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Vontade, Desejo e Psicoterapia Gestaltista

Authors:
  • Psicóloga Clínica, Psicoterapeuta - Psicoterapia Gestaltista

Abstract and Figures

1 SBEM ARTIGO MÉDICO Desejamos o que nos falta, satisfaz, realiza, completa e também aquilo que nos motiva e aplaca. O conceito de desejo está muito próximo do conceito de satisfação de necessidades. Desejo pode também ser sinônimo de motivação, vício, vazio e alienação. O desejo é um ícone, uma circunstância, uma contingência, ou mesmo um contexto, um vetor sempre indicativo, orientador de vivência humana. Ele é também o referencial construtor de ideologias, de religiões e de considerações sobre o humano feitas pelas ciências sociais, as ciências que lidam com o humano, tais como: psicologia, antropologia, sociologia e economia. O desejo foi tão contingenciado que perdeu sua estrutura relacional, virando um valor. Nada melhor que o colorido do desejo na monotonia da depressão, nada pior que a persistência do desejo no viciado. Desejo é prisão, já dizia Buda, ele cria repetições e apegos responsáveis por dor e sofrimento. Desejar é uma maneira de negar a realidade, dizia Freud, é a fantasia, um mecanismo de defesa do ego. Desejo é o propulsor de nossas trocas, de nossas relações e do consumo, dizia Marx, enfatizando também que é esse consumo o responsável pela alienação, pela manutenção do processo exploratório.
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Publicado no Boletim da SBEM - Sociedade Brasileira de Endocrinologia e
Metabologia - Regional Bahia/Sergipe outubro/dezembro 2006, p. 42-44!!
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ARTIGO MÉDICO
Desejamos o que nos falta, satisfaz, realiza, completa e também aquilo que nos motiva
e aplaca. O conceito de desejo está muito próximo do conceito de satisfação de
necessidades. Desejo pode também ser sinônimo de motivação, vício, vazio e
alienação.
O desejo é um ícone, uma circunstância, uma contingência, ou mesmo um contexto,
um vetor sempre indicativo, orientador de vivência humana. Ele é também o
referencial construtor de ideologias, de religiões e de considerações sobre o humano
feitas pelas ciências sociais, as ciências que lidam com o humano, tais como:
psicologia, antropologia, sociologia e economia.
O desejo foi tão contingenciado que perdeu sua estrutura relacional, virando um valor.
Nada melhor que o colorido do desejo na monotonia da depressão, nada pior que a
persistência do desejo no viciado. Desejo é prisão, já dizia Buda, ele cria repetições e
apegos responsáveis por dor e sofrimento. Desejar é uma maneira de negar a
realidade, dizia Freud, é a fantasia, um mecanismo de defesa do ego. Desejo é o
propulsor de nossas trocas, de nossas relações e do consumo, dizia Marx, enfatizando
também que é esse consumo o responsável pela alienação, pela manutenção do
processo exploratório.
Vontade, Desejo e Psicoterapia Gestaltista
VERA FELICIDADE DE ALMEIDA CAMPOS
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Séculos de considerações, abordagens variadas com inúmeras implicações
estabeleceram fundamentalmente que o desejo pode ser bom ou ruim. Essa valoração
esvaziou o desejo. Em realidade deu-lhe a devida dimensão: o desejo é um nada
embora motive. É vazio mas funciona como uma alavanca. Essa condição
instrumental é alheia ao humano, embora seja um instrumento por ele utilizado.
O uso aliena ou completa? Para responder a essa questão, precisamos lembrar dos
conceitos de imanência e de transcendência.
O ser humano não é um ponto, não é um abstrato absoluto, isolado. Ele não existe
como ser humano, ele existe como ser-humano-no-mundo. É uma unidade, uma
totalidade, uma gestalt no sentido de Koehler, Koffka e Wertheimer. Estamos sempre
em relação. Essas relações são estruturadas (imanentes) ou são funcionais (aderentes).
Colocar imanência como estrutura e aderência como função, rompe a clássica
oposição entre imanência e transcendência. Não consideramos aderência como
sinônimo de transcendência. A transcendência é uma outra questão que veremos
adiante.
