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© 2014 Universidade de Brasília, UnB.
Todos os direitos reservados. É permitida a reprodução parcial desta obra, desde que citada a fonte que
não seja para venda ou qualquer fim comercial.
Tiragem: 1.000 exemplares
Elaboração e informações:
Laboratório de Geoiconografia e de Multimidias - LAGIM
Departamento de Geografia
Universidade de Brasília
Campus Darcy Ribeiro, ICC Norte
Subsolo, Módulo 23, CEP 70910-900
55(61)3107-7249
Brasília/DF, Brasil
Produzido no Brasil / Produced in Brazil
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP
Bibliotecária responsável: Thaís Moraes CRB-1/1922
Steinke, Valdir Adilson.
Geografia e fotografia: apontamentos teóricos e metodológicos /
Organizadores: Valdir Adilson Steinke, Dante Flá vio Reis Junior, Everaldo Batista
Costa. – Brasília : Laboratório de Geoiconografia e Multimídias - LAGIM, UnB,
2014.
225 p. : fots. color. ; 21 cm.
Inclui Referências Bibliográficas.
ISBN: 978-85-68437-01-8
1. Geografia, história. 2. Geografia, fotografia. 3. Fotografia, metodologia.
4. Fotografia, apontamento teór ico. 5. Fotogeografia. 6. Fotografia, função social.
7. Geografia, recurso lúdico. 8. Espécies brasileiras. 9. Conservação, espécie. I .
Dante Flávio Reis Junior. II. Everaldo Batista Costa. III. Subtítulo. IV. Título.
CDU – 911
GEOGRAFIA E FOTOGRAFIA
Apontamentos Teóricos e Metodológicos
Organizadores
Valdir Adilson Steinke
Dante Flávio Reis Junior
Everaldo Batista Costa
Brasília
LAGIM, UnB
2014
Conselho Editorial das Puplicações do Laboratório
e Geoiconografia e Multímidias - LAGIM
Edições LAGIM
Editor
Valdir Adilson Steinke (GEA - UnB)
Conselheiros
Cristina Maria costa Leite (FE - UnB)
Carlos Hiroo Saito (ECL - UnB)
Charlei Aparecido da Silva (UFGD)
Dante Flavio da Costa Reis Júnior (GEA - UnB)
Edson Soares Fialho (UFV)
Ercília Torres Steinke (GEA - UnB)
Maria Ligia Cassol Pinto (UEPG)
Mário Diniz de Araújo Neto (GEA - UnB)
Capa e Diagramação
Venícius Juvêncio de Miranda Mendes
Sumário
Aspectos históricos da fotografia e realizações em
Geografia
Imagem e Geografia: o protagonismo da “fotogeografia”
Paisagem-Memória e Função Social da Fotografia
Fotografia e Literatura Geográfica Linhas de uma
Investigação Histórica
A Fotografia como recurso lúdico para o ensino de
Geografia
Notas Introdutórias para a Produção Fotogeográfica
“Cartografia Geopoética”, um Projeto estetizante para a
Ciência
205
11
45
79
107
157
187
En Géogaphie comme en
Photographie, il y a d’abord le regard. Plus
exactement des regards multiples, croisés, qui
explorent et balaient le visible et l’interrogent
avec le désir de tout embrasser. Le réel devient
un paysage. Ensuite vient le moment de
l’acte photographique. Il est un choix. Celui
du meilleur angle de vue qui rendra compte,
au mieux, sinon de la réalité, du moins de
notre perception, à un moment donné et,
plus ou moins explicitement, de ce que nous
voulons démontrer. A travers un double
objectif, d’abord celui de l’œil du chercheur,
ensuite celui de l’appareil photographique. La
photographie capte, cadre et xe une image.
Elle n’est jamais neutre. Photographier est un
acte de création et l’image photographique est
un artefact, ce que l’on a trop souvent tendance
à oublier ou que l’on minimise quand on utilise
la photographie comme un document et qu’on
veut la commenter.
En effet, si rien n’est plus banal et
plus simple qu’une prise de vue, rien n’est plus
difcile à déchiffrer que le processus au cours
duquel interfèrent des questions d’esthétique,
de psychologie, de connaissance ainsi que
de techniques de plus en plus sophistiquées
(focale et angle de vue, ltre, vitesse, etc.). La
photographie est un document complexe, à
utiliser avec beaucoup de précaution et d’esprit
critique. Elle n’est pas seulement l’image
d’un objet, elle est aussi le miroir du preneur
d’image.
REGARDS CROISÉS, IMAGES CADRÉES
Em Geograa, assim como em
Fotograa, há de início o olhar. Mais
precisamente olhares múltiplos, cruzados, que
varrem e exploram o visível, e o interrogam no
anseio de tudo abraçar. O real torna-se uma
paisagem. Em seguida vem o momento do ato
fotográco. Ele é uma escolha. Escolha do
melhor ângulo de visão, que irá relatar, se não
a realidade, pelo menos a nossa percepção, num
dado momento. De modo mais ou menos explícito,
relatará aquilo que queremos demonstrar. E
mediante uma dupla objetiva – primeiramente,
a do olho do pesquisador; depois, a do aparelho
fotográco. A fotograa capta, enquadra e xa
uma imagem. Ela jamais é neutra. Fotografar é
um ato de criação e a imagem fotográca é um
artefato – detalhe que costumamos esquecer, ou
então minimizamos, quando, utilizando-a como
documento, desejamos comenta-la.
De fato, se nada é mais banal e simples
que é um disparo fotográo, por outro lado nada
é mais difícil de decifrar que o processo ao longo
do qual interferem questões de estética e psicologia,
bem como conhecimentos técnicos cada vez mais
sosticados (técnica focal, ângulo de visão, ltro,
velocidade, etc.). A fotograa é um documento
complexo, a ser utilizado com muita preocupação
e espírito crítico. Ela não é apenas a imagem de
um objeto; é também o espelho do fotógrafo.
OLHARES CRUZADOS, IMAGENS
ENQUADRADAS
AVANTPROPOS PREFÁCIO
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Avec la photographie, la Géographie
a traversé plusieurs révolutions qui ont
profondément changé son regard sur le
monde : appareil à plaque et argentique en noir
et blanc, explosion de la couleur et avalanche
des diapositives, souplesse du numérique
enn. Il faut y ajouter toutes les innovations
scientiques : orthophotographie aérienne,
scènes de télédétection satellitaire, images en
3D et toutes les techniques des laboratoires
qui ont élargi et approfondi le spectre du
visible. Pendant les décennies 1970-1990,
la photographie a été parfois supplantée
par les images animées du cinématographe.
Aujourd’hui plus que jamais la photographie
a retrouvé une place de premier plan dans
un éventail technologique de plus en plus
performant et dominateur. Elle participe,
sous des formes diverses, à notre société
de représentation qui, au propre comme au
guré, nous enferme entre des murs d’images,
dans un monde virtuel, qui nous éloigne de la
nature et de la société, c’est-à-dire loin de la
Géographie.
La photographie ne va donc pas
de soi. C’est tout l’intérêt de cet ouvrage
collectif que de nous le rappeler et de poser
dans toute son ampleur et sous ses multiples
facettes la question, trop souvent éludée, de
la place et du rôle de la photographie dans la
recherche et l’enseignement de la Géographie.
C’est d’autant plus intéressant que les auteurs
n’hésitent pas à déborder du cadre traditionnel
de la discipline pour s’intéresser par exemple
à la littérature et à la poésie aussi bien qu’à la
médecine et l’astronomie.
Ils soulignent tous que la “capture
d’image” est un acte fondateur de la recherche
Com a fotograa a Geograa
atravessou várias revoluções que mudaram
profundamente seu olhar sobre o mundo:
placas e argêntico, preto e branco, explosão das
cores, avalanche de diapositivos e, nalmente, a
exibilidade do digital. E é preciso acrescentar
aí todas as inovações cientícas: ortofotograa
aérea, cenas de teledetecção via satélite, imagens
em 3D e todas as técnicas laboratoriais que
alargaram e aprofundaram o espectro do visível.
Entre as décadas de 1970 e 1990 a fotograa às
vezes foi suplantada pelas imagens animadas do
cinematógrafo. Mas hoje, mais do que nunca, a
fotograa recuperou um lugar de primeiro plano
dentro da gama de tecnologias cada vez mais
performáticas e ecientes. Sob diversas formas, ela
toma parte na atual sociedade da representação
que, literal ou gurativamente, nos encerra entre
os muros da imagem, num mundo virtual que
pode nos distanciar da natureza e da sociedade ...
isto é, nos afastar da própria Geograa.
A fotograa não é, portanto, algo
óbvio. E aí reside o interesse desta obra coletiva.
Sob múltiplas facetas, os autores querem nos
chamar a atenção para algo cuja discussão muitas
vezes evitamos: o lugar e o papel da fotograa
na pesquisa e no ensino da Geograa! E é
particularmente interessante que os autores não
hesitem em ir além das cercanias tradicionais da
disciplina, e se preocupem, por exemplo, com a
literatura, a poesia, assim como com a medicina e
a astronomia.
Todos eles salientam que a “captura
da imagem” é um ato fundador da pesquisa que
qui fait partie intégrante de la méthode et
que la photographie n’est pas seulement une
illustration, une sorte de “hors d’œuvre” de
présentation. Par ailleurs, la fonction sociale
de la photographie est mise en évidence à
travers plusieurs exemples. Son rôle historique
et mémoriel est afrmé, en particulier celui
de permettre la comparaison de clichés de
différentes périodes. Enn, sa fonction
pédagogique est longuement analysée. Dans
tous ces cas, il faudrait poser plus directement
le problème de la mise en place d’observatoires
du paysage pour suivre l’évolution et la
dégradation de l’environnement au sens large.
Parmi tous ces riches apports nous
retiendrons particulièrement celui de Dante F.
C. Reis consacré à “Un projet esthétisant pour
la science” qui propose un rapprochement
entre la “procédure scientique” et l’“esprit
artistique” pour rendre compte du vécu
d’un territoire à travers un paysage. Citons
une expérience personnelle à l’appui de ce
propos. Près de la Cabaña Veronica, refuge de
montagne à 2300 mètres d’altitude au pied de
la Peña Vieja (2600 mètres) dans le massif des
Picos de Europa (Espagne du Nord-Ouest),
je mitraille avec mon appareil photo à travers
le brouillard pour prendre un maximum de
photographies “géographiques” : formes
karstiques et glaciaires, névés et rares touffes
de plantes alpines. Assis sur les marches de
l’escalier du refuge, tirant placidement sur
son cigarillo, mon compagnon de randonnée,
Eusebio Bustamente, fameux photographe
professionnel, attend son heure (1). C’est-à-
dire l’éclaircie entre les nuages, le bon éclairage
des parois rocheuses, le jeu du soleil sur les
névés, le vol plané des vautours. Un seul cliché
faz parte integrante do método, e que a fotograa
não é somente uma ilustração, ou uma espécie de
“aperitivo” de apresentação. Além disso, a função
social da fotograa é colocada em evidência através
de vários exemplos. É armado também seu
papel histórico, memorial, e em particular aquele
de permitir a comparação de clichês de diferentes
períodos. E, enm, sua função pedagógica é
longamente examinada. Poderíamos ainda nos
perguntar sobre a questão daquilo que na França
conhecemos como “Observatórios da Paisagem”
(Observatoires du Paysage), e que foram
implementados para acompanhar a evolução e a
degradação ambientais.
Dentre essas ricas contribuições
ressaltaríamos a que Dante F. C. Reis Jr.
consagra ao que chama “um projeto estetizante
para a ciência”, propondo uma aproximação entre
“procedimento cientíco” e “espírito artístico”
a m de dar conta do vivido de um território,
através de uma paisagem. Para dar suporte a
essa proposta do autor, citaria uma experiência
pessoal. Próximo à Cabaña Verónica, refúgio de
montanha a 2.300 metros de altitude, ao pé da
Peña Vieja (2.600 metros), no maciço dos Picos
de Europa, noroeste da Espanha. Disparo minha
câmera através da névoa para tirar o máximo
de fotograas “geográcas”: formas cársticas
e glaciárias, campos nevados e aglomerados de
vegetação alpina. Sentado nos degraus da escada
de nosso abrigo, puxando com calma seu cigarrillo,
meu companheiro de caminhadas, Eusebio
Bustamante, famoso fotógrafo prossional,
aguarda o momento(*). Ou seja, a abertura
entre as nuvens, a boa iluminação das paredes
pris au bon moment sufra pour mettre en
valeur ce paysage de montagne et lui donner
toute sa beauté sauvage ainsi que sa “vérité”
géographique. Un belle leçon de photographie
“poético-scientique” comme le propose
Dante F. C. Reis.
En associant la Géographie à la
Photographie, une discipline à une technique,
une science à un art, nous nous efforçons de
saisir, dans les profondeurs des paysages, “les
choses qui sont derrière les choses” (Pascal
Beucler, sémiologue).
Georges Bertrand, março de 2014.
(*) E. Bustamente Miguel (1911-1982).
“Liebana: album fotograco (1930-1960)”.
Santander: Estudio, 2000. 199p.
(**) Pascal Beucler, semiólogo.
rochosas, o jogo de luzes sobre os bancos de neve,
o vôo planante dos abutres. Uma única foto
tirada na hora certa será suciente para destacar
esta paisagem de montanha e lhe conferir toda a
sua beleza selvagem, bem como sua “verdade”
geográca. Uma bela lição de fotograa “poético-
cientíca”, como propõe Reis Jr.
Associando Geograa à Fotograa,
uma disciplina a uma técnica, uma ciência a uma
arte, nós nos esforçamos para compreender, nas
profundezas da paisagem, “as coisas que estão por
trás das coisas”(**).
Aspectos históricos da
fotografia e realizações
em Geografia
Dante F. C. Reis Jr.
O fotógrafo é um profissional que, por sua capacidade de mirar,
vai revelar a natureza intrínseca de um tema.
Christophe le Toquin
(Escola Nacional Superior da Natureza e da Paisagem, Blois – França)
É preciso possuir sempre objetivos claros. Pois podemos
produzir coisas magníficas e totalmente inúteis.
Jean-Paul Métailié
(Laboratório Geograa do Meio Ambiente, GEODE, Toulouse – França)
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ASPECTOS HISTÓRICOS DA FOTOGRAFIA E REALIZAÇÕES EM GEOGRAFIA
Muito, muito antes dos engenhos de Nicéphore Niépce (1765-1833) e Louis
Daguerre (1787-1851), os ensaios sobre Óptica já revelavam o princípio. De raios
luminosos, que transmitidos por objetos iluminados de luz natural, e atravessando
pequenos orifícios, penetram num espaço assombrado e produzem ali uma imagem
invertida. Justo numa parede oposta. E o bem posterior século dezenove ofertaria ao
talento de personagens seus experimentadores a grande vantagem de um feliz encontro
entre Óptica e Química. Com ensaios à base de resina; depois, prata sobre cobre. E
a restituição da “verdadeira natureza” (do negativo ao positivo) graças a vapores de
mercúrio. Estava claro: a imagem, desde logo, careceria da matéria. Vidro, papel, emulsões
gelatinosas.
Das grandes câmaras obscuras às compactas e ambulantes polaroides. Dos
necessários muitos minutos de exposição a uma luz matinal, aos instantâneos em sépia,
não reprodutíveis. Das imagens de pessoas-fantasmas ao preciso registro de gentes em
movimento. Da faixa estreita entre o marrom e o negro-azulado, à superposição pigmentária
de cores mais abertas. Da rusticidade de películas argênteas aos semicondutores sensíveis
à luz ... aqueles mesmos que traduzem em “rede de pixels” o mesmo impacto luminoso de
sempre. De habilidosos especialistas, com claro pendor artístico, a licenciosos amadores,
multiplicando clichês de suas cenas de lazer em família.
NA HISTÓRIA, AS “CINCO FUNÇÕES” DA FOTOGRAFIA
1. A de ARQUIVAR
Esta função, muito previsível, da reunião em álbuns – temáticos; públicos ou
particulares – respondia à tendência, já antiga, de “documentar o mundo” ... tendência
que, em alguns casos, pôde querer dizer uma franca ambição de inventariar/registrar,
exaustivamente, o “real total”; satisfazendo curiosidades, abastecendo museus. A
fotograa, enquanto arquivo, fazia a mediação entre o espectador e os fatos do mundo
(mundo tornado mais acelerado, revelador de sítios recônditos). E ela, que era ela
própria produto mesmo do mundo contemporâneo, iria captar dele “tudo”: todos os
tipos sionômicos humanos, todas as partes anatômicas de espécies vegetais, todas as
amostras minerais úteis ao ensino da Geologia ... O mundo se “imagenizava”.
A fotograa signicou (ou quis signicar) a captação integral do visível. Mas
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se os álbuns reuniram, desde o início, cenas de obras públicas, arquitetura, viagens e
descobertas, assuntos de ciência e/ou indústria, puderam também retratar cenas de
família; provando que aquele mundo a ser documentado poderia, inclusive, aparecer na
forma de cenas privadas. E no privado, estariam indivíduos em seus espaços íntimos,
em momentos de repouso e distensão – mesmo que o enquadramento transcendesse,
quem sabe, a escala de uma identidade nacional ou regional: digamos, quando de nações
em conito, territórios sob ingerência ... e um qualquer soldado sendo capturado pela
câmera instantes antes de reassumir a guarda. Toda cena, enm, pareceu merecer ser
arquivada1. É como se, num campo precisamente visual, a fotograa fosse capaz de fazer
convergirem as dimensões da cultura, da economia e da política.
As primeiras grandes exposições acontecerão em Londres (1851) e Paris
(1855) – dois importantes centros de um novo mundo industrial. E será nestes mesmos
grandes centros, incluindo também os Estados Unidos, que a ideia de álbuns exaustivos
se converterá em realidade; mediante a criação de “missões”, suas executoras. Surgirão
álbuns de arqueologia, artes, zoologia, história, agricultura ... geograa. No caso
americano, as expedições realizadas nos anos 1930, mais além de se legitimarem pelo
interesse em iconografar espaços (e, daí, orientar explorações locais mais ecazes), a
fotograa serviu para constituir a memória do continente. Temos, com respeito a isso,
o papel de Roy E. Stryker (1893-1975), personagem que à frente da “Seção Histórica”
do setor de informação da Farm Security Administration (FSA), comandou missões
fotográcas a áreas rurais do país (áreas estas empobrecidas durante a Grande Depressão
– fato histórico que, por sinal, estimulou grandemente uma fotograa social, a partir de
1929).
2. A função de ORDENAR
O álbum de fotos não foi concebido como documento destituído de sentido.
