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Bem Viver: uma perspectiva
(des)colonial das comunidades
indígenas*
1
Liliane Cristine Schlemer
Alcântara
Brasileira.Graduada em
Administração pela Sociedade
Educacional Três de Maio
(SETREM/RS), Mestre em
Administração (FAESP/SP), Doutora
em Desenvolvimento Regional pelo
Programa de Pós-graduação em
Desenvolvimento Regional
(PPGDR) da Universidade Regional
de Blumenau (FURB) com
sandwich no Instituto de Estudios
Cooperativos (LANKI) da
Mondragon Unibertsitatea
(MU/Espanha). Atualmente é
Pesquisadora dos Grupos de
Pesquisa: Agroecologia: ciência,
prática e movimento
(DDR/UFSCar); Análise ambiental
através do geoprocessamento
(FURB/SC). Pós-doutoranda do
programa de Gestão Urbana da
PUC (PR). Professora do
Departamento de
Desenvolvimento Rural (DDR) do
Centro de Ciências Agrárias (CCA)
da Universidade Federal de São
Carlos (UFSCar). Contato:
lilianecsa@yahoo.com.br
Carlos Alberto Cioce Sampaio
Brasileiro. Graduado em
Administração pela Pontifícia
Universidade Católica de São
Paulo, Mestre em Administração
pela Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC), Doutor em
Engenharia de Produção pela UFSC
com sandwich em Economia Social
pela École dês Hautes Études en
Sciences Sociales, França. Pós-
Doutor em Ciências Ambientais
pela Washington State University,
USA, Cooperativismo Corporativo
pela Universidad de Mondragón,
Espanha, e Ecossoecionomia pela
Universidad Austral de Chile.
Professor dos Programa de
Pósgraduação em Gestão
Ambiental da Universidade Positivo
(UP/PR), Desenvolvimento
Regional/FURB e Meio Ambiente e
Desenvolvimento/UFPR. Contato:
carlos.cioce@gmail.com
Resumo: Neste artigo, propõe-se explorar o campo semântico do tema do “Bem
Viver” em contraposição à crise civilizatória e ambiental provocada pelo
capitalismo e seu aporte ideológico baseado no individualismo e no racionalismo.
Para isto, utilizou-se uma metodologia descritiva-qualitativa com análise
comparativa por meio de entrevistas semi-estruturadas realizadas com dez
estudantes universitários das comunidades indígenas Warequena, Baníwa,
Xukuru do Orurobá, Tariána, Terena (Bananal e Cachoeirinha), Arapaso e Atikum-
Umã. Os resultados apontam que a filosofia baseada no Bem Viver pode ser
compreendida como processos de resistência das comunidades indígenas, frente
aos conflitos socioambientais, culturais e econômicos resultantes da lógica
produtivista dominante.
Palavras-chave: Bem Viver; comunidades indígenas; de(colonização);
interculturalidade
Buen Vivir: una perspectiva (de)colonial de las comunidades
indígenas
Resumen: En este artículo se propone explorar el campo semántico del tema de
"Bien Vivir" en contraposición a la crisis de la civilización y del medio ambiente
causada por el capitalismo y su aporte ideológico basado en el individualismo y el
racionalismo. Para ello se utilizó una metodología descriptiva y cualitativa, con el
análisis comparativo, a través de entrevistas semi-estruturadas con diez
estudiantes universitarios de las comunidades indígenas: Warequena, Baníwa,
Xukuru do Orurobá, Tariána, Terena (Bananal y Cachoeirinha), Arapaso y Atikum-
Umã. Los resultados señalan que la filosofía basada en el Buen Vivir funciona
como proceso de resistencia de las comunidades indígenas, frente a los conflictos
ambientales, culturales y económicos derivados de la lógica productivista
dominante.
Palabras clave: Buen Vivir; comunidades indígenas; colonización; interculturalidad
Good Living: (de)Colonial Perspective from Indigenous
Communities
Abstract: In this article, it is proposed to explore the semantic field of the theme
"Good Living" as opposed to the civilizational and environmental crisis based by
capitalism and its individualism and rationalism ideological. The study employed a
descriptive and qualitative methodology with comparative analysis through semi-
structured interviews with ten university students from indigenous communities
Warequena, Baníwa, Xukuru do Orurobá, Tariána, Terena (Bananal and
Cachoeirinha), Arapaso and Atikum-Umã. The results demonstrate that Good
Living is a resistance processes of indigenous communities, face the
environmental, cultural and economic conflicts resulting of the dominant
productivist thinking.
Key words: Good Living; indigenous communities; colonization; interculturalism
http://investiga.uned.ac.cr/rupturas/ Rev. Rupturas 7(2), Costa Rica, Jul-Dic 2017. ISSN 2215-2466. 1-31.
Recibido: 11 de octubre 2016
Revisado: 16 de enero 2016
Aprobado: 1 de febrero 2017
2Bem Viver: uma pespectiva (des)colonial das comunidades indígenas
Introdução
A colonização no continente Abya Yala (hoje América) iniciou-se no ano de
1492 e na região andina em 1532. Para Mamani (2010), neste momento se
inicou um processo de genocídio e etnocídio que teve continuidade através
da exclusão, segregação e racismo extremo, expressando uma tragédia
histórica para os povos indígenas originários do continente que continua até
os dias atuais. Quijano (1997, 61) destaca que apesar do fim do colonialismo,
“[...]segue sendo uma relação de dominação colonial [...] uma colonização
das outra culturas”.
A dificuldade de imaginar uma alternativa ao colonialismo reside no fato de
que o colonialismo interno não é somente uma política de Estado, mas uma
“gramática social muito grande que atravessa a sociabilidade, o espaço
público e o espaço privado, a cultura, as mentalidades e as subjetividades”
(Santos 2010, 14). Neste contexto, as comunidades indígenas do continente
latinoamericano, procuraram construir suas lutas baseando-se em
conhecimentos ancestrais, populares e espirituais que sempre estiveram fora
do cientificismo próprio da teoria eurocêntrica.
Os discursos voltados ao desenvolvimento humano e ao bem-estar da
sociedade, ampliaram-se a partir da diversidade das culturas expressas nas
Constituições de países latino-americanos, como Equador e Bolívia.
Destaca-se a contribuição da Organização das Nações Unidas (ONU),
especificamente da Organização das Nações Unidas para a Educação,
Ciência e a Cultura (UNESCO), em documentos publicados, apresentados e
debatidos sobre o tema destacando a urgente necessidade,
[...] de respeitar e promover os direitos intrínsecos dos
povos indígenas, que derivam de suas necessidades
políticas, econômicas e sociais e de suas culturas, de
suas tradições espirituais, de sua história e de sua
concepção de vida, especialmente dos direitos a suas
terras, territórios e recursos (ONU 2007, 2).
O Bem Viver emerge como um discurso no final de 1990, impulsionado por
três atores importantes: movimentos sociais latino-americanos da época
(particularmente o movimento indígena contra o neoliberalismo final do
século XX); convergência entre os referidos movimentos e as ideologias de
determinados movimentos globais (especialmente anti/alter-globalização e
movimentos ambientais); e desencanto generalizado com a ideia de
desenvolvimento (Vanhulst e Beling 2014, 56).
Rev. Rupturas 7(2), Costa Rica, Jul-Dic 2017. ISSN 2215-2466. 1-31. http://investiga.uned.ac.cr/rupturas/
* Una versión preliminar de
este artículo fue aprobado en
el "XVII Encontro Nacional da
Associação Nacional de Pós-
Graduação e Pesquisa em
Planejamento Urbano e
Regional- ENANPUR" de 22 a
26 de mayo de 2017
Liliane Cristine Schlemer Alcântara
Carlos Alberto Cioce Sampaio 3
Neste contexto, o tema do Bem Viver, expõe críticas à teoria clássica do
modelo de desenvolvimento ocidental e apresenta alternativas ao
desenvolvimento embasadas nas tradições indígenas, repousando seu
pensamento na lógica de (con)vivência dos grupos sociais (Yampara 1995).
Ao mesmo tempo, remete à teoria de decrescimento de Serge Latouche, à
noção de convivência humana de Iván Illich, à ecologia profunda de Arnoldo
Naes e as propostas de descolonização de Anibal Quijano, Boaventura
Santos e Edgardo Lander (Dávalos 2008).
Em um sentido genérico, entende-se o Bem Viver, como um campo
semântico, onde podem ser colocadas experiências emancipatórias como a
da ecossocioeconomia, cuja origem do termo é atribuída ao economista
alemão Karl Willian Kapp (1950), quando trata de impactos ambientais
relacionados às organizações. Estas experiências apontam uma transição da
compreensão reducionista do mundo, resultante da dominação da natureza
pelo homem, para o entendimento sistêmico e complexo da dinâmica
socioambiental.
