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"O armazém para a PIDE não ver ": O contexto da primeira edição portuguesa de 'Os Condenados da Terra', de Frantz Fanon." Mulemba. Rio de Janeiro: UFRJ, V.9 N.16, 12-18

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Abstract

resumo: Neste artigo é considero o contexto de edição em Portugal da primeira tradução de Os condenados da Terra, de Frantz Fanon, para a língua portuguesa e as motivações sociopolíticas que marcaram a sua publicação. Numa entrevista inédita realizada em 2015, Vitor Silva Tavares, responsável da primeira edição portuguesa de Os condenados da terra expôs as circunstâncias em que esta tradução foi editada. In the following article I focus on the Portuguese publisher, Vitor Silva Tavares, who held the decision of translating and publishing Frantz Fanon’s The Wretched of the Earth in the context of the fascist regime Estado Novo, four years after the beginning of the Portuguese Colonial War. Silva Tavares was interviewed for this paper about his motives for the publication of this work. Through his opinions and his publishing rationale, it is possible to see his strong commitment to the fight against the Portuguese fascist regime and the liberation of the African territories.
“O ARMAZÉM PARA A PIDE NÃO VER”:
O CONTEXTO DA PRIMEIRA EDIÇÃO
PORTUGUESA DE OS CONDENADOS
DA TERRA, DE FRANTZ FANON. UM
DEPOIMENTO INÉDITO DE VITOR SILVA
TAVARES.
“THE STOREHOUSE FOR THE PIDE NOT TO SEE”: THE
CONTEXT OF FRANTZ FANON’S WRETCHED OF THE EARTH FIRST
PORTUGUESE EDITION. AN UNPUBLISHED INTERVIEW WITH
VITOR SILVA TAVARES
“EL ALMACÉN PARA QUE LA PIDE NO LO VIESE”: EL
CONTEXTO DE LA PRIMERA EDICIÓN PORTUGUESA DE
LOS CONDENADOS DE LA TIERRA, DE FRANTZ FANON. UN
TESTIMONIO INÉDITO DE VITOR SILVA TAVARES.
Rebeca Hernández1
Resumo:
O objetivo deste artigo é considerar o contexto de edição em Portugal da primeira tradução de Os
condenados da Tter ra, de Frantz Fanon, para a língua portuguesa e as motivações sociopolíticas que marcaram
a sua publicação. Numa entrevista inédita realizada em 2015, Vitor Silva Tavares, responsável da primeira
edição portuguesa de Os condenados da terra expôs as circunstâncias em que esta tradução foi editada.
PALAVRAS-CHAVE: Fanon, edição, Portugal, Estado Novo.
1. Introdução
O ano em que começaram as lutas de libertação em Angola e, portanto, a Guerra Colonial dos
portugueses em África, 1961, foi o ano da publicação em Paris, com a chancela das Edições Maspero, da
1 Professora Titular da Universidad de Salamanca; rebecahernandez@usal.es.
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primeira edição de Les damnés de la terre, um dos trabalhos ensaísticos mais representativos de Frantz Fanon.
Como é bem sabido, esta obra, escrita no contexto das lutas de libertação da Argélia, onde Fanon traba-
lhou, desde 1953, na cidade de Blida como médico psiquiatra, aparece marcada por uma filosofia profun-
damente anticolonial e de revolta, constituindo uma poderosa chamada para a revolução, para a luta contra
os sistemas opressores coloniais a fim de alicerçar os processos de descolonização.
O objetivo deste artigo é conhecer qual foi o contexto de publicação em Portugal da primeira tra-
dução para a língua portuguesa de Les damnés de la terre, de Frantz Fanon, quem decidiu editar este livro e
quais foram as suas motivações. Para responder a estas perguntas, utilizarei um testemunho inédito de Vitor
Silva Tavares, responsável da primeira edição portuguesa de Les damnés de la terre sobre os motivos que o
levaram a publicar esta obra de Fanon.
