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Abstract

Resumo: a tradução do humor está sujeita um conhecimento significativo do tradutor do assunto e da sua própria época, já que em determinado momento, faz-se necessário que o tradutor, por meio da sua imaginação e perspicácia, recrie determinadas passagens em função do entendimento contemporâneo do objeto cômico. O presente trabalho pretende analisar a conservação do humor em uma breve passagem da cena dos coveiros da peça A Tragédia de Hamlet: Príncipe da Dinamarca, de William Shakespeare, traduzida por Millôr Fernandes em 2011 e Carlos Alberto Nunes em 2011. A edição usada como original é a Oxford Shakespeare e a base teórica para este estudo se debruça nas tendências deformativas de Antoine Berman. Palavras-chave: Performance. Imaginação. Hamlet. Ironia.
Resumo: a tradução do humor está sujeita um conhecimento signicativo do tradutor do assunto
e da sua própria época, já que em determinado momento, faz-se necessário que o tradutor, por meio da
sua imaginação e perspicácia, recrie determinadas passagens em função do entendimento contempo-
râneo do objeto cômico. O presente trabalho pretende analisar a conservação do humor em uma breve
passagem da cena dos coveiros da peça A Tragédia de Hamlet: Príncipe da Dinamarca, de William
Shakespeare, traduzida por Millôr Fernandes em 2011 e Carlos Alberto Nunes em 2011. A edição
usada como original é a Oxford Shakespeare e a base teórica para este estudo se debruça nas tendências
deformativas de Antoine Berman.
Palavras-chave: Performance. Imaginação. Hamlet. Ironia.
N esta pesquisa, o objetivo principal consiste em traduzir o humor shakespeariano com
base no original, assim como também comparar as duas traduções cotejadas para o
trabalho de análise. A complexidade do processo está no fato de que o tradutor não
deve estar ciente apenas da cultura-fonte, mas também da cultura-alvo
Da mesma forma que os estudos da tradução se consolidaram recentemente, o mesmo pode
ser dito a respeito do estudo de tradução de humor. A tradução do humor está sujeita a um co-
nhecimento signicativo do tradutor do assunto e da sua própria época, já que em determinado
momento, faz-se necessário que o tradutor, por meio da sua imaginação e perspicácia, recrie de-
terminadas passagens em função do entendimento contemporâneo do objeto cômico.
* Recebido em 05.01.2017. Aprovado em: 25.02.2017.
** UFSC. E-mail: tiagomluiz@msn.com.
Tiago Marques Luiz**
AS DEFORMAÇÕES
BERMANIANAS
EM HAMLET*
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O corpus desta pesquisa é constituído de duas traduções em língua portuguesa da peça A Tra-
gédia de Hamlet: Príncipe da Dinamarca, de William Shakespeare. A primeira, de Millôr Fernandes
(nominado como T11), traduzida como Hamlet em 2011 pela L&Pm, e a segunda, de Carlos Alberto
Nunes (nominado como T22), publicada com o título de Hamlet pela editora Nova Fronteira em 2011.
Em Shakespeare, mas não somente, pelo fato do cômico nos coveiros ser um retrato de
determinada classe social, e estar diretamente conectada com toda uma tradição medieval, que
também pode ser observada em outras personagens, como a Ama de Romeu e Julieta, por exem-
plo, cujo uso da linguagem em si, por tais personagens, revelava as origens das personagens.
Em relação aos tradutores, a primeira das traduções (Millôr Fernandes) data inicialmente
de 1983, mas foram feitas várias reimpressões desta tradução. Esta tradução de 1983 de Millôr
Fernandes apresentava marcas culturais, contudo não foi possível encontrá-la; esta tradução seria
útil pois assim auxiliaria no processo descritivo da tradução reimpressa em 2011.
Já a segunda tradução a ser analisada é de Carlos Alberto Nunes, cujo maior legado foi o
trabalho como tradutor dos idiomas alemão (Goethe), inglês (Shakespeare), latim e grego antigo
(Platão). Em seus trabalhos, esteve na tradução da Ilíada e Odisséia de Homero, diretamente do
grego antigo, publicado pela editora Melhoramentos, que foram relançadas por outras editoras.
As suas traduções de Shakespeare, também publicadas pela editora Melhoramentos, vie-
ram a ser relançadas numa coletânea (Teatro Completo) pela Ediouro em 2008. Nesta edição
Teatro Completo, Nunes faz um prefácio a Hamlet, onde indica ver a tradução como reprodução,
tanto formal quanto semântica. Diz ele que procurou manter-se “el ao texto inglês, traduzindo,
sem discrepância, em prosa ou verso as passagens do original, conservando as rimas com todo o
capricho da sua distribuição” (NUNES, 2008, p. 17).
A tradução do humor talvez seja uma das tarefas mais difíceis para o tradutor. Uma das di-
culdades reside na necessidade de se atingir o efeito humorístico na cultura do idioma de chega-
da. Para que isso seja feito, é necessário que o tradutor seja bicultural para que entenda o humor
tanto na língua de partida quanto na língua de chegada.
Serve a presente pesquisa para vericar que a tradução do humor verbal é um processo
complexo a níveis linguístico, cultural e cognitivo. Mesmo assim, o humor dispõe de mecanismos
que potenciam a análise e compreensão do processo tradutivo de sentenças humorísticas.
Traduzir o humor implica vários conceitos, tais como: paródia, ironia e sarcasmo. A paró-
dia remete à criação de um novo texto, mimético, de forma zombada. A ironia é uma gura de
expressão ou dispositivo literário no qual o signicado literal é o oposto do que previsto.