Ao contrário, sempre estaria presente certa “lógica” em sua composição. Assim, a
“distribuição de cenas”, que ele compreende, respeitaria uma espécie de coerência, a
qual, fatalmente, iria sugerir certa visão simbólica daquilo que aparece ali “registrado em
1 Sobre o registro fotográco de conitos bélicos, teríamos seguidos exemplos nos anos 1860:
Síria, Indochina, México. Mas mesmo antes, nos anos 1850, quando um Roger Fenton (1819-1869),
desembarcando na Criméia, registraria o conito entre russos e franceses. (No entanto, aqui, sem imagens
de cadáveres. Interessaram aos fotógrafos sobretudo o panorama topográco dos campos de batalha e as
rotinas militares, por assim dizer, mais amenas.).
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grupo”. E esta ordenação podia advir de alguns especícos processos. Primeiramente,
o de fragmentação. Pois que, diferentemente da pintura, a fotograa tinha condições
de explorar o potencial dos detalhes; e, sendo assim, captava um fragmento do todo,
mesmo que esta parte destacada guardasse com a ambiência elos orgânicos, causais. A
fotograa podia, aparentemente, desdenhar toda uma situação hierárquica que explicaria
as condições do objeto captado. Mas além da fragmentação, a unicação. Isto, contudo,
não signicava a reconstituição da organicidade que foi perdida; tratava-se, na verdade,
da construção de uma nova unidade. Com respeito a isso, teríamos o caso histórico do
próprio projeto da FSA, levado a cabo pela equipe de Stryker. Pois dada a exigência
de publicidade e difusão do material imagético reunido (cerca de dez mil fotos tiradas
anualmente), o grosso estoque – derivado, de fato, da liberdade concedida aos seus
autores, bem como da recomendação feita por Stryker, que seus fotógrafos não deixassem
escapar qualquer ínmo detalhe – precisou de uma classicação temática. O desao
naquele momento foi, portanto, fazer vir à tona a unidade daqueles milhares de registros
... disfarçando, por isso, quaisquer marcas autorais. A “unicação”, neste episódio, viria
do cumprimento de uma causa ambiciosa: demonstrar em panorama a aventura humana
na América. Dentre os vários nomes integrantes da equipe de Stryker, podemos citar Ben
Shahn (1898-1969) e Dorothea Lange (1895-1965), os quais se ocuparam da porção sul
estadunidense, e retratando, por exemplo, o empobrecimento de sua gente.
3. A função de MODERNISAR OS SABERES
O uso em ciência talvez seja o mais apropriado assunto aqui. Porque o simples
fato de, por exemplo, em estudos de natureza arqueológica, os hieróglifos encontrados
não precisarem ser copiados à mão, estampava o auxílio crucial que a fotograa passaria
a oferecer ao homem de ciência. Sua alta delidade (se compararmos ao resultado do
acordo entre olho e mão, que é o desenho) era incontestável. Curiosamente, em certos
casos, podia-se interpretar a fotograa como uma substituta do objeto de estudo, ou, no
mínimo, uma maneira de trazê-lo para “mais perto” do sujeito da pesquisa ... e (o melhor)
de uma forma despida da subjetividade de outros documentos.
Por outro lado, havia sido por um viés pendendo para o artístico que a
abordagem iconográca da natureza se fez entre os séculos dezesseis e dezoito. O mar,
a montanha, a oresta. No dezenove, o que a fotograa faz é, então, aliviar a pintura e
a arte da função complementar que elas vinham (compulsoriamente?) desempenhando.
Doravante, caberia à fotograa operar a função especialmente “prática” (ou seja, não
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necessariamente estética) de gurar o mundo. Este mundo, que pelos três séculos
anteriores havia sido captado segundo olhar artístico, aparecera nas iconograas de então
sob o signo de “paisagem”. Porque sempre conotativa. Logo, por estranho que soe aos
ouvidos de geógrafos, teríamos de reconhecer que, sob a operação da máquina fotográca,
não seriam mais propriamente paisagens o que o operador capturaria! Desejoso de
escapar de toda armadilha (a controvérsia do olhar, o pré-conceito, a imperícia pessoal,
o juízo de valor ou gosto), o fotógrafo a serviço da ciência teria compromisso com o
rigor. Produziria um registro cujo conteúdo informativo independeria do indivíduo que
o tivesse produzido. Quando num propósito cientíco, o olhar do fotógrafo seria, pois,
sempre denotativo! É que, supostamente, seu proceder sistemático o livrava de sucumbir
ao enleio artístico – tentação sempre presente quando o fato excepcional se exibia diante
da lente. O geólogo Aimé Civiale (1821-1893) gura como um exemplo de personagem
convictamente refratário ao ponto de vista artístico na ciência. Assim, se se tratasse de
registrar a imagem dos Alpes austríacos, isso não seria feito a m de mostrar a beleza
daquela porção montanhosa; mas sim a m de ilustrar o resultado de um particular
processo de soerguimento. Neste sentido, a fotograa cientíca daquele setor alpino
serviria, precisamente, aos arquivos ... aos quais, a qualquer tempo, o olhar intérprete
podia recorrer para ns de “consulta”. Não para contemplação!
No âmbito da ciência, a fotograa documenta; não artializa. Descreve; não
expressa.
Repetindo a lógica do que ocorrera com respeito à representação ambiental,
também na questão do corpo vericaríamos a imposição do rigor documentário. E foi
bem o caso das fotograas para uso em escolas de Medicina ou Belas Artes; quando o
enquadramento das anatomias teriam uma precisa função instrumental. E quanto ao
caso especialmente médico, pode-se mesmo armar que foi bem-sucedido o cuidado
em restringir-se aos aspectos “técnicos” – dado que, para o emblemático contexto da
documentação de doenças, os catálogos estiveram realmente distantes de qualquer sinal
de pendor estético. (Visto que, como se pode imaginar, por vezes o corpo constaria ali
em condições de brutal aniquilamento).
4. A função de ILUSTRAR
Quem sabe, a mais evidente de suas funções, ela traduziu-se na possibilidade da
conversão do táctil em visual. A fotograa atestava, demonstrava. Função que, ademais,
favorecerá seu ingresso no circuito comercial. E isto, principalmente, no período entre-
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guerras (anos 1920, sobretudo), quando a fotograa será um grande trunfo da indústria
publicitária, com a produção de catálogos de venda de produtos. E é justo este poder
de ilustração que fará surgirem, cerca de meio-século depois, as primeiras “estocagens”
ociais – forma ancestral dos modernos bancos de imagens ou “agências” (o Bank
Image, por exemplo, fundado por Laurence Fried e Stanley Kanney), em que os estoques,
em geral postos à venda, retratarão cenas de múltiplos temas: esporte, viagem, pessoas,
curiosidades diversas, etc.
5. A de INFORMAR
Aqui teríamos a função que tenderia mais enfaticamente a aproximar o fotógrafo
das reportagens jornalísticas. Na verdade, o contexto teria de ser oportuno a isso; e de
fato as conquistas técnicas (simultâneas) em fotograa e imprensa engendraram o acordo.
Máquinas bem mais portáteis, melhores lentes e toda a sosticação havida em litograa,
redundando nas máquinas de offset por volta de 1903. Assim, o jornalismo moderno
será tributário da imagem e, ainda que viesse a haver celeuma em torno dela (jornalistas
puristas, recriminando o emprego de tal “supercial” recurso; enquanto outros, já
seus partidários, sendo provocativos ao insinuarem a capacidade da imagem valer por
muitos parágrafos), não tardariam a aparecer tabloides e revistas consagrando grande
espaço à iconograa fotográca – devendo ser citado o caso pioneiro, alemão, da Berliner
Illustrierte Zeitung. O “fotorepórter” podia jogar o papel de um detetive: estar inltrado
em inacessíveis círculos políticos, ou em glamorosas rodas do showbiz. Registrar o
instante decisivo, contando com ato involuntário ou procedimento premeditado. Perícia
e instrumento. Nos anos 1920, talento e uma Leica nova em folha à mão fez toda a
diferença.
UM PANORAMA DA ESPECÍFICA APLICAÇÃO EM CIÊNCIA
Não é tão fácil demarcar o que talvez desejássemos chamar “uso cientíco”
da fotograa. Pois há, é evidente, comprovações de que a produção não deliberada de
registros também acabou tendo serventia àquele, digamos, “típico inquiridor olhar” do
homem de ciência. Mas, de fato, a vulgarização paulatina dos procedimentos – tão logo,
por volta de 1840, o daguerreótipo foi apresentado ocialmente na Academia de Ciências
e na Câmara dos Deputados francesas – estenderia o instrumento às práticas cientícas,
favorecendo, como se deduz, a ultrapassagem dos códigos tradicionais da representação.
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Serviria, por conseguinte, para o registro imagético do admiravelmente colossal, tanto
quanto do espantosamente minúsculo ... registro de detalhes que, variando a escala, não
deixavam de ser esplêndidos. Proveito conveniente a topógrafos, a meteorologistas,
a etnógrafos, a botânicos. Por sinal, o por assim dizer “padrinho” de Louis Daguerre
junto àquelas duas instituições (Academia e Câmara) foi François Arago (1786-1853),
astrônomo e à época quem dirigia o Observatório de Paris. E não há como omitir a
estreita relação que passaria a ser mantida entre fotograa e Astronomia a partir do século
dezenove. Na própria sessão de apresentação ocorrida na Académie des Sciences, Daguerre
seduziria a audiência com uma foto da Lua (ainda que hoje o que foi visto certamente nos
parecesse não mais que uma decepcionante mancha branca). Bem, mas esta aproximação
entre astrônomos e fotógrafos caria ilustrada, por exemplo, pelo alvoroço em torno da
passagem de Vênus diante do Sol – evento que, testemunhado em 1874, atraiu centenas
de lentes. Mas até mesmo antes, episódios exemplicaram a aproximação: como quando
da série de registros feitos dos eclipses lunares havidos nos anos 1850 – mesma época em
que, no Observatório de Harvard, Estados Unidos, John Whipple (1822-1891) obtém
imagens da rotação do satélite, capturando-a a partir de poses seguidas.
Já na bem outra escala de registros, substituindo a acoplagem ao telescópio,
o engenheiro Auguste Bertsch (1813-1970) é um nome que se dedicaria à fotograa
microscópica (photomicrographie). Bertsch, a exemplo de outros cientistas interessados
pelos registros em microescala (tal como será o caso do bacteriologista Alfred Donné,
1801-1878), pretendia conceber um atlas iconográco sobre detalhes morfológicos de
indivíduos dos reinos vegetal e animal; principalmente ervas e insetos.
Ainda sobre fenômenos cujos detalhes escapam à visão ordinária, a fotograa
também pôde ser empregada no intuito de estudar a locomoção; de animais e de homens.
Pensada, a princípio, para tais estudos siológicos, a “cronofotograa” jogou um papel
importante, por exemplo, para o exame descritivo dos impactos musculares. O siologista
Étienne Marey (1830-1904) foi nome-chave nesse empreendimento.
O fato é que a fotograa, não obstante a ainda conança da ciência experimental
nas estruturas sensoriais (logo, em seus respectivos dispositivos orgânicos), trouxera à
ciência um modo de corrigir, ou pelo menos minorar, os erros e ilusões do olho humano.
A fotograa veio a ser como que a “retina do cientista”.
Outro empreendimento notável data dos anos 1860, quando vai se pensar em
compor arquivos visuais também para casos médicos; ou mesmo revistas especializadas
(como a Revue Photographique des Hôpitaux de Paris, editada entre os anos 1860 e 1870, e
18
sem pudor no recenseamento de monstruosas anomalias). Portanto, a exemplo do que
viria a se vericar no âmbito de outras ciências, em Medicina estes registros fotográcos
prestariam grandes favores; e, no caso especíco da disciplina, especialmente dois: o
da diagnose, dado o préstimo à constatação da dinâmica evolutiva das doenças, e o
pedagógico, com as fotograas servindo como repertório útil ao ensino de futuros
clínicos. Eram imagens de pacientes em hospitais, e sua submissão aos tratamentos;
cenas de surtos; foco em lesões cutâneas (estas, inclusive, às vezes coloridas à mão, a
m de melhor orientar a leitura técnica2). Albert Londe (1858-1917) foi um personagem
importante na cronofotograa de doenças nos anos 1880, sendo atraído depois pelas
técnicas então recentes em radiograa (anos 1890) – quando por elas se terá a impressão
de uma “fotograa” (sic) penetrante e sem cortes; uma fotograa que transcendia às
chagas dermatológicas, chegando aos ossos. Resultantes de suas duas décadas de trabalho
junto ao Hospital Salpêtrière, em Paris, de sua autoria encontram-se séries dedicadas às
diferentes fases de uma crise histérica, ou aos efeitos de uma terapia de eletrochoque. No
ano de 1893 publicaria a obra “A Fotograa Médica”, em que sustenta seu papel-chave
no favorecimento à comparação dos efeitos atribuíveis a doenças nervosas. E quanto
maior o número de clichês, tanto mais facilmente se escaparia da generalização à base de
observações isoladas. Era a fotograa a serviço do espírito cientíco.
Em se tratando de ciências humanas, nascentes na segunda metade do século
dezenove, o uso da fotograa não seria mais modesto. E talvez o caso mais emblemático
tenha sido o da Antropologia. Os estudos sobre tipos humanos naturalmente buscaram
suplemento neste registro iconográco. Assim, os “tipos” puderam ser, além de
melhor identicados, classicados propriamente, dado o favorecimento à anotação
antropométrica (agora complementada por imagens mais dedignas). Não há dúvida
que inclusive os etnógrafos encontraram na imagem fotográca seu irrefutável poder
de convencimento. E, assim, bem a propósito do ideário darwinista/evolucionista, na
Antropologia (como, de resto, na Botânica e Zoologia) foi irresistível enquadrar as
imagens capturadas num esquema do tipo hierárquico-taxonômico.
Já numa aproximação com a Geograa, num misto de ciência e arte, há o muito
2 Aliás, em contexto de P&B, também para o caso astronômico o recurso da colorização manual
cumpriu a função do realce ... sendo que, em circunstâncias celestes, o desejo, em vez de ser o de fazer ver
“lúpus eritematosos”, pode ter sido o de avivar crateras lunares. (Ainda a respeito desta necessidade eventual
do retoque à mão, cabe mencionar que, dada a corriqueira necessidade de um tempo de exposição longo,
nem sempre se obtinha um bom resultado na captação dos comprimentos de onda respectivos, por exemplo,
ao verde das vegetações e ao azul do céu. Outra espécie de retoque – que gerou imagens bastante grosseiras
– diz respeito às nuvens, por muito tempo simplesmente ausentes dos registros.).
19
simbólico caso das fotograas de viagem e exploração. Ainda antes da vulgarização do
daguerreótipo, o instrumento já vinha sendo empregado, por exemplo, num dos mais
particularmente “geográcos” objetos de registro: o inventário de patrimônios. Naturais
e culturais. De acidentes da natureza a obras de arquitetos. Acidentais descobertas ou
encomendas. A ver com estas últimas, temos o famoso caso da Missão Heliográca
francesa, nos anos 1850; incumbida de fazer o diagnóstico do estado de conservação do
patrimônio arquitetônico, em mais de cem lugares visitados. Tal empreendimento quando
dirigido a monumentos, guiava o trabalho de historiadores e arqueólogos históricos;
além, é claro, de artistas igualmente preocupados em tomar parte neste grande projeto
(cientíco, tanto quanto artístico) de garantir uma memória nacional. No nal, uma
iconograa comprovante das presentes marcas do passado (romanas, medievais), visíveis
em palácios e catedrais. E, em muitas situações, uma vericação imagética da necessidade
de se pensar o restauro de antigos edifícios. Para trazermos aqui alguns nomes, Hippolyte
Bayard (1801-1887), um dos cinco fotógrafos que integraram a Missão recém citada,
teria sido o encarregado de fazer registros particularmente na região da Normandia. Do
mesmo grupo, outro personagem que merece menção é Henri Le Secq (1818-1882), o
qual, enviado por sua vez ao leste da França, teria se diferenciado dos demais por suas
fotograas aproximadas. Revelava, assim, nas porções dos grandes prédios, seus ricos
detalhes esculturais. Contrariamente a Auguste Mestral (1812-1884) e Gustave Le Gray
(1820-1884), que teriam tido uma preocupação bastante mais “paisagística”, digamos
assim. Sempre procurando enquadrar a obra arquitetônica em seu amplo contexto
visual. Fechando o quinteto, e provando a variedade de capturas, Édouard Baldus (1813-
1889) foi aquele que, a exato “meio-caminho” da macro e microescalas, privilegiou o
monumento em seu conjunto – isto é, sem o detalhe do elemento componente, nem o
recuo a m de destacar a cenograa. Finda a Missão, estes personagens prosseguiriam
suas obras independentes. Baldus, por exemplo, percorreria o país registrando cenas úteis
aos arquivos institucionais (construção de ferrovias, episódios de inundação, etc.).
No plano das expedições além-mar, temos o caso das campanhas na África
do Norte e no Oriente Médio. Fotógrafos sujeitos às mais variadas inospitalidades,
registrariam as outras bordas do Mediterrâneo, bem como as visualmente distantes
pirâmides egípcias. Aliás, não estranha essa preferência, no século dezenove, pela captura
fotográca do Oriente. Pois que no século anterior, os viajantes (artistas, naturalistas)
já haviam coletado, ainda que de outro modo, a paisagem-matriz da cultura europeia.
Foram as pinturas e narrativas literárias, compostas até o século dezoito, sobre sítios
20
nos atuais territórios italiano e grego. Agora seduzia sobretudo o “menos familiar”, o
alienígena. Sábios em ciências e letras desejavam que o novo estilo de iconograa lhes
registrasse também as verdadeiras terras estrangeiras. Imagens da Palestina, do Império
Otomano; imagens de ruínas em lugares santos, de regiões de ancestralidade remota. Um
exotismo que comporia álbuns; não somente diários de bordo ou contos épicos (às vezes,
hiperbólicos).
Mas como se presume, as expedições constituíam um empreendimento
consideravelmente oneroso – não só por conta dos gastos previstos com deslocamento,
mas mesmo em decorrência do material todo (pesado, aliás) que se exigia na atividade
propriamente da fotograa. Daí, não raras vezes, os fotógrafos buscarem subvenção
junto a instituições que, de algum modo, pudessem angariar uma vantajosa contrapartida.
Será aos Ministérios da Educação (porque, talvez, entrevendo o uso do material em
futuros manuais escolares) que eles demandarão nanciamento. Advirão daí os périplos
modernos. Um Auguste Salzmann (1824-1872) extasiado com a Terra Santa; um John
Greene (1832-1856) registrando escavações de templos mortuários, e prematuramente
morto no Cairo.
E vislumbrando o potencial comercial do produto fotográco (vendido avulso
ou em álbuns), a m de fazer a cobertura completa das paisagens regionais, muitos
destes fotógrafos se instalariam por longo tempo em cidades locais. Aí temos um Félix
Bonls (1831-1885) estabelecendo seu ateliê na capital libanesa; e de lá confeccionando
clichês ao estilo “souvenir de viagem”, rapidamente consumidos por turistas europeus
em viajem àquela porção do Oriente. Não há dúvida, o então nascente interesse pelo
turismo em regiões pitorescas foi grandemente impulsionado pela fotograa; porém,
não é menos verdade que a nova atividade econômica também acabou estimulando (e até
consolidando) o mercado fotográco.
