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Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Ciˆencias Sociais e Humanas
Instituto de Estudos Sociais e Pol´ıticos
J´ulio Canello
Judicializando a Federa¸c˜ao? O Supremo Tribunal Federal e os
atos normativos estaduais
Rio de Janeiro
2016
J´ulio Canello
Judicializando a Federa¸c˜ao? O Supremo Tribunal Federal e os atos
normativos estaduais
Tese apresentada, como requisito parcial
para obten¸c˜ao do t´ıtulo de Doutor, ao
Programa de P´os-Gradua¸c˜ao em Ciˆencia
Pol´ıtica, da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro.
Orientador: Prof. Dr. Fabiano Guilherme Mendes Santos
Rio de Janeiro
2016
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação. desde
que citada a fonte.
___________________________________ ______________________
Assinatura Data
C221 Canello, Júlio
Judicializando a federação? O Supremo Tribunal Federal e os
atos normativos estaduais / Júlio Canello. – 2016.
291 f.
Orientador: Fabiano Guilherme Mendes Santos.
Tese (doutorado) – Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Instituto de Estudos Sociais e Políticos.
1. Brasil. Supremo Tribunal Federal – Teses. 2.Poder
judiciário e questões políticas – Teses. I. Santos, Fabiano
Guilherme Mendes. II. Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Instituto de Estudos Sociais e Políticos. III. Título.
CDU 347.991
J´ulio Canello
Judicializando a Federa¸c˜ao? O Supremo Tribunal Federal e os atos
normativos estaduais
Tese apresentada, como requisito parcial
para obten¸c˜ao do t´ıtulo de Doutor, ao
Programa de P´os-Gradua¸c˜ao em Ciˆencia
Pol´ıtica, da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro.
Aprovada em 18 de abril de 2016.
Banca Examinadora:
Prof. Dr. Fabiano Guilherme Mendes Santos (Orientador)
Instituto de Estudos Sociais e Pol´ıticos – UERJ
Profa
.Dra
.Argelina Cheibub Figueiredo
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Prof. Dr. Ricardo Ceneviva
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Prof. Dr. Rog´erio Bastos Arantes
Universidade de S˜ao Paulo
Profa
.Dra
.Celina Maria de Souza
Universidade Federal da Bahia
Rio de Janeiro
2016
DEDICAT ´
ORIA
Para Daiana e Nana, amores de todo dia.
AGRADECIMENTOS
O fazer acadˆemico comporta v´arias controv´ersias; d´uvidas quanto sua natureza e
sentido. Ao realizar esta tese doutoral, algumas me acompanharam como sombras ou
fantasmas. Seria o trabalho, em grande parte, individual, quase solit´ario, assentado num
caldo de paix˜ao e racionalidade singulares do autor? Ou seria, fundamentalmente, um
produto da intera¸c˜ao de saberes, acumulados ou n˜ao, a conferir uma ordem pretensamente
distinta ao caos de conhecimentos pesquisados, num trabalho sempre coletivo? Ser ve´ıculo
da tese ´e formular o argumento ou dar voz `a ideia? Essa primeira controv´ersia esconde,
talvez, uma falsa dicotomia. Ainda que acertos e erros sejam responsabilidade do autor,
frutos da inescap´avel e angustiante reflex˜ao do pesquisador s´o, s˜ao muitas as m˜aos que
revelam o caminho e conduzem a passagem. Sem o conjunto de pessoas, lugares, ideias
e circunstˆancias, n˜ao h´a ciˆencia poss´ıvel. Os agradecimentos s˜ao o reconhecimento do
esfor¸co coletivo sem o qual esta empresa n˜ao chegaria at´e aqui.
A gratid˜ao primeira ´e de raiz, `as comunidades educacionais e universit´arias pelas
quais passei, influˆencias decisivas para o ser humano, acadˆemico e profissional que sou.
N˜ao chegaria ao t´ermino de um doutorado sem um ensino b´asico satisfat´orio, vivido na
cidade de Espumoso, interior do Rio Grande do Sul, nas escolas Jo˜ao Batista Rotta, Jos´e
Clemente Pereira e Ruy Pi´egas da Silveira. Foi l´a, na base, onde despertou o interesse pelas
ciˆencias humanas, sociologia, pol´ıtica e direito. L´a, tamb´em, ainda como secundarista,
conheci o movimento estudantil e a intui¸c˜ao de que teoria e pr´atica devem andar juntas.
Agrade¸co aos professores dessa ´epoca, por quem guardo profundo reconhecimento, e aos
colegas da irmandade virg´ılia, pela duradoura amizade.
A op¸c˜ao acadˆemica foi resultado, ainda, do aprendizado e das experiˆencias na
Universidade Federal de Santa Maria, junto aos cursos de Direito, Ciˆencias Sociais, Pen-
samento Pol´ıtico Brasileiro e no Diret´orio Livre do Direito e Diret´orio Central dos Estu-
dantes. Agrade¸co, especialmente, aos professores Reginaldo Perez e Gustavo Grohmann,
primeiros orientadores e mestres, que recomendaram o IUPERJ e apostaram na minha ca-
pacidade de enfrentar esse desafio, al´em de Jerˆonimo Tybusch, que apoiou minha primeira
tentativa de dialogar direito e pol´ıtica.
`
A comunidade acadˆemica do Instituto de Estudos Sociais e Pol´ıticos da UERJ
(IESP-UERJ), a gratid˜ao ´e plena. Desde 2009, como aluno de mestrado e ainda sob o
antigo IUPERJ, convivo, com orgulho e satisfa¸c˜ao, os espa¸cos da querida Rua da Matriz.