O sarcasmo está ligado à crítica de um determinado movimento social ou mesmo de uma
gura importante. Geralmente vemos o sarcasmo com a imagem de pessoas políticas com o famo-
so nariz de Pinocchio, porém outros sarcasmos podem estar direcionados a um público especíco,
como o homossexual, por exemplo.
Sobre a tradução de peças de teatro, o tradutor deve pontuar algumas características da
peça a ser traduzida, como por exemplo, o gênero literário e o teu período histórico. Como a pes-
quisa de trata de Shakespeare, um grande nome da literatura ocidental, é inviável que não sejam
tecidas considerações sobre a tradução do teatro, uma vez que todas as suas peças eram escritas
para serem encenadas no palco.
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Embora as traduções das peças shakespearianas estejam muito voltadas à arte performá-
tica e à sua recepção pelo público, um dos elementos que acabou não sendo estudado é o humor,
especicamente o humor em peças trágicas, como é o caso de Hamlet, obra deste estudo.
O foco da presente pesquisa é a passagem cômica do texto, ou seja, o foco da pesquisa é a
parte textual e não a performance em si, até porque seria preciso ter o registro da última perfor-
mance desta obra para analisar a tradução do humor de Hamlet para o teatro. Porém, não se tem
conhecimento de nenhum registro de performance com base em uma destas traduções.
Existe humor numa tragédia? Essa é uma das perguntas de base da pesquisa. O humor
shakespeariano é carregado de trocadilhos, jogos de palavras, ambiguidades e, principalmente,
muita ironia. As passagens cômicas podem, para o nosso propósito, ser melhor classicadas de
acordo com os seguintes efeitos sobre o leitor ou público: passagens cômicas que, na verdade são
cômicas; passagens cômicas que, por contraste com o ambiente trágico, são, na verdade, trágicas
ou patéticas, e passagens cômicas que, por aliviarem a tensão, contribuem para o efeito dramático
das passagens que se seguem.
O humor é um terreno muito amplo, e conceituar este campo de estudo nos estudos da tra-
dução, nas palavras de Liberatti (2010, p. 11), culmina em pesquisas inestigantes, uma vez que a
tradução do humor é totalmente diferente de qualquer outro tipo de tradução.
Para Marta Rosas, a tradução do humor não deixa de ser também cultural, uma vez que
é necessário “adotar uma visão que reúna as mais diversas formas de investigação, tendo sempre
como horizonte o tecido cultural das línguas de partida e de chegada – ou seja, as línguas-culturas
[...] envolvidas no processo.” (2003, p. 134)
A respeito da tradução de humor, Possenti (1998, p. 22) expõe que existe “um estranho desin-
teresse pelo aspecto especicamente lingüístico dos dados humorísticos”. Em seu artigo sobre uma
teoria de tradução do humor, Marta Rosas ressalta o mesmo ponto de vista de Possenti (1998, p. 22):
[...] embora a tradução permita evidenciar com muita nitidez os contornos dos mecanismos lin-
güísticos utilizados na produção do humor – e por isso represente um ângulo privilegiado para
esse tipo de análise –, aparentemente as instigantes questões (lingüísticas ou não) levantadas
pela tradução de textos humorísticos não tiveram muito apelo entre os estudiosos da lingüística,
do humor ou da própria tradução.
Sobre o processo de tradução de humor e as suas limitações, Queiroz adverte que quando a
tradução atinge as quatro exigências em seu processo (fazer sentido; expressar o espírito e o modo
do texto-fonte; apresentar forma de expressão natural e fácil; e produzir uma resposta similar no
interlocutor). “torna-se óbvio que conitos entre conteúdo e forma surgem em algum momento e
que o tradutor se vê obrigado a optar pela prevalência de um dos dois” (QUEIROZ, 2007, p. 12).
Fernandes (1989, p. 78) adverte que “o tradutor não pode – por má interpretação ou com-
petência – explicitar aquilo que o autor quer deixar implícito, esclarecer aquilo que ele quer deixar
misterioso, engrossar o humor que é no ou tornar sutil o humor que é grosso”.
O tradutor tem que se preocupar em transmitir a mensagem do original, mas de acordo com
o seu contexto; transpor essa mensagem de tal maneira que não perca o sentido do original, mas
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que tenha um equivalente em sua língua e que faça sentido para o leitor.
Assim, concorda-se com a armativa de Theodor (1976, p. 24), que o tradutor “necessita de
muita coragem e suciente habilidade, de maneira que possa libertar-se de algumas das amarras
do original e expressar-se de acordo com o pensamento da língua em que versa a sua tradução.”
A pesquisa pretende descrever a forma como o humor é construído na cena dos coveiros
de Hamlet em suas traduções. A partir dessa descrição, cotejar a construção do humor nas tra-
duções, levando em consideração a construção do humor no texto de partida, o Fólio de 1623,
publicado 6 anos após a morte de Shakespeare.
Por se tratar de Shakespeare, inicialmente consideraria-se a ideia de analisar registro de
performance da obra do autor inglês, no entanto, a questão de tradução teatral não é o foco deste
trabalho e sim, a construção do humor verbal (frise-se destacar somente a variante textual) no
texto original e nas traduções.
De acordo com Eco (2009, p. 104), “é inútil procurar delidade literal.” Às vezes o tradutor
tem que adaptar, pois não consegue encontrar algo que seja semelhante na língua de chegada,
algo especíco que tenha a ver com a vivência, com a cultura.
Precisa negociar um signicado. E como também arma o autor, na negociação, processo
segundo o qual para obtermos uma coisa temos que renunciar a outra, no nal, as partes envol-
vidas deveriam sair com um sentimento de satisfação mútua razoável, pois não podemos ter tudo
(ECO, 2009, p. 25).