O CASO DA GEOGRAFIA, PROPRIAMENTE
Possivelmente, o feito a que estamos mais diretamente autorizados a associar
à “ciência da paisagem” tem a ver com a subida às montanhas. Na França, serão os
maciços alpinos que atrairão as lentes fotográcas. Mas os pioneiros nisso, curiosamente,
iriam fazê-lo por encomenda. Uma espécie de mecenas, Daniel Dollfus-Ausset (1797-
1870), rico empresário do ramo têxtil, entusiasta da fotograa e atraído pelo fenômeno
glacial, nanciaria a subida aos cimos. O mesmo Dollfus-Ausset que, indiretamente,
21
acabaria estimulando os irmãos Bisson (Louis-Auguste e Auguste-Rosalie) a ascenderem,
após dois fracassos, o Mont Blanc, em 1861 – pois adversidades climáticas havia lhes
imposto duas frustrantes desistências. Mas é preciso entender o conjunto de diculdades
que tiveram de enfrentar à época: um verdadeira equipe para o transporte das centenas
de quilos, o “laboratório” improvisado para os preparados químicos e revelações ... e
tudo isso sob extenuantes baixas temperaturas. Bem mais cômoda teria sido a ascensão
de outros irmãos, os Charnaux, duas décadas depois, já favorecidos tecnicamente pelas
circunstâncias; logo, desobrigados de carregar pesada parafernália.
Desde sua invenção, a fotograa ofereceu serventia aos geógrafos e
togeógrafos. Isso, pelo fato de ter signicado um novo estilo de registro imagético
da paisagem. E como “paisagem”, desde sempre, foi uma noção largamente utilizada
(o que, de fato, comprometeu um enquadramento restrito às ciências), a fotograa
poderia capturar a diversidade de fenômenos que ela própria subentende – incluindo
aqui, é claro, o registro inédito de lugares de difícil acesso ou o ângulo privilegiado
desde elevadas altitudes. Ademais, desde o início, a fotograa pareceu conferir a
neutralidade e a objetividade que as ciências da observação tanto requeriam. No caso
da ciência geográca, foi a heterogeneidade de territórios e as mutações vericadas em
cada um deles, que tornou atraente o emprego do registro fotográco. Por outro lado,
estranhamente, ele não passaria de um elemento a mais (acessório, banal) na incursão
geográca. Ou seja, a fotograa vai, apesar de seu caráter inovador, restar como um tipo
de documento secundário em relação à narrativa textual – ao lado do mapa, o recurso-
mor do geógrafo clássico. Em outras palavras, inicialmente, o registro fotográco não
chegará a ser visto em suas potencialidades demonstrativas; não ultrapassará, portanto,
o status de “elemento decorativo”. Neste sentido, se compararmos os nossos aos feitos
de historiadores, etnólogos e folcloristas, vericaremos que não nos ocorreu, de início,
ser ousados como estes – que logo se desviaram do fútil ou anedótico ... explorando as
riquezas desta modalidade de iconograa. Sem dúvida, outros cientistas sociais foram
arrojados mais cedo, fundamentando grandemente seus estudos (quer dizer, além de uma
função meramente acessória e momentânea) em vultosos arquivos fotográcos.
De todo modo, mesmo subexplorando o instrumento, o geógrafo dele se serviria
a partir de fontes as mais diversas. Num contexto menos remoto, temos o exame geo-
historiográco de antigos cartões postais (relíquias em tom artístico) e a pesquisa junto a
coleções particulares3, institucionais e/ou arquivos cientícos (por exemplo, as coleções
3 Para mencionar um caso ilustrativo, temos hoje a coleção de Marcel-Henri Gaussen (1891-1981),
22
curadas por museus ou resguardadas em bibliotecas municipais, e os arquivos lotados em
sociedades de sábios, institutos ou laboratórios).
Com respeito a procedimentos que dão origem a verdadeiras técnicas, a história
também realça a função utilitária da “fotograa repetida” no âmbito da pesquisa
geográca. Esta técnica auxiliou o conhecimento sobre evolução das paisagens; evolução
esta que podia ser aferida pelos processos testemunhados iconogracamente. Trata-se de
sucessivos registros, executados desde os mesmos pontos de vista (repetindo a estação do
ano – para que a fenologia não iluda o olhar-intérprete – e o horário – a m de obter os
mesmos efeitos de claridade). Uma pesquisa assim instrumentalizada teve um inconteste
viés aplicado, já que se pretendia identicar virtuais “efeitos” sofridos pelo território ao
longo de certo lapso de tempo. Quer dizer, o registro fotográco podendo servir para
documentar estados que seriam sempre transicionais. Zonas em que ainda se detectariam
estigmas de um longo histórico de ciclos ... de metalurgia, de agropecuária; sucedidos
por, quem sabe, abandono de terras e, portanto, espontâneos reorestamentos. Zonas
em que, talvez, a construção de uma hidrelétrica fosse o fenômeno mais peremptório na
mutação paisagística local. Ademais, os produtos iconográcos, podendo servir de apoio
aos atores locais, no sentido de subministrar seus projetos e políticas de intervenção,
favoreceram toda uma perspectiva pragmática. Portanto, se a fotograa constituiu, é certo,
um suporte potencial à reexão (sobre os processos, suas causas e desdobramentos),
tivemos com ela também um efetivo apoio ao desenvolvimento regional – dado o
préstimo evidente à gestão do território e à tomada de decisões.
Sobre, especialmente, esta questão das ações de algum modo ligadas ao
planejamento e à conservação, temos, no caso francês, na qualidade de pioneiros, os
personagens ligados ao ambiente orestal. Estamos falando obviamente do século
dezenove, quando, precisamente nos seus anos sessenta, alguns ensaios iniciais em
fotograa repetida foram executados. Estes ensaios vieram a sosticar, por exemplo,
os levantamentos do tipo político-administrativo (tal como os antigos cadastros
napoleônicos, que cinco décadas antes procediam ao inventário dos parcelamentos do
território francês, com nalidade essencialmente scal). Depois, graças a sistematizações
havidas nos anos que se seguiram, por volta da década de 1890 puderam-se instituir, por
exemplo, acompanhamentos fotográcos de obras realizadas com ns de restauração
botânico e togeógrafo que deixou um imenso acervo de fotograas, as quais compreendem nada menos
que setenta anos de registros imagéticos sobre os Pireneus. Gaussen foi fundador da Escola Toulousana de
Fitogeograa. Desenvolveu na França o que poderíamos chamar de “Cartograa da Vegetação”, cruzando
bioclimatologia, pedologia e uso do solo.
23
paisagística em ambientes de montanha. Tratava-se, então, da feitura de um registro
imagético dos serviços desencadeados pela política de “Restauração de Terrenos de
Montanha” (RTM, Restauration de Terrains en Montagne)4. A sistematização mencionada há
pouco tinha a ver, neste caso, com o cuidado de repetir, à base de bússolas de azimute, as
fotos nos exatos mesmos pontos de captura. Desejava-se, com isso, dispor de registros
perfeitamente comparáveis de um mesmo objeto. A própria RTM previa, portanto,
uma constituição deliberada de arquivos que tanto testemunhassem a degradação em
ambientes de montanha, quanto documentassem os empreendimentos de restauração.
Como se depreende, observa-se nesse contexto uma intenção, além de
“documental” (o objetivo primaz, podemos dizer), também política e, de certa maneira,
pedagógica. É que tanto os responsáveis pelas medidas ulteriores (os “tomadores de
decisão”, para usarmos expressão contemporânea), quando o grand public precisavam ser
informados, em linguagens respectivas, sobre (se fosse o caso) as provas de uma eventual
degradação; bem como a comprovação também de que certos agentes públicos estavam
(“louvavelmente”) empenhados em executar projetos de recuperação5. Daí o cuidado
inclusive em complementar as fotograas com legendas bastante claras, a m de que
as pessoas que ignorassem o ambiente iconografado (montanhês, no caso) pudessem
se certicar do fenômeno em questão sem maiores abstrações. As três intenções
mencionadas acima, correlacionadas que são, facilmente nos fazem pensar num objetivo
geral, seu denominador comum: o objetivo “patrimonial” – ao qual o geógrafo não pôde
se furtar.
A aplicação da técnica da repetição em paisagens físicas antropizadas ocorreria
intensamente décadas à frente: com os casos emblemáticos das porções francesas
dos Pireneus (registros de desmatamento feitos por Antoine Campagne) e dos Alpes
(possivelmente o setor mais explorado por “fotogeógrafos”6 como Charles Kuss e Paul
4 A RTM foi uma política promovida, entre os anos 1860 e 1880, pela “Administração de Águas e
Florestas” (Administration des Eaux et Forêts), cuja existência, aliás, remonta ao século treze.
5 Com respeito aos anos 1850, há que se mencionar a iniciativa das escolas de engenharia (como o
caso da eminente École des Ponts et Chaussées) no sentido de produzir imagens sobre canteiros de obra – algo
que pode nos insinuar, além de uma função técnica, propósitos publicitários de promoção política.
6 Doravante, empregaremos aqui o termo “fotogeógrafo” a m de designar o personagem que,
mesmo não tendo se reconhecido, conscientemente – à circunstância de seus empreendimentos –, um
geógrafo, pode, em virtude mesmo destes feitos, merecer a insígnia de cientista da paisagem. Tudo ca a
depender, portanto, da natureza de sua intervenção com a máquina fotográca. Assim, se o personagem
documentou a “interface” das gentes com a natureza, e mais, no ato, esteve plenamente consciente desta
interface e da importância cientíca de descrevê-la iconogracamente (algo que aparecerá frequentemente
nos clichês representado pelos estigmas do trabalho das gentes, impressos na natureza), ele terá sido, por
24
Mougin, interessados em registrar a relação da paisagem com a vida local).
Seguindo mais ou menos o exemplo francês, outros serviços orestais
europeus se valeriam da técnica, como os da Itália, Suíça e Áustria. Sua aplicação para
o acompanhamento dos serviços orestais se dá intensamente até a primeira década do
século vinte.
UM PARÊNTESE: JEAN BRUNHES
No que diz respeito precisamente ao prossional auto-denominado geógrafo,
apesar de que os orestais tenham sido os precursores, no século dezenove a fotograa
seria imediatamente utilizada também por ele. Considerando a L’Âge d’Or da geograa
francesa, vericou-se a exploração de outras formas de imagem como complemento
ao mapa: além dos croquis ... fotograas! E Jean Brunhes (1869-1930) é um nome de
referência não apenas no emprego do registro fotográco, mas também na teorização
a respeito. Como geógrafo, e principalmente como vidaliano, interessava-lhe garantir
a memória de um mundo que principiara a acelerar sua transformação. E “garantir
memória” signicava compor um dossiê sobre aquilo que (por efeito de um progresso
ingrato a heranças) logo poderia ser visto como ultrapassado. Os meios e os seres
humanos dali, em suas rotinas de vida. Remanescentes gêneros de vida. A fotograa
gurou para Brunhes como um verdadeiro instrumento da memória. Uma memória
documentarista do real. Brunhes dirigiu o projeto “Arquivos do Planeta” (Archives de
la Planète), da Fundação Albert-Kahn, entre os anos 1912 e 1930. Nesta grande obra
geográca, muitas coletividades humanas foram “arquivadas”, fotogracamente, em
momentos de suas atividades tradicionais e vitais. Foi Kahn (1860-1940), banqueiro
mecenas, quem incumbira Brunhes deste épico recenseamento fotográco, como uma
espécie de contrapartida ao obséquio de ter-lhe criado uma cadeira de Geograa Humana
no Collège de France. Kahn pretendia, com isso, prestar serviço às classes de decisão política
excelência, um fotogeógrafo. Ademais, faremos aqui uma reverência ao geógrafo francês que tem, já há
algumas décadas, empregado o termo similar (photo-géographe): Jean-Paul Métailié, da Universidade de Toulouse
2, o qual tivemos a ocasião de entrevistar em Janeiro de 2012. Cabe mencionar também que a opção (talvez
mais previsível) pela terminologia “geofotógrafo” foi imediatamente descartada por nós por, em especial,
dois motivos; quais sejam: 1º) por considerarmos que geo-fotógrafos, num âmbito mais vulgar, poderia ser
todo aquele que produz imagens de lugares, sendo que sem qualquer intenção cientíca documental; isto é,
guiado, provavelmente, por pura veleidade de compor um arquivo de reminiscências; e 2º) pelo fato de que,
ultimamente, constituiu-se hábito preocupante a imediata anteposição do prexo “geo” a toda palavra cujo
signicado possa, por qualquer ínmo motivo, ser incorporado pelo domínio (excessivamente voraz, nos
parece) da Geograa.
25
e econômica, pois que, uma vez informando-as sobre as características das diferentes
regiões, as ajudaria a orientar, por assim dizer, a “geograa dos investimentos”. No nal
do século dezenove, o banqueiro patrocinara a viagem de jovens intelectuais a várias
partes do globo. E àquela altura ele próprio já havia dado sua volta ao mundo, tirando
fotograas; experiência que lhe despertou a ideia do projeto “Arquivos”. Mas o primeiro
encarregado, propriamente, não era geógrafo nem tampouco cientista. Foi Auguste Léon
(1857-1942). Anos depois, a função conada a Brunhes seria a de, justamente, acrescentar
àquela empresa uma imponente “dimensão cientíca”7. O encontro de ambos se daria
por volta de 1909.
Os Arquivos nascem, então, para sondar as atividades do homem sobre a Terra
(Bálcãs, Ásia Central, Oriente Médio), mas o encargo alimentaria também as publicações
ulteriores de Brunhes e sua prática docente na cadeira de Geograa Humana. Foram
aulas e textos enriquecidos por fotos de casas, vias férreas (o que chamou “ocupação
estéril do solo”), equipamentos agrícolas, campos cultivados, viveiros (ocupação, por sua
vez, “criadora”) e os muitos sinais do que chamou “economia predadora” – como as
atividades madeireiras e de mineração.
Por volta dos anos 1920, os Arquivos contavam com a operação de vários
prossionais da fotograa, enviados mundo afora (Turquia, Mongólia, etc.). A ideia era
que as missões sempre fossem realizadas com a destinação de “duplas”: o fotógrafo-
operador acompanhado de um geógrafo – regra que, no entanto, parece só ter sido
cumprida na parceria “León & Brunhes”. De todo modo, o vidaliano teria instruído os
operadores quanto aos propósitos do “olhar geográco”; logo, em tese, esta parceria
entre o técnico e o cientista redundava numa tomada precisa de imagens, posto que
era o geógrafo quem determinava o objeto a ser fotografado e, ademais, sob que
ângulo capturar as cenas. Sendo assim, a despeito de uma possível impressão estética
e autoral deixada pelo fotógrafo-operador (valorizando cores, alinhamentos, objetos
coadjuvantes), o olhar geográco logrou conferir coerência às coleções. No nal, parece
ter sido fecundo esse trabalho a quatro mãos, de operadores com geógrafos. Se o registro
pôde ter alcançado seu propósito, fazendo ver, digamos, a rotina das esposas nos afazeres
domésticos, aquela geograa cultural não perdia seu signicado se trouxesse também à
7 “Jean Brunhes fez parte de uma nova geração de geógrafos que, para fundamentar seus trabalhos,
abandonaram os livros em prol dos estudos de campo. Desde o nal do século dezenove ele se orienta
na direção do que então se chama “geograa humana”, que tenta analisar as interações do espaço com os
homens, assim como os obstáculos e as adaptações que resultam desta relação. Neste contexto, a fotograa
surge como um verdadeiro instrumento de pesquisa, útil ao trabalho de descrição e, principalmente, um
precioso suporte didático.”. (GERVAIS; MOREL, 2011, p. 101).
26
vista, por um capricho do fotógrafo, a luz reetida pela roupa recém-alvejada, e estendida
úmida nos varais. Em suma, um riquíssimo material que, ademais, somava-se a lmes e
anotações feitas in loco.
Os Arquivos foram um extraordinário projeto de inventariação fotográca,
incitado por, simultaneamente, duas driving forces: 1ª) documentar as paisagens e as gentes
(antes que desaparecessem as tradições) e 2ª) registrar as mudanças em seu corrente
curso. Essa atenção precisa ao “actual” (que a fotograa pressupõe), diga-se de passagem,
comprometeria um pouco a admiração/consideração dos vidalianos de primeira hora
à obra de Brunhes. (Diz-se até que o próprio Vidal e de Martonne teriam reprovado
este “excesso de presente” nas descrições do geógrafo.). Mas, enm, foi o início do
século vinte, com todas as transformações sociais que trazia, que legitimou a fundação
dos Archives. Por isso, então, o largo documentário do meio rural. Interessantíssimas
imagens de fragmentos do cotidiano, famílias ou comerciantes, vestindo suas melhores
roupas, diante de seus domicílios ou comércios, sempre muito simples. E um olhar
sucientemente atento logo deduzia semblantes algo enlutados, à frente de prédios de
construção obsoleta, com fachadas desgastadas e parecendo a pouco de ruir. Alguns
destes registros fotográcos serão de autoria de Léon, e seriam projetados durante a
aula inaugural de Geograa Humana, no Collège de France – aula que Brunhes consagrou
à região do Maciço Central.
O VALOR DAS ITERAÇÕES E O CASO DOS OBSERVATÓRIOS
Voltando à técnica da fotograa repetida, em virtude de um contexto de guerra,
ela seria menos intensamente exercitada após os anos 1910. Aliás, sua revitalização só se
daria a contar da década de sessenta, mediante as iniciativas da ciência norte-americana
para revigorar a repeat photography. O objeto-foco serão as dinâmicas ambientais do Oeste
dos Estados Unidos. Contarão, para isso, com riquíssimos acervos fotográcos que
haviam sido compostos no século anterior, graças a expedições geográcas ali efetuadas e
aos arquivos do Departamento de Agricultura. Um trabalho importante neste momento
será o projeto executado em meados dos anos 1960 pelos pesquisadores do U.S. Geological
Survey Desert Laboratory. O projeto, denominado Changing Mile, seria retomado três décadas
depois no intuito de analisar a vegetação do Arizona. Outro trabalho notável foi o projeto
Rephotographic Survey, conduzido em meados dos anos setenta. Como o próprio título
indicava, tratava-se de obter registros atualizados de paisagens iconografadas no passado
27
(no caso, centenas de sítios fotografados cem anos antes). A transformação paisagística
compreendida por aquele lapso temporal – anos1870/anos1970 – estabeleceu, pois,
o projeto que denominaram, apropriadamente, Second View. Uma “terceira visão”,
inclusive, seria executada duas décadas à frente; ou seja, uma nova repetição de centenas
de registros, agora respectiva à transição 1977/1997.