2. As edições de Les damnés de la terre em língua portuguesa
De entre todas as línguas para as que Les damnés de la terre foi, até este momento, traduzido, a língua
portuguesa é uma das que conta com mais versões. Existem cinco traduções da obra de Fanon em portu-
guês, todas elas intituladas Os condenados da terra, três publicadas em Portugal e duas no Brasil. As edições
em língua portuguesa apareceram entre os anos de 1965 e 2015.
Assim, a primeira tradução para português desta obra de Fanon foi publicada em Portugal em 1965,
na Editora Ulisseia, dirigida na altura por Vitor Silva Tavares. A tradução do ensaio foi realizada por Serafim
Ferreira e incluída na colecção “Documentos do Tempo Presente” (FANON, 1965). Esta edição vai acom-
panhada pelo prefácio de Jean Paul Sartre.
Também na década de 60 do século passado, em 1968, apareceu no Brasil uma outra tradução da obra
de Fanon com a chancela da Civilização Brasileira, dirigida pelo editor e ativista brasileiro Ênio Silveira. Esta
tradução, da autoria de José Laurênio de Melo, insere-se na colecção “Perspectivas do Homem. Série Políti-
ca”, dirigida por Moacyr Felix (FANON, 1968). Esta versão também apresenta o prefácio de Sartre.
Novamente em Portugal, e como parte da tendência a publicar textos proibidos durante o Estado
Novo, depois do 25 de Abril (provavelmente em 1976), surge a segunda tradução portuguesa da obra, nes-
ta ocasião na editora Ulmeiro e traduzida por António José Massano (FANON, [s.d.]). Esta versão faz parte
da colecção “Terceiro Mundo e Revolução” e é apresentada na capa como “O ‘clássico’ da descolonização”.
Esta edição não vem introduzida pelo texto de Jean Paul Sartre. A ausência do prefácio sartreano pode
responder ao facto de que, a partir de 1967, e a pedido de Josie Fanon, viúva do intelectual, o prefácio foi
retirado das edições francesas por causa do apoio de Jean Paul Sartre a Israel durante a guerra declarada
aos países árabes nesse mesmo ano (JOSIE FANON apud FILOSTRAT 2008, p. 159). O prefácio de Sartre
voltará a ser incluído nas edições francesas tempo depois.
A quarta tradução para português de Les damnés de la terre é, desta vez, e novamente, brasileira.
Apareceu em 2005, na editora da Universidade Federal de Juiz de Fora, dentro da colecção “Cultura” e foi
traduzida por Enilce Albergaria Rocha e Lucy Magalhães. Esta edição recolhe o prefácio de Jean Paul Sartre
e vem acompanhada, como acontece na última edição francesa na editora La Découverte, de um segundo
prólogo, de Alice Cherki (in FANON, 2005), especialista na obra de Frantz Fanon e autora de uma das suas
biografias, e de um posfácio do activista e político argelino Mohammed Harbi.
No mês de maio de 2015, foi lançada a quinta e última edição de Os condenados da terra em Portugal
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“O armazém para a pide nao ver”: o contexto da primeira edição portuguesa de Os condenados da terra, de Frantz Fanon, um
depoimento inédito de Vitor Silva Tavares
pela Livraria Letra Livre de Lisboa. Esta edição reutiliza a tradução de António José Massano da editora Ul-
meiro, nesta ocasião revista e acompanhada de um glossário de palavras árabes, conceitos culturais, figuras
históricas e siglas políticas. Como acontecera com a da Ulmeiro, esta nova edição não publica o prefácio
de Sartre e, como novidade, apresenta um prólogo de Inocência Mata intitulado “A pertinência de se ler
Fanon, hoje” (in FANON, 2015) que contextualiza a obra e a ideologia fanoniana. Como conclusão, esta
edição inclui o texto de Mário Pinto de Andrade “Fanon e a África combatente. Testemunho de um militan-
te angolano” (in FANON, 2015), escrito originariamente em francês, “Fanon et L’Afrique Combattante.