A ecossocioeconomia ocorre no mundo da vida, nas comunidades, nos
povoados, nas organizações, onde os problemas e as soluções acontecem e
raramente são qualificados (Sampaio Cioce, Etxagibel Azkarraga e
Gabilondo Altuna 2009). Trata-se de uma teoria pensada, partindo das
experimentações e da complexidade do cotidiano (Sachs, 1986).
De acordo com Acosta (2016), o Bem Viver se afirma na simetria na relação
entre indivíduo para com ele mesmo; entre indivíduo e sociedade e; entre
indivíduo e planeta com todos seus seres, por mais equivocadamente
insignificantes que possam parecer. A partir da harmonia destes três
pressupostos é que se consegue estabelecer conexão e interdependência
com a natureza da qual somos parte. Neste sentido, os povos indígenas
demonstram um profundo respeito nestas relações, rompendo com a lógica
capitalista e seu individualismo inerente. Este artigo tem por objetivo realizar
um estudo sobre o tema “Bem Viver” na perspectiva das comunidades
indígenas1.
Bem Viver – gênese e fundamentos conceituais
Bem Viver, ou “Bien Vivir” ou “Vivir Bien”, encontra-se na região andina da
América do Sul – desde o sul da Venezuela ao norte da Argentina - e deriva
por um lado, do Quechua (runa simi) e por outro, do Aimara (aymará jaya
mara aru), que são idiomas pré-hispânicos da região dos Andes (Estermann
2012).
Para Teijlingen e Hogenboom (2017), o conceito surgiu menos de uma
década atrás e tem sido referido como uma filosofia de vida (Acosta, 2010),
cosmologia (Walsh, 2010), atitude de vida (Cortez 2011), ontologia (Thomson
2011), modelo de desenvolvimento (Radcliffe 2012), e alternativa ao
desenvolvimento (Gudynas 2011).
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4Bem Viver: uma pespectiva (des)colonial das comunidades indígenas
Apesar de suas expressões mais conhecidas referirem-se ao "Sumak
kawsay" do Kichwa do Equador e do Peru hoje, e a "Suma Qamaña" do
Aymara da Bolívia, expressões similares são encontrados no "Ñandereko" do
Guarani, os "Waras Shiir" do Ashuar, o "Küme Mongen" do Mapuche, e em
praticamente todos os povos indígenas, não só na América Latina, mas em
todas as culturas antigas do mundo, que não dispensam a abordagem de
controvérsias internas sobre a verdadeira extensão e formas de
relacionamento entre os povos indígenas (Jiménez 2011). O Bem Viver
supõe uma profunda transformação na relação sociedade-natureza, pelas
mesmas razões e no mesmo grau que exige mudanças nas relações étnicas
e culturais de poder.
Em termos ideológicos, o conceito implica a
reconstituição da identidade cultural de herança
milenária, a recuperação de conhecimentos e saberes
antigos; uma política de soberania e dignidade nacional;
a abertura de novas formas de relação de vida (não
individualista senão comunitária), a recuperação do
direito de relação com a Mãe Terra e a substituição da
acumulação ilimitada individual de capital pela
recuperação integral do equilíbrio e a harmonia com a
natureza (Mamani 2010, 13).
O conceito do Bem Viver recebeu relevância no Equador quando começaram
os debates na “Asamblea Constituynte del Ecuador” em finais de 2007, pela
iniciativa dos equatorianos Fernando Vega e Alberto Acosta (Hidalgo Capitán
2012). No ano de 2011, o “Programa Interdisciplinario de Población y
Desarrollo Local Sustentable (PYDLOS)” da Universidade de Cuenca,
formulou seu “Plan de Desarrollo Académico e Institucional” para os anos
2011-2015, estabelecendo como prioridade a construção de novos enfoques,
metodologias e instrumentos que permitissem melhorar os processos de
planificação participativa e gestão do território até a consecução do Bem
Viver (Hidalgo Capitán 2012).
Nos últimos anos, o Bem Viver passou a ser mencionado em várias
publicações como sinônimo de vida saudável, combinado a projetos de
desenvolvimento dos governos equatoriano e boliviano, associado à
qualidade de vida. Neste sentido, estudiosos apontam o Bem Viver a uma
natureza polissêmica, passível de diferentes concepções, como viver melhor,
bem-estar, qualidade de vida e desenvolvimento humano (Lacerda e Feitosa
2015). Entende-se porém, que a melhor forma de sua compreensão, esteja
na tentativa de compreensão de suas raízes ancestrais, considerando suas
origens e os sentidos atribuídos por povos originários na construção do seu
conceito.
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Segundo Hidalgo Capitán (2012a, 16; 2012b, 49) existem três correntes do
Bem Viver: (1) a indigenista e a pachamamista, (2) a socialista e estadista, e
(3) a pós-desenvolvimentista e ecologista.
A primeira e originaria seria a corrente indigenista e
pachamamista, caracterizada pela relevância que se dá a
autodeterminação dos povos indígenas na construção do
Bem Viver, assim como aos elementos mágico-espirituais
(la Pachamama). […] Estaria vinculada com o
pensamento indígena pré-moderno. […] A segunda seria
a corrente socialista e estadista, caracterizada pela
relevância que dá a gestão política-estatal do Bem Viver,
assim como aos elementos relativos a equidade social.
[…] e a terceira seria a corrente post-desenvolvimentista
e ecologista, caracterizada por relevância que se dá a
construção participativa do Bem Viver, com a inclusão de
aportes indigenistas, socialistas, feministas, teológicos e,
sobretudo, ecologistas. Falam do Bem Viver como uma
alternativa ao desenvolvimento, como uma utopia em
construção […].
Os povos originários tradicionais pertencem a primeira corrente por
possuírem modos de vida sustentáveis, distanciados da visão hegemônica
ocidental de sociedade de consumo. Acosta (2010) assinala que o Bem Viver,
enquanto filosofia de vida sustentável, consiste em alternativa à visão
utilitarista e antropocêntrica de desenvolvimento. Para Eduardo Gudynas o
tema nos remete a uma perspectiva biocêntrica onde “[...] a boa vida dos
seres humanos só é possível se a sobrevivência e integridade da teia da vida
da natureza pode ser garantido" (Gudynas 2009, 52).
A abordagem do Bem Viver contraria a visão individualista, o que contraria o
senso de comunidade. Implica reconhecer a vida a partir de uma cosmovisão
- concepção ou visão de mundo - que integra o ser humano à Natureza, esta
entendida como sujeito de direitos, independentemente de sua utilidade
prática e imediata para os seres humanos.
Trata-se de reconhecer que o planeta possui uma capacidade de carga
limitada, o que sugere regulação do consumo e descarte atual e futura, de
maneira a não prejudicar irreversivelmente os ecossistemas e a
biodiversidade planetária (Acosta 2010 e Gudynas 2009). As consequências
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6Bem Viver: uma pespectiva (des)colonial das comunidades indígenas
do desenvolvimento, segundo Dávalos (2008), e seu legado de destruição
ambiental, degradação humana, violência social, colonização das
consciências, são vistas como naturais e inevitáveis.
Neste contexto, o “Bem-Viver” engloba um conjunto de ideias surgidas como
reação e alternativas aos conceitos convencionais de desenvolvimento, como
as da ecossocioeconomia, explorando perspectivas criativas tanto no plano
das ideias como no campo da prática.
Colonialidade, Interculturalidade e descolonização do saber
A promessa de desenvolvimento, modernidade, progresso, fazem crer que se
pode alçar um “melhor nível de vida” e que os recursos naturais são condição
chave para se lograr este intento. Esta visão reducionista, antropocêntrica e
individualista, reduziu a crise estrutural a uma crise econômica. A urgência de
uma resposta ao modelo econômico vigente, desde a cosmovisão dos povos
indígenas originários, nada mais é que uma nova forma de vida sustentada
no equilíbrio, harmonia e respeito à vida.
Frente a esta conjuntura política e conflitiva, entre lutas históricas e
interesses políticos e econômicos, emergem tensões e paradoxos das
compreensões, usos e projetos de interculturalidade como,
[...] um projeto que por necessidade convoca a todos os
preocupados pelos padrões de poder que mantêm e
seguem reproduzindo o racismo, a racionalização, a
desumanização de alguns e a sobre-humanização de
outros, a subalternização de seres, saberes e formas de
viver. Seu projeto é a transformação social e política, a
transformação das estruturas de pensar, atuar, sonhar,
ser, estar, amar e viver (Walsh 2009, 15).