Traduzir consiste em conduzir determinado texto para o domínio de outra língua que não
aquela em que está escrito. Dentro desse entendimento, o conceito de tradução está associado à
transferência de signos de um código linguístico para outro, conservando-se a função e a mensa-
gem do texto original
Ao traduzir uma obra, deveríamos tentar conservar as intenções do texto original? Como
traduzir a cultura de um povo? O tradutor literário deveria conhecer o contexto histórico e cultu-
ral do autor e de sua obra para ter a sensibilidade para experimentar o expressado em uma língua
e reproduzi-lo em outra.
ANTOINE BERMAN E SUAS TENDÊNCIAS DEFORMADORAS
Assim como a línguagem, a tradução apresenta uma perspectiva multidisciplinar, uma vez que
seu campo de atuação está interligado às diversas áreas do conhecimento. Para que a tradução possa
se concretizar, é necessário um projeto de tradução, com objetivos a serem propostos e cumpridos.
A imagem do tradutor, antes era apagada, devido à máxima italiana traduttore taditore,
mas esta imagem não mais existe nos dias atuais e também nas políticas editoriais; é mais visível
e potente atualmente. O tradutor exerce um papel de grande importância, como um novo autor,
um mediador de culturas.
Em outras palavras, ter uma posição de crítico da tradução; analisar o próprio projeto de tra-
dução e as conseqüências do mesmo para com o original. É muito raro algum tradutor expor em sua
prática tradutória a sua liação teórica, mas o que eles não percebem é que suas opiniões chegam
até ter peculiaridade teórica e são estas opiniões que, de certa forma, moldam o processo tradutório.
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À medida que a língua evolui, automaticamente já se prevê “a desatualização de determi-
nadas versões e o surgimento de outras, mais sintonizadas com as expectativas do público naquele
momento e que, forçosamente, reetem a inserção do tradutor em um dado contexto sociohistó-
rico, cultural e político.” (MARTINS, 1999, p. 08)
A cada época surgem novas traduções e com elas as marcas do tradutor, embora em al-
gumas editoras estas traduções acabem não sendo revistas e são publicadas como foram tradu-
zidas pela primeira vez. Isso é possível conrmar analisando comparativamente as traduções
de Hamlet, por Millôr Fernandes, de 1991 e de 2011, pois apesar da diferença signicativa de
temporalidade, esta não sofreu variação textual. Isso também ocorreu na tradução de Carlos
Alberto Nunes: a sua tradução de 1997 foi mantida igual à tradução de 2011, assim como o seu
prefácio.
Antoine Berman fornece em sua teoria de tradução as tendências deformadoras na tra-
dução literária. Em sua obra A Tradução e a Letra ou o Albergue do Longíquo (2010), o teórico
entende a letra como “jogo de signicantes, o espaço no qual o literário brinca com o signicado,
com o sentido, ou o conteúdo do texto” (BERMAN apud SILVA, 2006, p. 2) ”.
Tem-se conhecimento de treze tendências deformadoras propostas por Berman, contudo,
nem todas serão contempladas na análise da passagem cômica. São estas as tendências: raciona-
lização, claricação, alongamento, enobrecimento, empobrecimento, empobrecimento quantita-
tivo, homogeneização, destruição dos ritmos, destruição das redes de signicantes subjacentes,
destruição da sistemática, destruição ou exotização das redes de linguagem vernacular, destrui-
ção das locuções e apagamento das superposições de línguas.
A racionalização foca a estrutura sintática, com base no original, isto é, vai reconstruir as
frases segundo uma ordem discursiva. A claricação, como o próprio nome sugere, vai clarear o
sentido da palavra, explicitando na tradução o que é implícito no original. Alongamento remete
à ideia de alongar a tradução, por conta da junção da racionalização e da claricação.
O enobrecimento vai tornar a tradução mais rebuscada, mais bela, com um vocabulário
muito elegante, o que pode no original não existir. O empobrecimento qualitativo vai substituir
termos/expressões do original por equivalentes sem riqueza de signicado, enquanto o quantita-
tivo foca a perda lexical na tradução, isto é, o léxico no original pode não ter um signicante na
tradução. A tradução, por meio da homogeneização do original, unica “[...] aquilo que ela tem
de mais essencial: sua polilogia informe” (FAVERI, 2009, p. 272).
A destruição dos ritmos é a quebra do ritmo original, a destruição de redes de signican-
tes subjacentes faz menção ao fato da tradução não transmitir “o texto subjacente existente no
original e formado a partir da correspondência e encadeamento de certos signicantes” (SILVA,
2009, p. 3), enquanto a destruição da sistemática remete à “perda de marcas próprias ao original
e que formam um sistema de signicações, ultrapassando o nível do signicante, criando ritmo e
se mostrando como texto” (SILVA, 2009, p. 3).
A destruição ou exotização das redes de linguagem vernacular marca a perda de termos
vernaculares do original, e destruir as locuções remete à perda de provérbios, sem possível equi-
valente na tradução; por m, o apagamento das superposições de línguas vai neutralizar o embate
entre a língua original e a língua de chegada; uma não é superior à outra.
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Traduzir o humor remete trabalhar os jogos de palavras, os trocadilhos, as ambiguidades
dentro do texto, como também as guras de linguagem que estão no original. Justamente por se
tratar de Shakespeare, a prioridade é reforçada, uma vez que as peças eram escritas para serem
encenadas no palco e não para a leitura.
Logo, a linguagem, como instrumento de protesto da burguesia da época era muito grotes-
ca, irônica. Isso é notório no discurso dos coveiros que, no decorrer de todo o Ato V da peça, cam
brincando com as palavras, cujos termos são muito ambíguos.