Témoignage d’un militant angolais”, e apresentado na terra natal de Fanon, Fort-de-France na Martinica,
em 1982, por ocasião do Memorial Internacional Frantz Fanon.
3. A primeira edição portuguesa de Os condenados da terra. Vitor Silva Tavares
e a editora Ulisseia
Interessa-me especialmente, neste artigo, a primeira edição aparecida em Portugal, já que foi publi-
cada no contexto político da Guerra Colonial, marcado pela perseguição, a opressão e a censura das ideias
por parte do Estado Novo. Como acabei de apontar, esta primeira tradução apareceu na Editora Ulisseia,
dirigida na altura por Vitor Silva Tavares. Em julho de 2015, dois meses antes do seu falecimento, tive a
oportunidade de entrevistar Silva Tavares em relação às motivações que o levaram a publicar a obra de
Frantz Fanon em Portugal.
Nascido em 1937, Silva Tavares decidiu ir para Angola em 1959, quando contava ainda com 21 anos,
como aventureiro. À sua chegada a Angola viu, primeiro no porto de Luanda e depois no de Lobito,
escravos negros agarrados pelos pulsos e pelos pés. Eram estivadores com grilhetes que não eram
ferro, mas de corda, tirados por um capataz branco. Tratei de saber que nome davam àqueles
escravos: davam-lhes o nome de “contratados”. Depois vim a saber como é que decorria todo
esse tráfico, todo esse negócio pelo qual o Estado recebia [uma certa quantidade de dinheiro]
por cabeça. Vim a saber que eram apanhados no interior das aldeias de noite e levados para uns
quintalões ao pé dos postos administrativos. (SILVA TAVARES, 2015)
Na cidade angolana de Benguela, Vitor Silva Tavares começou a trabalhar n’O Intransigente de Bengue-
la,um jornal não afecto ao regime” e teve acesso ao L’Express de Jean-Jacques Servan-Schreiber, publicação
periódica contrária à política oficial francesa através do qual pôde acompanhar o nascimento da OAS e as
atividades dos políticos argelinos pró-independentistas Boumedienne ou Ben Bella, este último muito ad-
mirado pelo editor português. Ao mesmo tempo, Vitor Silva Tavares esteve ligado à Sociedade Cultural de
Angola, relacionada com a Casa dos Estudantes do Império de Lisboa; neste sentido ele foi
convidado várias vezes para ir a Luanda no âmbito da Sociedade Cultural de Angola, que também
era um ariete ideológico e político, que preparava quadros. Lá estava o José Graça [nome de
nascimento de Luandino Vieira], e era um movimento muito paralelo àquilo que acontecia [em
Portugal], a cultura como guarda-avançada pela discussão das ideias, guarda-avançada da luta
política, mas não partidarizada, porque não havia partidos: eles estavam proibidos. O único
partido que existia era o PCP, mas na clandestinidade. O resto eram movimentos de pessoas
contra o regime, mas tudo mais ou menos disperso. E se [em Portugal] estava disperso, então no
trópico, pior ainda. (SILVA TAVARES, 2015)
Assim, e constatando a opressão existente na realidade colonial angolana que contrastava frontal-
mente com a imagem das colónias forjada pelo Estado Novo, Vitor Silva Tavares começou a sentir como
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pouco a pouco foi subindo em mim a revolta contra o colonialismo, contra a exploração, contra
a escravatura, contra a mentira, e vim também a saber com algum pormenor as razões que
levaram ao eclodir da guerra no Norte de Angola. (SILVA TAVARES, 2015)
No ano de 1961, quando começam as lutas de libertação em Angola, Silva Tavares publica no Intran-
sigente um artigo intitulado “Pregação no deserto. Um aviso solene”, em que prevenia das consequências
marcadas pelo ódio e a violência entre a população que os combates comportariam. Como resultado desta
acção, Silva Tavares é expulso de Angola pela própria Polícia Política e, a partir deste momento, decide
lutar contra o Estado Novo desde Portugal:
eu sou português de Lisboa, eu fui solidário com o MPLA naquela altura, fui solidário com o
desejo de libertação dos povos angolanos; com certeza, fui convidado a passar à clandestinidade
