileira (Labate, 2012;
Goulart 2016; Goulart e Labate 2016). Na sua mobilização política relativa à
patrimonialização da ayahuasca, eles foram estabelecendo definições e classificações
que visavam marcar suas diferenças e oposições com relação a outros grupos, no Brasil,
ligados à ayahuasca. Isso se deu principalmente em relação à religião ayahuasqueira do
CEFLURIS, fundada pelo Padrinho Sebastião Mota de Melo, no Acre, em 1975, como
uma dissidência do grupo daimista criado pelo Mestre Irineu.
Para esses três grupos, contudo, também é importante a sua distinção com
relação aos usos indígenas. Assim, neste processo de buscar a patrimonialização, eles
criam novas auto-designações e novas denominações para grupos ou sujeitos vistos
como pertencentes a “campos ayahuasqueiros diferentes” (Neves e Souza 2010). Para
eles, os indígenas estariam ligados ao campo dos “originários”, o qual expressa os usos
mais antigos, milenares da ayahuasca (Neves e Souza 2010, p. 101). Haveria outro
campo que seria de origem mais recente, inaugurado pelo CEFLURIS, mas que
atualmente inclui novos grupos, como os chamados “neo-ayahuasqueiros”. Este campo
é classificado por estes três grupos religiosos como “eclético”. Na perspectiva dos
representantes dos grupos do Alto Santo, da UDV e do Centro Espírita e Culto de
Oração Casa de Jesus Fonte de Luz (conhecido como Barquinha), o campo dos
“tradicionais” é aquele que os representa. Para eles, este campo estaria relacionado aos
“três mestres fundadores” dos três “troncos ayahuasqueiros” (Santo Daime, Barquinha e
UDV), que expressam “manifestações caboclas, brasileiras e amazônicas”, mas com um
enfoque marcadamente cristão e apenas difusamente indígena (Neves 2011). Eles se
auto- identificam, portanto, como o campo tradicional de uso da ayahuasca no Brasil.
Todas estas diferenças, oposições, alianças e rivalidades se explicitaram ao
longo da realização da II Conferência Mundial da Ayahuasca, em Rio Branco.
Conforme comentamos, representantes de religiões ayahuasqueiras que se auto-
classificam como do campo dos tradicionais chegaram a hesitar quanto à sua
participação no evento devido a uma recusa de maior aproximação com o contexto
global do uso da ayahuasca (e de outras plantas psicoativas), e com grupos como o
CEFLURIS em particular. Por outro lado, a participação do CEFLURIS na Conferência
não deixou de revelar, para o observador atento, a existência do conflito, uma vez que
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seus representantes foram dispostos em Mesas de exposições que não eram os principais
espaços destinados às igrejas ayahuasqueiras “tradicionais’ ou “oficiais”. Os integrantes
e representantes do CEFLURIS, ao que parece, também, de um modo geral, não se
sentiram suficientemente incluídos por outras religiões ayahuasqueiras que participavam
do evento. Nas mesas de apresentações, assim como nas conversas informais, isto é, nos
“bastidores” da Conferência, ocorreram, por vezes, manifestações e comentários que
insinuavam a acusação de comercialização ou turismo religioso ligado à ayahuasca feito
pelo CEFLURIS. Essa acusação, frequente ao longo da história destas religiões,
costuma estar ligada a crítica de religiões ayahuasqueiras “tradicionalistas” ao caráter
mais expansionista e mais eclético do CEFLURIS.
Entretanto, o fato mais novo e que ganhou mais destaque, durante os dias da II
Conferência Mundial da Ayahuasca, diz respeito às acusações de integrantes e porta-
vozes das religiões ayahuasqueiras “tradicionalistas” sobre os indígenas estarem
comercializando a ayahuasca. Esta acusação foi publicamente colocada no segundo
dia da Conferência, justamente numa das Mesas de apresentações10 de representantes
das religiões ayahuasqueiras “tradicionalistas” ou, como eles também se denominam,
das “comunidades tradicionais da ayahuasca”. Assim, Cosmo de Souza, integrante de
um dos centros daimistas de Rio Branco ligados à tradição do Alto Santo, que é também
procurador do Estado Acre, afirmou, num momento de sua exposição que o “Daime
tem valor, o Vegetal11 tem valor, então não pode ter preço, pois isso significa nossa rica
cultura sendo colonizada pelo poder econômico”12. Na sua apresentação, Cosmo de
Souza questionou particularmente a realização de sessões de ayahuasca feitas por
indígenas nos dias da Conferência que, disse ele, comentava-se que estavam sendo
cobradas em dinheiro.