É preciso estar munido de ferramentas para melhor compreender o vocábulo da época,
como um glossário especíco sobre a linguagem shakespeariana. Muitas vezes, as traduções, por
mais que elas captem o espírito da obra, nem sempre acabam surtindo o efeito cômico que existe
no original.
O humor é criativo, é um labirinto e se o tradutor não souber contorná-lo em sua tarefa, se
perde e compromete o labor tradutor, assim também a recepção da sua tradução no contexto em
que situa. Humor lembra os gatilhos e, como ressalta Queiroz (2007, p. 11), o ouvinte “se depara
sempre com duas opções de interpretação totalmente opostas: uma denotativa, que não provoca
graça, e uma conotativa, que alude a situações inesperadas e engraçadas.
Pressupõe-se que tanto o espetáculo como a tradução devem ser criativos, devem entreter o
público para que assim a sua tradução (performance) funcione, dê sentido. Da mesma forma que
a linguagem é sincrônica, assim também é o humor, por tanto “o tempo pode alterar a denição
daquilo que um mesmo grupo ou falante considera engraçado” (ROSAS, 2002, p. 42). Agora se-
gue o capítulo de análise da passagem cômica da obra.
ANÁLISE DA CENA DOS COVEIROS
Os coveiros estão cavando a cova de Ofélia, que se suicidou. Eles questionam o caráter dú-
bio de sua morte, se realmente foi um suicídio ou acidente e, dependendo do julgamento que lhe
foi dado à sua morte, ela não poderia ser abençoada e enterrada em um solo dito Católico. De tan-
to discutirem, ambos concluem que por ela ocupar certa posição hierárquica na Dinamarca, seu
suicídio teve pouca relevância e foi enterrada no solo cristão. Caso ela pertencesse a uma classe
social baixa, seu enterro seria em outro lugar que não o cemitério sacro da Dinamarca.
Sobre a gura do coveiro, este não ocupa um lugar privilegiado na sociedade burguesa
elizabetana. Pressupõe-se, de certa forma, que este não tenha uma formação intelectual para ser
aceito na comunidade de sua época. Márcia Tiburi explica que nesta cena o “coveiro (...) não de-
monstra ter nenhum anseio por ver o corpo de uma mulher morta, posto que para ele uma mulher
morta não é mulher” (TIBURI, 2010, p. 308).
Agora segue a cena dos coveiros no original e as respectivas traduções com as páginas em
parênteses em tabela. Cada tradutor tem um estilo próprio, e por isso veremos como Millôr e
Carlos Nunes traduziram a cena dos coveiros, primando pelo humor com base no original que é
fornecido.
Inicialmente, a cena começa com os dois coveiros satirizando a morte de Ofélia. No origi-
nal “willfully” se remete à “boa vontade”, enquanto a “salvação” provavelmente possa ser um
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malapropismo1 para”condenação”. Na tradução de Millôr, consta uma ironia em “não procurou
voluntária”, marcada pela racionalização. Na tradução de Carlos Nunes, foi mantida a ironia,
como se o coveirosugerisse que Ofélia estava tentando chegar ao céu logo.
O segundo coveiro brinca com o termo hath sath, que implica uma conotação sexual, em-
bora o sentido seria equivalente a “analisar o caso dela”. A sentença “make her grave straight
implica na forma de como deve ser cavada a cova. Em Millôr, houve a destruição da sistemática,
traduzida na cacofonia “cava a cova”, enquanto Nunes traduziu com o imperativo “abrir logo a
sepultura”,valendo-se da claricação e do enobrecimento.
Por mais que estejam questionando o caráter suspeito da morte de Ofélia, os coveiros brin-
cam com o jogo de palavras se offendendo, por meio da exotização da rede de linguagem verna-
cular no original,uma corruptela do termo latino se defendendo, ligado ao princípio de legítima
defesa. O humor se constrói devido à ironia do termo, pressupondo que Ofélia foi ao mesmo tem-
po, sujeito ativo e passivo da ação.; se suicidou por legítima defensa (Millôr) ou legítima ofensa
(Nunes), gerando a dubiedade no texto2.
A respeito da realização do ato, Millôr traduziu literalmente, enquanto Nunes adequou
este trecho. Assim, há uma confusão de se defendendo e se ofendendo; um propõe defesa e outro
propõe ofensa, entretanto, foi um artíce que cada tradutor utilizou para justicar o suicídio de
Ofélia. Shakespeare usa seus coveiros não só para propor o divertimento nalinguagem jurídica,
mas mais especicamente nalógica jurídica.
Goodman é um título para referir àqueles que possuem uma posição hierárquica menor à
nobreza3. Millôr rebuscou o termo, traduzindo como cavalheiro, termo este usado por pessoas no-
bres, em contexto brasileiro. Congurou uma ironia na tradução de Millôr, uma vez que o coveiro
não é uma gura pertencente à nobreza. Nunes popularizou o termo, por meio do empobrecimen-
to qualitativo, traduzido como compadre, vocativo usado por falantes da menor camada social,
fazendo jus à condição desprestigiosa dos coveiros.
O termo “argal”, presente no original, é mais uma exotização da rede de linguagem verna-
cular, como também é corruptela dotermo latinoergo (raíz latina de portanto, por isso, entretanto),
conforme a nota explicativa da edição RSC Shakespeare (2011, p. 121). Ambos discutem a ques-
tão legal e jurídica do fato e encerram a cena, com tom debochado de que se ela não fosse alguém
da nobreza (desdenhadamente falando, uma mulher qualquer, da plebe, da ralé), seu enterro
jamais seria cristão.