A estrutura biológica é imanente ao ser humano.1 Vejamos alguns exemplos: logo
após nascer, e no decorrer da vida, temos necessidade de comida. Essa necessidade
pode ser regulada por desejos alimentares. A necessidade orgânica de alimento é
estrutural, imanente ao organismo biológico humano. As cogitações em torno de qual
alimento é necessário, qual é o desejado, são aderentes ao organismo, são funções
contextuais, culturais e econômicas, por exemplo. O processo nutricional é exercido
enquanto imanência estabelecedora de manutenção orgânica, ou é exercido como
aderência, funcionamento determinado pelas demandas contingenciadas em inúmeros
fatores. O desejo de comer, o desejo de não comer bulimia e anorexia
exemplificam a questão. O indivíduo quando deseja ou não deseja comer está se
instalando em relações atributivas, aderentes. Isso é muito frequente não só em
relação a comida. Outras situações podem ser comandadas pelo desejo: viver ou não
viver, interromper a própria vida pode também ser ou não ser desejado. As aderências
funcionais ultrapassam as imanências estruturais, destruindo-as. É uma anomalia. A
base vira vértice, o ponto de sustentação torna-se mínimo, pequeno em relação ao que
tem que ser mantido e suportado. São as patologias: anorexia, depressão etc. Nesses
casos a estrutura vira função, o humano desaparece. É a instrumentalização. O ser
transformou-se em instrumento de si mesmo. Marx e Hegel chamavam esse processo
de alienação. Sartre e Heidegger viam nisso a inautenticidade.
Essa instrumentalização é frequente nas situações de vício (nas quais tudo é vendido -
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1!ver meu livro “A Questão do Ser, do Si Mesmo e do Eu”, p.19!
Publicado no Boletim da SBEM - Sociedade Brasileira de Endocrinologia e
Metabologia - Regional Bahia/Sergipe outubro/dezembro 2006, p. 42-44!!
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até o próprio corpo - para comprar a droga), ou nos bolsões de miséria urbana e rural
nos quais os filhos são prostituídos para alimentar os próprios pais. Será que em um
futuro próximo, literalmente, canibalizaremos para sobreviver? É muito possível.
Metaforicamente isso é feito no dia a dia da exploração econômica, psicológica e
social que caracteriza os relacionamentos. No nível de sobrevivência a dor do outro
não nos freia.
Os deslocamentos estruturais geradores de aderência, os esgarçamentos, as
transformações de estrutura e função criam desequilíbrio. Corpos, sólidos, seres
colocados em espaço limitado, buscam apoio para não cair e também se superpõem,
se encaixam. Perdem fluidez, perdem movimentação, posicionam-se para manter o
espaço. A questão do espaço define a liberdade. A liberdade é considerada em relação
aos nossos limites. A imanência, a estrutura nos determina, nos limita mas não nos
esgota, ainda sobra alguma coisa que é a possibilidade de criar transcendência ou de
transcender.
O processo relacional da vivência do limite, a percepção do mesmo é a antítese
responsável pela criação de transcendência. Essa antítese - percepção do limite - gera
a categorização do mesmo.2 Desse modo surge a síntese, a trascendência. Criar
transcendência não é transcender. A mediação é necessária, por isso a importância do
outro, da antítese. O diferente de mim, o outro, é fundamental, é o relacionamento.
Transcendência não é aderência. A categorização do limite, a percepção da percepção
é possibilitada pela estrutura imanente das contradições e esta categorização
transcende seus estruturantes. Na aderência o limite não é categorizado e por isso não
possibilita antítese, desde que não categorização das contradições. O que surge é
uma tese, um processo paralelo, aderente à estrutura, à imanência, aderente ao limite.
Essa sutil diferença entre aderência e transcendência é fundamental para visualizar o
processo de humanização e de desumanização. Quanto menos antíteses, mais
paralelas, mais teses. A quebra do movimento, da relação entre os seres, estrutura
descontinuidade, pontos isolados, exigindo a construção de ligações, pontes ou
aderências. São faltas que estruturam desejos.
As ideologias, as religiões cumprem esse papel – arrumam os desejos, desde o
proletários de todo o mundo, uní-vos!até o ganhe o reino dos céus”. A psicologia
também aborda o desejo: desejamos o que nos falta”, desejo é o vazio”, desejo é a
motivação”, “somos seres desejantes, desejar é buscar complementação, harmonia”.
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2!ver meu livro “Desespero e Maldade estudos perceptivos relação
figura-fundo”, p. 22!