De fato, durante os dias da Conferência foram realizadas várias cerimônias de
ayahuasca coordenadas por indígenas de diversas etnias. Havia, inclusive, um
calendário oficial destas cerimônias, que foi divulgado pelos membros do ICEERS na
pagina de Facebook do evento. A oferta de rituais era bastante variada e intensa,
incluindo diferentes etnias. Portanto, a realização destas cerimônias era do
conhecimento dos organizadores da Conferência, eles não se opunham a elas, mas as
10 A Mesa intitulada: A Construção da Credibilidade Social: Legalização, Conquistas e Legitimidade.
11 Vegetal é a designação dada à ayahuasca na religião da União do Vegetal.
12 Este comentário foi retirado de uma publicação do site da Agência de Comunicação do Governo do
Acre: http://www.agencia.ac.gov.br/tradicionais-defendem-a-nao-comercializacao-do-cha-na-
conferencia-da-ayahuasca/
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consideravam uma das atividades que ocorriam em torno do evento, e que eram
independentes das apresentações das Mesas e Fóruns, eram atividades extras,
organizadas autonomamente por grupos que participavam da Conferência. Os
organizadores das diferentes cerimônias estabeleceram valores monetários diferentes
para cada uma delas. Assim, o calendário incialmente divulgado pela organização do
evento incluía as seguintes cerimônias e as seguintes datas: dia 17 - cerimônia todos os
pajés presentes; dia 18 -cerimônia com os Huni Kuin (Ixã Sabino, Ixã Virgulino e
outros); dia 19 - cerimônia Força Feminina Indígena - Waxy Yawanawa; dia 20 -
cerimônia com os Hushahu Yawanawa & Mawá Isã; dia 21- cerimônia de fechamento
da conferência com todos os pajés presentes. As associações responsáveis pela
organização destas sessões foram: FEPAHC – Federação dos Huni Kuin; SITOAKORE
- Organização das Mulheres Indígenas do Acre, do sul da Amazônia e noroeste de
Rondônia; OPIARA - Organização dos Povos Indígenas do Acre, do sul do Amazonas e
noroeste de Rondônia; ASCY – Associação Sócio Cultural Yawanawá13.
É importante dizer que várias destas cerimônias eram organizadas
conjuntamente por indígenas e não-indígenas. Estes últimos sendo frequentemente
sujeitos urbanos e de classe média vindos, originalmente, de contextos culturais e de
regiões bem distintas dos indígenas. Esse tipo de parceria tem se mostrado bastante
comum no cenário brasileiro de uso da ayahuasca. Labate e Coutinho (2014), por
exemplo, destacam que, sobretudo a partir do início dos anos 2000, diferentes grupos
indígenas, situados no Brasil, começam a construir novas alianças tanto com religiões
ayahuasqueiras de sincretismo cristão, quanto com grupos neo-ayahuasqueiros, ligados
a movimentos entendidos como neo-xamânicos ou, mesmo, de um esoterismo da Nova
Era. Algumas destas parcerias e associações envolvem a realização constante de sessões
da bebida em cidades e contextos diversos dos amazônicos. Estas sessões, em geral,
combinam “desenho ritual” (para usar um termo nativo) da etnia indígena envolvida
com elementos terapêuticos e espirituais de origem urbana, sendo o seu público
majoritariamente não indígena. A participação nestas cerimônias é, sempre, cobrada
monetariamente, embora esse valor possa variar. Esse movimento de alianças entre
indígenas e não indígenas, na configuração de novas formas de uso da ayahuasca no
Brasil, tem sido particularmente evidente com os indígenas kaxinawá do sul do Acre, os
13Estas informações foram retiradas de uma postagem da página do facebook oficial dos organizadores da
II Conferência Mundial da Ayahuasca:
(https://www.facebook.com/events/695172547300622/?acontext=%7B%22action_history%22%3A%22n
ull%22%7D).
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quais mais recentemente reivindicam a autodesignação Huni Kuin (Coutinho 2011).
Outros personagens significativos nesta expansão são os Yawanawa (Oliveira 2012).