Seguindo mais ou menos este modelo, vários cientistas prosseguiriam os
feitos em fotograa repetida até o presente. Estudos ecológicos, geomorfológicos,
agrícolas. A América, em especial, produziu inúmeros trabalhos – o que logo viabilizou
a composição de obras que inventariaram, elas próprias, as pesquisas que, preocupadas
com as transformações no uso da terra, se valeram (se valem) do instrumento da
fotograa repetida. Trabalhos claramente identicados com a linha historical landscape8, em
que os aspectos biofísicos (da vegetação, dos solos) constavam associados aos sócio-econômicos (práticas
agropastoris), no to de documentar as landscape changes; tanto quanto eventuais subusos.
Com respeito à criação de “observatórios fotográcos”, na Europa ela legitimou-
se pelo interesse em acompanhar transformações ocorrentes em dadas paisagens (sítios
rurais, zonas urbanas e, muito frequentemente, parques naturais). Na França em particular,
uma gestão mais prossional destes observatórios tardará um pouco. Será apenas a
partir de meados dos anos 1980, com uma primeira tentativa encabeçada pelo DATAR
(Delegação para a Gestão do Território e a Ação Regional, criada em 1963) e a chamada
Mission Photographique. No entanto, bem distintamente dos projetos norte-americanos,
a ótica do primeiro observatório francês foi essencialmente artística; curiosamente,
não tão orientada para o apoio técnico a ações práticas ou investigações cientícas
em Ecologia da Paisagem. Só em 1991, com a criação do Observatoire Photographique du
Paysage, chancelada pelo Ministério do Meio Ambiente, é que os prossionais franceses
envolvidos produzirão as séries repetidas com o (mais pragmático) objetivo de favorecer
aos interessados a possibilidade de analisar fatores de transformação – e, em muitos
casos, documentando medidas e ações reparadoras ou atenuantes. No ano de 2008, já se
podiam contar quase duas dezenas de observatórios fotográcos.
Estes observatórios compreenderão, aliás, um aspecto de extensão muito
pertinente. Pois que o critério primeiro será o de “revelar a paisagem” tal como ela é
percebida pela população local; população que compõe também o conjunto de atores
8 Para ilustrar o espectro de fenômenos e de paisagens explorado cientíco-imageticamente:
extensão das coberturas orestais, expansão de determinadas formas de vegetação, dinâmicas erosivas em
setores cultivados ... processos estes identicados/investigados em regiões africanas, americanas e asiáticas
(Madagascar, Colorado, Honduras, Nepal, etc.).
28
territoriais9. Assim, pelo menos no contexto de países desenvolvidos, a produção de
imagens seguida de crítica tem podido fazer emergir o cruzamento de interpretações e
preferências ... e, com isso, a concepção participativa de projetos e ações.
Mais uma vez, é a fotograa a serviço do espírito cientíco. Mas, agora, este
espírito estando a serviço de políticas democráticas.
REFINO DE PROCEDIMENTOS E DILEMAS
Mais além das melhorias técnicas (ganhos em rapidez de uso e facilidade de
transporte) – melhorias que, por volta dos anos 1860, ajudaram a vulgarizar o uso da
fotograa (antes reservado a prossionais) –, um aspecto muito importante diz respeito
aos procedimentos metodológicos que foram utilizados. A princípio pobres (e hoje
diríamos “inadequados”) para ensejar análises mais conáveis sobre a história do meio
ambiente, eles precisaram prever certos cuidados. À espera das sosticações, de todo
modo, e a juízo de seus utilizadores, cumpriram uma signicativa função circunstancial.
As fotograas oblíquas, por exemplo, foram largamente empregadas a m de quanticar
dinâmicas e extensões. Puderam, por isso, atestar a diminuição ou estabilidade dos
tipos vegetacionais investigados. E destes registros fotográcos derivariam produtos
cartográcos, possibilitando reconstituições da vegetação e respectivas formas de
ocupação econômica do solo. Por outro lado, esta démarche quantitativa compreendia (e
compreende) certo risco de fazer iludir, perdendo, pois pertinência numa interpretação
mais dedigna da evolução propriamente das paisagens. É que o fato de se tratar da
representação tão somente de uma porção restrita do território, setores outros restavam
ocultos, e, além disso, podia ocorrer também que fenômenos vastos aparecessem
“partidos” na imagem.
UM PARÊNTESE: A COR E OS ENGANOS
Tão logo se viabilizaram as emulsões pancromáticas, a cor também jogaria um
papel importante no exercício interpretativo do fotogeógrafo. O padrão P&B pregava a
peça dos contrastes exagerados, levando o intérprete a conar demais na diferenciação
paisagística – coisa possivelmente não vericada de fato pelo autor do registro ou
9 Casos europeus de observatórios com projetos similares: Visual Monitoring of Finnish Landscapes
(Finlândia), Hidden Glasgow (Escócia) e Recollecting Landscapes (Bélgica).
29
pela testemunha ocular. Paisagens vegetacionais e rurais estiveram particularmente
comprometidas no contexto P&B; as primeiras, em virtude da diculdade de discernir
os estados fenológicos (folhagens não muito bem divisadas, por exemplo); as segundas,
devido a uma complicada diferenciação entre o que era cultivo e o que era formação
vegetal. Mas não só isso. Por algum tempo o intérprete teria notável empecilho para
precisar os contornos do gênero de vida rural (nas casas de campo, por exemplo, a
evolução dos estilos de construção ... do detalhe do telhado ao da cor das fachadas).
É claro que análises comparativas eram feitas, ainda assim. Não estavam evidentes –
como hoje facilmente nos ocorre sentenciar – as precariedades. Logo, a comparação
de situações, mal ou bem, era executada. O que nos faz pensar que o bom intérprete
(o intérprete pertinaz) sempre dará um jeito de comparar as situações. Isto ca claro
quando, entre os anos 1920 e 1940, por força da banalização dos suportes técnicos, a
qualidade dos produtos teria diminuído sensivelmente. (Ironicamente, é como se o valor
demonstrativo da fotograa tivesse sido um pouco perdido, se comparado aos feitos
do século anterior – e por mais que num contexto bem menos pródigo tecnicamente.).
Por outro lado, é intrigante pensar que estava na dependência do progresso técnico uma
mais dedigna percepção (ao menos a posteriori) das organizações sociais da natureza.
E por essa razão seria realmente ilusória a impressão de que, para efeito de uma melhor
comparação, deveríamos revelar também em P&B panoramas repetidos hoje a partir de
clichês antigos. Se o aspecto visual sempre foi capital na percepção da paisagem, e nós a
enxergamos em cores, não há mesmo porque minguar ainda mais um recurso que, por
conceito, já prevê um inerente obstáculo à restituição perfeita10.
Outro detalhe não tão prontamente percebido pelo fotogeógrafo diz respeito
ao jogo de ocultação/revelação. Favorecido pela sazonalidade e pela meteorologia, o
câmbio de panoramas anal não facilitava tanto uma precisa identicação de elementos,
se a fenologia ora parecia “uniformizar” a paisagem (num contexto estival, verdejante),
ora os trazia à tona, em outonos e invernos.
E quanto ao amparo numérico das deduções? Basear-se em uma fotograa
apenas (ou num modesto número delas) sempre embutiu problemas potenciais. Por
exemplo, o de ignorarmos variações no mosaico. Logo, só a comparação nos autoriza
interpretações e generalizações. Mesmo porque elementos contraditórios ao todo
10 A ver com essa questão, poderíamos fazer uma experiência cujo resultado, provavelmente, seria
bastante curioso: apresentando a uma pessoa duas fotograa em P&B que registram o mesmo enquadramento
paisagístico, porém com panoramas distintos (digamos, numa das fotos, um muito evidente sinal de erosão;
na outra, a mesma encosta, todavia preservada), qual dos dois registros ela consideraria como o mais antigo?
30
paisagístico podem ocorrer a pouca distância; daí, então, a importância em, às vezes,
deslocar um pouco o foco. Procedimentos mais detidos basearam-se em múltiplos
registros fotográcos; o máximo possível. E não apenas enquadrando uma só escala, mas
explorando detalhes componentes/inscritos do/no cenário panorâmico. Ou seja, uma
articulação de diferentes escalas de espaço e não apenas a de tempo. O grande valor desta
medida, percebeu-se, residia obviamente na chance aberta ao cruzamento de ângulos
e mergulhos de visão; cruzamento que ajudava a decifração de uma gama mais rica de
transformações: entre o muito evidente e o quase imperceptível. Do mesmo modo, e não
menos, o trabalho com escalas de tempo pôde revelar ao fotogeógrafo tudo aquilo que
parecia portar “permanência”. O efeito disso tendeu a ser a captura de elementos mais
profundos, de ordem qualitativa. “Mais do que uma ferramenta quantitativa, a foto deve
ser considerada como um instrumento de apreensão do sensível” (CARRÉ; MÉTAILIÉ,
2008, p. 127). A fotograa, neste sentido, passava a ser vista como uma possibilidade de
“entrada”. De descoberta do “interior”; daquilo que está “dentro” ... e que, possivelmente,
até possa estar sendo ocultado por algum efeito de máscara – do relevo, da vegetação. Os
vestígios, os traços podiam ter, portanto, muito a dizer ao intérprete da fotograa sobre
uma paisagem indiciária. Também por isso, nenhuma fotograa deveria ser descartada a
priori. A possibilidade de utilidades secundárias, pelo menos, justicava sua preservação.
Mas se a técnica foi se apresentando razoavelmente satisfatória para as análises
naturalistas, ela por outro lado ainda restava limitada quando se desejava apreender a
paisagem mais globalmente. A leitura integral das transformações paisagísticas é uma
histórica ambição do geógrafo; e, sendo assim, veio a ser o desao colocado. Isto é, o
prossional foi convidado a não se contentar com a (mera) “constatação” ... registrada
numa dada cena e num dado tempo. A inter-relação das séries fotográcas com outros
documentos pareceu uma saída. Relatos de viajantes, monograas produzidas ao estilo
clássico, fotograas aéreas, enquetes locais sobre a memória do passado ... Tudo a m
de chegar também a compreender a evolução “imaterial” das paisagens. Um acesso aos
universos perceptivo e representacional.
OUTRO PARÊNTESE: O ANALÍTICO E O ESTÉTICO
Não é tão fácil quanto possa parecer, denir até que ponto os fotogeógrafos
produziram seus registros com o estrito desígnio de viabilizar o estudo analítico da
paisagem. Isto é, não podemos ter certeza de que, imbuídos de uma causa essencialmente
31
cientíca, não zeram também o que poderíamos chamar aqui, sem pudor, de simples
(sic) “fotograas de paisagem”. Quer dizer, a “foto de autor”, com a esperada queda
para o artístico, era sempre uma opção aberta ao operador do registro – por conceito,
um sujeito livre. Ademais, é provável que em nem todas as situações os pioneiros
tenham sabido optar, para efeito de ilustração dos estudos, pelos critérios da riqueza em
informação ou da qualidade técnica. Por conseguinte, a documentação imagética das terras
de labor (e suas respectivas destinações – se para o centeio, a uva) e das infraestruturas
associadas à otimização produtiva (cicatrizes morfológicas de antigos canais de irrigação
e drenagem), se era bem-sucedida em apontar os sinais da tradição e da mudança, isso
não queria dizer que havia seguido protocolos, assim como também não comprovava
que os havia subvertido em prol da arte. O sítio das habitações, os estilos das mesmas (se
casas de operário, se casas do engenheiro-patrão), a pastagem incidindo após período de
crise agrícola (e a coincidência disto com anos de guerra), os ramos locais de uma rede
viária, um tecido urbano provando estar ganhando densidade, os sinais da eletricação, a
visualização de elementos diversicadores (novas construções, zonas demarcadas para o
turismo e o lazer), sinais de uma política de restauração (materializações de uma ideologia
patrimonial) ... enm, um sem-número de fotograas que teriam resultado ou não –
nunca se poderia saber – de uma “fraqueza” de seu autor.
BASE DE UM DISCURSO POLÍTICO
Bastante útil à interpretação de episódios de impacto ambiental, a fotograa
ensejou também debates conituosos. Constatados, por exemplo, os processos erosivos,
foi natural o questionamento sobre a “real signicância” da degradação. Tratava-se de
fenômeno excepcional? Ou antes uma manifestação local de (na verdade) dinâmicas
gerais, próprias da grande área circunscritiva? E mais ... eram naturais ou antrópicas as
causas?
Já no nal do século dezenove surgiria na Europa o discurso sobre a “degradação
nas montanhas”, fatalmente responsabilizando (e, com isso, estigmatizando) as sociedades
rurais. Mas, é claro, este discurso seria logo retrucado: “sociedades tradicionais”
(detentoras que parecem ser, de uma inteligência ambiental, herdada de experiências
seculares) seriam, por excelência, as garantidoras de uma (ainda) certa harmonia com o
meio ambiente.
Via-se, então, a fotograa na linha de tiro de uma velha questão geográca: a
32
magnitude escalar dos fenômenos. Porque se, de um lado, ela podia levar a crer que a
gênese da transguração paisagística residia no modo de exploração das gentes locais, de
outro, ela não tinha como realmente atestar uma “incoerência” de seus gêneros de vida.
Dando-se num âmbito denido, a ocupação registrada poderia deixar a salvo o conjunto
mais amplo do território. As grandes catástrofes poderiam – uma vez desviada para
outros cantos a lente da câmera – dever-se a, por exemplo, desmatamentos que serviam à
indústria ou ao abastecimento urbano. E “absolviam-se” as atividades rústicas. Aqui, por
sinal, conseguimos enxergar uma das perspectivas mais interessantes da, digamos assim,
“epistemologia da fotograa”: a disparidade entre o documento e o discurso. Posto que
naquilo em que um intérprete pode enxergar caos generalizado, outro pode ver formas
espacialmente restritas. Ou seja, a fotograa gera provas ... mas não menos contraprovas!
De qualquer maneira, à base de um cuidado particular com a qualidade estética,
o recurso às fotograas de reconhecimento ajudava muito a vender a ideia de que
“graças a uma louvável intervenção remediadora”, legados viciosos (“erros” de uma
economia primária imprudente?) puderam ser substituídos por ações progressistas
“mais racionais” – que hoje chamaríamos “sustentáveis”, provavelmente. Por mais que
até se pudesse, eventualmente, provar uma situação de “estabilidade paisagística” (sic),
a partir de documentos pelos quais, vindo a provar ter havido diminuição da pressão
econômica (diminuição da atividade pastoril, por exemplo), ainda assim a paisagem teria
permanecido pouco diferente do que já fora num século anterior. Por sinal, pesquisas
contemporâneas em História do Meio Ambiente atestam isso.
Enm. A fotograa pôde legitimar múltiplos discursos. Múltiplos. Portanto, inclusive
contraditórios.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O geógrafo deveria estabelecer para o uso da fotograa um compromisso mais
desaador. As imagens que muitos fotogeógrafos capturaram podem ainda hoje soar
“graciosas”, como deve ter se dado àqueles que as tenham visto no passado. O desao
seria o de emprega-la com vistas a uma análise crítica. Pôr a fotograa no mesmo nível
de importância/signicância de outros materiais e documentos históricos. Até mesmo
porque ela possui um predicado difícil de contestar. Embora devamos relativizar o
signicado da “objetividade” em ciência, o fato é que a fotograa é um documento direto
que não reete, em si, uma interpretação forçosa. E isto ao contrário de outras espécies
33
de documento. Quer dizer, com respeito à fotograa poderemos sempre empreender
estudos segundo nosso próprio ponto de vista. Como nos diz Métailié (1997, p. 95), “não
devemos utilizar a fotograa como se fosse um documento objetivo que, uma vez lido,
seria imediatamente compreendido”. A experiência mostra que toda imagem tem de ser
interpretada.
Noutra perspectiva, mesmo passados já cento e cinquenta anos de contínuos
registros executados por fotogeógrafos, o acúmulo possivelmente ainda compreenda
inúmeros “vãos” a serem preenchidos. Isso, além de um sem-número de questões
particulares, emergindo incessantemente, e passíveis de documentação fotográca. As
evoluções muito rápidas, tanto quanto as dinâmicas contrastantes.
REFERÊNCIAS
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Nicholas; FRENCH, Shaun; VALENTINE, Gill (Ed.). Key methods in geography. 2.
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3. ed. Paris: CTHS, 2008, 255p.
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Metodología de un observatorio fotográco para el análisis de las dinámicas paisajísticas:
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43, p. 123-149, 2008.
DENEUX, Jean-François. Histoire de la pensée géographique. Paris: Belin, 2006. 255p.
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ROUILLÉ, André. La photographie: entre document et art contemporain. Paris:
Gallimard, 2005. 705p. (coll. Folio Essais, n. 450).
34
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sites.maxwell.syr.edu/clag/yearbook2000/workshadley.pdf>.
35
ANEXO: SEÇÃO “PERSONAGENS”: DOIS FOTOGEÓGRAFOS NOS PIRENEUS
Toulouse não é apenas a cidade natal de nosso célebre Jean Brunhes. Situada ali
na Região dos Médios Pireneus, sudoeste da França, Toulouse, além de sediar a atuação
prossional de outros de nossos ilustres geógrafos (Daniel Faucher, Bernard Kayser,
Georges Bertrand), seria ainda berço de notáveis feitos em fotograa. Uma fotograa
pensada e empregada com desígnios obstinadamente cientícos.
Reservamos este capítulo para mencionar a atuação de dois personagens que, em
contextos distintos, decidiram sagrar suas carreiras ao emprego cientíco da fotograa.
E, em ambos os casos, notadamente num âmbito de ciência da paisagem. São, por isso,
dois legítimos fotogeógrafos.
1. Eugène Trutat (1840-1910)
Pode-se fazer arte em fotograa? A princípio sim. Mas convém não tomar
uma coisa por outra; dizer “faremos arte empregando tal procedimento, nos
valendo de tais cores...”. Não, você só fará arte se for artista. A arte se sente.
Há várias técnicas, algumas mais adequadas que outras, mas elas são apenas
meios. A base da arte está além.
(E. T., 1909)
(Bibliothèque Numérique de Toulouse)
Eugène Trutat, lho de pai militar, se instalaria
com a família na cidade de Toulouse ainda criança.
Descobriria e se interessaria pela fotograa durante
o estudo secundário – quando, durante um curso
de Geologia, caria maravilhado com a projeção de
transparências. Logo tomaria lições rudimentares
com um colega de seu pai, fotógrafo amador; e, mais
adiante, contaria com os conselhos abalizados de
Aimé Civiale.
A inuência de Civiale teve efeitos. O mais decisivo foi o adquirido desejo de
fazer a fotograa servir as geociências. Com dezesseis anos partiria para Paris a m de
realizar estudos junto à Faculdade de Medicina e ao Museu de História Natural – estudos
que, no entanto, não concluiria.