e à guerrilha, mas aquela não era a minha terra, nem era a minha guerra. A minha guerra era
aqui, era aqui, a minha guerra era aqui. A ditadura era aqui, aquilo era uma extensão. (SILVA
TAVARES, 2015)
No seu regresso à Europa e depois de uma estadia obrigatória em Portugal sob a vigilância da PIDE,
Vitor Silva Tavares decidiu sair do país e ir para Paris, onde frequenta a livraria de François Maspero, La
Joie de Lire. Silva Tavares não chegou a conhecer pessoalmente o editor francês de Frantz Fanon, mas fa-
miliarizou-se com a editora e com a livraria:
Pude ir para os Parises de la Joie de Lire, de François Maspero. Logo, também tive aí informação
já de livros e à cabeça estava o Frantz Fanon. O Fanon era o farol, o maître à penser, o teórico, que
era seguido por tudo quanto era comandante da guerrilha. Os condenados da terra era portanto
uma espécie de Bíblia para os guerrilheiros, sobretudo da Argélia; as independências africanas
vinham escorregando desde a Algéria para o sul, até que chegaram a Luanda, e depois, para
Moçambique, e depois para a Guiné... (SILVA TAVARES, 2015)
Assim, e depois da sua passagem pela capital francesa, Vitor Silva Tavares regressa a Lisboa e começa
a dirigir a editora Ulisseia, que pertencia, na altura, a uma família ligada à exploração agrícola, proprietária
de uma rede de mercearias e da maior gráfica portuguesa da época, a Casa Portuguesa. Silva Tavares foi
contratado para retomar o prestígio cultural da editora que tinha decaído depois da saída do editor Figuei-
redo de Magalhães e, em troca, ele exigiu “completa e total autonomia e liberdade de atuação na escolha
de tudo: títulos, autores, tudo, nenhuma interferência do capital no destino do editor”. Neste contexto,
Silva Tavares decide editar a obra Les damnés de la terre:
Quando, pouco tempo depois, eu fico à frente da editora Ulisseia, é pois natural que tivesse uma
certa atenção, uma certa preocupação em difundir aqui em Portugal determinado tipo de obras;
não foi só Os condenados da terra, no que diz respeito à Argélia, eu também publiquei um livro
intitulado A Algéria entre dois mundos de [Albert-Paul] Lentin. (SILVA TAVARES, 2015)
Vitor Silva Tavares salienta a importância que teve, no panorama editorial português de meados dos
anos 1960, a publicação destes dois livros sobre a situação de Argélia e a luta pela independência argelina
do poder colonial francês. Na altura existia, segundo Silva Tavares, uma marcada presença nas livrarias
portuguesas de romances de temática bélica que faziam apologia da raça branca e da razão branca da guerra
em África, como Os centuriões ou Os mercenários, do escritor francês Jean Larteguy. Silva Tavares publicou os
livros de Fanon e Lentin à revelia das obras de Larteguy:
Tirando o Fanon, [um] livro sobre a Djamila Boupacha [escrito por Simone de Beauvoir e Gisèle
Halimi, e publicado em Portugal com a chancela da editora Portugália, provavelmente em 1966]
e aquele outro que eu publiquei de Lentin, não conheço mais nada em Portugal da temática da
luta colonial e nomeadamente a Argélia, porque o que veio a publicar-se depois, já foi depois do
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25 de abril, até lá a maior parte dos editores tinham medo de publicar estas coisas, medo de que
a PIDE retirasse os livros. (SILVA TAVARES, 2015)
A tradução de Os condenados da terra foi realizada por Serafim Ferreira, tradutor ligado à editora Ulis-
seia desde antes da chegada de Silva Tavares. A capa do livro é da autoria do designer Sebastião Rodrigues,
que teve, segundo Silva Tavares, absoluta liberdade criativa para a sua elaboração, e foram impressos entre
2500 e 3000 exemplares, números que constituíam a tiragem média dos livros da Ulisseia na altura. Por
outra parte, e em relação ao conteúdo do ensaio, Silva Tavares ressalta a consciência plena do contexto de
perseguição e opressão em que é editada a obra de Fanon e os riscos a que estava sujeito desde o momento
em que entrou em contacto com a editora Maspero para a contratação dos direitos de publicação. Assim,