Esta destruição da rede de linguagem vernacular também aparece em Millôr, traduzida
como argo, como sinônimo de arguir e Nunes traduziu o equivalente da raíz etimológica latina.
Por ser da nobreza da Dinamarca, seu funeral teve caráter católico, segundo a decisão da autori-
dade da época, como o juiz ou magistrado, como consta nas traduções, como a autoridade tam-
bém poderia ser o bispo ou o Papa, levando em consideração o contexto brasileiro.
É uma crítica ao sistema hierárquico da época, uma vez que somente os detentores do po-
der (nobreza, clero) teriam muito “prestígio” para cometer tal crime; suas famílias, devido a seu
prestígio, seriam poupadas da vergonha pública de ter um parente enterrado fora de solo cristão e
expôr a condição grotesca que o suicídio lhe impõe, como foi apontado anteriormente por Minois.
Nunes ainda ironiza a nobreza de Ofélia, chamando-a de senhorinha de importância.
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O termo spade, entendido como símbolo de nobreza (espada), sofreu empobrecimento qua-
litativo em ambas as traduções, traduzido como . Os coveiros se comparam a Adão, pois como
Adão cou encarregado de cuidar do Jardim do Éden, os coveiros são encarregados de “cuidar”
das covas, conforme nota explicativa da edição RSC Shakespeare. A tradução de Millô usou o
empobrecimento qualitativo, enquanto a de Nunes traduziu literalmente, remetendo ao sentido
pressuposto no original. A expressão bore arms remete a um caráter da nobreza; só era somente
nobre quem usava armas, aqui as armas são sinônimo de mãos.
Prosseguindo a análise, Millôr usou a racionalização, dando a entender que o segundo co-
veiro é ignorante, enquanto Nunes fornece a imagem de um coveiro curioso, na função de apren-
diz.Millôracrescentou a gura de Eva na sua tradução, como uma mulher de linhagem ambígua.
A linha à qual aparece na tradução, remete tanto ao tecer da linha do tecido como a linhagem
da nobreza. Eva é uma mulher nobre, de linhagem, que ela e Adão formaram o primeiro par do
mundo; ou seja, foi graças à Eva, que Adão virou nobre.
A inserção da gura de Eva não se presencia nem no original, nem na tradução de Carlos
Nunes. Neste jogo de lógica, o primeiro coveiro propõe um desao ao segundo coveiro; como
aquele indagou que este era pecador por desconhecer a tamanha nobreza de Adão na Bíblia (ou
Escritura, como propõem os tradutores), lhe fará uma pergunta, e caso o segundo coveiro respon-
da errado, será considerado pagão e aceita. O jogo de adivinha é sobre o trabalho mais forte que o
pedreiro, engenheiro naval e carpinteiro. Nunes rebuscou o superlativo stronger para solidamente.
O segundo coveiro responde que é o armador de forcas (Millor), justicando que sua es-
trutura é resistente à uma centena de inquilinos. Os dois tradutores contemplaram o sentido da
resposta. A admiração do primeiro coveiro é marcada pela destruição da superposição de línguas
em Millôr e pelo enobrecimento de Nunes.
No original há uma cacofonia com well e ill, prevalecida em ambas as traduções com bem e
mal. A primeira indagação do primeiro coveiro gera uma situação cômica na tradução de Millôr; por
dizer “nessa da forca você se saiu bem”, dá a entender que o segundo coveiro estaria sujeito a um jul-
gamento que teria sua execução como consequência e por acertar a pergunta, livrou-se da execução.
Isto não ocorre na tradução de Nunes; o tradutor enalteceu a inteligência do coveiro, embo-
ra tenha certa ironia ao dizer “sua vivacidade”, entretanto, ao comparar ambas as traduções, elas
concordam que tanto a forca como o cadafalso fariam bem ao segundo coveiro, por ele justicar
que aquela é mais sólida e este mais sólido que a Igreja.
O segundo coveiro repete a mesma pergunta sobre o melhor labor construtor ao primeiro
coveiro e este lhe aguarda a resposta, para que, metaforicamente, com o uso da cangalha, evite
outro julgamento. O segundo coveiro se aborrece por não lembrar a resposta e é julgado metafori-
camente como um burro, cuja inteligência (passo) funciona somente a chibatada (batida).
Incomodado com a burrice do companheiro de trabalho, o primeiro coveiro lhe manda
ir ao Yaughan (variante de Vaughan), uma taberna aos arredores do Globe Theatre, trazer uma
bebida. Carlos Nunes retira essa informação do Yaughan e troca por hospedaria, um hiperôni-
mo, através da claricação. A referência ao nome deste estabelecimento seria imediatamente
compreensível ao público elisabetano, mas o público leitor brasileiro não dispõe desta informa-
ção, então Nunes se serviu de um hiperônimo, o que causa um grande diferencial semântico
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na leitura do texto, porém o nome foi alterado na tradução de Millôr por Yanam, devido ao
empobrecimento qualitativo.
Ao substituir o Yaughan por hospedaria, para o contexto brasileiro, o objeto referente a este
signo muda completamente, pois a concepção que o brasileiro tem de uma hospedaria, contrária a
de uma taberna, é bem signicativa a de um inglês daquela época. Nunes pode ter em mente um
leitor que tenha ao menos vago conhecimento de que nas estalagens também se comia e bebia. A
tradução de Carlos Nunes neste trecho especíco acabou não funcionando, mesmo que tenha preva-
lecido o humor do diálogo anterior, conquanto Millôr manteve o humor existente no original.
Analisando a cantiga, observa-se que as rimas são alteradas (love, behove, sweet, meet) no
original. Millôr manteve esta estrutura rítmica da canção em sua tradução (amava, voava, dia,
fugia), assim como Nunes (bastante, instante, sabia, valia), contudo ambos os tradutores se vale-
ram da destruição da sistemática e da homogeneização.