Assim, a realização de sessões de ayahuasca envolvendo fluxos entre sujeitos
indígenas e não indígenas, e com cobrança monetária, ocorrida na II Conferência
Mundial da Ayahuasca, longe de ser uma novidade, expressa um tipo de fenômeno que
tem se mostrado cada vez mais frequente e importante no cenário brasileiro da
ayahuasca. Contudo, é importante ressaltar que, no Acre, local de origem das religiões
ayahuasqueiras brasileiras, a realização deste tipo de cerimônias ainda não é comum, o
que nos ajuda a compreender a insatisfação de vários representantes das religiões
ayahuasqueiras tradicionalistas com relação a esse ponto. Na verdade, em outras
ocasiões, além do período da II Conferência Mundial da Ayahuasca, também foram
expressas algumas críticas por integrantes de religiões ayahuasqueiras tradicionalistas
ao modo como indígenas do Acre conduzem sessões da bebida para um público não
indígena, em contextos distintos dos amazônicos e com supostas finalidades comerciais.
Entretanto, essas críticas eram mais ocasionais, pontuais, isto é, ligadas a sujeitos e
casos específicos. Na Conferência de Rio Branco elas tomaram, contudo, outra
dimensão, muito maior.
O debate sobre o tema da comercialização tomou conta de boa parte do evento,
tantos nas apresentações formais quanto nos espaços extra oficiais. Alguns indígenas e
participantes acusaram outras organizações indígenas de realizar rituais “não
autorizados”; o tema também dividiu indigenistas e parte da comissão local da
conferência. Sujeitos diferentes, incluindo indígenas, apresentaram vários argumentos
relativizando a cobrança de ingressos nas cerimônias. Destacamos, aqui, alguns destes
argumentos, apresentados por distintos atores presentes na Conferência: somos uma
organização composta por uma comunidade, quem não puder pagar, pode entrar do
mesmo jeito”; “não é cobrança, é uma doação”, “sugerimos doação, porque para nós
tem custo produzir a ayahuasca, viajar, alugar um espaço”; “as igrejas do Daime
também cobram”; “qualquer religião cobra dos seus membros, até para casar na igreja
tem que pagar”; “os índios não comercializam, quem comercializa são os brancos”;
“não gosto de ver o que está acontecendo com a comercialização da ayahuasca entre os
indígenas, mas depois que nós roubamos suas terras, seus rios estão contaminados, não
tem mais caça, eles são totalmente marginalizados, excluídos e estigmatizados, acho que
eles têm o direito sim de cobrar por seus rituais”; “os xamãs ou curandeiros sempre
receberam por seus serviços”.
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Independente de uma resolução ou consenso em torno desta questão espinhosa
da comercialização da ayahuasca, se tornou evidente que os representantes das religiões
ayahuasqueiras “tradicionalistas”, ao acusarem indígenas de estarem fazendo um uso
inadequado da ayahuasca por cobrarem dinheiro por suas sessões, passaram a ter sua
própria posição (de tradicionalistas) mais questionada. Dito de outro modo, o status de
mais tradicionais que estes grupos vêm reivindicando começou a ser mais fortemente
ameaçado quando eles criticaram publica e veementemente os indígenas. Isto se dá pelo
papel, pela condição histórica, bem anterior, de grupos indígenas em relação aos usos da
ayahuasca. Vale lembrar, aliás, que, diante do Estado brasileiro, conforme é
estabelecido pela constituição deste país, de 1988, os índios são considerados povos
“originários”. Este é um termo que tem origem jurídica, mas que destaca a relevância
histórica dos indígenas com relação à ocupação do território que hoje é o Brasil, e
enfatiza a sua ligação original com um conjunto de conhecimentos, tradições, modos de
vida, costumes, etc.
Deste modo, com relação ao uso da ayahuasca, uma bebida utilizada
originalmente por grupos indígenas amazônicos, estes sujeitos tendem a aparecer
publicamente, como tendo uma prerrogativa com relação a outros sujeitos não
indígenas. A afirmação desta prerrogativa foi enfatizada, muitas vezes, por diferentes
indígenas em suas falas e pronunciamentos na II Conferência Mundial da Ayahuasca.
Como disse, num debate, um indígena Huni Kuin, da aldeia Feijó, “não abrimos mão de
sermos os detentores desse conhecimento” (ou seja, do conhecimento da bebida). O uso
da ayahuasca feito por representantes de etnias indígenas foi, repetidas vezes afirmado,
ao longo da Conferência, como “milenar”, portanto muito anterior aos usos das
chamadas religiões ayahuasqueiras brasileiras. Isso explica tanto o recurso constante aos
termos “detentores” e “guardiões” da ayahuasca feito por alguns indígenas, quanto uma
aceitação relativamente ampla, de não indígenas, como agentes do Estado, estudiosos e
estrangeiros em geral, do argumento da prerrogativa do uso indígena da ayahuasca.