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Unidade e pluralidade. Indivíduo e sociedade. O múltiplo não é a soma de um mais
um mais um. A sociedade é uma totalidade e o todo não é a soma das partes”. A
sociedade não é a soma de indivíduos. A imanência humana não é social, embora seja
relacional. A sociedade precisa de leis, de regras para atingir, para açambarcar e
englobar os indivíduos. Ideologias, religiões, instituições são necessárias para isso.
As relações sociais aderentes ao humano criam desejos, demandas, alienam, portanto.
O desejo é estruturado pelas aderências e essas resultam dos deslocamentos
estruturais. O deslocamento estrutural é a transformação da estrutura em função. Isso
ocorre no desequilíbrio, nos posicionamentos quebra de relação por intervenção de
outras estruturas. Não havendo deslocamento estrutural, as teses geram antítese, as
estruturas imanências criam contradições responsáveis por síntese. A síntese (C)
resulta do encontro de tese (A) e antítese (B):
A síntese é a nova realidade, em termos gráficos criou-se uma nova configuração do
espaço. Chamamos a isso transcendência.
O deslocamento estrutural pode ser representado assim:
Não houve antítese, não houve síntese, não existe transcendência, existe aderência. A
transcendência decorre de um encontro, uma contradição. A aderência decorre de um
deslocamento, um prolongamento, um não encontro. A transcendência resulta da
presença, do embate. A aderência resulta da falta. Desejo é essa falta. Vontade é essa
presença.
Poderíamos chamar de desejo 1 e desejo 2 ou poderíamos dizer que vontade é o
aderente enquanto desejo é o transcendente ou vice-versa. O importante é a situação
que configura a transcendência e a aderência. Usei a palavra vontade para recuperar
um vocábulo de feição elementarista, dando ao mesmo um contexto não
elementarista. Na psicologia do sec. XIX, vontade, afetividade e atividade eram
consideradas dimensões da personalidade, formavam o mundo interior do indivíduo.
Publicado no Boletim da SBEM - Sociedade Brasileira de Endocrinologia e
Metabologia - Regional Bahia/Sergipe outubro/dezembro 2006, p. 42-44!!
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Frequentemente o desejo tem uma conotação de busca, implicando no que está fora,
no exterior. Não existe mundo interior nem exterior quando falamos de estruturas
relacionais, usamos essas palavras sem estas conotações dualistas.
Vontade como transcendência é fundamental para resolver uma série de destruições
causadas pelo desejo. Recuperar a vontade, transcender, aceitando a impotência,
aceitando o limite, nos transforma. A vontade é sempre transcendência. O desejo é
sempre aderência. A vontade resulta de contradição, de percepção da percepção, de
categorização que gera síntese. Sem contradição não existe transcendência, não existe
vontade, não existe determinação. No dia a dia das psicoterapias é muito frequente o
desejo de mudar e a impossibilidade de fazê-lo. O desejo de abandonar a droga,
abandonar o jogo, diminuir a comida que engorda é uma constante. Só haverá
mudança quando surgir a vontade, quando surgir transcendência. Para isso são
necessárias contradições, antíteses. Todos os processos educacionais, processos
terapêuticos e relacionamentos - estruturadores de vontade - são liberadores.
Desejo é o que nos falta, vontade não é o que nos sobra, mas é o que nos liberta se
enfrentarmos, se vivenciarmos o dia a dia das contradições. Pela vontade, pela
superação de contradições, pela transcendência, os limites da existência são
superados, transformados ou integrados.
Em psicoterapia procuramos recontextualizar os neutralizadores, os amortecedores
das contradições por meio de questionamentos, para que surja a vontade, a liberdade
de mudar, a aceitação de si e dos outros.
O continuado exercício de realização de desejos ou de frustração de desejos,
desumaniza, cria seres padronizados, satisfeitos ou insatisfeitos que buscam realizar
perfis e estabelecer prioridades para a realização de seus desejos. Fogem do medo,
caem na depressão, evitam frustrações e cada dia se tornam mais abúlicos, sem
vontade, precisando de palpites, regras e orientações. Os manuais de auto-ajuda
contam com esse mercado, os políticos e religiosos também. Esses seres sem vontade,
sem transcendência, limitados por tudo que os rodeia, são os títeres do sistema.
O ser livre é aquele que exerce suas vontades, não sucumbe aos seus desejos.
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Vera Felicidade de Almeida Campos é psicoterapeuta gestaltista, autora de diversos
livros, seu último livro é "A Realidade da Ilusão, A Ilusão da Realidade" pela Editora
Relume Dumará, Rio de Janeiro 2004
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