ele afirma que
eu já tinha tido lá dentro da Ulisseia uma, duas, três, cinco, apreensões de livros e sujeito aos
interrogatórios que eles faziam sempre, quando apreendiam um livro. Muitos diziam que
não sabiam as razões, não era com eles, tinham sido ordens. Temi que com o caso do Frantz
Fanon, a coisa fiasse mais fino, porque havia esta circunstância nossa portuguesa de estarmos
no auge de uma guerra colonial muito sangrenta em três frentes e portanto os nossos filhos,
os nossos irmãos, estava tudo a defender a pátria lá fora. Logo, a publicação de um livro desses
era particularmente perigosa, era subversiva, estava a minar as coisas mais sagradas da pátria.
(SILVA TAVARES, 2015)
Dentro deste contexto, a coleção da editora Ulisseia, em que foi publicada a tradução portuguesa de
Les damnés de la terre, servia como pretexto a Silva Tavares para manifestar a sua ignorância em relação aos con-
teúdos ideológicos e políticos da obra de Fanon perante os interrogatórios policiais, como ele próprio explica:
a maior parte das vezes a maneira de eu poder lidar com a PIDE, com esses interrogatórios,
era protestar o meu desconhecimento das implicações da obra A ou da obra B. Neste caso a
obra estava inserta numa colecção chamada “Documentos do Tempo Presente”. Logo, era mais
um livro à semelhança de livros sobre a temática americana e o conflito sino-soviético e outras
coisas assim, de aí então a actualidade política mundial: era mais um “Documento do Tempo
Presente”; então [eu podia dizer] a guerra da Argélia, o que é isso? provavelmente não sei onde
é que fica a Argélia. Sei lá, a Argélia é tão longe, o que é que têm a ver a Argélia, os argelinos, o
Boumedienne, o Ben Bella, a OAS? (SILVA TAVARES, 2015)
Como parte também desta circunstância de perseguição não só da publicação das ideias contidas
no ensaio de Fanon como também do livro como elemento material, Vitor Silva Tavares descreve os meios
utilizados para fugir, na medida do possível, das apreensões da PIDE. Assim, e, no que se refere à armaze-
nagem dos exemplares impressos da obra, o editor afirma o seguinte:
eu tinha a certeza de que a polícia política ia apanhar o livro. Por isso, e não só por causa desse
livro mas sobretudo, na altura, por causa desse livro, eu na editora tinha um pequeno armazém,
a editora também se distribuía os seus próprios livros, um pequeno armazém ligado nas traseiras
do prédio. A esse armazém eu chamava-lhe o armazém para a PIDE ver porque quando a PIDE
assaltava a editora, para retirar o livro A ou o livro B, e seguia-se o interrogatório e aquelas coisas,
iam ao armazém levantar os livros que eles apreendiam, não estavam lá muitos exemplares, mas
eu arranjei um outro armazém para a PIDE não ver, com alguma segurança, certos livros eu
punha-os logo a bom recato. Admito que no caso de Os condenados da terra, eu tivesse posto alguns
exemplares, talvez mesmo o grosso da edição a salvo. (SILVA TAVARES, 2015)
Da mesma forma, e no que diz respeito a um outro aspeto problemático, a distribuição da obra,
Vitor Silva Tavares descreve o modo por meio do qual, apesar da intensa vigilância exercida pela Polícia
Política, os livros eram vendidos e como se criavam redes de cumplicidade entre os editores, os livreiros e
“O armazém para a pide nao ver”: o contexto da primeira edição portuguesa de Os condenados da terra, de Frantz Fanon, um
depoimento inédito de Vitor Silva Tavares
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os leitores para tornar possível a circulação das ideias:
A PIDE ia à livraria, depois de uma queixa qualquer, de uma denúncia qualquer do livro; iam lá
e retiravam três, quatro exemplares ou o que houvesse; o que é que fazia o livreiro? Telefonava
imediatamente para o editor a dizer “olha, atenção, estiveram aqui os tipos da PIDE a retirar
o livro tal”, o que dava algum tempo para salvaguardar alguns exemplares, que passavam a ter
enorme êxito comercial. Por quê? Porque eram os livros que se vendiam debaixo do balcão.