O passado colonial dos países resultou do modelo hegemônico (e global) de
poder “instaurado desde a conquista, que articula raça e trabalho, espaço e
pessoas, de acordo com as necessidades do capital e para o benefício dos
brancos europeus” (Escobar 2003, 62).
As relações de poder e as estruturas e instituições que mantêm estas
relações, naturalizam as assimetrias e desigualdades sociais. Para Walsh
(2013, 66-67) “[…] o trabalho de aprendizagem, (des)aprendizagem e
reaprendizagem implicados e até formas “muitas outras” de estar, ser,
pensar, fazer, sentir, olhar, escutar, teorizar, atuar, conviver e reexistir ante
momentos políticos complexos caracterizados por violências crescentes,
repressão e fragmentação”.
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Para Quijano (2000, 342), a “colonialidade”2 é um dos elementos
constitutivos e específicos do padrão mundial do poder capitalista. Funda-se
na imposição de uma classificação racial e ética da população. “[...] como
pedra angular deste padrão de poder que opera em cada um dos planos,
âmbitos e dimensões materiais e subjetivas, da existência social cotidiana e
de escala societal”.
A relação de dominação com a natureza se impõe nos modos de vida. Neste
sentido, descolonizar nosso imaginário, implica imaginar outra maneira de
viver, que permita uma certa qualidade de vida e também, uma maneira de
relacionamento com a natureza, respeitando a biodiversidade (Walsh, 2009).
Neste sentido, há outra dimensão de resistência e construção de alternativas
de ordem política colonial de submissão e exclusão desta população, que
implica em renunciar sua cultura, identidade, os modelos de vida próprios, e
seus valores culturais, negando a possibilidade de incorporarem-se ao modo
de vida “moderno” (Lander 2012).
Para Escobar (2010, 1) “[...] é necessário reconhecer a presença de uma
“dupla conjuntura”: a da crises do projeto neoliberal das últimas três décadas,
por um lado, e simultaneamente, a crise do projeto da modernidade que vem
desde o momento da conquista”. Para o autor,
[...] o socialismo do século XXI, plurinacionalidade,
interculturalidade, democracia direta e substantiva,
revolução cidadã, desenvolvimento endógeno centrada
no Bem Viver do povo, projetos territoriais e autonomia
cultural e (de)coloniais no sentido pós-liberal e
sociedades são alguns dos conceitos que procuram para
nomear as transformações em curso (Escobar 2010, 2).
Walsh (2009), acredita que nas comunidades indígenas, a “colonialidade”
tem operado um nível intersubjetivo e existencial, permitindo a
desumanização de alguns, a sobre-humanização de outros e a negação dos
sentidos integrais da existência da humanidade.
Os sistemas comunitários são um caminho em direção ao
futuro, não apenas para a população indígena, mas
podem também funcionar como um modelo para uma
organização global, na qual muitos mundos irão coexistir,
sem serem dominados em nome de uma simplicidade e
de uma reprodução de oposições binárias. Os sistemas
comunitários oferecem uma alternativa para ambos os
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2. Colonialidade: Indica o
padrão de relações que
emerge no contexto da
colonização europeia nas
Américas e se constitui como
modelo de poder moderno e
permanente atravessando
todos os aspectos da vida.
8Bem Viver: uma pespectiva (des)colonial das comunidades indígenas
sistemas: os liberais e socialista-comunistas [...]. O
sistema comunitário é, ao contrário, baseado na que
coexistiu com as instituições ocidentais
imperiais/coloniais, desde o momento em que os
espanhóis invadiram os Andes. [...] No sistema
comunitário, o poder não está localizado no Estado ou no
proprietário individual (ou corporativo), mas na
comunidade (Mignolo 2008, 319-320).
A matriz colonial-cultural de estruturação social foi feita e assumida com o
objetivo de civilização, modernidade e desenvolvimento. Entretanto, apesar
da persistência da matriz colonial de dominação e seus padrões de poder, os
povos indígenas podem empregar e aproveitar esta colonialidade sem perder
necessariamente, sua identidade. “As possibilidades reais de viver em
comunidade, parte essencial do “bem viver”, passam primeiro pela
possibilidade de construir essa comunidade” (Caovilla Lucca 2015, 126).
Apesar da situação de dominação e exploração de vários séculos,
resultantes da colonização europeia, muitos povos se mantêm fieis ao modo
de vida alternativo em substituição àquele desenvolvimento assumido pelas
sociedades ocidentais. Neste contexto, a descolonização representa um
projeto de desprendimento epistêmico da esfera social, política e cultural.
Para Quijano (1992, 442):
A descolonização epistemológica dá passo a uma nova
comunicação intercultural, a um intercâmbio de
experiências e de significações, como a base para outra
racionalidade que possa pretender, com legitimidade, a
alguma universalidade. Pois nada menos racional,
finalmente, que a pretensão de que a específica
cosmovisão de uma etnia em particular seja imposta
como a racionalidade universal, ainda que tal se chame
Europa Ocidental. Porque isso, na verdade, é pretender
para um provincianismo o título de universalidade.
Neste sentido, é necessária uma desconstrução das ideias dominantes sobre
o Estado, a economia, a educação e, principalmente, sobre o Direito; exige-
se superar a colonialidade constitucional para assentar as bases de uma
comunidade política inclusiva e democrática, que permita nutrir-se de
cosmovisões, saberes, epistemologias e práticas culturais diversas.
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Carlos Alberto Cioce Sampaio 9
Direitos territoriais e humanos dos povos indígenas originários
Destacam-se as lutas ainda vigentes, conflitivas e presentes dos povos
indígenas, particularmente em torno dos direitos territoriais e fazer efetivo.
Neste contexto, faz-se necessário a implementação de políticas públicas
voltadas a população indígena, como o Convênio 169 da Organização
Internacional do Trabalho (OIT) em 1989. Este convênio, sobre Povos
Indígenas e Tribais, foi ratificado no Brasil somente em 2002 com vigência a
partir de 2003. Neste Convênio, os povos indígenas adquiriram o direito de
escolha de integrar-se ou manter sua cultura, suas tradições e integridade
política. Possui 7 partes e 44 artigos, que incentivam os povos a assumir o
controle de suas próprias instituições e formas de vida e de seu
desenvolvimento econômico e a manter e fortalecer suas identidades,
línguas e religiões, dentro do marco dos Estados em que vivem (OIT 1989).
Neste sentido, o artigo 8 reconhece as culturas, tradições e circunstâncias
especiais dos povos indígenas e tribais.
Estes povos deverão ter o direito de conservar seus
costumes e instituições próprias, sempre que estas não
sejam incompatíveis com os direitos fundamentais
definidos pelo sistema jurídico nacional nem com os
direitos humanos internacionalmente reconhecidos.
Sempre que seja necessário, deverão estabelecer
procedimentos para solucionar os conflitos que podem
surgir na aplicação deste principio (OIT 1989).
Este convênio enfatizou os direitos de trabalho dos povos indígenas e tribais
e seu direito à terra e ao território, saúde e educação. Determinou também a
proteção dos valores e práticas sociais, culturais, religiosas e espirituais
próprias dos povos indígenas, e definiu a importância do território e seus
valores espirituais. Assim como a importância das atividades tradicionais
para manutenção da cultura. No que tange aos serviços de saúde para
indígenas, este poderão organizar-se de forma comunitária, incluindo os
métodos de prevenção, práticas curativas e medicamentos tradicionais. A
parte V, sobre Segurança Social e Saúde, Artigo 24, item 2 garante que:
Os serviços de saúde deverão organizar-se na medida do
possível, em nível comunitário. Estes serviços deverão
planejar-se e administrar-se em cooperação com os
povos interessados e ter em conta suas condições
econômicas, geográficas, sociais e culturais, assim como
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10 Bem Viver: uma pespectiva (des)colonial das comunidades indígenas
seus métodos de prevenção, práticas curativas e
medicamentos tradicionais (OIT 1989, 15).
Os programas de educação devem abordar sua história, seus conhecimentos
e técnicas, seus sistemas de valores e deverão adotar disposições para
preservar a língua indígena. O artigo 7, tem 2 do Convênio 169 dispõe:
O melhoramento das condições de vida e trabalho e o
nível de saúde e educação dos povos interessados, com
sua participação e cooperação, deverão ser proprietários
nos planos de desenvolvimento econômico global das
regiões onde habitam. Os projetos especiais de
desenvolvimento para estas regiões deverão elaborar-se
de modo que promovam este melhoramento (OIT 1989,
8).
A Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) aprovou a Declaração das
Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas em setembro de 2007.
Afirma que os povos indígenas são iguais a todos, reconhecendo o direito de
todos os povos a serem diferentes, a considerarem-se a si mesmos
diferentes e a serem respeitados como tais. Igualmente, afirma que todos os
povos contribuem com a diversidade e riqueza das civilizações e culturas,
constituindo-se em patrimônio comum da humanidade. O artigo 3 indica: “os
povos indígenas têm direito a livre determinação. Em virtude deste direito,
determinam livremente sua condição política e perseguem livremente seu
desenvolvimento social e cultural” (ONU 2007).
Apesar destes direitos enfatiza “uma urgente necessidade de respeitar e
promover os direitos intrínsecos dos povos indígenas que derivam das
estruturas políticas, econômicas e sociais e da cultura, tradições espirituais, a
história e concepção de vida” (ONU 2007).
As Constituições de Equador e Bolívia estabelecem o “Buen Vivir” e o Vivir
Bien” e o conceito de “Estado Plurinacional”3, que emerge da cosmovisão
indígena originária, descrevendo as diferentes nações da “Abya Yala”, onde
convivem diversas identidades de forma complementar (Mamani 2010, 12).
No Equador, “[...] se optou por uma ideia de nação que bem se confunde com
a de cidadania, reconhece três dimensões – política, jurídica e cultural – que
deixa aberta a porta da noção indígena de nacionalidade, entendida em
términos de vínculo com uma comunidade histórica”(Correa 2009, 438).
O “Plan Nacional para el Buen Vivir 2013-2017” do Equador tem um conjunto
de objetivos que expressam a vontade de continuar com sua transformação
histórica, que vão além das metas fixadas pelas Nações Unidas nos
Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, ratificada pela Secretaría
Rev. Rupturas 7(2), Costa Rica, Jul-Dic 2017. ISSN 2215-2466. 1-31. http://investiga.uned.ac.cr/rupturas/
3. O estado plurinacional -
implantado na Bolívia e
Equador - é fruto de um
processo democrático que se
iniciou com revoluções
pacíficas, onde os povos
indígenas reconquistam
gradualmente sua liberdade e
dignidade.
Liliane Cristine Schlemer Alcântara
Carlos Alberto Cioce Sampaio 11
Nacional de Planificación y Desarrollo (ONU 2011 e SENPLADES 2013).
Entre estes objetivos estão: consolidação de um estado democrático,
inclusão e equidade social e territorial na diversidade, melhora da qualidade
de vida da população, fortalecimento das capacidades e potencialidades da
cidadania, construção de espaços comuns e fortalecimento da identidade
nacional, incentivo a plurinacionalidade e a interculturalidade, garantia dos
direitos da natureza e promoção da sustentabilidade territorial e global,
consolidação do sistema econômico social e solidário de forma sustentável,
garantia da soberania alimentar, entre outros (SENPLADES 2013).
Especificamente no Brasil, em 1967, sob o regime Militar, o governo substitui
o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e criou a Fundação Nacional do Índio
(FUNAI), como órgão gestor e executor da política indigenista oficial. Este
órgão mantém a política integracionista do Estado, com o objetivo explícito
no artigo 1. da Lei 6001 do Estatuto do Índio: “[...] integrá-los, progressiva e
harmoniosamente, à comunhão nacional” (BRASIL 1973). O direito de manter
a língua e costumes é garantido pela Constituição Brasileira de 1998 pelo
Artigo 231: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes,
línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre terras que
tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-los, proteger e fazer
respeitar todos os seus bens”.
Também está garantido por lei constitucional o direito de preservação e
estudo das línguas nas escolas, pelo artigo 210: “O ensino fundamental
regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades
indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos
próprios de aprendizagem”. Ao mesmo tempo, a Política Nacional de Atenção
à Saúde dos Povos Indígenas integra a Política Nacional de Saúde,
compatibilizando as determinações das Leis Orgânicas da Saúde com as da
Constituição Federal, que reconhecem aos povos indígenas suas
especificidades étnicas e culturais e seus direitos territoriais.
Os sistemas tradicionais indígenas de saúde são
baseados em uma abordagem holística de saúde, cujo
princípio é a harmonia de indivíduos, famílias e
comunidades com o universo que os rodeia. As práticas
de cura respondem a uma lógica interna de cada
comunidade indígena e são o produto de sua relação
particular com o mundo espiritual e os seres do ambiente
em que vivem. Essas práticas e concepções são,
geralmente, recursos de saúde de eficácias empírica e
simbólica, de acordo com a definição mais recente de
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12 Bem Viver: uma pespectiva (des)colonial das comunidades indígenas
saúde da Organização Mundial de Saúde (BRASIL 2002,
17).
Entre as políticas, estão as que se relacionam com o uso da biodiversidade e
do etnoconhecimento para fins medicinais, ou seja, os saberes tradicionais
que regulam o entendimento, prática e uso que se tem sobre um objeto ou
evento (Dansac 2012).
[...] autonomia dos povos indígenas quanto à realização
ou autorização de levantamentos e divulgação da
farmacopeia tradicional indígena, seus usos,
conhecimentos e práticas terapêuticas, com promoção do
respeito às diretrizes, políticas nacionais e legislação
relativa aos recursos genéticos, bioética e bens imateriais
das sociedades tradicionais. [...] Devem também compor
essas ações as práticas de saúde tradicionais dos povos
indígenas, que envolvem o conhecimento e o uso de
plantas medicinais e demais produtos da farmacopeia
tradicional no tratamento de doenças e outros agravos a
saúde. Essa prática deve ser valorizada e incentivada,
articulando-a com as demais ações de saúde dos
Distritos Sanitários Especiais Indígenas (BRASIL 2002, p.
18).
Esta proposta foi regulamentada pelo Decreto n.º 3.156, de 27 de agosto de
1999, que dispõe sobre as condições de assistência à saúde dos povos
indígenas, e pela Medida Provisória n.º 1.911-8, que trata da organização da
Presidência da República e dos Ministérios, onde está incluída a
transferência de recursos humanos e outros bens destinados às atividades
de assistência à saúde da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) para a
Fundação Nacional da Saúde (FUNASA), e pela Lei nº 9.836/99, de 23 de
setembro de 1999, que estabelece o Subsistema de Atenção à Saúde
Indígena no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) (BRASIL 2002).
Metodologia
Conforme o Ministério de Educação (MEC), o Programa de Ações Afirmativas
pressupõe um conjunto de medidas especiais voltadas a grupos
discriminados e vitimados pela exclusão social ocorridos no passado ou no
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Carlos Alberto Cioce Sampaio 13
presente (MEC, 2016). Este programa estabeleceu reserva de vagas para
estudantes do ensino público, com porcentagem para negros (pretos e
pardos) e vagas extras para índios nas Universidades Federais.
Nesta pesquisa foram entrevistados dez estudantes universitários indígenas
deste Programa, todos recém ingressados na Universidade, mediante prévia
autorização e concordância dos mesmos. Apesar da importância de dialogar
com outros membros das comunidades, as dificuldades de logística não
permitiram a realização destas entrevistas. Ressalta-se que os estudantes
após o término do curso de graduação, retornam as suas comunidades de
origem, colocando em prática os conhecimentos apreendidos (explícitos) na
Universidade sem deixar de lado os conhecimentos tradicionais (tácitos). Os
entrevistados pertencem as seguintes etnias: Warequena, Baníwa, Xukuru
do Orurobá, Tariána, Terena (Bananal e Cachoeirinha), Arapaso e Atikum-
Umã (Figura 1).
Figura 1 - Mapa de localização das comunidades indígenas
Fonte: Construção dos autores
Esta pesquisa utilizou-se de pesquisa descritiva e exploratória-qualitativa,
com análise comparativa, sendo que a metodologia se deu em três fases: (a)
pesquisa bibliográfica e documental sobre os temas do Bem Viver,
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14 Bem Viver: uma pespectiva (des)colonial das comunidades indígenas
interculturalidade, direitos territoriais e humanos; (b) etapa exploratória com
entrevistas semi-estrutradas (formulário qualitativo de coleta de dados) com
dez acadêmicos de comunidades indígenas originárias; e (c) análise dos
aspectos socioeconômicos, culturais e ambientais relacionados ao Bem
Viver.
Tessitura das comunidades indígenas originárias: Bem viver ou
mal viver?