36
Seus primeiros ensaios em fotograa são empreendidos entre 1857 e 1858 –
desde aí as Ciências Naturais congurando seu domínio de predileção. E por decorrência
de um consequente alinhamento com a atitude positiva, a fotograa para ele possuía
um sentido de instrumento. Era uma preciosa auxiliar. Aquela com a qual o homem de
ciência tentará a mais exata possível reprodução da natureza. E já no ano de 1862 seria
agraciado pela Academia de Ciências de Toulouse por suas fotos sobre o eclipse solar. No
ano seguinte, seria admitido para integrar a equipe de fotógrafos da Sociedade Geológica
da França, e em 1865 começaria a atuar prossionalmente junto ao Museu de História
Natural (do qual, aliás, viria a ser Diretor, durante a década de 1890). Membro-fundador
da Sociedade de História Natural de Toulouse (1866) e membro eleito da Sociedade
Arqueológica da França ... algumas das atividades que comprovavam o engajamento do
personagem no, por assim dizer, “quadrante cientíco” da fotograa.
Os anos 1870 são muito intensos. É quando, por exemplo, seria encarregado pelo
Ministro da Educação de uma missão cientíca: explorar fotogracamente os sítios pré-
históricos da Região dos Pireneus. Ocasião em que documentaria materiais arqueológicos
e paleontológicos datados do Paleolítico Superior (material que seria integrado ao Museu
de Paris). É quando também ascenderá algumas geleiras, por volta de 1872/1873.
Tendo sido premiado num concurso organizado pela Academia de Ciências
francesa, em 1878, teria algumas de suas fotos tomadas de empréstimo por ninguém
menos que Élisée Reclus (1830-1905); fotos com as quais o eminente geógrafo ilustrou
sua obra “História de uma Montanha” (Histoire d’une Montagne, 1880).
Quanto aos anos 1880, não lhe são menos excitantes. O Ministério da Educação volta a
lhe conar novos encargos; inclusive em terra estrangeira: Argélia, Espanha, Itália. Em
1882 fundaria a Sociedade de Geograa de Toulouse.
Consagrando seus feitos de então, em 1891 receberia das mãos do Presidente
da República, a Medalha da Legião de Honra. Nome tornado conhecido nacionalmente,
estreitaria relações com outros personagens celebrizados, tais como os irmãos Lumière,
dos quais se aproximaria naturalmente, por causa de seu interesse e feitos no campo da
fotograa animada.
Sua notabilidade, facilitadora de um convívio junto aos círculos aristocráticos
e burgueses da região, também favoreceu a contínua obtenção de ricos exemplares
(mineralógicos, botânicos, zoológicos). Amostras que solicitava a m de incorpora-las
ao acervo do museu que dirigiria, dedicadamente, por dez anos. (Grande parte de tais
exemplares foram adquiridos quando do retorno de exploradores e militares, conhecidos
37
seus, enviados às mais diversas partes da Ásia e África.).
No ano de 1898 organizaria o primeiro curso público de fotograa na cidade de
Toulouse, com um programa que previa desde fundamentos mais básicos (luz, reações
químicas) até questões mais práticas e técnicas (estudos de aplicação, obtenção de
ampliações, etc.).
Por quarenta anos praticante de uma fotograa rigorosa nos métodos, produziu
abundante arquivo de registros regionais – tanto sobre a cultura, quanto sobre a natureza.
Zonas rurais, prédios históricos, trilhas, cavernas, montanhas, geleiras, industrialização
nascente, catástrofes urbanas, impactos da exploração de recursos, tipos humanos. Todo
um acerco iconográco de que se serviriam décadas depois, etnógrafos, historiadores,
arqueólogos, geógrafos ... a m de compararem formas naturais, cenas de vida cotidiana
e mesmo gentes (distintas física e socialmente). Mas clichês também úteis para a
identicação de ocupações que o tempo fez desaparecerem; bem como benécos à
intenção de restituir, por esta via iconográco-cientíca, a evolução das paisagens, a
história ambiental.
No campo bibliográco, publicou manuais de estudo de fotograa aplicada: em
Arqueologia (1879) e em História Natural (1884).
O enquadramento que defendeu (preferencialmente cientíco), anexava à
fotograa um signicado preciso: para Trutat não se tratava de com ela produzir arte, ou
dela se servir por puro lazer. Porque o cientista deveria buscar sempre um registro com
a melhor qualidade possível ... e a ponto de (se atingido o ideal) dispensar, em estudos
posteriores, o objeto-foco original! A objetividade da fotograa jamais levaria a engano.
Ilustraram este seu misto de rigor e tenacidade, suas fotos de conteúdo antropológico
– com caprichos métricos, tamanha a precisão investida no posicionamento da
câmera, ou na consideração do quão acentuado podia ser o contraste com o fundo.
Rigorismo que, mais além dos ensaios etnográcos, aplicaria com não menos anco
no registro de crânios e fósseis em estúdio, nas fotos de porções anatômicas de insetos
sobre placa, ou no registro de espécies vegetais in situ. Importava, antes de tudo, obter
“documentos cientícos”. Mesmo que sacricando qualquer mérito artístico, mesmo
que desinteressando o olhar curioso, típico do turista.
Para Trutat não era menos importante o ordinário ou o demasiado trivial. Um
vendedor ambulante de ervas de chá, uma senhora com bócio, um habitante do Ceilão,
um montanhês preparando o almoço a céu aberto. Assim é que, por outro aspecto,
diferenciando-se dos foto-antropólogos, não vai se limitar ao tradicional par de tomadas
38
“face & perl”. Trutat, com respeito ao registro de tipos humanos, quase sempre faria
um “terceiro registro”. Por exemplo, dando realce aos trajes da pessoa em pose, ou
mesmo seu muito particular corte de cabelo – fato que atesta: em dadas circunstâncias,
a fotograa de Trutat podia transcender o corriqueiro propósito de catalogar “tipos”.
Podia, em bastantes ocasiões, interessar-se pela informação que aquele único indivíduo
fornecia.
E o segundo momento da fotograa (seu papel didático) instituía, ademais, um
valor complementar: a pedagogia visual. Quer dizer, nas vezes de um orador em ciências,
a fotograa tinha sim de “falar aos olhos”. Documentando a mutação das cidades, os
canteiros de obra, os trabalhos de demolição, a nova arquitetura dos imóveis. (Mas nessa
pedagogia visual do novo urbano, convém deixar claro, não se omitia também o restauro
de heranças ... por exemplo, as medievais – o que já demonstrava, à época, a consciência
patrimonial como um contrapeso da modernidade.).
Um trecho local da malha hidrográca, uma olaria em plena atividade, uma
carroça sendo carregada com achas de madeira, um monumento testemunha de eras
romanas, uma macroforma esculpida pela erosão ... aquilo que os de sua época poderiam
ter achado banal, a Trutat (a exemplo do que parece mesmo se dar àqueles cuja intuição
antevê coisas) pode ter gurado como prenhe de signo. Ao menos potencial. Daí a
legitimidade de sua captura fotográca. Objetos que o fotógrafo, por precaução, registra;
e que o olhar-intérprete, de repente, só estará habilitado a explanar muitos anos à frente.
(No contexto do registro, um olho contemporâneo vê – e a máquina captura – simples
blocos erraticamente espalhados; décadas depois, já quem sabe subsidiado por teoria
recente, outro olho o que vê é um claro sinal de certa dinâmica geomorfológica.).
Aliás, ainda sobre isso cabe destacar o importante inventário de Trutat a
propósito especialmente do que apenas hoje chamaríamos “riscos naturais”. É que os
graves episódios de inundação, que assolaram a França na segunda metade do século
dezenove, tiveram seu olhar por testemunha. E também lhe chamou a atenção as
sequelas ambientais dos “excessos” da atividade agropastoril – sinalização precoce da
necessidade do reorestamento. Clichês que denunciam as formas-efeitos, na paisagem,
de chuvas torrenciais (que resultaram em deslizamentos, destruição de prédios e pontes)
e de transumâncias (que redundaram no estigma das ravinas). No entanto, com respeito
ao tema, o registro não vai restar estritamente no âmbito do drama. Um ar de otimismo
(por exemplo, ao demonstrar a vida cotidiana sendo gradativamente retomada) estará
também pairando nas fotos.
39
Se Trutat não pretendeu suscitar enleio (em vez de pura e exata informação)
com suas fotos, isso até podemos aceitar ... já que, aliás, não há nem como omitir a
defesa que ele próprio fez (em textos seus) de uma fotograa objetiva. Por outro lado,
se elas, ainda assim, nos suscitam a experiência do “encantamento” (porque nos fazem
revelações ou ao menos as insinuam), isso não é prova de que nem mesmo um produto
cientíco está imune dos signos estéticos?
Texto concebido no primeiro semestre de 2012.
Fontes consultadas
BIBLIOTHÈQUE DE TOULOUSE. Bibliothèque numérique. Disponível em: <http://
numerique.bibliotheque.toulouse.fr>.
BIBLIOTHÈQUE NATIONALE DE FRANCE. Banque d’images. Disponível em:
<http://images.bnf.fr>.
_____. Gallica: bibliothèque numérique. Disponível em: <http://gallica.bnf.fr>.
BORDE, François; LABAILS, Marie-Dominique. (Dir.). Eugène Trutat: savant et
photographe. Toulouse: EMT, 2011. 237p.
2. Jean-Paul Métailié (uma entrevista em gabinete)
Envolvido com estudos de História Ambiental desde os anos 1980, J.-P. Métailié
atua como Pesquisador CNRS11 junto ao Laboratório “Geograa do Meio Ambiente”,
o GEODE (GÉOgraphie De l’Environnement), da Universidade de Toulouse II. Integra
também o Instituto Toulousano da Paisagem, criado em 1995.
Métailié, que é geógrafo de formação, teve um inicial interesse pelo desenvolvimento
histórico da metalurgia – atividade que, por ter exigido das coletividades de outrora a
exploração da oresta (como fonte do carvão de madeira), lhe apontou certos padrões
de ocupação econômica da paisagem. Um objeto de investigação atraente, e que há muito
seduz o olhar geográco.
No GEODE desenvolve até hoje estudos para os quais emprega o
procedimento da fotograa repetida, como suporte técnico ao método regressivo e à
análise multiescalar. Em outras palavras, emprega-o associando à reconstituição, etapa
por etapa, de organizações espaciais pretéritas, testemunhas de uma relação conjuntural
sociedade-ambiente. Seu diferencial está, pois, neste anseio de que, pelo suporte, os
11 O “Conselho Nacional de Pesquisa Cientíca” (Conseil National de Recherche Scientique) é um
importante órgão de fomento à pesquisa na França. Criado em 1939, é ele quem dá chancela à operação
ocial de Laboratórios e das chamadas “Unidades Mistas de Pesquisa” (UMR’s, Unité Mixte de Recherche).
40
estudos possam melhor revelar a dinâmica da paisagem, com seus momentos de apogeu
e sucessões respectivas. (No caso de Métailié trata-se de um exame da evolução da
paisagem pirenaica, vericando o caráter transitivo dos ambientes de pecuária e a história
dos riscos naturais locais.).
Métailié tem, por conseguinte, uma expressiva produção textual concernente
ao emprego do instrumento fotográco. Produção em que esclarece tanto o percurso
histórico do uso, quanto os aspectos técnicos a ver com uma prática eciente da fotograa
em campo12.
Transcreveremos aqui uma entrevista realizada com este pesquisador na manhã
do dia 09 de Fevereiro de 2012, em seu bureau, na sede do GÉODE (Maison de la Recherche,
Universidade de Toulouse II).
Pode-se dizer que, apesar do uso da fotograa ser antigo na Geograa, ela não foi utilizada
em toda a sua potencialidade no período clássico? Quero dizer ... ela, no passado,
teria sido “somente” um instrumento acessório; e, vista assim, aqueles geógrafos não
souberam explorar toda a sua riqueza potencial ...
Métailié: Meu sentimento (minha impressão, em todo caso) é que os fundadores da Geograa Francesa utilizaram-
na muito desde o início.
Jean Brunhes
, por exemplo, que foi o animador cientíco da famosa operação “Arquivos do
Planeta”, que constituiu uma imensa documentação fotográca. Na sua obra La Géographie Humaine13 conta
com todo um volume de pranchas fotográcas, extraídas de sua própria coleção, e que ele produziu durante o projeto
dos “Arquivos”. São, portanto, fotos do mundo inteiro! Um acervo extraordinário. Mas veja, não se tratava de um
caso único. Na verdade, toda vez que se tinha uma Tese de Geograa de cunho “regional”, seu autor colocava ali
fotograas. É uma coisa vista, então, como importante pelos autores destas obras monográcas, entre, digamos, os
anos 1920 e 1950. Eles nos deixarão uma grande quantidade de imagens. Mas havia uma dependência para com
o assunto do trabalho. Aqueles que, por exemplo, zeram uma geograa humana:
De Martonne
é um caso. Ele
era, a princípio, geomorfólogo. No entanto, apesar desta liação, fez um importante trabalho sobre a Valáquia,
região da Romênia14, o qual é, podemos dizer, um trabalho de geograa humana. E ali, a coleção que ele expôs
12 Um mostruário de suas publicações: Photographie et histoire du paysage: un exemple dans les
pyrénées luchonnaises (Revue Géographique des Pyrénées et du Sud-Ouest, v. 57, n. 2, p. 179-208, 1986); Les sources
photographiques et l’histoire du paysage dans les pyrénées: l’exemple des pâturages pyrénéens (Image et
Histoire, v. 9, n. 10, p. 109-117, 1987); Une vision de l’aménagement des montagnes au XIXème siècle: les
photographies de la RTM (Revue Géographique des Pyrénées et du Sud-Ouest, v. 59, n. 1, p. 35-52, 1988); Du risque
visible au risque invisible: les mutations du paysage de la catastrophe en vallée de Barèges (In: Ministère de
l’Environnement. La “vallée aux catastrophes”: déterminants physiques et représentations sociales des risques
naturels en vallée de Barèges, canton de Luz, Hautes-Pyrénées. Paris: Ministère de l’Environnement, 1996.
p. 36-140); Les paysages d’Ariège d’un siècle à l’autre: inventaire des sources photographiques et pré-sélection
de sites d’observation diachronique pour un observatoire photographique des dynamiques paysagères
(Toulouse: GEODE, 2001. 98p.).
13 BRUNHES, J. La géographie humaine: essai de classication positive: principes et exemples Paris: F.
Alcan, 1910. 844p.
14 Tese defendida por E. de Martonne (1873-1955) em 1902, sob o título La Valachie: essai de
monographie géographique.
41
sobre os camponeses, sobre os vilarejos, é absolutamente extraordinária. E tratava-se do olho de um geógrafo
humano, que procurava observar as comunidades em todos os detalhes de sua atividade. Um outro personagem
que produziu muitos clichês, foi
Deffontaines15
, que fez sua Tese, nos anos trinta, sobre a região do Garonne.
Era uma Tese de geograa rural, e fez ali fotos muito atentas às práticas na paisagem rural. Bem, e há também
geomorfólogos que zeram muitas fotograas, e que, além disso, transcreveram suas fotos sob a forma de blocos-
diagramas. Fizeram fotos oblíquas (numa espécie de “foto aérea”). E estes blocos-diagramas resultavam como
uma mistura de mapa e fotograa, já que nem sempre era fácil interpretar as formas a partir da foto apenas. Os
desenhos foram importantíssimos nos trabalhos de geomorfologia. No próprio “Tratado de Geograa Física”,
De
Martonne
fez blocos-diagramas extraordinários. Desenhos muito, muito bons. E há também os geógrafos históricos,
antes mesmo do advento da Escola de Geograa Francesa, como
Franz Schrader16,
um cartógrafo acionado pelos
Pireneus. Há, inclusive, os famosos “Atlas Schrader”, que aparecerão no nal do século dezenove e início do vinte,
e que serão difundidos nas escolas. Ele produziu mapas de várias zonas dos Pireneus, que ainda não haviam sido
cartografadas, tanto na Espanha, quanto na França. Bom alpinista, subia topos de montanha carregando todo
o aparato fotográco. E além de tudo era também pintor. Na sua prática de campo, fazia primeiro desenhos e
aquarelas. Era um grande pintor de montanha; fez coisas magnícas! Depois então fotografava as paisagens. Foi,
verdadeiramente, um geógrafo da imagem. E a imagem era totalmente integrada à sua prática cientíca, enquanto
instrumento para a exploração. No caso da montanha, o desenho, a pintura, a fotograa, cumpriam a função de
uma “tomada de vista” exploratória. Foi de fato um “foto-geógrafo”; embora tenha sido sobretudo um pintor. E
ele trabalhou a imagem mesmo antes de
Vidal
e
Brunhes
; já a partir dos anos 1860. Bem, e há também alguém
que, muito embora a época oferecesse ainda limitações técnicas, empregou um pouco a fotograa. É
Reclus
. Na sua
“Geograa Universal”17 ele utiliza algum documento fotográco; só que, na maior parte, são gravadas. E é preciso
que nos demos conta que nesta época fazer fotograa em montanha era muito difícil. Porque as placas mais estáveis
foi algo que só se pôde levar àquele ambiente por volta de 1878. Ou seja, até esta data, tinha-se de “fabricar a foto”
no lugar. Os fotógrafos transportavam o material: placas de vidro, produtos químicos. Precisavam preparar tudo,
no campo, numa tenda escura. Preparavam as placas; em seguida, tiravam a foto; e imediatamente a tratavam,
senão os produtos químicos se alteravam. Eles não podiam simplesmente deixar pra fazer isso mais tarde, quando
regressassem ao vilarejo próximo. Logo, era uma operação bem penosa.
Eugène Trutat
, por exemplo, só irá
conseguir subir o cume de uma geleira em 1872. E também teve de contar com uma equipe que lhe transportasse
todo o material até lá em cima. Isso explica, obviamente, porque, nos anos 1860, foi mais simples para
Schrader
pintar aquarelas [risos].
Há uma diferença, penso eu, entre o “foto-geógrafo” e o geógrafo que simplesmente
utiliza a fotograa numa eventualidade. Na sua opinião, como poderíamos caracterizar o
“foto-geógrafo” propriamente? É alguém que, à diferença dos demais, possui cuidados
metodológicos?
M: Sim, porque eu diria que todos os geógrafos são fascinados por fotograa! E, em particular, aqueles que
fazem geograa física. Mesmo em épocas em que o emprego lhes custava caro nanceiramente, ou não era tão
operacional (vidro em vez de simples película). Mesmo nessas condições, o geógrafo de campo, ou o naturalista que
se dizia geógrafo (como, por exemplo,
Henri Gaussen
, que foi na verdade um ecólogo e botânico, mas que se dizia
geógrafo) ... todos adoravam fotograa. Nem sempre, é claro, bons fotógrafos [risos], mas, de todo modo, fotógrafos
15 Deffontaines (1894-1978), nome-chave na constituição da Geograa Clássica Brasileira, foi
discípulo de J. Brunhes. Sua Tese, defendida em 1932, chamou-se “Os homens e seus trabalhos, nas regiões
do médio curso do rio Garonne”.