Neste cenário, as religiões ayahuasqueiras “tradicionalistas” não podem criticar
os indígenas ou rivalizar com eles (sobre a comercialização da bebida, por exemplo) do
mesmo modo como tem feito com religiões ayahuasqueiras “ecléticas”, como o
CEFLURIS, sem que tenham seu próprio status e sua posição sobre o uso da bebida
ameaçada ou danificada. Na verdade, nos últimos anos, os indígenas, no Brasil, tem
expressado um interesse crescente em participar mais dos debates públicos sobre a
ayahuasca. Esta maior participação dos indígenas nesse debate parece está trazendo
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alterações importantes na configuração das posições e das classificações entre os vários
sujeitos e atores do campo ayahuasqueiro. Por exemplo, o aumento de parcerias de
etnias indígenas com representantes de religiões como o CEFLURIS, e também com
integrantes de grupos ayahuasqueiros desvinculados de um contexto amazônico e
ligados ao universo da Nova Era, posiciona os índios ao lado dos “diferentes” e dos
“ecléticos”, extrapolando sua condição de “originários”. A Conferência, mediada por
estrangeiros, acabou exacerbando um processo que já vinha ocorrendo de maneira
incipiente no Brasil: a reconfiguração do campo religioso e do debate público em torno
da ayahuasca. Como vimos, a Conferência trouxe uma enorme quantidade de indígenas
de várias partes da Amazônia e os colocou em contato direto com os representantes
desses grupos, no seio de seu território; permitiu a realização de uma enorme quantidade
de rituais; e explicitou novas alianças entre indígenas e seus colaboradores urbanos.
Neste cenário, as divisões e classificações defendidas pelas religiões ayahuasqueiras
tradicionalistas - entre “tradicional”, “originários” e “ecléticos” -, se tornam bastante
complexificadas.
Quem é o “Dono da Ayahuasca”?
A partir deste breve panorama da II Conferência Mundial da Ayahuasca,
podemos perceber, em primeiro lugar, que os usos desta bebida, na atualidade, implicam
numa grande diversidade, envolvendo diferentes tipos de sujeitos e contextos. Em
segundo lugar, notamos que essas diferenças se expressam, em muitos casos, na forma
de conflitos, dissensos e marcadas contraposições. Ao mesmo tempo, sustentamos que
os fatos ocorridos nesta Conferência demonstraram um movimento de reconfiguração
dos posicionamentos e classificações dos vários atores deste “campo mundial
ayahuasqueiro”. Visualizamos, nesse movimento, a emergência de novos conflitos e
novas contraposições no campo ayahuasqueiro brasileiro.
Durante toda a Conferência, apresentações feitas em Mesas, falas,
pronunciamentos, discussões em fóruns fechados etc. nos pareceram trazer à tona uma
disputa sobre “quem é o dono da ayahuasca”? Assim, que tipo de sujeito ou ator poderia
definir qual “o uso apropriado da bebida”? Procuramos apontar, ao longo desse texto,
que visões de representantes de diversos grupos ou sujeitos usuários da ayahuasca
muitas vezes se opõem a visões de estudiosos desse fenômeno (conhecimentos nativos x
conhecimentos científicos), como também visões de diferentes grupos ou sujeitos
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usuários da bebida (nativos) se opõem mutuamente, disputando a posição de mais
“tradicional”, mais “autêntica” ou mais “benéfica”, enfim, mais legítima.
Assim, representantes indígenas questionaram a posição, o status, a legitimidade
da perspectiva e da fala de não índios, não locais, não nativos (“os espanhóis”), e de
especialistas da ciência (“os doutores”) para tratar da ayahuasca. Eles se colocaram,
frequentemente, como os “guardiões” ou “detentores” de todos os saberes relacionados
a esta bebida, em especial aqueles relativos às plantas usadas para sua preparação. Esse
forte posicionamento indígena como os representantes mais “originários” do uso da
ayahuasca teve consequências na configuração de distinções e oposições que antes se
colocavam mais facilmente no cenário de uso da ayahuasca no Brasil. Afinal, se os
índios se colocam como os autênticos detentores dos conhecimentos sobre a ayahuasca,
como representantes de algumas religiões ayahuasqueiras brasileiras podem continuar
se apresentando publicamente como os mais tradicionais? Nos parece que esta
apresentação não pode se dar, agora, tão facilmente. Porém, é interessante observar que
neste novo cenário de posições e atores, os vários sujeitos reelaboram seus discursos,
argumentos, categorias e estratégias. Assim, por exemplo, uma integrante de uma das
religiões ayahuasqueiras que se classificam como tradicionalistas, durante a plenária de
uma das Mesas da Conferência de Rio Branco, sustentou que se os índios são mais
antigos, originários no uso da ayahuasca, por outro lado, os fundadores das religiões
ayahuasqueiras, os seus Mestres (Irineu, Daniel e Gabriel) são os “guardiões” desse
“tesouro indígena”, que estaria correndo o risco de se perder, uma vez que muitos
indígenas teriam deixado de utilizar a ayahuasca, e agora, alguns, inclusive, estavam
sendo reapresentados à bebida através das igrejas ayahuasqueiras tradicionalistas14.