Eram livreiros que eram seguros do ponto de vista político, não eram todos, claro, mas sabia-se
quais eram aquelas livrarias e livreiros de gente que fazia parte de uma certa resistência cultural
ademais de uma certa resistência à ditadura. Guardavam os livros a bom recato para clientes
seguros. Estou a dizer isso porque admito que não houve com certeza livros do Frantz Fanon
apreendidos pela PIDE. A maior parte da edição despareceu por debaixo do balcão dos livreiros,
porque eu salvaguardei também no tal armazém para a PIDE não ver. (SILVA TAVARES, 2015)
Para além da perseguição e das apreensões por parte da Polícia Política, existia mais um elemento
de opressão intelectual sob o regime do Estado Novo: a censura. E, sobre este respeito, Vitor Silva Tavares
mostra também uma opinião contundente: “A maior parte dos editores até enviavam os livros previamente
à censura. Nunca fiz, nunca fiz, nem pensar!” No entanto, é possível constatar, na tradução publicada pela
Ulisseia, a omissão significativa de uma passagem de Les damnés de la terre que faz referência à situação das
lutas de libertação em Angola. Assim, no texto original francês, Fanon realiza a seguinte afirmação:
Mais, on l’a compris, cette impétuosité volontariste qui entend régler son sort tout de suite au
système colonial est condamnée, en tant que doctrine de l’instantanéisme, à se nier. Le réalisme
le plus quotidien, le plus pratique fait place aux effusions d’hier et se substitue à l’illusion
d’éternité. La leçon des faits, les corps fauchés par la mitraille provoquent une réinterprétation
globale des événements. Le simple instinct de survie commande une attitude plus mouvante, plus
mobile. Cette modication dans la technique de combat est caractéristique des premiers mois de la guerre
de libération du peuple angolais. On se souvient que, le 15 mars 1961, les paysans angolais se sont lancés
par groupe de deux ou trois mille contre les positions portugaises. Hommes, femmes et enfants, armés ou non
armés, avec leur courage, leur enthousiasme, se sont rués en masses compactes et par vagues successives sur
des régions où dominaient le colon, le soldat et le drapeau portugais. Des villages, des aérodromes ont été
encerclés et ont subi des assauts multiples, mais aussi des milliers d’Angolais ont été fauchés par la mitraille
colonialiste. Il n’a pas fallu longtemps aux chefs de l’insurrection angolaise pour comprendre qu’ils devaient
trouver autre chose s’ils voulaient réellement libérer leur pays. Aussi, depuis quelques mois, le leader angolais
Holden Roberto a-t-il réorganisé l’Armée nationale angolaise en tenant compte des différentes guerres de
libération et en utilisant les techniques de guérilla (2002, p. 129-130, grifo meu)
Como pode ver-se, a tradução portuguesa não inclui o trecho destacado em itálico:
Mas, como se compreende, esta impetuosidade voluntária que pretende decidir imediatamente
a sorte do sistema colonial está condenada, como doutrina de instantaneidade, a negar-se. O
realismo mais quotidiano, mais prático, substitui as efusões de ontem e a ilusão da eternidade.