16 F. Schrader (1844-1924), alsaciano de origem, interessou-se por topograa, cartograa e pintura.
Produziu um “Atlas de Geograa Moderna” (1893) e um “Atlas Universal de Geograa” (1923).
17 Em 19 volumes, datando de 1876 a 1894.
42
que deixaram coleções consideráveis.Esse, me parece, seria um traço do “método” vericado na maior parte dos
geógrafos que trabalham com o “meio ambiente”, no sentido amplo.A fotograa, então, é empregada sem parar,
enquanto ilustração; e, em seguida (o que é talvez uma mudança que se produziu na última década), o emprego
mais sistematizado da fotograa, a m de demonstrar a evolução do meio ambiente. É a questão da “fotograa
repetida”. E isso é uma coisa que foi, de algum modo, relançada intensamente pelo lado dos ecólogos e geógrafos
americanos, mas que também, espontaneamente, foi feita aqui na França no mesmo período. Eu mesmo comecei
a trabalhar utilizando este método sem ter conhecimento do que os americanos estavam fazendo naquele mesmo
momento. Só depois de alguns anos, buscando bibliograa sobre o assunto, é que percebi que nos Estados Unidos
aquilo já era amplamente utilizado para a análise da dinâmica da vegetação. Eu não estava consciente disso. Por
outro lado, o que eu já sabia era dos trabalhos dos orestais18 no século dezenove. E acabei me valendo de seus
arquivos para enveredar no estudo e aplicação do Método da Fotograa Repetida.
Eu gostaria de saber um pouco agora do “personagem Métailié”, do pesquisador. Quando foi
exatamente que o senhor começou a se interessar pelo âmbito da História do Meio Ambiente? E,
para sua introdução neste domínio, qual foi a importância das outras disciplinas além da Geograa?
Pois logo se deduz que se trata de um domínio bastante vasto, não é mesmo? O senhor se viu
obrigado a buscar outros pesquisadores, outras teorias? E ainda outra questão: qual foi o papel
desempenhado pela fotograa nos seus estudos de História do Meio Ambiente?
M: Eu diria que tudo começa quando preparei minha Tese sobre a atividade pastoril nos Pireneus. E isso estava
enquadrado num Programa de Pesquisa dirigido por
Georges Bertrand
, e que havia iniciado em 1976. Um
Programa interdisciplinar, que associava também agrônomos, e que esteve centrado no problema da criação de
gado na porção central dos Pireneus. Posso te fornecer fotos disso [risos]. Enm, estudos sobre o estado atual
daquela atividade, naquela região, e sua evolução nos anos 1970; com abordagens agronômicas, socioeconômicas,
biogeográcas. Então
Bertrand
me sugeriu que no Doutorado eu investigasse o problema especialmente relacionado
à atividade estival. Porque nessa época não havia trabalhos sobre isso. Ecólogos haviam feito estudos toecológicos
na mesma zona, mas nenhum deles investigou o “funcionamento” da atividade, e na escala sazonal. Daí, quando
comecei a trabalhar, me dei conta que uma das formas de gestão tradicional da pastagem era a executada por
fogo. Quer dizer, a renovação da fertilização era feita por queimadas, o que era visto como tabu. Fogo só servia
para destruir; não para construir. Mas, de fato, não. No campo pude constatar que se tratava de um “ciclo”.
Indispensável à gestão. Minha Tese tratou disso. E o relativo ineditismo do estudo me favoreceu o ingresso como
pesquisador no Conselho Nacional de Pesquisa Cientíca. Daí, já atuando como prossional do CNRS, pude me
dedicar à investigação de temas pelos quais minha Tese havia passado, mas apenas supercialmente. Sobretudo a
questão da “história” propriamente da atividade pastoril. Porque eu já sabia do papel do fogo periódico, mas restava
descobrir: há quanto tempo? Eu sabia que o fogo havia introduzido um elemento histórico na gestão contemporânea
das pastagens. Fotograas aéreas datadas dos anos 1940 já apontavam que as práticas haviam mudado, em
termos de repartição no espaço. Eu queria entender o passado mais remoto, mas não havia documentos. Sabemos
que trabalhos sobre História das Florestas tendem a ser mais favorecidos neste aspecto. Como a oresta, na história
da França, foi sempre uma aposta econômica, desde há muito tempo existem arquivos (inventários, descrições,
contagens). Encontramos arquivos produzidos por orestais deste o século dezessete! Mas daí quando se queria
investigar o tema pastagem, não havia quase nenhum arquivo de informações. Muito pouca documentação clara. A
maioria dos documentos são meramente alusivos e muito subjetivos. Os anotadores dizem simplesmente “a pastagem
é rica”, ou “está degradada”. Nada de medições, nada de descrições botânicas. Em resumo, foi impossível para mim
18 Na verdade, é um pouco difícil traduzir a palavra “forestier”, empregada por Métailié. A rigor, este
personagem (um “couteiro”), originalmente, guardava a oresta para ns de uma exploração muito especial
(por exemplo, para o abastecimento – em carne e madeira – de reis e dalgos, em épocas passadas). Mais no
presente, o “orestal” designaria aquele funcionário ocialmente encarregado, por governos regionais, de
executar levantamentos e garantir a preservação de parques.
43
descobrir o estado das coisas um século atrás. Bem, e foi em grande parte por ter experimentado essa diculdade
que enveredei no estudo de arquivos fotográcos; os quais, pelo menos, permitiam-me chegar aos anos 1870. Daí,
trabalhando sobre arquivos fotográcos pude obter dados, que eram dados visuais que poderiam ser interpretados e
que permitiam uma análise reconstitutiva da pastagem no século dezenove. Tudo começou aí, mas, decerto, o contato
com estes arquivos desencadearam o interesse por outras temáticas. Sabendo que muitos destes arquivos haviam sido
produzidos por orestais que tinham se ocupado da restauração de terrenos de montanha, tínhamos ali um campo
de entrada no âmbito dos “riscos naturais”: fenômenos de degradação erosiva, ravinamentos, torrencialidades,
desmatamentos, etc. Estes arquivos, como se vê, estavam “orientados”, por assim dizer. Isto é, foram produzidos
justamente para ilustrar o fenômeno. E eu passei a buscar arquivos, digamos, “neutros”. Arquivos de
Trutat
, de
Gaussen
, arquivos de botânicos, antigos cartões postais; enm, uma variada gama de arquivos do tipo fotográco
que me pudessem facilitar uma reconstituição da história geral das paisagens e de certos outros elementos, a partir
dos anos 1870, 1880. Esta foi uma forma que encontrei de investigar a história recente do meio ambiente. Seus
cento e cinquenta últimos anos. E fazendo um cruzamento entre fotos e demais arquivos de dado. Em alguns destes
arquivos encontrávamos descrições em tom catastrosta. “Pastagens degradadas”, “ravinadas”. Mas o que acontece
é que as antigas fotos mostravam o mesmo que hoje (o que indica que o discurso estava deslocado; que a descrição
tinha um quê ideológico). A fotograa, neste sentido, não que fosse relativamente mais objetiva, mas com certeza
mostrava-se mais neutra se comparada ao texto arquivado. E isso me pareceu muito interessante. Só mais tarde,
no nal dos anos 1980, é que passei a me interessar pela, digamos, “longa duração”; ou seja, pela Arqueologia
do Meio Ambiente. Não mais o último século, mas as longínquas Antiguidade Romana e Idade Média. Mais
precisamente, o estudo da evolução da oresta em função do desenvolvimento local da metalurgia, a contar de
muitos séculos atrás. [...] Posso dizer, portanto, que, etapa por etapa, comecei me interessando pela história recente,
contemporânea; e, em seguida, pouco a pouco, fui tentando encontrar os elementos pelos quais pudesse remontar
no tempo, o mais remoto possível. Quanto à história contemporânea, podemos executar as pesquisas com nossa
formação de geógrafos, sem problemas. Basta fazer campo, examinar arquivos. Mas quando se trata de trabalhar
com métodos arqueológicos, paleoecológicos, é preciso que nos associemos a outras disciplinas. Foi isso que z. E
acabou sendo, sem querer, uma maneira de evoluir de maneira interdisciplinar, e criando um perl cientíco híbrido.
Gostaria de lhe colocar uma última questão. Há na literatura muita discussão sobre, por exemplo,
as relações entre o cientista e o artista; e, transplantando a questão para o caso especíco da
fotograa, haveria, digamos, o “fotógrafo artista” e o “artista fotógrafo”. Então eu queria saber
o que pensa sobre a relação entre Geograa e Arte, no que concerne especialmente ao assunto
“fotograa”. Será que devemos dizer que o geógrafo, enquanto cientista, precisa tomar alguns
cuidados para que o “conteúdo” das fotos ...
M: Seja “bonito”? [risos]
Não exatamente isso. Na verdade, não sei como for mular a pergunta ... Mas digamos assim, a
fotograa na ciência geográca pode misturar aspectos estéticos e conteúdo informacional?
M: Sim. Sim, é possível. Mas para mim não é útil. Quando dou cursos de fotograa aos estudantes, eu digo
sempre: é preciso obter uma “boa foto”; tecnicamente, uma “boa foto”. Mas se ela será bela ou não, não é algo
necessariamente útil. Aliás, é até enganador! É preciso fazer uma boa foto, mas a mais neutra possível. Devemos
estar concentrados na construção da informação que a fotograa precisa dar. Pode parecer estranho, mas eu sou
levado a dizer que a beleza introduz uma deformação na imagem. Não precisamos de uma bela foto. Podemos fazê-
la por prazer. Eu gosto muito de tirar fotos bonitas. Mas a foto bonita não é necessariamente aquela que vai dar a
boa informação. Ela, ao contrário, tenderá a atrair o olhar para coisas que não são as mais relevantes. Precisamos
fazer o que chamo de “
foto correta
”. Bem composta em termos de informação contida; mais do que em termos de
qualidade estética. Eu digo aos estudantes produzirem fotos em planos sucessivos, para que seja possível enxergar
algo complexo na informação visual. Se eles fazem uma bonita foto, ela em si não dirá nada. Além do mais, no
44
(Jean-Paul Métailié, Fev. 2012)
ensino procuro falar sobre como extrair informação da imagem; como explorar sua potencialidade. E sabendo
que, por princípio, fotograas não dizem nada. Elas são “mudas”. Mostram imagens, mas somos nós que as
interpretamos. E as interpretamos em função de certas orientações. Consequentemente, a construção de uma boa foto
signica seguir o objetivo precípuo que deniu, de antemão, um tipo de informação crucial. A boa foto é, portanto,
aquela que foi construída para dar esta informação. Senão, teremos belas ilustrações, apenas. E cada um terá uma
leitura distinta sobre elas. Além do quê, em ciência, a fotograa será sempre produzida num objetivo de, no nal,
podermos associa-la a um corpus de informação que vai justamente nos permitir “lê-la”; compreende-la. Uma foto
sozinha, para mim, não faz sentido. Ela terá de ser correlacionada com outras informações (mapas, diagramas,
etc.). [...] A ideia é constituir um conjunto de chas a m de conseguir extrair o máximo de informação e trabalhar
[no âmbito dos “Observatórios de Fotograa] com um “encaixe” de escalas, para mostrar do plano mais
panorâmico até o ponto dos detalhes. E hoje em dia, com a fotograa digital, podemos fazer coisas, em termos de
paisagem, que não fazíamos no passado, quando éramos escravos do enquadramento. Passamos, eu poderia dizer,
à “hiperpaisagem”. Quer dizer, apesar de uma tarefa longa e difícil, podemos hoje construir um dossiê feito à
base de uma tomada inicial panorâmica, seguida da exploração dos múltiplos elementos e aspectos detectáveis na
foto. Cruzando as visões vertical e oblíqua, as diferentes escalas, o campo, etc., etc. [...] Se estivermos interessados
no estudo de um objeto preciso (por exemplo, a ver com a vegetação), os primeiros planos são importantes; e não
deveremos deslocar o foco. Por outro lado, se forem coisas mais gerais, não é tão importante que trabalhemos com
registros a partir de pontos de vista exatos. O importante é coletar o máximo de informação. E hoje a construção
de panorâmicas é muito fácil. Fotografamos tal coisa, mas também tudo o que está à volta; já que não sabemos
o que vai se passar com o tempo. Por isso é que a foto não é somente o enquadramento, a cena. É o “
dossiê
fotográco
”! E me parece necessário ultrapassarmos o “quadro”, que não passa de uma herança cultural e
técnica; de uma convenção pictórica. Podemos ter necessidade de trabalhar com as técnicas de enquadramento se
quisermos fazer “belas fotos”, mas se quisermos produzir um “bom documento fotográco”, certamente não o
faremos de uma maneira enquadrada. Isso seria totalmente convencional. Paisagem não é um quadro! Portanto,
é nesse nível de preocupação que temos trabalhado; no sentido de ir além desse gênero de convenção, pouco útil.
Tentando, tanto quanto possível, generalizar a panorâmica. O objeto pode ser, talvez, um elemento bem delimitado,
mas é interessante ter a imagem do todo. [...] Algo que será interessante produzir (e isso é totalmente possível neste
contexto digital) é uma foto incrustada de informações, nela mesmo. Quer dizer, podemos ter arquivos múltiplos na
imagem. Clicando sobre um ponto (uma casa, um rio), temos acesso instantâneo a informações respectivas. Sobre
datas, horários, autoria, dados acerca de um detalhe particular da foto, etc. [...] Quanto mais formos avançando,
maior capacidade teremos de realizar isso. Hoje já é virtualmente factível, mas subentendendo muito trabalho, é
claro. E por que não a foto na foto?
Imagem e Geografia:
o protagonismo da
“fotogeografia”
Valdir Adilson Steinke
2
“De todos os meios de expressão, a fotografia é o único
que fixa para sempre o momento preciso e transitório.”
Henri Cartier-Bresson
46
IMAGEM E GEOGRAFIA: O PROTAGONISMO DA “FOTOGEOGRAFIA”
2.1 Apontamentos sobre a signicação da Imagem
Em inúmeros momentos, de diferentes formas e por uma diversidade de
processos, a Geograa e a História se entrelaçam. Uma ciência serve-se da outra, em
um sentido colaborativo, mesmo que indiretamente e de forma não sistematizada,
ainda dependente das concepções pessoais e, obviamente ideológicas, dos estudiosos
envolvidos. Na leitura de um texto que trata das aproximações disciplinares entre a
História, a Arte e a Imagem, foi inevitável citar o que registra Paulo Knauss.
“...uma conclusão a que cheguei em outro artigo, armando que a
História como disciplina tem um encontro marcado com as fontes
visuais...” “...esse pode ser, certamente, um caminho para rever
a própria memória disciplinar da História e, ao mesmo tempo,
revalorizar a própria tradição erudita para ultrapassar barreiras de
conhecimento estabelecidas.”1
Não resta dúvida de que a citação cabe de modo muito consistente no âmbito
das ciências geográcas, e mais do que isto, é possível armar que a aproximação com
a imagem não signica necessariamente uma inovação, pois a imagem já está presente
em trabalhos geográcos desde sempre, o que certamente nos demanda agora, é uma
releitura, uma alfabetização geográca imagética, o que se pode chamar em princípio de
leitura “geoimagética”.
Imagem, pode ser entendida como uma das mediações do homem com o seu
mundo, pois as imagens apresentam e representam o mundo acessível e inacessível pela
tradução de códigos capazes de decifrar eventos. E isso ocorre de forma “mágica” e tal
“magia” é essencial para o entendimento das mensagens imagéticas, pois pela imagem se
explana de forma extraordinária.
Trata-se de entender que as “imagens são feitas para serem vistas” e que a
“produção de imagens nunca é absolutamente gratuita”, pois sempre foram produzidas
com objetivos bem denidos, individuais ou coletivos. Assim, conduz-se à discussão
das “nalidades” da imagem, e o espectro é amplo, desde a informação até o marketing.
Obviamente que, em qualquer categoria desse espectro, aspectos de fundo são intrínsecos,
como por exemplo a ideologia.2
1 KNAUSS, P. Aproximações disciplinares: história, arte e imagem Anos 90, Porto Alegre, v. 15, n.
28, p.151-168, dez. 2008. p.151
2 AUMONT, J. A Imagem. Trad. Marcelo Félix. Lisboa-PT: Ed. Texto & Graa. p.247. 2009.
47
As mensagens imagéticas fazem parte da expressão da cultura humana desde
as pinturas rupestres pré-históricas. Muito antes da palavra pela forma escrita houve
um descompasso na evolução dos processos comunicativos, por um lado a propagação
da palavra humana, com mais ênfase desde o século XV de Gutenberg, enquanto que a
imagem se apresenta de modo mais enfático em escala planetária ao nal do século XIX,
e ainda mais forte e complexa no século XX.
O tema “imagem”, indiscutivelmente losóco, amplo e complexo, será abordado
de modo a focar na complexidade pela inserção da ciência geográca no diálogo, partindo
de uma concepção de imagem que não apenas representa, mas que possa, também, criar
uma composição que envolve espaço-corpo-memória (tempo). Talvez, por tal conjunção
de elementos capazes de estarem presentes nas denições stricto-senso de imagem, evoca-
se uma innidade de denições e conceitos, como a de Flusser.
“Imagens são superfícies que pretendem representar algo. Na maioria
dos casos, algo que se encontra lá fora no espaço e no tempo. As
imagens são, portanto, resultado do esforço de se abstrair duas das
quatro dimensões espácio-temporais, para que se conservem apenas
as dimensões plano. Devem sua origem à capacidade de abstração
especíca que podemos chamar de imaginação.”3
O mesmo autor destaca que a imaginação carrega duas vertentes, uma permite
abstrair duas dimensões dos fenômenos, e a outra trata de reconstruir as duas dimensões
abstraídas na imagem, ou seja, envolve codicação de fenômenos e decodicação
das mensagens; em síntese, imaginação, para este autor pode ser traduzida como, “a
capacidade de fazer e decifrar imagens”.4
Henri Bérgson, importante lósofo que se debruçou sobre a fotograa e
o cinema, na transição do século XIX para o XX, observa, em sentido amplo, que a
imagem é eminentemente relacional, sem, de modo algum, ser desmaterializante, pois
corresponde à própria materialidade. Uma vez que as relações se dão no âmbito da
matéria, existe uma rede de relações que a constitui, e sua deliberação não resulta de uma
suposta externalidade. O que o autor atribui como jogo de relações entre imagens, é “um
toque impotente, a uma impulsão inecaz, a uma luz descolorida”.