Muitos destes embates se expressaram, de modo mais nítido e sintético, nas
discussões sobre o tema da patrimonialização da ayahuasca realizadas durante a
Conferência. Nesta ocorreu um Fórum específico, fechado, com convidados
selecionados antecipadamente, para se discutir o tema (do qual participamos). A
proposta mais geral era promover uma discussão sobre as possibilidades de tornar o uso
da ayahuasca patrimônio cultural imaterial da humanidade, tendo em vista uma
mobilização para que isso fosse alcançado via UNESCO. Por isso, foram convidados
especialistas envolvidos com o tema do patrimônio em diversos países e, em especial,
14 Trata-se de uma integrante do Centro Espírita e Culto de Oração Casa de Jesus Fonte de Luz, muitas
vezes identificado popularmente pela designação Barquinha, ligada à tradição de uso da ayahuasca
fundada por Mestre Daniel Pereira de Matos, no Acre, na cidade de Rio Branco, em 1945.
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com o tema da patrimonialização da ayahuasca, além de representantes de diversos usos
da bebida, indígenas e não indígenas, do Brasil e do exterior. Entretanto, as discussões
do Fórum se desenvolveram de um modo completamente diverso daquele programado
pelos seus organizadores. Até mesmo as dinâmicas de debates e apresentações foram
duramente criticadas por vários dos participantes. Em diversos momentos foi possível
observar falas, discursos, questionamentos, respostas etc. que expressavam diferentes
perspectivas sobre qual o uso adequado para a bebida, sobre quem detém o
conhecimento a respeito dela, sobre o que é patrimônio e quais seus benefícios e, por
fim, sobre o que é ou quem é a bebida, isto é, se questionou, em última instância, a
existência de uma mesma bebida a ser patrimonializada. Há uma ou várias ayahuascas?
A própria palavra “ayahuasca” também foi colocada em xeque em alguns momentos da
Conferência, como quando um indígena afirmou não entender do que tratava “esta
palavra espanhola”, já que “para nós aqui tem outro nome”.
Os indígenas, em particular, manifestaram estar bastante confusos e
desinformados sobre o processo de registro do uso da ayahuasca como patrimônio
cultural imaterial do Brasil. Uma dúvida que se colocou várias vezes, durante esse
Fórum, diz respeito ao tema do registro e das patentes. Muitos dos indígenas fizeram
questionamentos que indicavam uma confusão entre essas noções e processos.
Importante notar, sobre isso, que as discussões acerca do registro da ayahuasca como
patrimônio cultural, no Brasil, foram iniciadas com a solicitação feita por três grupos
das religiões ayahuasqueiras sincréticas que se classificam como “tradicionalistas”.
Entretanto, com o início das articulações com representantes do Estado, estes passaram
a exigir a inclusão dos indígenas nesse debate15. Na verdade, os próprios indígenas, logo
ao saberem do envio da solicitação de registro da ayahuasca como patrimônio cultural
pelas religiões ayahuasqueiras tradicionalistas, solicitaram encontros e reuniões com
representantes do Ministério da Cultura brasileiro para reivindicar sua inclusão nesse
processo (Goulart 2016; Labate 2012; Goulart e Labate 2016). Aliás, com relação a esse
ponto, chamou a atenção o comentário, feito por um indígena Huni Kuin, durante o
Fórum sobre patrimonialização da ayahuasca da Conferência de Rio Branco. Este
indígena disse num determinado momento das discussões sobre o registro da ayahuasca
15 Uma das autoras deste artigo, Sandra Goulart, participou da equipe que ficou responsável pela
realização do processo inicial de pesquisa instaurado pelo Instituto do Patrimônio Histórico Artístico e
Nacional (IPHAN), órgão ligado ao Ministério da Cultura brasileiro que é responsável pela aplicação das
políticas culturais, como as de patrimônio. Esse processo de pesquisa se denomina Inventário Nacional de
Referências Culturais, e foi realizado durante o ano de 2012. Ele corresponde a uma primeira fase da
investigação, que pode levar ao registro de bens culturais como patrimônios imateriais.