Ainda que se pressuponha a equidade na distribuição de riquezas, povos
indígenas não consideram o Bem Viver como estando associado à
acumulação de bens materiais e sua abundância, mas a uma convivência
humana sem desigualdade ou discriminação. Para os povos indígenas
originários, a vida não se mede unicamente em função da economia, mas de
fatores que se relacionam com a essência da própria vida, como a harmonia
com a natureza, consigo mesmo e com outros; nos modos de vida e na
oposição ao conceito de acumulação.
Caracterização das comunidades pesquisadas
O Brasil tem 896,9 mil indígenas em todo o território nacional, somando a
população residente tanto em terras indígenas (63,8%) quanto em cidades
(36,2%), de acordo com o Censo 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatísticas (IBGE 2015).
Conforme o Instituto Sócio Ambiental (ISA 2016), Podemos agrupar os povos
indígenas no Brasil, no tronco linguístico Aruák, de acordo com a região que
habitam. Para Bittencourt e Ladeira (2000), estes povos apesar de
apresentarem diferenças entre si, possuem a mesma língua de origem. Além
disso, tem semelhanças na forma de organização social (tradicionalmente
agricultores e conhecedores das técnicas de tecelagem e cerâmica).
Entre eles, os Baníwa da comunidade Macedônia – Rio Içana (afluente do
Rio Negro), que possuem em torno de 5 mil habitantes; Warekena da
comunidade Vila Nova – Rio Xié com apenas 595 habitantes e Tariána da
comunidade Ilha de Duraka, rio Uapés (Camanaus), possui em torno de 2 mil
habitantes distribuídos nas comunidades Médio Uaupés, Baixo Papuri e Alto
Iauiari, o centro do povoamento fica entre as cachoeiras do Iauareté e
Periquito. A etnia dos Arapáso da Comunidade Ilha de Duraka com 497
habitantes, está classificada no tronco linguístico dos Tukano. Estas
comunidades estão localizadas no Estado do Amazonas (IBGE 2010).
Considerado o município mais indígena do Brasil, cerca de 90% dos
habitantes são indígenas e além do português, existem mais três idiomas
oficiais: Nheengatu, Tukano e Baníwa. Das 23 etnias, pelo menos 3 mil anos
ocupam as margens do rio Negro e de seus afluentes e correspondem a 80%
da população (IBGE 2015). Os cerca de 43 mil habitantes se dividem entre a
área urbana – ocupada a partir da margem do rio desde a fundação do forte
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Liliane Cristine Schlemer Alcântara
Carlos Alberto Cioce Sampaio 15
São Gabriel pelos portugueses, em 1761 – e as centenas de comunidades
espalhadas pelo interior da floresta, algumas a dois ou três dias de barco
dentro do maior mosaico de terras indígenas do país, com 100 km² de área.
Um território maior do que Portugal, onde vivem os Baniwa, Kuripako, Dow,
Hupda, Nadöb, Yuhupde, Baré, Warekána, Arapáso, Bará, Barasana,
Desana, Karapanã, Kubeo, Makuna, Mirity-tapuya, Pira-tapuya, Siriano,
Tariana, Tukano, Tuyuca, Wanana e Yanomami (Viana 2015).
O Estado do Mato Grosso do Sul abriga a segunda maior população indígena
do país, que são compostas pelas seguintes nações: Ofayé Xavante,
Kadiwéu, Guató,Guarani, Kaiowá e os Terena (Vieira 2004). Os Terena
também pertencem ao grupo dos Aruák. Constituem hoje, população
estimada de 28 mil habitantes (IBGE 2010). A aldeia de Cachoeirinha está
localizada no município de Miranda (MS). A aldeia Bananal fica a 75 km do
Município de Aquidauana, no sentido Aquidauana/Miranda, BR 262.
Ambas tiveram suas reservas delimitadas entre 1904 e 1905. Esta
demarcação permitiu que o governo liberasse o restante das terras para
frentes expansionistas de criação de gado e, posteriormente, a plantação de
soja (Vieira 2004). O povo Terena tem uma das maiores populações
indígenas do Brasil, tendo a agricultura uma de suas principais culturas,
juntamente com a produção de cerâmica, instrumentos musicais e objetos de
cipó e palha de palmeira.
A etnia Xucuru da aldeia Couro Dantas esta localizado Pernambuco. Falam
português, apesar de conhecerem 800 palavras que remetem ao antigo
léxico de sua língua original. O aldeamento dos remanescentes Xucuru está
situado na Serra do Ororubá, a cerca de 6 km da cidade de Pesqueira. Ao
todo, são 27 mil hectares de território indígena, ocupados por 2.100 famílias,
totalizando 12 mil índios (IBGE 2010). São agricultores e vendem seus
produtos na feira livre em Pesqueira. Depois de muitos conflitos, na década
de 1950, conquistaram o direito às suas terras por meio de reconhecimento
oficial, com a implantação de um Posto do Serviço de Proteção aos Índios -
SPI na Serra do Ororubá (Silva 2008).
Os Atikum-Umã conhecidos como “caboclos da Serra do Umã” possuem
uma população estimada de 7.499 habitantes e não pertencem a nenhuma
família ou tronco linguístico (IBGE 2010). Falam a língua portuguesa e
poucas palavras no léxico que deu origem a sua etnia, que remetem a nomes
a elementos da natureza. Sua área está localizada na região da serra das
Crioulas e Umã, nos limites do atual município de Carnaubeira da Penha,
sertão de Pernambuco (ISA 2016).
História oral das comunidades
Antigamente as comunidades cultivavam suas tradições, rituais, religião e
cultura. As casas, segundo os Terena (Bananal), eram feitas de capim e
barrote de macaúba. Atualmente, possuem uma estrutura urbana, com
escolas, igrejas, posto de saúde e casas de alvenaria. As religiões
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16 Bem Viver: uma pespectiva (des)colonial das comunidades indígenas
predominantes é a evangélica e/ou católica. Eram caçadores e coletores,
predominantemente agricultores, como perderam muitas áreas de terra, e
comunidade diminuiu de tamanho. Estão cercados por fazendas de pecuária.
A comunidade de Cachoeirinha possui hoje pouco mais de 5.000 habitantes.
Foi na década de 80 e 90 que chegou o chamado “desenvolvimento” na
região, com postos de saúde, escolas, energia elétrica, etc.
Na comunidade Baníwa, o artesanato tem uma produção em pequena escala
e é comercializado pelo sistema de troca entre as comunidades indígenas e
a população urbana por produtos de pouco valor para as comunidades. A
Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) de São
Gabriel da Cachoeira (Amazonas) procura formar na comunidade, lideranças
indígenas que incentivam o resgate das tradições, principalmente na
valorização na produção do artesanato, que havia sido esquecido. Realizam
encontros com as comunidades para o resgate das técnicas de confecção,
repassando estes saberes para os jovens da comunidade.
A comunidade Xukuru do Ororubá sofreu muitas perseguições e conflitos e
ainda luta contra o preconceito. Os indígenas estão despertando por meio de
reflexões por meio da educação, mas muitos ainda não acesso e domínio da
escrita para se expressar.
No passado, a comunidade Warekena era pequena com poucas pessoas,
hoje a comunidade tem mais de 30 famílias, com escolas, casas de alvenaria
e professores da própria aldeia.
Os Arapáso, no passado, não tinham muitas informações das outras
localidades, regiões e países. Atualmente, possuem conhecimentos para
poder melhor analisar o que é desejável para a comunidade. Para os Atikum,
no passado os alimentos eram fartos e naturais. Hoje tudo se alterou com os
avanços da agricultura tradicional.
Conhecimentos tradicionais
Procurou-se saber na concepção dos acadêmicos, se os conhecimentos
tradicionais ainda são preservados na comunidade e se são transmitidos de
pai para filho. Para os Tariána e os Terena o respeito aos mais velhos e os
rituais ainda são preservados.
O respeito pelos mais velhos, a sabedoria dos rituais de
cura, a dança chamada chamada “dabucurí”, a língua
materna não tão fluente, conhecimentos populares de
cura através de plantas (Tariana).
Os anciões da comunidade sempre estão atento
durante o cultivo da lavoura que é repassado para seu
filho de acordo com o tempo do ano com orientação do
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Carlos Alberto Cioce Sampaio 17
vento e posição da lua. O tronco da família orienta os
filhos mais novo passar respeitar o irmão mais velho
irmão [...] Agricultura: fases da lua para plantar, para
colher (Terena – Aquidauana/MS).
[...] Esses conhecimentos são muitos, dependendo
da família o filho já começa fazer o acompanhamento
nas atividades a partir dos treze anos de idade. Esse
conhecimento são em diferentes áreas, exemplo na
agricultura, na caça, na pesca, o reconhecimento
territorial.[...] Atualmente á a língua materna bem
marcante, em seguida as danças que são festejadas nas
datas comemorativas e eventos da comunidade (Terena –
Miranda/MS).