Hamlet chega ao cemitério acompanhado de Horácio e ao ver o coveiro cavando, se incon-
forma com o fato dele cantar enquanto trabalha, quando deveria estar concentrado, em silêncio.
Horácio diz ao príncipe que cantar, ironicamente, se tornou algo comum em sua prática (no sen-
tido de agilizar o tempo). Hamlet conclui que as mãos que menos trabalham são mais sensíveis,
ou seja, satirizou o trabalho do coveiro, que não é nada sensível.
Na próxima canção, o coveiro satiriza a velhice como sinônima de morte. No original, o pri-
meiro e o terceiro versos são brancos, enquanto o segundo e o quarto são rimas alternadas. Millôr
manteve a mesma estrutura, porém claricou o sentido, e Nunes enobreceu a canção, destruiu o
ritmo e apresentou a canção com todas as rimas alternadas.
Quando o caveiro joga a caveira, a fala do príncipe apresenta ambiguidade cômica;não só
como força de expressão de tristeza, como também Hamlet está se aproveitando do fato da pró-
pria caveira já não ser mais capaz de cantar. Caim, em Millôr, foi traduzido com a racionalização
e Nunes usou um hiperônimo.
A outra possibilidade é da caveira ser de um político, mas Millôr alongou a tradução, acres-
centando uma terceira gura que se julgava, que não o próprio político, superior a Deus. Nunes,
por sua vez, remete a caveira ao político mesmo, conforme o original. Em questão de linguagem,
Millôr adequou ao falar carioca e Nunes simplicou.
Aparece outra suposição para a caveira. É a gura do cortesão, nominado comicamente
como “Tal e Qual” em Millôr e “Fulano” em Nunes, assim como o lorde a quem o cortesão dirige
a palavra é nominado “Qual e Tal” em Millôr e “Cicrano” em Nunes. Novamente, Millôr adequou
a linguagem ao falar carioca, e Nunes, desta vez, adequou ao falar paulista. Ambos destruíram a
superposição das línguas.
Há uma ironia em o’er ofces, signicando que o coveiro está se assenhoreando (tomando
posse) das caveiras, como um nobre de terras. Os tradutores empobreceram qualitativamente este
termo, traduzindo por chuta (Millôr) e maltrata (Nunes). Prosseguindo com seu raciocínio, Ham-
let satiriza a caveira, chamando-a de Madame Verme, uma senhora desqueixada e abatida, mais
uma vez de forma irônica, com a espada do sacristão.
Sexton é um termo referente ao sacristão, gura nobre do clero; a sátira do príncipe nesta
fala refere-se ao coveiro e sua arma, a pá. A revolução remete, de modo sarcástico, à sorte e ao des-
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tino que estas caveiras tiveram. A criação dos ossos, compreendidos grotescamente como pessoas,
lhes nada adiantou; só serviram apenas para entretenimento.assume a ambigüidade típica do
cômico, não só como força de expressão de tristeza, como também Hamlet está se aproveitando
do fato da própria caveira já não ser mais capaz de contar piadas.
Na tradução de Millôr foi usada a homogeneização, acrescentado um referencial cultural, o
jogo da bocha, um possível equivaente de loggats. Nunes substituiu Madame por Lorde, implican-
do um tom rebuscado, homogeneizou e alongou a indignação sarcástica do príncipe e claricou
loggats, como sinônimo de bola, ao invés de ser uma brincadeira, como consta em Millôr.
A próxima canção do coveiro está estrtuturada em rimas alternadas, prevalecidas em am-
bas as traduções. A próxima caveira é reconhecida pelo príncipe como a de um advogado. Há uma
cacofonia no original, satirizando a prossão e os documentos legais, prevalecida também nas
traduções, e o discurso que lhe é peculiar, bastante retórico.
Há uma comicidade ambígua no início desta fala do príncipe; o advogado, devido à sua pro-
ssão, deveria processar o coveiro por danos morais, contudo, por estar na condição de post-mortem,
não o realiza. Andréa Cesco, no capítulo de sua tese sobre a sátira, expõe como o literato espanhol
Franciso de Quevedo y Villegas (séc. XVII) ataca os agentes da lei em sua obra Sueños y Discursos:
Os advogados são tradicionalmente condenados por falsos e mentirosos, e por torcer as leis, ema-
ranhar os pleitos, defender a falsidade e mudar os significados, como neste segmento do ‘Sueño
del Juicio’: ‘Fue condenado un abogado porque tenía todos los derechos con corcovas’ (Ed. JC,
1993: 141). As leis desse advogado são torcidas, corrompidas, e por isso possuem uma curva
saliente como a dos corcundas (CESCO, 2007, p. 105).
O pensamento de Quevedo é similar às traduções desta passagem da cena dos coveiros de
Hamlet. Desta forma, conclui Cesco que os advogados, devido ao seu trabalho e ao seu discurso,
são vistos como um erro da sociedade, “pois em vez de estimular as partes para que cheguem a um
acordo, incitam a discórdia à espera de um pleito que, por m, lhes dará de comer.” Assim como
os coveiros satirizam a função que os documentos legais exercem na sociedade, para os advogados,
“a única coisa que interessa aos advogados é cobrar seus honorários” (CESCO, 2007, p. 105) .
Assim como o advogado passa a imagem de mentiroso e salafrário na literatura espanhola,
aqui a gura do advogado assume na obra, a gura do endividado, conforme consta nas linhas
nais desta passagem nas traduções de Millôr e Nunes.