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como patrimônio cultural brasileiro: “os índios não precisam ser incluídos, pois eles são
originários”.
Pensamos que é importante chamar atenção sobre uma diferença entre os debates
sobre patrimonialização da ayahuasca no Brasil e em outros países da América Latina.
Assim, quando houve discussão sobre o reconhecimento da ayahuasca como patrimônio
cultural, nesses outros países, ela esteve estritamente associada aos usos indígenas, dos
povos originários, ou, como é mais comum se dizer nestes países latinos, dos povos
“nativos”. É o que aconteceu, por exemplo, no Peru e na Colômbia. no Brasil, o
debate sobre o registro do uso da ayahuasca como patrimônio cultural se inicia a partir
da iniciativa de algumas religiões ayahuasqueiras brasileiras não indígenas e que
expressam um sincretismo com a matriz cristã. As religiões ayahuasqueiras mais
ativamente envolvidas nessa demanda pelo reconhecimento da ayahuasca como
patrimônio cultural nacional, que apresentaram a primeira destas solicitações ao Estado
brasileiro, tem se caracterizado por marcar mais uma diferenciação (e separação) com
os indígenas do que uma aproximação com eles. Em vários pronunciamentos de
representantes e aliados políticos destas religiões percebemos uma ênfase nessa
perspectiva. De um modo geral, estas religiões (que são também as que se posicionam
como “tradicionais” ou “tradicionalistas”) parecem procurar, até o momento, legitimar o
seu uso da ayahuasca por uma identidade não indígena.
alguns representantes do CEFLURIS e de grupos neo-ayahuasqueiros
apoiaram ativamente a inserção dos indígenas nos circuitos urbanos através da
promoção de rituais, alianças, fornecimento de daime, visitas e matrimônios inter-
etnicos. A diferença entre os representantes das religiões ayahuasqueiras tradicionalistas
e os “não tradicionalistas” em relação aos indígenas também ficou patente na
Conferência, quando, por exemplo, um destes indígenas criticou o fato dos pajés terem
a sua ayahuasca apreendida por autoridades quando viajando, e narrou a criação das
“aliança das medicinas” que apoiaria a circulação dos indígenas com a ayahuasca pelo
território nacional.16
Nos parece, portanto, que nos últimos anos um conjunto de fatos vem
provocando reconfigurações importantes no campo ayahuasqueiro no Brasil, com a
emergência de novos arranjos entre os seus vários sujeitos e grupos. A participação
16 Este tipo de reclamação foi feito em diversas ocasiões por indígenas: “os evangélicos onde viajam
levam a sua bíblia, nós também queremos o direito de levar a nossa ayahuasca, “a legislação favorece os
brancos, o daime e suas igrejas”, “como a polícia pode aprender Daime? Nós que trouxemos este
conhecimento para as igrejas”.
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mais ativa dos indígenas nesse cenário e nos debates públicos sobre a ayahuasca tem se
mostrado um fator muito relevante nessa reconfiguração, questionando o protagonismo
das religiões ayahuasqueiras sincréticas nas discussões sobre a ayahuasca no Brasil.
Considerações Finais
Pensamos que a II Conferência Mundial da Ayahuasca, embora tenha
expressado divergências de perspectivas e alguns conflitos entre seus diferentes
participantes, gerou, também, novos tipos de encontros e de diálogos. A diversidade que
marcou o evento conduziu a uma maior aproximação entre sujeitos que não estão
habituados a estabelecer aproximações e trocas. Neste sentido, a riqueza deste evento
foi única. Atores diversos do que poderíamos denominar de um novo “campo
ayahuasqueiro internacional” puderam -- alguns, aliás, pela primeira vez -- entrar em
contato e ter acesso a pontos de vistas sobre a ayahuasca bastante diferentes dos seus.