Os conhecimentos são transmitidos em forma de rituais sagrados na pintura,
festas, costumes e língua.
As tradições da comunidade que são repassadas, são os
rituais sagrados, as danças, as vestes, as pinturas, os
costumes realizados em datas comemorativas, como: a
busca da lenha, a elevação a Tamain (Maria), Tupã
(Deus), são costumes que estão sempre no dia-a-dia na
comunidade (Xukuru do Ororubá).
Conhecimentos tradicionais nossa comunidade são:
história da humanidade, demarcação da terra desde
origem, dança de Carriço, dança de Japurutá, dança do
Mawaco, etc... (Baníwa).
Os nossos conhecimentos tradicionais que ainda
são passados de geração em geração é o “Toré” que é o
nosso ritual de dança que é realizado no nado e roupas
de caçar (Atikum).
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18 Bem Viver: uma pespectiva (des)colonial das comunidades indígenas
Os conhecimentos que são passados de pai para
filho são: dança, caça, confecção de artesanatos, língua
e rituais sagrados (Arapáso).
Para os Warekena, muitas tradições foram esquecidas e não são praticadas
pelos mais jovens: “Aldeia deixou de pratica as tradições antigas, vivido pelos
mais antigos da tribo” (Warekena). No geral, muitos rituais e saberes
tradicionais foram preservados, outros foram esquecidos ou, mesmo,
substituídos pelos costumes da comunidade urbana (Figura 3).
Impactos ambientais
Entre os impactos ambientais, sociais, culturais e econômicos que
ocorreram, destacam-se: aumento de residências de alvenaria na aldeia
(Warekena); desmatamento com a derrubada da floresta pelos madeireiros
(Baníwa); surgimentos de pastagens para a pecuária e abertura de áreas
para agricultura, perda da cultura, influência política causando desintegração
do povo, entrada e intervenção das religiões (católica e evangélica)
causando conflitos com a cultura local, abandono dos rituais (como as
danças tradicionais e língua materna), desigualdade social, desemprego,
falta de recursos materiais, entrada de produtos industrializados (causando
doenças nos indígenas) (Terena); pouca biodiversidade, como peixes e a
caça, imigração das famílias para a cidade, desmatamento e queimadas
resultando na mudança do clima, como o aumento das temperaturas
(Tariána); o maior impacto está refletido na tradição da caça e pesca que
diminuiu muito nos últimos anos; falta de oportunidades de indígenas no
mercado de trabalho (Arapáso) e; diminuição de chuvas que afeta a
agricultura e consequentemente a produção de alimentos (Atikum e Xocuru).
Características ecológicas, culturais, sociais e econômicas das
comunidades
O quadro 1 demonstra as características ecológicas, culturais, sociais e
econômicas das comunidades na concepção dos acadêmicos. Há
biodiversidade existente nas comunidades, passando do cerrado e da
caatinga de Pernambuco e do cerrado e do pantanal de Mato Grosso do Sul
para a exuberância e diversidade do bioma da floresta amazônica. Na região
de Pernambuco, onde as chuvas são mal distribuídas em grande parte na
região, as comunidades Atikum-Umã e Xucuru de Ororubá tem como
principal desafio o combate a seca, comprometendo a biodiversidade e a
agricultura.
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Carlos Alberto Cioce Sampaio 19
Quadro 1. Características ecológicas, culturais, sociais e econômicas
Comunidades
Indígenas Ecológicas Culturais Sociais Econômicas
Warekena
(Comunidade
Vila Nova –
Rio Xié -AM)
Predominância
da floresta ama-
zônica, animais
silvestres e plan-
tas medicinais
usadas pelos
moradores
Perda da cultu-
ra, religião pre-
dominante:
evangélica. Os
jovens não que-
rem continuar
na comunidade
A comunidade
possui posto de
saúde, divisão
do trabalho en-
tre homens e
mulheres
Cada família
produz seu pró-
prio alimento.
Produzem fari-
nha e artesana-
to
Baníwa (Co-
munidade Ma-
cedônia – Rio
Içana -AM)
Floresta amazô-
nica. Plantas e
vegetação riquís-
sima e muita va-
riedade de ani-
mais e insetos.
Prática da cultu-
ra. Religião pre-
dominante:
evangélica. Dis-
cussões na co-
munidade para
melhorar a vida
das novas ge-
rações
Divisão do tra-
balho por gêne-
ro: as mulheres
ficam com o tra-
balho leve e os
homens com as
tarefas mais pe-
sadas
Plantam e ven-
dem pimenta
por meio de um
projeto chama-
do “Organi-
zação Indígena
Bacia do Rio
Içama (OIBI)”
Xucuru do
Ororubá (Co-
munidade Al-
deia Couro
Dantas - PE)
Bioma predomi-
nante: caatinga e
cerrado. Grande
diversidade de
fauna e flora. Ve-
getação rasteira.
Clima quente e
úmido.
Cultura diversifi-
cada, na reli-
gião alguns se-
guem o catoli-
cismo e a page-
lança. Os rituais
sagrados ainda
são cultivados,
como: dança do
toré, busca da
lenha, artesa-
nato, pinturas
corporais. Edu-
cação com ativi-
dades multidis-
ciplinares
Acompanha-
mento de equi-
pe médica es-
pecializada.
Trabalhos divi-
didos entre ho-
mens e mulhe-
res. Relações
vistas de forma
igualitária, onde
todos tem os
mesmos direi-
tos.
Agricultura, ar-
tesanato e pro-
dutos derivados
do leite, como
queijo, vendidos
nas comunida-
des vizinhas.
Terena (Aldeia
Cachoeirinha
– Miranda/MS;
Diversidade pe-
quena, predomi-
nância do cerra-
do e pantanal.
Predominância
de herbáceas,
forrageiras, ar-
bustos e árvores.
Uso de plantas
medicinais. As
árvores são usa-
das para madei-
ra de construção
de casas.
Predominância
de católicos e
evangélicos.
Danças e rituais
em ocasiões
especiais.
Transmissão de
saberes pela vi-
vência. Cultura
viva, passado
para as novas
gerações por
meio da edu-
cação. As esco-
las tem aulas
na língua indí-
gena com pro-
fessores da co-
munidade.
Responsável:
SESAI – Secre-
taria especial
de Saúde Indí-
gena). Saúde
fragilizada de-
manda de pos-
tos de saúde.
Homens tra-
balham na agri-
cultura e mulhe-
res nos afaze-
res domésticos.
Convivência
harmônica. Os
jovens conti-
nuam seus es-
tudos fora da
aldeia.
Agricultura de
subsistência e
venda das so-
bras para com-
plementar a
renda. Tra-
balham na cida-
de em órgãos
municipais e ou-
tros.
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20 Bem Viver: uma pespectiva (des)colonial das comunidades indígenas
Terena - Aldeia
Bananal –
Aquidauana/M
S)
Região pantanei-
ra. Rica biodiver-
sidade de fauna
e flora. Bioma:
cerrado e Panta-
nal com plantas
como: aroeira,
pindaíba, lixeira,
baru, jatobá, lou-
ro, ipê, e animais
como: gaveado,
quati, lobo-gua-
rá, onça parda e
pintada.
Religião católi-
ca, evangélica
e reza do Pagé.
Possuem seu
próprio modo
de se comuni-
car com o cria-
dor (Kacxomu-
nety). Os costu-
mes prezam
pelo tronco fa-
miliar. Respeito
ao ancião da
comunidade.
Danças realiza-
das em aconte-
cimentos na co-
munidade. Edu-
cação passada
aos filhos pelos
pais, aprendiza-
do na convivên-
cia.
Tratada dentro
da comunidade
ou em hospi-
tais. Posto de
saúde com mé-
dicos e Pagés e
parteiras indí-
genas. O ho-
mem trabalham
na roça e as
mulheres reali-
zam as colhei-
tas. Povo
acolhedor e fa-
miliar. As de-
cisões respei-
tam o tronco fa-
miliar e são to-
madas pelos
homens.
Agricultura de
subsistência e
feiras de produ-
tos e artesana-
to. Extrativismo.
Caça e pesca.
Muitos tra-
balham em fa-
zendas na re-
gião de cana-de
açúcar e pecuá-
ria. A economia
vem do artesa-
nato e venda
dos produtos
produzidos na
lavoura que po-
dem ser realiza-
dos em forma
de escambo
(troca).