… colocando o mundo material, demo-nos um conjunto de
imagens e é, aliás, impossível se dar outra coisa. Nenhuma teoria da
3 FLUSSER, Vilém. Filosoa da caixa preta: ensaios para uma futura losoa da fotograa. São
Paulo: Annablume, 2011, p.21
4 FLUSSER, op. Cit. p. 21.
48
matéria escapa a essa necessidade. Que se reduza a matéria a átomos
em movimento: esses átomos, mesmo desprovidos de qualidades
físicas, só se determinam, no entanto, com relação a uma visão e
a um contato possíveis (…). É verdade que uma imagem pode ser
sem ser percebida; ela pode estar presente sem ser representada; e a
distância entre esses dois termos - presença e representação - parece
justamente medir o intervalo entre a própria matéria e a percepção
consciente que dela temos.5
As imagens, tal como são conhecidas, se valem de uma relação entre signos
e representações. Esses são conceitos unicadores de dois domínios que permeiam a
concepção da imagem: o perceptível e o mental.
“O mundo das imagens se divide em dois domínios. O primeiro
é o domínio das imagens como representações visuais: desenhos,
pinturas, gravuras, fotograas e as imagens cinematográcas,
televisivas, holo e infográcas pertencem a esse domínio. Imagens,
nesse sentido, são objetos materiais, signos que representam o nosso
meio ambiente visual. O segundo domínio imaterial da imagens
na nossa mente. Neste domínio, imagens aparecem como visões,
fantasias, imaginações, esquemas, modelos ou, em geral, como
representações mentais. Ambos domínios da imagem não existem
separados, pois estão inextricavelmente ligados já na sua gênese.”6
Na busca de dar fôlego à discussão da concepção epistemológica de imagem,
uma diversidade de elementos são apresentados e tratados de maneira a criar um universo
amplo de possibilidades, não se faz necessário julgá-los, pois em certa medida todos
remetem a reexões importantes, principalmente quando esta busca de diálogos visa
atender as ciências geográcas em um mundo em transformação. Demanda retomar ao
espaço-corpo-memória.
“Partiremos da idéia de que a imagem não é um duplo, que não
representa, mas que inventa a vida: compõe a matéria em suas tantas
velocidades de transformação. É matéria, é memória e é corpo.
Através destes pressupostos iniciais estamos conjecturando um
modo da imagem escapar do espelho e complicá-la. A imagem não
será entendida através da noção identicatória. Neste espelho não
se busca a própria imagem. Aqui, Narciso desencanta de si e escapa
da morte.”7
5 BERGSON, Henri. Oeuvres (Edition du Centenaire). Paris, PUF, 2001. p.185.
6 SANTAELLA, L. & NöTH, W. Imagem: cognição, semiótica, mídia. São Paulo: Iluminuras,
2008, p.15
7 KIRST, P. & FONSECA, T. M. G. Somos imagem: o mundo é imagem. Informática na
49
O “escape” proposto pelas autoras leva a busca de uma produção cientíca
que, plenamente consciente, se distancie da verdade e da representação por meio da
proliferação de contrapartidas comunicativas descentralizadas das coisas, gerando
imagens sem rótulos, sem sequer encontrar palavras, seriam imagens efêmeras.
Kirst e Fonseca, ainda chamam atenção de que, não há uma “separação entre
o sujeito que vê e o sentido que insere no visto, o sentido está no ver”. Assim, não se
congura outro mundo a ser acessado. Desta forma, as autoras chamam a atenção para a
percepção, a qual estaria situada no limiar entre o corpo e a imagem.
O olhar nunca foi passivo. A imagem não vem somente de fora e,
certamente, o grau de compreensão de qualquer mensagem se dá na
medida em que ela é resignicada e associada com a vida. Se ela não
sofre nenhuma modicação ela é apenas um clichê e se processa
na ordem da reprodução. A imagem pode ser engendrada em dois
tempos pelo menos: enquanto clichê, ligada à certeza e a verdade, e
enquanto simulação, relacionada à imagem como intermezzo, como
uma nave que possa adentrar o real e viajá-lo, e neste sentido, torná-
lo corpo.8
Jacques Aumont, em um sentido semelhante, apresenta a concepção de diegese, a
construção imaginária, um mundo, de certa forma, ctício com leis próprias, no entanto,
muito semelhante ao mundo real/natural. Desta forma, toda concepção diegética é, em
grande parte, construída pela aceitabilidade social, ou seja, por convenções, códigos e
simbolismos vigentes no âmago de uma sociedade.
“A representação do espaço e do tempo na imagem é quase sempre,
portanto, uma operação determinada por uma intenção mais global,
de ordem narrativa: o que trata de representar é espaço e tempo
diegéticos, e o próprio trabalho da representação está na transformação
de diegese, ou de fragmento de diegese, em imagem.”9
Portanto, abordar a imagem na conectividade múltipla das inuências externas e
internas, inerentes ao processo de criação/montagem/representação, e tendo a inserção
de elementos geográcos, na já intricada concepção epistemológica de imagem, reforça-
se o pensar e produzir imagem, independente dos processos, mas, dependentes dos
imaginários individualizados.
Educação: teoria & prática Porto Alegre, v.11, n.2, jul./dez. 2008. p. 2
8 Kirst, P. & Fonseca, T. M. G. op cit. p.3
9 AUMONT, J. A Imagem. Trad. Estela dos Santos Abreu e Claudio C. Santoro. Campinas, SP:
Papirus, 1993. p.259. 16ª Ed. 2011.
50
A observação da imagem se da por sua relação de semelhança com o objeto
referencial, e atua como um signo icônico, ou ainda, quando analisada em si mesma,
como um signo plástico, que, neste caso, resulta de cada signicado que o observador
atrela às propriedades como forma, cor e textura, dando aos aspectos “aparentes” uma
dimensão signicativa. Justica-se então a concepção original de imagem pela iconicidade
em diferentes níveis.10
Charles Sanders Peirce destaca que, apesar dos derivados signicados da
plasticidade imagética, os quais, expressam de modo contundente seus respectivos
signos icônicos, o senso comum tende a induzir a imagem a um percepto, o que o autor
considera um equívoco, pois o percepto possui uma realidade própria, a qual está fora da
consciência, uma vez que determinado objeto se apresenta ao nosso campo visual sem a
pretensão de delegar qualquer interpretação, mas, simplesmente, está exposta na entrada
da percepção humana, resultado de uma experiência imediata.11
Diante da diversidade de teorias que pretendem explicar e conceituar a imagem,
na História, na Sociologia, na Matemática, na Psicologia, entre outras, é na teoria semiótica
que iremos encontrar o conceito que ultrapassa as categorias funcionais e, assim, torna-se
mais abrangente. Martine Joly destaca que para o entendimento da imagem é essencial o
entendimento da sua heterogeneidade, pois enquadra diferentes categorias de signos, os
próprios signos icônicos e analógicos enquanto imagens e ainda os signos linguísticos e
plásticos.12
A semiótica, muito estudada na Filosoa, na História, nas ciências físicas e no studo
de signos, foi, e continua sendo, relevante em diversas áreas do conhecimento humano,
como na Medicina, no momento da observação de sintomas e diagnósticos de pacientes,
por exemplo. A semiótica como análise introdutória nos modelos de leitura das imagens
trata da comparação ente a objetividade signicativa da imagem e suas potencialidades
de interpretações do leitor, portanto, está intrínseca no âmago dos modelos, uma análise
de valores englobados pela dinâmica do procedimento comunicativo, principalmente no
que diz respeito aos seus objetos, como e porque são construídos e como se apresentam
aos leitores.13
10 SANTAELLA, L. & NÖTH, W. Imagem, cognição, semiótica, mídia, Iluminuras, São Paulo. 1998.
11 PEIRCE, C. S. The electronic edition of The collected Papers of Charles Sanders Peirce.
Utah:Folio Corporation (Vol. I-VI edited by Charles Hartshorne e Paul Weiss; vol. VII-VIII edited by Artur
W. Burks), Harvard University Press. 1994.
12 JOLY, Martine. Introdução à analise da imagem. 6. ed. Campinas: Papirus, 1996.
13 SARDELICH, M. E. Leitura de imagens e cultura visual: desenredando conceitos para a
prática educativa. Educar (Curitiba), 27: 203-219. 2006.
51
O signo representa algum evento para algo. O signicante se traduz na parte
material do signo, sendo o signicado o conceitual transmitido/informado, criando,
então, o conceito que as pessoas tem sobre alguma coisa. Por exemplo, na palavra
“mesa”, o seu signicante seria a palavra escrita no papel, ou o som emitido por alguém
ao falar essa palavra, ou ainda uma representação gráca – desenho, foto, ilustração - já
o signicado se congura na imagem mental do que cada indivíduo gera do objeto em
questão, a mesa.
A semiótica, de modo sintético, pode ser classicada em três escolas conceituais
gerais: a semiótica Peirceana; a semiótica Greimasiana; e a semiótica da Cultura. A escola
Peirceana desenvolveu, a teoria triádica do signo. Essa teoria exige que o signo represente
suas relações com o objeto, a representação que pode ter ao interpretante e a capacidade
de ser analisado e entendido.
A gura 1 apresenta três modelos esquemáticos para a concepção de semiótica,
em A é apresentada Tríade de Pierce, em B uma adaptação da mesma Tríade de Pierce
e em C uma concepção mais “ousada” para a interpretação da semiótica, na qual é
apresentado o conceito de Biotecnosemiótica apresentada por Oscar Fernandez.
Figura 1: Modelos esquemáticos para a denição de semiótica. A) Tríade de Pierce; B)
Adaptação da Tríade de Pierce e C) Biotecnosemiótica de Fernandez. Organização:
Valdir A. Steinke (2013)
52
A proposta de Fernandez para a Biotecnosemiótica trata de discutir a preocupação
com a evolução das ciências biológicas. De acordo com o autor, o paradigma mecanicista
é insuciente para explicar, por si mesmo, os aspectos mais fundamentais dos sistemas
biológicos, a auto-organização, morfogênese, diversidade entre outros. No entanto,
reconhece-se como uma característica distintiva dos sistemas biológicos constituírem
capacidade de gerar e interpretar informações signicativas. Esta consideração é dada
pela adição do elemento tecnológico, que pertence aos sistemas de sinais de interpretação
diferentes dos existentes em nichos biológicos. Daí a necessidade de interligar processos
tecnológicos de dinâmica semióticos presentes nos organismos vivos. No esquema
apresentado por Fernandez (gura 1 – C) são tratados os seguintes elementos:
Semiótica (S); Semiotecnologias (ST); Tecnologia (T); Semioquimica (Q); Biologia (B);
Semioecologia (ECO); Semiogenética (G); Semioevolução (EVO); Semiofísica (Fi);
Semioeconomia (SE); Semiopolitica (SP); Semiohistória (SH); Semioantropologia (Sa);
Semioeducação (Sed); Semiolosoa (SF); Semiodesenho (SD); Semiopsicologia (SPS).14
O que o autor pretende com tal rede de relações envolvida na construção da
imagem, é apresentar os elementos que, em diferentes momentos, de diferentes formas
e por mecanismos diversos interferem no processo de construção da imagem, isto é, a
imagem irá ser repercussão desse idealismo, o qual é permeado por esta complexidade de
interrelações, desde a coleta até a apresentação nal da imagem.
A imagem quando coletada, processada, organizada e divulgada, poderá ser um
instrumento de excelência para a conscientização e percepção de fatos geográcos. No
estágio atual da relação sociedade-natureza é impossível admitir descaso e desinformação,
em especial com respeito aos dados e técnicas de caráter transformador, na busca de
empoderamento nas diversas escalas as quais estamos inseridos, enquanto agentes de
alteração.
Diante do interesse pelo aspecto visual nas áreas do conhecimento cientíco,
principalmente desencadeados pela inferência cultural, na qual a imagem se estrutura
enquanto eixo, exige-se dos pesquisadores, em especial os das ciências humanas, discutir
a demanda por uma alfabetização visual, que em função do momento histórico, requer
um amplo envolvimento e participação da sociedade, para que a cultura visual não seja
um elemento a mais de distorção e confusão social.
14 FERNANDEZ, O. Teoría Sociosemiótica de la Tecnología Biológica. Nomadas. Madrid, Enero-
Junio nº. 5, 2002.
53
Neste sentido, a dimensão simbólica da imagem é de extrema importância,
porque ela tem a capacidade de signicar em relação a linguagem escrita e verbal, assim,
a idéia de que a imagem é um meio de expressão direta não encontra ressonância.
Demanda-se transcender para a integração de uma nova forma do dizer.
O dito popular “uma imagem vale por mil palavras”, muito utilizado do contexto
jornalístico ao cientíco, pode signicar duplo sentido. O primeiro, e consolidado por
este ditado, induz a ideia de que havendo uma imagem não haveria a necessidade de
qualquer comentário ou discussão cientíca. No entanto, compartilha-se com as idéias
de Achutti, o qual enfatiza que a imagem sem o texto pode se tornar incompleta, assim
como o texto sempre pede uma imagem, existindo assim uma relação íntima entre
imagem e texto que se complementam.15
Quaisquer linguagens e signos são dependentes de quatro níveis: 1) o nível dos
seus meios de produção; 2) o nível dos seus meios de conservação ou armazenamento;
3) os meios de exposição, transmissão e difusão; e 4) os meios de recepção, no caso
da imagem: percepção, contemplação, observação, interação. Todos estes níveis
estão vinculados às seguintes categorias conceituais da dimensão psíquica humana: a)
imaginário; b)real; e c)simbólico, estabelece-se, então, uma conexão relacional entre os
registros da psicanálise e os paradigmas da imagem.16
A cronologia da imagem articula uma série de eventos históricos, no entanto
nesse texto será destacada a cronologia do objeto imagético de pesquisa em especíco,
a fotograa, a primeira é produzida em 1826 com Niépce na França, ainda assim é
relevante saber que a fotograa não é atribuída a um único inventor e sim um conjunto
de descobertas independentes ao longo do tempo, como por exemplo as técnicas
fotográcas de Arago em 1839, os trabalhos de Daguerre com fotos das avenidas de
Paris e Stendhal na obra A Cartuxa de Parma.17
“...o século 20 foi marcado pela conquista da autonomia e pela
valorização da imagem e, por conseguinte, da imaginação, que
pode ser analisada por meio da produção imagética veiculada nas
diferentes mídias, desde jornais e revistas da época até a produção
15 ACHUTTI, L. E. R. O pai da fotoetnograa. Revista Fotografe Melhor. São Paulo: Ed. Europa,
ano 16. nº. 181 Outubro de 2011.
16 SANTAELLA, L. & NöTH, W. Imagem: cognição, semiótica, mídia. São Paulo: Iluminuras, 2008.
17 BAURET, G. A Fotograa: história-estilos-tendencias-aplicações. Trad. J. Espadeiro Martins.
Lisboa: Edições 70 LDA. 2010.
54
cinematográca. Além disso, para a criação das imagens publicadas
e veiculadas pelas mídias jornalísticas, televisivas e cinematográcas,
os artistas envolveram-se com as novas invenções técnicas de
produção de grande escala, enquanto assumiam importantes papéis
na cultura de massa, que começou a acontecer com a Revolução
Industrial.”18
Em que pese a importância da imagem no contexto histórico, o signicado de
seus signos na construção da sociedade contemporânea, ainda que se tenha a disposição
compêndios acerca da história da imagem, em especial pelas artes, a qual, sem dúvida,
presta relevante serviço às pesquisas imagéticas e a própria cronologia dos inventos
capazes de gerar imagens, como é o caso da câmera fotográca, a lacuna especíca para
o entendimento geohistórico da imagem ainda é um vasto campo a ser pesquisado.19
O processo histórico evolutivo da produção de imagens envolve um amplo
conjunto de “inventores” capazes de apresentar um arcabouço e esquematizar o quadro
evolutivo. Nesse momento toma-se como referencia os três paradigmas deste processo
evolutivo, apresentado por Lucia Santaella, que procura de maneira didática situar a
construção de imagens no contexto técnico-histórico.
Esses paradigmas são assim denidos: Pré-fotográco; Fotográco e Pós-
fotográco.20 O primeiro paradigma está situado no modo de produção manual/artesanal
e ressalta a necessidade das habilidades manuais do indivíduo para “plasmar o visível, a
imaginação e o invisível em rochas, nos desenhos, nas pinturas, gravura e esculturas”. O
segundo paradigma é a “captação física de fragmentos do mundo visível”, e aqui, então,
as máquinas fotográcas são as pioneiras de um processo que chega até o cinema e a TV.
O terceiro paradigma se apresenta pela presença da computação, na qual as imagens são
“calculadas” e se resumem ao conjunto de pixel de uma matriz, na qual cada célula recebe
um valor especíco,21
Se estas imagens digitais podem ser usadas para se referirem à alguma coisa, que
são milhares/milhões de bits eletrônicos e de dados matemáticos, então, cada vez mais,
18 VENTURELLI, S. & MACIEL, M. L. B. Imagem interativa. Brasília: Ed. da UnB, 2008. p. 19
19 MENESES, U. T. B. de. Fontes visuais, cultural visual, História visual. Balanço provisório,
propostas cautelares. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 23, nº 45, pp. 11-36 - 2003
20 SANTAELLA, L. A Imagem Pré-Fotográca-Pós. Imagens. N.3. Campinas: Unicamp. 1994.
21 SANTAELLA, Lúcia. Os Três Paradigmas da Imagem. In: Samain, Etienne. (org) O Fotográco.
2ª ed. São Paulo: Ed. Hucitec/Ed. Senac. 2005. p. 296.
55
a visualidade vai car situada sobre uma crosta cibernética e eletromagnética, na qual os
elementos visuais e linguisticos são coincidentes e consumidos pelas trocas e circulações
globais.22
Ainda que o mecanismo da comunicação passe por transformações constantes
e signi cativas, como, por exemplo, a revolução tecnológica do século XX, o processo
comunicativo da linguagem está centrado basicamente na relação de seis fatores ( gura
2) que estão envolvidos pela conjuntura da dinâmica mencionada nas concepções de
semiótica. Esta por sua vez, exige um emissor com o objetivo de enviar uma mensagem
ao receptor sobre um determinado tema referencial demandando, para tal, um código
(linguagem) e um canal (meio).23
Ainda para Jakobson, a linguagem apresenta seis funções, regidas pela enfase em
determinados processos comunicativos, dessa forma, a mensagem enquanto referência é
uma representação da realidade que envolve emissores e receptores, na qual os códigos
são funções dessa realidade. A gura 3, sistematiza as seis funções da linguagem de
modo sintético. Ressalta-se aqui a concepção de interelação dessas funções, tornando-
as uma sequencia contínua de eventos associados em um sistema de retroalimentação
comunicativa.