Conciliando a sátira de Quevedo, com a sátira dos coveiros, podemos formular a seguinte
ironia, analisando o contexto brasileiro: formação intelectual para nada. Usa uma retórica para
convencer o cliente, lucra em cima dele, e acaba acumulando dívidas externas, que acabam can-
do como “herança” aos seus futuros herdeiros.
Enquanto o coveiro cava o túmulo, Hamlet questiona a quem se destina tal túmulo. O co-
veiro responde que é dele. A cantiga que se segue está estruturada em versos brancos, prevalecida
nas duas traduções. Hamlet concorda, ironicamente, que pertence ao coveiro, já que o mesmo
está nela. O coveiro losofa com o príncipe, alegando que ela não pertence a este, por se encontrar
fora dela, logo, como o coveiro está nela, não no sentido sarcástico de dormir, pertence a ele.
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Millôr brinca com os adjetivos preocupado e pós-ocupada, valendo de ambiguidade. Nunes,
porém, manteve o sentido literal do original. Hamlet contesta que não pode ser do coveiro, pois
não está morto e o chama de mentiroso. Millôr destruiu a sistemática e propôs um sentido dife-
rente ao original. Nunes enobreceu este diálogo, mas manteve a literalidade do original.
Fazendo um jogo losóco com o príncipe, o coveiro brinca que a cova não é para um ho-
mem, muito menos para uma mulher, indagando então uma interrogação do príncipe, a quem a
cova está sendo cavada. O coveiro responde que é o corpo de uma mulher que não é mais mulher,
por ser agora um cadáver. Aqui entra um jogo com o discurso religioso; embora a mulher tenha
todas as feições que lhe são peculiares, com ou sem a sua alma, não deixou de ser mulher, mas o
coveiro ignora este pormenor, ou seja, a seu ver, morreu e virou pó.
Surpreso com a racionalidade do coveiro, o príncipe toma cautela para que não seja pego
pelas ambiguidades do coveiro. O príncipe, em plena sanidade, satiriza que em três anos, o tempo
deteriorou este homem que trabalha nas covas, Curioso sobre o tempo que ele é coveiro, o príncipe
questiona e ele responde que desde a vitória do rei sobre Fortinbrás. Ainda curioso, o príncipe
quer saber há quanto isso aconteceu.
O coveiro, não sabendo que estava diante do próprio príncipe, responde que foi quando
nasceu o jovem monarca, visto como louco e enviado para Inglaterra, cuja razão da loucura é
desconhecida. Cada tradutor soube reproduzir este diálogo entre o príncipe e o coveiro, embora
Millôr tenha usado o falar da região sudeste, de modo que o leitor possa se familiarizar com a
obra. Assim, Millôr adequou o diálogo, por meio da racionalização e homogeneização.
Nunes homogeneizou também o diálogo, mas sempre preso ao original e enobrecendo o tex-
to. Trinta anos, período de transição da mocidade para a fase adulta, é o tempo que o coveiro está
na sua condição. O coveiro, ao explicar ao príncipe o tempo que um cadáver ca na cova, explica
de uma maneira grotesca, como se um ser humano também estivesse na condição de cadáver.
Millôr novamente adaptou a linguagem ao falar da região sudeste, por meio da
destruição da sistemática, enquanto Nunes rebuscou a explicação, por meio do enobreci-
mento. O termo whoreson apresentou um problema nas traduções. Na tradução de Millôr,
aparece o palavrão lho da puta pelo coveiro para da caveira.
Sobre o uso de palavrão, Millôr Fernandes comenta que é um recurso válido e cria-
tivo, pois são capazes de “dotar o nosso vocabulário de expressões que traduzem com a
maior delidade os nossos mais fortes e genuínos sentimentos. É o povo a fazer a sua lín-
gua. Como o Latim Vulgar, será esse Português Vulgar que vingará plenamente um dia”
(FERNANDES, 2005).
Na tradução de Millôr, o uso do palavrão se contrapôs ao termo bandido, adjetivo
menos pesado, usado por Carlos Nunes. Embora no contexto brasileiro muitos textos tra-
tem os termos bandido e lho da puta (um adjetivo vulgar) como sinônimos, certamente
caria estranho usar bastardo, como tradução literal do original.
O coveiro escava e surge mais uma caveira, cujo enterro, segundo o próprio, data de 23
anos. Hamlet pergunta se ele reconhece, e o escavador, antes de dizer de quem se trata, relata
algumas atitudes do falecido e depois diz que é de Yorick, o bobo da corte. Segue uma análise a
respeito da gura do bobo em Shakespeare, por Larissa Maria Avelar Costa Gadelha e Sandra
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Luna, em que o bobo da corte é “aquele apto a falar a verdade por meio da zombaria. Espe-
cialmente no Renascimento, os bobos se tornam inclusive conselheiros do rei” (GADELHA;
LUNA, 2008, p. 5).
Ao recordar da dinamicidade do bobo no reino, o jovem príncipe se entristece ao ver que a
morte roubara-lhe todo o entusiasmo, restando somente um crânio, com o qual faz piada: “Não
sobrou uma ao menos, para rir de tua própria careta? Tudo descarnado!” (SHAKESPEARE
apud NUNES, 2011, p. 133). Novamente Milôr homogeneizou e adequou este trecho ao falar
carioca, através do empobrecimento qualitativo, enquanto Nunes realçou o espanto do príncipe,
por meio do enobrecimento.
A expressão “sobrou uma”, na tradução de Carlos Nunes, assume a ambigüidade típica do
cômico, não só como força de expressão de tristeza, como também Hamlet está se aproveitando
do fato da própria caveira já não ser mais capaz de contar piadas.