Sujeitos ligados a distintos contextos de usos da bebida tiveram a oportunidade de
interagir e empreender interlocuções: integrantes de grupos de diferentes países
europeus e norte-americanos, ligados ou não às religiões ayahuasqueiras brasileiras;
usuários mestiços e indígenas de vários países do continente americano; representantes
de etnias indígenas da Amazônia brasileira; grupos de religiões ayahuasqueiras
brasileiras, dos “tradicionalistas” aos “ecléticos”; grupos “neo-ayahuasqueiros”,
membros dos circuitos urbanos xamânico (ou neo-xamânico) e new-age; sujeitos e
organizações pan-indígenas, que abarcam parcerias com não-índios; estudiosos de
diversas áreas científicas e ativistas, representantes do governo e agentes políticos.
Se, ao longo da Conferência, diferentes sujeitos atores expressaram receios,
questionamentos e divergências, por outro lado, a grande maioria dos presentes,
segundo nossa observação, pareceu manifestar opiniões positivas sobre o evento no
momento de sua conclusão. Os representantes das religiões ayahuasqueiras
tradicionalistas, por exemplo, ao final da Conferência, apresentaram uma Carta (2016) à
organização do evento na qual, apesar de repetir algumas de suas já conhecidas críticas,
agradeceram enfaticamente por terem tido grande “autonomia” para expor suas
“experiências” e seus “princípios” e “critérios”. Agradecem também aos povos
indígenas, os quais reconhecem como sendo os “guardiões da floresta”. Agradecem,
igualmente, pela iniciativa que outras “denominações religiosas”, ou “pessoas e
organizações que tem a ayahuasca como referência importante” tiveram de estabelecer
um “diálogo fraterno” e uma “convivência respeitosa”.
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Mesmo na Carta dos Povos Indígenas, também apresentada à organização da
Conferência, que destacava várias críticas ao formato do evento, é ressaltado o interesse
destes indígenas de continuarem participando de outros fóruns de debates promovidos
pelo ICEERS e por seus representantes. Os membros das etnias indígenas afirmam que
estão dispostos a construir um “futuro comum” e “colaborar em todos os processos para
os avanços das discussões para o uso e direito de consagração da bebida por toda a
humanidade” (2016).
A II Conferência Mundial da Ayahuasca foi um grande encontro de entusiastas,
com uma atividade intensa e múltipla, uma estética e ambiente vibrantes, sendo difícil a
compreensão sobre tudo que aconteceu ali. Incorporando ativamente aqui a perspectiva
de pesquisadoras e de agentes que circulam por um campo internacional apenas uma
entre outras vozes presentes –, no nosso entendimento a Conferência fortaleceu sim a
ideia da existência de uma “ayahuasca” e uma comunidade global ao seu redor, ao
mesmo tempo, que implicou em movimentos de auto-reflexão e de transformações dos
diversos atores deste campo. Nesse sentido, se, por um lado, parecia haver um diálogo
dissonante onde cada um falava de “uma ayahuasca” ligada ao seu próprio contexto
específico, ao final do evento foi possível notar esforços, vindos de todos os lados, para
fortalecer alianças em torno de acordos e estratégias que visem a defesa das raízes
Amazônicas, a preservação dos conhecimentos relacionados a esta bebida e suas
tradições, a sustentabilidade, o uso ético e responsável, os incríveis potenciais
terapêuticos, a não criminalização dos usuários, a pesquisa científica, o diálogo entre as
comunidades, entre outros aspectos.
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Article
La communauté internationale de l’ayahuasca est une réalité mondiale qui rassemble aujourd’hui des acteurs disparates, des intérêts variés, des représentations et des pratiques diverses. Cet article a pour but d’explorer certaines caractéristiques de la production symbolique qui crée et recrée la communauté internationale de l’ayahuasca, le type de relations qu’elle génère, ses effets ainsi que les modes de représentation, de conception et de pensée entourant ce psychotrope d’origine amazonienne, ses utilisateurs, la diversité et la défense de ses utilisations. Deux aspects me paraissent particulièrement notoires. Le premier concerne les thématiques, les idées et les approches associées à la perception générale de ce que l’on considère comme constituant la communauté, soit les modèles internes de référence qui construisent l’identité et une certaine idée du « nous ». Le deuxième porte sur la relation de cette communauté internationale avec les Autochtones et l’Amazonie en tant que références ambiguës, c’est-à-dire considérées comme faisant partie de la communauté, tout en étant perçues comme des éléments externes renvoyant à une idée d’origine et d’authenticité. Explorer la façon dont cette production s’articule avec l’existence d’une hégémonie localisée — dans le sens d’une capacité concentrée d’orientation et de régulation de la circulation des personnes et des biens culturels par les pays développés ou du Nord — m’intéresse tout particulièrement. La mondialisation produit un effet « universalisant » qui recouvre et incorpore l’éventail de manifestations produites à l’échelle nationale ou locale, considérées comme étant hiérarchiquement inférieures ou moins prépondérantes. En ce sens, mon propos vise à redonner du poids et de la valeur à la production spatiale locale et nationale, coordonnées essentielles pour la compréhension de la (géo)politique de l’ayahuasca.