22 HANSEN, M. B. N. New Philosophy for New Media. The MIT Press Cambridge, Massachusetts
London, England
23 JAKOBSON, R. Linguística e comunicação. São Paulo. Cultrix, 1969.
Figura 2: Processo comunicativo. Adaptado de Jakobson (1969)
56
Torna-se essencial, na abordagem da imagem, enquanto um emaranhado de
articulações, desde físicas até sentimentais, que a idéia do “todo” seja observada. Nessa
direção a concepção de “todo” não pode ser desprovida de sentido. É o que Deleuze
arma, com seu discurso focado no cinema e este entendido enquanto uma seqüência de
frames.
“A noção de todo é antes o que impede cada conjunto, por maior
que seja, de se fechar sobre si próprio, e o que o força a se prolongar
num conjunto maior. O todo é, pois, como o o que atravessa os
conjuntos e confere a cada um a possibilidade necessariamente
realizada de comunicar um com o outro, ao innito. O todo é
também o Aberto, e remete mais ao tempo ou até ao espírito do que
à matéria e ao espaço.”24
No aspecto fotográco da representação da imagem, e a foto enquanto resultado,
é possível imaginar um determinado “tempo’ sendo “congelado” e tal entendimento não
estaria sequer próximo de uma interpretação equivocada sendo, inclusive, a maneira mais
24 DELEUZE, G. Cinema 1. A imagem-movimento. Brasília. Ed. Brasiliense. 1983. p.24
Figura 2: Processo comunicativo. Adaptado de Jakobson (1969)
57
clássica de olhar para o foto. No entanto, a fração de segundo desse tempo, ora paralisado
na foto, pode representar um movimento pretérito e denir, inclusive, velocidade
quando comparado a outra fração de segundo “congelada” em um tempo futuro e,
para isso, não se faz necessária a determinação de um intervalo de tempo especíco,
podem ser seqüências com intervalos de minutos ou séculos, pois o movimento estará lá,
“congelado”!
2.2 A Fotograa, imagens instigantes na Geograa!
Dar início a esta parte do texto, na qual a busca por uma aproximação conceitual
entre a Fotograa e a Geograa se toma como desao investigar a função da fotograa
como elemento de representação do espaço geográco, para tanto, no que concerne
a fotograa se faz necessária apresentar uma citação, originalmente mencionada como
uma advertência e que, aqui, se mantém como tal, ou seja, uma advertência: “Em sua
melhor forma, a fotograa é uma manifestação artística e, como qualquer outra arte,
compreende dois níveis distintos: o nível da criação e o nível da execução.”25
A representação e a percepção visual tiveram contribuição signicativa de
Helmholtz, e se referem a losoa da percepção visual, pois a habilidade de ver objetos
imóveis é uma fase evolutiva que distingue os seres humanos dos seres menos evoluídos.
Com tal premissa a fotograa constitui um passo importante desse processo evolutivo,
uma vez que sua essência é o congelamento de cenas da realidade a partir de uma
observação humana, em primeiro momento. Tal armação é tão signicativa que, diante
das invenções mais modernas, como os projetores, a fotograa não perde seu espaço e,
na verdade, se consolida e derruba o mito de que é preciso movimento para dar vida a
imagem.26
O registro fotográco trata do que foi popularizado, na linguagem coloquial,
como a foto, e tratada de modo que um “objeto” fosse algo simples. Para o professor
François Soulages a foto é um “vestígio” que remete a inúmeras indagações acerca de que
vestígio se trata. Considera este conjunto de questionamentos a constituição da fotograa
enquanto problema e, justamente, por se constituir como tal é que a fotograa “faz
25 PETER, J. & Da SILVA, V. M. Cadernos do mestre Peter: um curso de fotograa na
sua essência. Rio de Janeiro. Ed. Mauad, 1999. p. 11.
26 SEKATSKIY, A. Philosophy of Photography v.1 n.1 - pp. 81–88 Intellect Limited 2010.
58
sonhar, trabalha nosso devaneio, nosso inconsciente, nossa imaginação e imaginário”.27
Chama atenção, neste tempo, a função da imagem enquanto linguagem de
comunicação. Talvez pela diversidade e acesso aos recursos comunicativos com o
advento tecnológico, tal função permite reconhecer a preocupação de Kossoy, no papel
cultural da fotograa, o seu poder de informação e “desinformação” suas capacidades de
“agitar” os sentimentos, pois emociona, transforma e manipula, pois continua exercendo
o fascínio dos e nos homens.
“A imagem, em especial a fotográca, sempre se viu tradicionalmente
relegada à condição de “ilustração” dos textos e ‘apêndice’ da
história. No entanto a documentação iconográca é uma das fontes
mais preciosas para o conhecimento do passado; trata-se, porém, de
um conhecimento de aparência: as imagens guardam em si apenas
indícios, a face externa de histórias que não se mostram, e que
pretendemos desvendar.”28
Portanto, o processo de criação, de elevada complexidade, em que pese a aparente
contradição do “clic” na fração de milésimo de segundo, envolve, de modo indissociável,
os elementos materiais (equipamentos e recursos técnicos e tecnológicos) e de ordem
imaterial, aqueles mentais e/ou culturais, pela sobreposição hierárquica destes últimos
aos primeiros.29
A relação da fotograa com o tempo, ou seja, a temporalidade “própria de uma
fotograa” é complexa e até pode dar a idéia de ser pontual e desprovida de duração,
contudo, estão carregadas de características e qualidades ligadas diretamente ao tempo
e, com base no conceito de aspecto, traz consigo a capacidade de representar estados,
processos e acontecimentos.30
Alguns mitos técnicos são rompidos diante do contexto histórico, o qual
direciona a alguns nomes que marcam, de modo contundente, determinadas áreas do
conhecimento humano. Na história da produção fotograca não se pode deixar de citar
o nome de Cartier-Bresson. Imerso no contexto cultural francês, de lá emitiu sinais vitais
para o cenário mundial, pois dominava como poucos a diferença entre o olhar e o “quase
27 SOULAGES, F. Esthétique de la photographie: la perte et le reste. Ed. Armand Colin. Paris. 2005.
28 KOSSOY, B. Os tempos da fotograa: o efêmero e o perpétuo. 2. Ed. São Paulo: Ateliê Editorial,
2007. p. 31.
29 KOSSOY, Boris. Realidades e Ficções da Trama Fotrográca. 3. Ed. São Paulo: Ateliê Editorial,
2002.
30 WOLLEN, P. Feu et glace. In: Photographie. n.4. 1984. p. 17.
59
olhar” da câmera. Não resta dúvida que o P&B (preto e branco) da fotograa pode ser
sinônimo de Cartier-Bresson.
No notável texto A Câmara Clara de Barthes, a particularidade
temporal da fotograa analógica, enquanto presença literal do passado,
é entendida como uma “imobilização” e um “inchaço” do tempo, o que
signica uma naturalização da estrutura teológica do ícone através do tempo,
porque o signicado participa do real através da luz tornando-se ‘carnal’.31
Por outro lado, na imagem digital, não haveria tal imobilização temporal, pois o
signicado ontológico da continuidade física de dados digitais é negada pela ruptura da forma
visual e sua tradução em um código binário. Tal ruptura permite Groys apontar os dados
digitais como um certo grau de elevada supremacia, uma vez que permite uma innidade de
processos criativos com nalidades multiplas, tanto de visualização, quanto de transformação.32
É necessário mencionar Bergson, que partindo da intenção em retratar um
quadro vivo em uma tela, indica a tomada de uma série de instantâneos, inserindo-os em
uma seqüência rápida e dando movimento ao quadro. No entanto, o ponto crucial está
no “enquadramento” do que se quer dar movimento.33
Provavelmente, o enquadramento é o momento em que se estabelece uma
relação entre a produção fotográca e a análise e/ou representação geográca, pois
em última instância é no enquadramento que se gera o resultado do olhar do geógrafo
enquanto registrador dos instantâneos.
A fotograa enquanto técnica ou instrumento de apoio na atividade de
investigação geográca, não se congura com ineditismo. Desde seu surgimento, a
fotograa se prestou a registrar o real, pelas mãos, iris e lentes de inúmeras pessoas, de
muitas áreas do conhecimento e algumas vinculadas a geograa.
Tal objeto, utilizado de modo artístico, cientíco ou de mero apreço, proporciona
entender um pouco da concepção da fotograa, seus impactos na sociedade, suas nuances
e principalmente em que medida, se estará diante de uma imagem fotográca real e, em
31 BARTHES, R. Camera Lucida: Reections on Photography (trans. Richard Howard), London: Fontana.
1984. p.91.
32 GROYS, B. ‘From Image to Image-File – and Back: Art in the Age of Digitalization’, in Art Power,
Cambridge MA and London: MIT Press, 2008. p. 85.
33 BERGSON, H. Creative Evolution (trans. A. Mitchell), Mineola and New York: Courier Dover
Publications. 1998.
60
que momento aquela imagem captada em uma fração de segundo reproduz o olhar, a
intencionalidade, a indagação, a imaginação, a ciência ou, simplesmente, a curiosidade do
indivíduo que acionou os mecanismos de criação da imagem.
Esses mecanismos constituem a interação entre diferentes elementos que
irão proporcionar, como resultado, um determinado tipo de representação pela
imagem. Ainda que na atualidade se tenha em mãos um equipamento extremamente
sosticado - que em verdade, nunca deixou de ser, pois a cada lançamento em razão da
contextualização histórica, estava-se diante de equipamentos sosticados – ainda é o
olhar, o enquadramento e o “clic” uma atribuição do fotógrafo. Isto é, é o protagonismo
desse indivíduo que detém o controle da “caixa preta”. Pode-se abordar este aspecto pelo
que Boris Kossoy dene como o ltro cultural do fotógrafo.
“A eleição de um aspecto determinado – isto é, selecionado do
real, com seu respectivo tratamento estético -, a preocupação na
organização visual dos detalhes que compõem o assunto, bem como
a exploração dos recursos oferecidos pela tecnologia: todos são
fatores que inuirão decisivamente no resultado nal e conguram
a atuação do fotógrafo enquanto ltro cultural. O registro visual
documenta, por outro lado, a própria atitude do fotógrafo diante
da realidade, seu estado de espírito e sua ideologia acabam
transparecendo em suas imagens, particularmente naquelas que
realiza para si mesmo enquanto forma de expressão pessoal.”34
Dessa maneira, entende-se como fotograa o produto nal de uma ação do
fotógrafo que, diante do recurso tecnológico disponível e acessível em um dado momento
cronológico e de um espaço geográco, selecionou um tema e um enquadramento
para ser registrado. Kossoy apresenta uma proposta de organograma para a gênese da
fotograa e a classica como “materialização documental” da fotograa (gura 4).
O mesmo autor reforça essa perspectiva da relevância do fotógrafo que, motivado
por uma innidade de razões de ordem pessoal, prossional e intelectual, elabora a
“expressão fotográca”, a qual é resultado de um contexto geohistórico especíco e seus
desdobramentos na complexidade da ciência geográca, pois traz consigo, na sua “carga
genética” os elementos/fatos geográcos.35
34 KOSSOY, Boris. Fotograa & História. 2. Ed. ver. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001. p. 42
35 KOSSOY, Boris. Realidades e Ficções da Trama Fotrográca. 3. Ed. São Paulo: Ateliê Editorial,
2002.
61
A proposta de Kossoy resume, de modo pertinente e adequado, os elementos
centrais do processo da produção fotográca, no qual, mesmo que apareçam de modo
individualizado, para ns didáticos, constituem uma complexidade de conceitos que se
interligam e irão resultar, na imagem/produto – a fotograa. O quadro 1, apresenta, de
modo simplicado, os elementos inseridos no organograma mostrado na gura 4.
Nessa mesma abordagem, as considerações de Shimoda apontam o fotógrafo
como “um pesquisador da alma e dos sentimentos humanos”, ou “aquele que registra
um ponto de vista”, ainda aquele que “deve ter sensibilidade para conhecer que por trás
dos ambientes ou pessoas, residem histórias” e ainda, “é um investigador, consciente da
dinâmica de transformações”.36
36 SHIMODA, Flávio. Imagem fotográca. Campinas: Editora Alínea, 2009.
Figura 4: Proposta de materialização documental da imagem fotográca.
Fonte: Kossoy (2001) com adaptações
IMAGEM
FOTOGRÁFICA
TECNOLOGIA
TECNOLOGIA
FOTOGRAFIA
FOTOGRÁFO
Espaço
(Geografia)
Tempo
(Cronologia)
O ATO DO REGISTRO FOTOGRÁFICO
Fragmentação/congelamento PROCESSAMENTO FOTOGRÁFICO
Visibilidade da imagem
62
Elementos Constitutivos
Assunto Tema escolhido, o fragmento da realidade.
Fotógrafo Autor do registro.
Tecnologia Equipamentos, materiais e técnicas.
Coordenadas de Situação
Espaço Geográco, lugar onde se deu o registro.
Tempo Cronológico, época, data, momento em que se
deu o registro.
Produto Final Fotograa
A imagem, registro visual xo de um
fragmento do mundo exterior, conjunto dos
elementos icônicos que compõem o conteúdo
e seu respectivo suporte.
Ainda que os proponentes do referido quadro/esquema não sejam pesquisadores
da ciência geográca, ressalta-se a observação dos mesmos com respeito ao que estes
consideram como “espaço geográco”, reforçando a abordagem no contexto geográco
ao qual o “fotógrafo” se insere na perspectiva de produzir a fotograa. Sem dúvida,
isso é saudável ao processo e é neste sentido que o autor destaca o “espaço geográco”
enquanto “lugar” e momento do registro imagético.
A concepção da fotograa necessariamente gira entorno dos elementos culturais,
técnicos, cientícos, losócos e sentimentais, os quais, em algum momento, revelam-
se pela imagem capturada em uma fração de segundo. Muito provavelmente a mesma
“cena” será registrada de modo diferente por mais de um fotógrafo, mesmo que estes
estejam postados e agindo simultaneamente.
Quadro 1: Elementos essenciais da produção fotográca
Figura 5: Esquema da construção da “expressão fotográca”. Adaptado de Kossoy (2002).
63
Existe consenso quando se trata da produção de boas imagens fotográcas, no
que diz respeito aos aspectos centrais do processo, os quais sejam: a) A natureza do
tema; b) A personalidade do fotógrafo; c) A concepção do tema; d) A execução teórica
da fotograa e e) O público ao qual se destina a fotograa. Em síntese exige-se do
fotógrafo o equilíbrio entre esses elementos para que possa prevalecer uma composição
harmoniosa.37
Esses aspectos devem ser considerados com a lucidez que a fotograa, enquanto
representação, registro e fato de um determinado tempo exige. Entre estes aspectos, a
natureza do tema pode ser considerada como estrutural, pois consiste em identicar os
segmentos de tema basicamente em dois grupos: os estáticos e os dinâmicos. A diferença
central está, neste caso, mais uma vez condicionada ao tempo, pois para os temas estáticos
o fotógrafo pode usufruir do tempo que for necessário, e para os temas dinâmicos, o
tempo pode ser um elemento de restrição. Convém salientar que em ambas as situações
o mesmo elemento “tempo” pode ser um aliado na produção da foto, inclusive tornando
o resultado como uma representação desse processo.
Outro aspecto elencado, que se refere a personalidade do fotógrafo terá reexo
nas imagens produzidas e, portanto, requer do fotógrafo atenção a itens essenciais como
sua capacidade em ver conscientemente; o impulso criador; vontade e determinação em
explorar caminhos novos e distintos; bom relacionamento social e a capacidade de estar
disposto a explorar as partes técnica e operacional dos equipamentos.38
Em se tratando de representação da realidade via a linguagem da fotograa, a
busca pela integridade da fotograa deve permear a atuação do fotógrafo, uma vez que
a “informação visual não se resume na conrmação do óbvio, mas pode ser uma porta
de entrada para reexões renovadas, a partir de indicativos oferecidos por um momento
real”39. No entanto, salienta-se, não se tratar de uma mera transposição do real, mas o
registro de um fato.
Neste tempo da história, o registro fotográco está a disposição por inúmeros
dispositivos eletrônicos e provavelmente tal disseminação, muito pertinente e correlata a
37 PETER, J. & Da SILVA, V. M. Cadernos do mestre Peter: um curso de fotograa na sua essência.
Rio de Janeiro. Ed. Mauad, 1999.
38 PETER, J. & Da SILVA, V. M. Cadernos do mestre Peter: um curso de fotograa na sua essência.
Rio de Janeiro. Ed. Mauad, 1999.
39 HUMBERTO, Luis. Fotograa, a poética do banal. Brasília: Ed. da UnB: São Paulo: Imprensa
Ocial do Estado, 2000. p.41.
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todo processo de desenvolvimento tecnológico. Ainda que valorize-se a popularização da
fotograa, é verídico também que exista uma dose extra de banalização do ato fotográco,
o que não chega ser nenhum delito, mas em se tratando de ciência, este caminho exige
maior reexão. Humberto, assinala ainda que:
“Uma fotograa é o testemunho de algo extinto, mas permanece
como portadora de possibilidades de múltiplas leituras,
principalmente quando foi produzida com apaixonado empenho,
guiada por olhos informados e pela percepção sensível da vida. Por
sua natureza fragmentária, a fotograa permite-nos a reavaliação de
uma realidade, pela recuperação de valores perdidos na invisibilidade
do convívio cotidiano.”40
O deslumbramento inicial das técnicas fotográcas – que na atualidade não é
diferente, pois são inúmeras e rápidas as inovações dos recursos tecnológicos – induziu o
registro fotográco ao fascínio pelas diferenças de classe, as classes “mais baixas” como
objeto de verdadeira paixão avassaladora dos documentaristas, estes em geral oriundos
das classes “mais altas”, e que sempre orbitaram envolta dos mais oprimidos “à espreita
de cenas de violência”, tendo a miséria social como “inspiradora”, assim como arma
a lósofa Susan Sontag, a “mais delicada de todas as atividades predatórias”, com a
nalidade de registrar o desconhecido de suas próprias realidades.41
Diante das diferentes abordagens, denições, conceitos, aplicações e ensaios
teóricos percebe-se a nítida relação da fotograa como uma interface entre técnica-arte-
ciência humana e, neste sentido, é relevante ressaltar o que Gabriel Bauret destaca no
trabalho do fotógrafo. Pois essa arte (do fotógrafo) é diferente dos outros “artistas”,
na fotograa não há rascunho, não se regressa materialmente a uma imagem, assim é
uma questão de “sucessão e não de sobreposição”. O mesmo autor reforça ainda que “o
instantâneo ou é conseguido ou não é” e “dicilmente pode ser melhorado ou alterado
após o registro fotográco”. Esta última consideração é de fato verdadeira no sentido de
preservar o registro real. No contexto atual é importante observar tal consideração, pois
os recursos tecnológicos da fotograa digital tem proporcionado opções de sobreposição
o que, no mínimo, dá outro direcionamento para a consideração do autor.42
40 Humberto, op. Cit., p. 41.
41 SONTAG, Susan. Sobre fotograa; Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, <