Este saudosismo do príncipe para com o bobo da corte é contemplado em Millôr, através
da racionalização até o trecho “Me revolta o estômago” e logo em seguida, tamanha comicidade
é traduzida pela homogeneização. Nunes, por sua vez, enobreceu este saudosismo até o trecho
“sinto engulhos”. Embora tenha homogeneizado deste trecho em diante, a sua tradução possui
marcas de enobrecimento.
Hamlet indaga se Alexandre, o Grande, mesmo de grandes feitios, teria chegado a este m.
Horácio arma, e o príncipe se enoja do cheiro fétido da caveira. Pensando na lógica que o pó se
torna terra e da terra se faz a argila, sarcasticamente o príncipe questiona se as cinzas do grande
líder grego poderiam vir a servir como uma simples rolha de barril. Horácio responde que seria
demasiado exagerado chegar a esse ponto.
Agora o jovem monarca apela a César Augusto, imperador de Roma. Se as cinzas de Ale-
xandre poderiam vir a servir como uma rolha de barril, por que as de César não viriam a servir
como um muro contra o vento tempestuoso de inverno?? Ironicamente, o monarca compara a
grandiosidade de ambas as personalidades e as equivale à função que suas cinzas viriam a ter.
Esta passagem se encerra com a losoa bíblica: do pó eu vim, do pó eu voltarei. A humani-
dade é, em parte, uma criatura semelhante a Deus, cheia de poderes mentais e verbais, entretanto
somos “quintessência do pó” -o político, o advogado, ohomem heroico e o palhaço humilde, todos
acabam no mesmo lugar.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Feita a análise, observa-se como foram aplicadas as tendências deformadoras pelos tradu-
tores, levando em consideração sua carga cultural da obra. Millôr, como um tradutor de teatro,
acabou por simplicar o texto, embora em poucos momentos tenha dado uma rebuscada na pro-
sa, mas não desmerecendo a leitura de sua tradução.
Ao ler a sua tradução, é possível visualizar uma performance da obra, sem enxugamentos.
Certamente a recepção de sua tradução seria favorável e cômica, contrária à de Carlos Nunes, que
a transformou em uma obra erudita e certamente, uma performance baseada em sua tradução
não seria tão aceitável.
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Por mais que Shakespeare fosse um autor popular em sua época, não é possível armar
(como também não foram encontradas fontes para isso) que o dramaturgo tenha tamanha inte-
lectualidade, como é visível na tradução de Nunes. Embora a linguagem do tradutor seja muito
erudita, possivelmente considerada chata por alguns leitores, não é desmerecedora nem inválida
da reprodução da obra.
Como foi previsto e conrmado no projeto de pesquisa, a tradução de Millôr Fernandes
é mais dirigia ao público de modo geral, numa linguagem popular, conquanto a tradução de Carlos
Alberto Nunes é direcionada a um público mais culto, possivelmente acadêmico.
O uso de palavras rebuscadas, de certa forma, pode vir a comprometer a leitura da obra,
mas isso varia de público para público; não podemos armar que o leitor é um grande intelecto e que
ele depreenderá o sentido naturalmente.
A análise da tradução do humor shakespeariano se contemplou. Sempre repleta de
sarcasmos, ironias (principalmente), trocadilhos, ambiguidades, piadas de tom sexual e cacofonias que
implicam o humor da obra, uma simples leitura do original não é o suciente para poder depreender
da intenção do autor. Como foi dito anteriormente, é melhor estar sempre acompanhado de materiais
bibliográcos sobre a época e a língua do autor, uma vez que isto delimita a temporalidade e o recorte
cultural a ser estudado. Em se tratando de teatro, como foi o caso desta pesquisa, a linguagem gestual
também traduz o sentido proposto da obra.
Infelizmente não foi possível encontrar registro de peças de teatro que tenham se baseado
no Hamlet de Millôr ou no de Carlos Nunes. Certamente, a pesquisa teria uma relevância mais
forte, ao confrontar a tradução com a performance, mesmo focando o critério textual.
Não é fácil compreender o humor shakespeariano. É necessário estar atento a cada deta-
lhe da obra, mesmo que seja um simples verso ou uma canção de cena, como foi feito por Carin
Zwilling, não focando a tradução de humor e sim, a musicalidade da canção. Shakespeare foi e é
um grande gênio da humanidade, pois em suas obras, como Hamlet, por exemplo, nos é apresen-
tada a gura do ser humano sob várias facetas.
Mesmo com pouca bibliograa sobre a tradução de humor, e especicamente a tradução
do humor shakespeariano, espera-se que esta pesquisa possa complementar este enlace entre os
Estudos da Tradução e os Estudos Shakespearianos.
THE BERMANIAN DEFAMATIONS IN HAMLET
Abstract: the translation of humor is subject to a signicant knowledge of the translator of the
subject and and of his own time, since at any given time, it is necessary that the translator, through
his imagination and insight, recreate certain passages according to the contemporary understanding of
comic object. The present study aims to examine the conservation of humor in a brief scene of the grave-
diggers of the play The Tragedy of Hamlet: Prince of Denmark by William Shakespeare, translated by
Millor Fernandes in 2011 and Carlos Alberto Nunes in 2011. The edition used as original is the Oxford
Shakespeare and theoretical base for this study focuses on the deforming trends by Antoine Berman.
Palavras-chave: Performance. Imagination. Hamlet. Irony.
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Notas
1 É o uso de palavras parônimas ou não, voluntaria ou involuntariamente, geralmente com efeito cômico.
Nota explicativa da RSC Shakespeare.
2 Nota explicativa 9 da RSC Shakespeare. (2011, p. 120)
3 Cf. RSC Shakespeare (2011, p. 120) e Schmidt (1971, p. 486)
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