Tariána (comu-
nidade Ilha de
Duraka – Ca-
manaus-AM)
Floresta Amazô-
nica. Plantas de
origem nativa e
outras cultivadas
(árvores frutífe-
ras). Plantas de
origem medici-
nais.
Religião católi-
ca. Escola em
tempo integral
ministrada por
professores in-
dígenas.
Base do SESAI
Distrito de Saú-
de Indígena
(DISEI). Ho-
mens ficam
com o trabalho
pesado e as
mulheres com o
serviço leve (or-
ganização e
limpeza da co-
munidade).
Roçado de
mandioca:
plantio e proce-
ssamento da
mandioca (fari-
nha, tapioca,
massoca, beiju,
tucupi). O di-
nheiro arrecado
com a venda é
revertido em be-
nefício para a
própria comuni-
dade.
Arapáso - Co-
munidade Ilha
de Duraka
(São Gabriel
da Cachoeira
(AM)
Bioma da Ama-
zônia: rica em
ecossistemas.
Bacia Hidrográfi-
ca do Rio Negro.
Grande quanti-
dade de animais
e vegetais, com
30.000 espécies
de plantas e ve-
getais; mais de
2.500 tipos de
árvores. A fauna
possui cerca de
20% de toda es-
pécie catalogada
no mundo
A cultura ainda
é preservada,
sendo que so-
freu forte in-
fluência da Igre-
ja Católica. Os
costumes são
passados de
pai para filho. A
educação é di-
ferenciada, mas
sem a devida
qualificação dos
professores.
Estrutura física
das escolas
precária.
Os trabalhos
são realizados
por todos na
comunidade
(homens e
mulheres). As
comemorações
são realizadas
com a partici-
pação de todos.
A economia pre-
dominante é a
de agricultura
familiar de sub-
sistência.
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Liliane Cristine Schlemer Alcântara
Carlos Alberto Cioce Sampaio 21
Atikum-Umã –
Comunidade
de Carnaubei-
ra da Penha
(PE)
Poucas árvores
e animais. Perda
da diversidade.
Clima seco. Solo
argiloso, com ca-
poeira e arbus-
tos.
Religião católi-
ca. Respeito
aos mais
velhos. Dificul-
dade de acesso
à aldeia, com-
prometendo a
educação. Ha-
bitações de tai-
pa e alvenaria.
Possuem um
Cacique e um
Pagé.
Divisão de tra-
balho: homem
com trabalho
pesado e as
mulheres com o
trabalho mais
leve. União en-
tre os membros
da comunidade
A falta de chuva
não favorece a
agricultura,
comprometendo
a economia lo-
cal. Plantam ro-
ças de mandio-
ca, fava, milho,
feijão, mamona
e algodão.
Criam animais
domésticos
para consumo
como: galinhas,
bodes, vacas,
carneiros e por-
cos.
Nota: construção da autora (análise das entrevistas)
O trabalho é dividido entre homens e mulheres, não apresenta conflitos nas
relações de gênero. A maioria vive da agricultura de subsistência com a
venda do excedente, aliado ao artesanato, extrativismo, pesca e caça. O
trabalho nas fazendas da região e na cidade é uma atividade comum entre
os Terena. Os indígenas não tem a preocupação de acumular excedentes,
preocupando-se como ter o suficiente para viver, quanto sua alimentação e
saúde. Denota-se a predominância das religiões católica e evangélica frente
aos rituais indígenas em quase todas as comunidades. O modelo de vida é
comunitário com ênfase na partilha.
Políticas públicas e organizações sociais e/ou organizações de
apoio às comunidades
Quanto a políticas públicas implementadas nas comunidades, algumas ações
são resultantes de programas e projetos de Prefeituras, Organizações não
Governamentais (ONGs) e órgãos estaduais e federais, como Programa
Casa Popular, relacionados a cestas básicas, postos de saúde, saneamento,
escolas indígenas, etc.
Embora haja investimentos na infraestrutura das comunidades, poucas
políticas são voltadas a valorização e preservação da cultura e tradições,
como o uso de plantas medicinais, como preconiza a OMS e a OIT.
As organizações sociais e/ou instituições que apoiam às comunidades,
segundo os indígenas, na maioria são órgãos e instituições como ONGs,
Igrejas, Prefeituras e Estado, entre os quais: Secretaria Especial de Saúde
Indígena (SESAI), Conselho Indigenista Missionário, Universidades,
Embrapa, Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN);
Fundação Nacional do Índio (FUNAI), Instituto de Medicina Integral Professor
Fernando Figueira (IMIP) e outros.
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22 Bem Viver: uma pespectiva (des)colonial das comunidades indígenas
Bem viver na perspectiva dos acadêmicos indígenas
A partir da compreensão de que o tema do Bem Viver sugere relação
simétrica entre homem e natureza e solidariedade entre os indivíduos, a não
prática a acumulação de excedentes, cada ator social pesquisado relatou
como percebe o Bem Viver em sua comunidade.
O conceito do bem viver desde os diferentes povos originários vai se
complementando com as experiências próprias de cada comunidade. Para
os povos indígenas da Amazônia, agrupados na “Coordinadora de las
Organizaciones Indígenas de la Cuenca Amazónica (COICA)”, referindo-se
ao conceito do bem viver, falam em "Voltar à Maloca4 ".
A Agenda Indígena Amazônica assinala que "voltar à
maloca” ê retornar até nós mesmos, ê valorizar mais o
saber ancestral, a relação harmoniosa com o meio. É
sentir prazer na dança que abraça o corpo e o espírito, é
proteger nossas sabedorias, tecnologias e locais
sagrados. É sentir que a maloca esta dentro de cada filho
do sol, do vento, das aguas, das rochas, das árvores, das
estrelas e do universo. É não ser um ser individual mais
coletivo, vivendo em tempo circular do grande retorno,
onde o futuro está por trás; é o futuro, o presente e o
passado na frente de você, com as lições individuais e
coletivas no processo de vida imemorial (Mamani, 2010,
45).
Este conceito é reforçado pelos estudantes das comunidades do Amazonas
Tariana e Baníwa. Para eles, o Bem Viver está presente na cosmologia
indígena, onde a terra é vista como patrimônio comum, resultando na
preservação dos saberes tradicionais, cultura e nas relações com o outro e o
meio. A língua nativa, considerada patrimônio da comunidade, é conhecida
pela maioria somente na fala e não na escrita. Do total de entrevistados,
somente um consegue escrever na língua nativa.
Pelo fato de haver essa interação entre os grupos e ao
respeito com o outro... tanto nas artes, na dança, música,
vestimentas tradicionais, no todo (Tariana).
Nessa comunidade ainda existe todos: valorização
de culturas, rituais, etc. Também os mais velhos sempre
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4. Casas coletivas e espaços
rituais onde se exerce o
domínio do "dono da maloca”.
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repassa o conhecimento mais avançados para novas
geração. O objetivo para não esquecer a nossa
convivência; e precisa melhorar na área da saúde e
educação (Baníwa)5.
As etnias Warekena e Xucuru do Ororubá apontam como indicadores do
Bem Viver a solidariedade, respeito ao próximo e a natureza, preservação da
cultura e dos saberes como sendo fatores fundamentais para sua promoção.
Ao mesmo tempo, entendem que questões como saúde, segurança e
educação são fundamentais para manter a comunidade unida e solidária.
Por que o povo respeita o seu próximo e cuida do meio
ambiente que fazem parte do seu dia-a-dia, também
respeita o limite do seu vizinho, ajuda no trabalho e na
experiência, e vive em harmonia com seu próximo e com
a natureza (Warekena).
Na comunidade todos trabalham de forma conjunta,
estão sempre ajudando uns aos outros, estabelecem
relações harmoniosas, onde o respeito pelo outro e pelas
diferenças prevalecem. O Cacique está sempre em busca
de melhores condições (saúde, segurança, educação),
fazendo com que, todas sintam o prazer de continuarem
lutando pelos seus direitos e deveres de forma conjunta
(Xocuru do Ororubá).
A etnia Terena da Aldeia do Bananal e de Cachoerinha do Estado do Mato
Grosso do Sul, entendem que o Bem Viver se dá na preservação dos
saberes e da cultura; principalmente por meio da medicina tradicional e na
preservação das danças, rituais e na convivência.
O Bem Viver da comunidade está na forma durante o
cultivo de plantas, diálogos dos anciões, prática da caça
e pesca e trocam do produto agrícola com outra família.
Festividade cultural e esporte praticado. Formulação de
remédios caseiros feitos pelos Pajés. Trabalhos feitos na
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5. “Harha wemhrohphi riko,
wadenhi kadzo wamakapedzo
wemaka, wanheka phiome
nharha narha wahmalinai
(tradução na língua nativa)”.