A lição dos factos, os corpos atravessados pela metralha, provocam uma reinterpretação global
dos acontecimentos. O simples instinto de sobrevivência determina uma atitude mais dinâmica,
mais movimentada, a utilização da técnica das guerrilhas. (FANON, 1965, p. 130-131)
No entanto, a ausência deste parágrafo na primeira tradução portuguesa tem uma clara justificação
histórica e não comporta uma carência para o conteúdo total da obra de Frantz Fanon nem para a força
intelectual que invade e caracteriza o discurso fanoniano.
4. Conclusão
O presente artigo, através de um depoimento inédito do editor português Vitor Silva Tavares, res-
ponde a uma série de questões relacionadas com a edição portuguesa da obra. O testemunho aqui recolhi-
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do mostra como Silva Tavares se apercebeu da realidade portuguesa da altura desde uma situação de exílio
voluntário, primeiro no trópico e depois em Paris. É a partir deste contexto que Os condenados da terra se
revelou, para o editor português, como um modo de luta ativa contra a política colonial, interna, cultural
e intelectual do Estado Novo.
Referências
FANON, Frantz. Les damnés de la terre. Paris: Éditions La Découverte & Syros, [1961] 2002.
______. Os condenados da terra. Trad. de Serafim Ferreira. Lisboa: Ulisseia, 1965.
______. Os condenados da terra. Trad. de José Laurênio de Melo. Rio de Janeiro: Civilização Brasi-
leira, 1968.
______. Os condenados da terra. Trad. de António José Massano. Lisboa: Ulmeiro, [s.d.].
______. Os condenados da terra. Trad. de Enilce Albergaria Rocha e Lucy Magalhães. Juiz de Fora:
Editora UFJF, 2005.
______. Os condenados da terra. Trad. de António Massano [revista em 2015]. Lisboa: Livraria Letra
Livre, 2015.
FILOSTRAT, Christian. Negritude Agonistes, Assimilation against Nationalism in the French
-Speaking Caribbean and Guyane. Cherry Hill, NJ: Africana Homestead Legacy Publishers, 2008.
SILVA TAVARES, Vitor. [Sobre a primeira edição portuguesa de Les damnés la terre, de Frantz
Fanon]. Lisboa, 2015. Entrevista [inédita] concedida a Rebeca Hernández em jul. 2015.
ABSTRACT:
The following article focuses on the Portuguese publisher, Vitor Silva Tavares, who held the decision of translating
and publishing Frantz Fanon’s The Wretched of the Earth in the context of the fascist regime Estado Novo, four
years after the beginning of the Portuguese Colonial War. Silva Tavares was interviewed for this paper about his motives
for the publication of this work. Through his opinions and his publishing rationale, it is possible to see his strong com-
mitment to the ght against the Portuguese fascist regime and the liberation of the African territories.
KEYWORDS: Fanon, publishing, Portugal, Estado Novo.
RESUMEN:
El objetivo de este artículo es considerar el contexto de edición en Portugal de la primera traducción al portugués
de Los condenados de la tierra, de Frantz Fanon, y las motivaciones sociopolíticas que marcaron su publicación. En
una entrevista inédita realizada en 2015, Vitor Silva Tavares, responsable de la primera edición portuguesa de Los con-
denados de la tierra, expone las circunstancias que rodearon a la publicación de esta traducción.
PALABRAS CLAVE: Fanon, edición, Portugal, Estado Novo.
“O armazém para a pide nao ver”: o contexto da primeira edição portuguesa de Os condenados da terra, de Frantz Fanon, um
depoimento inédito de Vitor Silva Tavares
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