Article
The Brazilian ayahuasca religions, Santo Daime, Barquinha, and União do Vegetal, have increasingly sought formal recognition by government agencies in Brazil and other countries to guarantee their legal use of ayahuasca, which contains DMT, a substance that is listed. This article focuses on new alliances and rifts that have emerged between and among different ayahuasca groups as they have sought and in some cases achieved formal recognition and legitimacy at the state and national levels in Brazil and abroad. It presents a historical overview of the origin of the main ayahuasca religions, and their connections to the Amazon region and the state of Acre in particular, where the political environment has facilitated petitions seeking the elevation of ayahuasca as cultural and historical heritage in Acre and Brazil. This process has resulted in the active selection of certain symbolic, cultural, and historical elements and subtle changes in the ways various ayahuasca groups represent themselves in the public sphere. It also resulted in the reconfiguration of political alliances and a recasting of the historical facts regarding origins. The article reflects on notions of origin, place, authenticity, and tradition throughout the ongoing transformation of ayahuasca from “dangerous drug” to state and national heritage.
Carta de Princípios das Entidades Religiosas Usuárias do Chá Hoasca
  • Usuárias Entidades Religiosas
  • Do
  • Hoasca
ENTIDADES RELIGIOSAS USUÁRIAS DO CHÁ HOASCA, 1991. "Carta de Princípios das Entidades Religiosas Usuárias do Chá Hoasca", Rio Branco.
Contrastes e Continuidades em uma tradição amazônica: as religiões da ayahuasca
  • Sandra Goulart
  • Lucia
GOULART, Sandra Lucia (2004). Contrastes e Continuidades em uma tradição amazônica: as religiões da ayahuasca. Doutorado em Ciências Sociais. Campinas: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.
Ayahuasca e políticas públicas culturais: estratégias de reconhecimento público das religiões ayahuasqueiras
  • Sandra Lucia
GOULART, Sandra Lucia (2016). " Ayahuasca e políticas públicas culturais: estratégias de reconhecimento público das religiões ayahuasqueiras ", in: LABATE, Beatriz C.;
Política e Cultura: o uso da ayahuasca como patrimônio cultural. Texto apresentado na 30 a Reunião Brasileira de Antropologia (RBA)
  • Beatriz C Religião
GOULART, Sandra L. e LABATE, Beatriz C. Religião, Política e Cultura: o uso da ayahuasca como patrimônio cultural. Texto apresentado na 30 a Reunião Brasileira de Antropologia (RBA), Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 03 e 6 de agosto de 2016. Disponível em: http://neip.info/novo/wpcontent/uploads/2016/07/Goulart_Labate_Patrimonio_Ayahuasca_ABA_Joao
Comunidades Tradicionais da Ayahuasca
  • Marcos Vinícius
  • Maria Souza
  • Leudes
  • Silva
NEVES, Marcos Vinícius; SOUZA, Maria Leudes da Silva (2010). Comunidades Tradicionais da Ayahuasca. Construindo Políticas Públicas para o Acre – Seminário.
Assembleia Legislativa do Estado do Acre /Fundação Garibaldi Brasil
  • Rio Branco
Rio Branco: Assembleia Legislativa do Estado do Acre /Fundação Garibaldi Brasil.
xapuri.info/amazonia-agenda/ayahuasca-um-balanco-cidadao-daconferencia-no-acre
  • Disponível Em
Disponível em: http://www.xapuri.info/amazonia-agenda/ayahuasca-um-balanco-cidadao-daconferencia-no-acre/. Acesso: 24/03/2017.
Xamanismo da floresta na cidade: um estudo de caso
  • Tiago C Coutinho
COUTINHO, Tiago C. (2011) Xamanismo da floresta na cidade: um estudo de caso.
Política e Cultura: o uso da ayahuasca como patrimônio cultural. Texto apresentado na 30 a Reunião Brasileira de
  • Sandra L Goulart
  • Beatriz C Labate
  • Religião
GOULART, Sandra L. e LABATE, Beatriz C. Religião, Política e Cultura: o uso da ayahuasca como patrimônio cultural. Texto apresentado na 30 a Reunião Brasileira de