24 Bem Viver: uma pespectiva (des)colonial das comunidades indígenas
forma de mutirões com mulheres e jovens (Terena/Aldeia
Bananal).
Claro. Quando falamos em comunidade um povo
que vive em sua reserva, ela tem o seu modo de viver,
onde todos se conhecem, vivencia no dia-a-dia,
juntamente com o outro, onde a solidariedade está
presente no modo de viver daquele determinado povo
(Terena- Aldeia Bananal).
Por mais que a nossa cultura foi devastada e
imposta outras coisas, ainda existe um pouco, pois
resiste-se aos impactos que o contato com os não índios
trouxe. Como por exemplo, as danças, crenças em
espiritualidade, artesanatos, música e a convivência
harmônica com o meio ambiente e com a comunidade
(Terena-Aldeia Cachoeirinha).
Um dos entrevistados recorda que a prática do conceito do Bem Viver nem
sempre está presente na comunidade, como por exemplo na preservação da
língua e cultura.
Não constantemente, na minha opinião esporadicamente,
pois a própria comunidade tem se retraído em ações e
apoio, mas ao mesmo tempo tem pequenas preparações
no avanço interno, graças ao jovem e a comunidade
escolar, vem tentando resgatar ações para um Bem Viver,
dentro deles. A Diretoria escolar tem proporcionado ao
jovem estudante aulas da própria língua materna como
disciplina atuante no currículo escolar (Terena-Aldeia
Cachoeirinha).
Para os Arapáso, o bem Viver está presente na solidariedade e na vida em
comunidade: “A comunidade indígena sempre preza pelo bem de todos na
comunidade” (Arapáso, comunidade Ilha de Duraka). Na etnia dos Atikum, o
Bem Viver está presente na relações entre a comunidade e natureza:
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Carlos Alberto Cioce Sampaio 25
Na minha aldeia temos o costume de respeito com os
mais velhos, ter harmonia com todos, temos grande
respeito pela mãe natureza. Sim, considero que está
presente no nosso dia a dia, na nossa lida de trabalho.
Para os entrevistados, o conceito subjetivo do Bem Viver está presente nas
comunidades indígenas e, apesar das diferentes expressões, concebem o
conceito por meio de indicadores como: convivência harmoniosa com a
natureza e com a comunidade, respeito aos anciãos, resgate dos saberes,
tradições, educação, segurança, espiritualidade, solidariedade, baseados na
cosmovisão de cada etnia. Para Mamani (2010), este é o caminho e o
horizonte das comunidades, o que sugere relação, (con)vivência e saber
viver.
Considerações finais: (re)aprender e (re)construir
A colonização representou para os povos indígenas princípios de exclusão e
desintegração socioeconômica e, por consequência, ambiental, associado a
destruição das florestas, biodiversidade, mudanças climáticas, e destruição
de culturas milenares (PBMC 2012). Neste processo, indígenas migraram
para as cidades em busca de progresso e perspectivas de viver melhor,
ocasionando um acelerado crescimento nas zonas periféricas, problemas na
educação, moradia, trabalho e aumento da desigualdade social, que não
levou a uma experiência plena do Bem Viver.
Para Mamani, (2010, 32) “Viver melhor significa o progresso ilimitado, o
consumo inconsciente; incita a acumulação material e induz a competência”.
Ou seja, o modelo existente é altamente extrativista e modernista, baseado
em uma lógica burocrática e tecnocrática.
De outro lado, o Bem Viver remete ao conceito da biopolítica de Foucault,
como terreno das lutas, das resistências produtivas frente às tentativas do
biopoder de modular e neutralizar as redes de cooperação (Negri 2003). De
um lado, a biopolítica vista como a maneira pela qual a partir do século XVIII
se tentou agrupar e estudar desde a prática governamental, os fenômenos
próprios de um conjunto de seres vivos organizados sob o rótulo de
população, quer dizer, saúde, higiene, raça, mortalidade, entre outros; de
outro, o biopoder como a gestão da vida como um todo, técnicas de poder
sobre o biológico, tema central nas discussões políticas, importante para o
desenvolvimento do capitalismo, ao controlar a população e adequá-la aos
processos econômicos. Neste sentido, Foucault (2008) acredita que se faz
necessário uma teoria crítica sobre o que somos e os modos alternativos de
nos reconfigurarmos frente as matrizes de individualização dominantes.
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26 Bem Viver: uma pespectiva (des)colonial das comunidades indígenas
Seguindo esta lógica, há vários desafios, como a de primar por um
abordagem que valorize o território compreendido como espaço socialmente
construído, segundo seus usos e costumes, saberes, tradições e língua.
Manutenção da soberania alimentar (base da autonomia dos povos
indígenas), resgatando variedades de sementes e plantas medicinais. Frente
ao potencial hídrico da Amazônia, recuperar e proteger nascentes de água,
resgatar a identidade e interculturalidade na diversidade; respeito aos rituais
e espiritualidade e, a convivência da solidariedade, primando por uma
política que projete a interação dos povos.
Neste estudo, sugere-se que uma proposta em comum entre os indígenas é
conceber o Bem Viver como uma utopia baseada em relações de convivência
entre os seres humanos e a natureza. Esta proposta marca a perspectiva da
corrente indigenista/pachamamista que aspira recriar condições harmônicas
dos povos originários baseadas em sistema socioeconômico de comunismo
primitivo e economia equitativa e mutualista.
Levantou-se que algumas expressões do Bem Viver, estão presentes na vida
das comunidades indígenas do Mato Grosso do Sul, Pernambuco e
Amazonas. Ou seja, estas comunidades, com sabedoria milenar, expressam
o Bem Viver pela cosmovisão como forma de resistência, por meio de suas
práticas alternativas, em sua compreensão de economia e comunidade, na
prática cotidiana de respeito, harmonia e equilíbrio como o meio, e na
compreensão de que a vida está interconectada e inter-relacionada.
Apesar do eminente processo de integração indígena ao capitalismo, o Bem
Viver na concepção dos estudantes entrevistados, não divide o conceito do
bem-estar desenvolvimentista, da acumulação, da produção e do consumo
ilimitados. Mas aposta em construir uma ordem socioeconômica sobre a
base daquilo que é suficiente para que as comunidades indígenas possam
viver. Nestes termos, o Bem Viver rompe com a lógica antropocêntrica e
instrumental e defende uma perspectiva biocêntrica que restitui a ligação real
entre seres humanos e natureza, considerada como uma condição
necessária a sua própria sobrevivência.
Ao mesmo tempo, a educação universitária, como intermediária e mediadora
entre as políticas educativas do Estado e a sociedade, tem função
fundamental no projeto de descolonização. Assim como a perspectiva
intercultural, aplicada a educação e as ciências humanas, refere-se à
interação e às relações entre culturas, na compreensão do mundo. Nesta
perspectiva, a educação deve representar um papel de transmissora de
valores para futuros projetos de sociedades viáveis que garantam a
dignidade dos povos originários.
Os princípios do Bem Viver, expressos pelos acadêmicos oriundos de
comunidades indígenas sugerem repensar valores e práticas de culturas
contemporâneas, como: reciprocidade entre pessoas, convivência com
outros seres da natureza e profundo respeito pela terra. Estas experiências
ecossocioeconômicas podem orientar nossas escolhas futuras e assegurar a
existência humana no planeta.
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No debate acadêmico aqui apresentado, sobre os conflitos e desafios do
Bem Viver, conclui-se que é necessário considerar as dimensões políticas,
econômicas e sociais que orientam as agendas de desenvolvimento tanto do
governo como dos movimentos sociais representadas pelas comunidades
indígenas. Ou seja, espera-se neste artigo deslocar o debate das questões
epistemológicas sobre o tema a partir do continunn entre conhecimentos
tácito e explícito6 para pensar a natureza e o homem de forma ontológica e
contextualizada no território.
E que se multipliquem as oportunidades propícias de uma “vida boa”
segundo a maneira com que cada pessoa e cultura defina no que consiste
um Bem Viver, no pressuposto de torná-lo possível, restringindo o progresso
econômico ilimitado, reconstruindo sua gênese baseada em uma cosmovisão
que prime acima de tudo, pela manutenção da vida.
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6. Para Polany (1983), o
conhecimento explícito é
aquele transmissível pela
linguagem formal e
sistemática; e conhecimento
tácito é o componente de
conhecimento que não é
facilmente relatado, à medida
que está profundamente
vinculado à ação e implicado
em contexto específico.
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