Nesse tempo, estamos superando, com sucesso, fortes desafios institucionais. Vivemos a
dram´atica transi¸c˜ao da Universidade Cˆandido Mendes para a Universidade do Estado do
Rio de Janeiro, acompanhada de muitas dificuldades, o que foi enfrentado como se pode,
mas com resultados extremamente positivos: manteve-se a excelˆencia e a relevˆancia como
centro brasileiro de forma¸c˜ao e pesquisa em Ciˆencia Pol´ıtica e Sociologia. Sem todo esse
apoio institucional, que congrega professores, funcion´arios e colegas, este resultado n˜ao
seria obtido.
A trajet´oria na p´os-gradua¸c˜ao e a pesquisa de doutorado certamente n˜ao existiriam
sem o fomento provido pela Coordena¸c˜ao de Aperfei¸coamento de Pessoal de N´ıvel Superior
– CAPES, que viabilizou minha permanˆencia no Rio de Janeiro atrav´es de bolsas de estudo
no mestrado e doutorado, como tamb´em propiciou ampliar a capacita¸c˜ao ao financiar
est´agio doutoral no exterior, junto ao Massachusetts Institute of Technology (MIT). Os
meses de 2014 vivendo em Cambridge e frequentando o Departamento de Ciˆencia Pol´ıtica
foram fundamentais para adquirir as habilidades que permitiram realizar a etapa emp´ırica
desse trabalho, da coleta `a an´alise dos dados. Foi l´a onde esta tese deixou de ser apenas um
projeto e come¸cou a ganhar forma. L´a, tamb´em, encontrei um espa¸co f´ertil `a colabora¸c˜ao
e inventividade, prop´ıcio `a forma¸c˜ao de importantes parcerias.
Mais do que aos espa¸cos, o reconhecimento pelo apoio se deve `as pessoas. Em
primeiro lugar, ao cidad˜ao brasileiro, `aquele que mesmo sem saber o que seja ciˆencia
pol´ıtica, p´os-gradua¸c˜ao ou sequer ter acesso a uma Universidade, contribui, com parcela
de seu trabalho, para o sustento do sistema educacional brasileiro. A ele todos somos gra-
tos. Particularmente, tamb´em agrade¸co `aqueles que contribu´ıram para minha forma¸c˜ao,
mesmo indiretamente; `as pessoas com quem convivi em Espumoso, minha terra natal,
Santa Maria, lugar de descobertas e saudades, Cambridge e Boston com suas intensida-
des, al´em do v´ıvido Rio de Janeiro.
Agrade¸co, mais que especialmente, ao meu orientador, Fabiano Santos, pela to-
lerˆancia com os percal¸cos desse trabalho, bem como pelas contribui¸c˜oes sempre afiadas e
objetivas, que engrandeceram a pesquisa e tornaram poss´ıvel a elabora¸c˜ao da tese. A ele,
meus agradecimentos n˜ao se limitam `a orienta¸c˜ao, mas alcan¸cam outras oportunidades,
dentro e fora da sala de aula, acolhendo-me junto ao N´ucleo de Estudos sobre o Con-
gresso, bem como propiciando parcerias acadˆemicas e trabalhos profissionais. Agrade¸co,
fundamentalmente, pela confian¸ca depositada. E fico honrado, hoje, em saber que, mais
do que um professor, Fabiano ´e um colega de trabalho verdadeiro e valoroso, al´em de um
amigo.
Esta tese tamb´em se deve aos demais membros da banca examinadora, Argelina
Figueiredo, Ricardo Ceneviva, Celina Souza e Rog´erio Arantes. Os apontamentos, co-
ment´arios e cr´ıticas formulados por todos durante a defesa foram relevantes para um
melhor acabamento do texto final e uma revis˜ao parcial de alguns trechos, ainda que
n˜ao se tenha sugerido altera¸c˜oes substantivas. O escrut´ınio do trabalho realizado perante
avaliadores de tamanha competˆencia, aprimorando este documento e pesquisa, ´e motivo
de imensa gratid˜ao. A combina¸c˜ao da expertise de cada um colocou o argumento `a prova
sob diversas abordagens: das rela¸c˜oes institucionais, do federalismo, do Poder Judici´ario e
judicializa¸c˜ao, al´em dos cuidados metodol´ogicos e precau¸c˜oes te´oricas. O agradecimento ´e
redobrado `a Celina Souza e Argelina Figueiredo, que tamb´em contribu´ıram na qualifica¸c˜ao
do projeto de pesquisa.
Agrade¸co profundamente a F. Daniel Hidalgo, que me recebeu no Departamento de
Ciˆencia Pol´ıtica do MIT, em ´unica e relevante experiˆencia acadˆemica. Al´em da acolhida
como ouvinte em seus cursos e de oportunizar a participa¸c˜ao em diversos semin´arios e
workshops, ofereceu apoio crucial em minha capacita¸c˜ao metodol´ogica, revelando uma
gama importante de ferramentas de pesquisa e desafios te´oricos. Mais do que apenas
um supervisor ou co-orientador do est´agio doutoral, Hidalgo apostou no meu trabalho
e aceitou minha colabora¸c˜ao como parceiro de pesquisa, ampliando nossa interlocu¸c˜ao
mesmo ap´os meu retorno ao Brasil.
Sou grato a todos os professores que colaboraram na minha forma¸c˜ao acadˆemica na
p´os-gradua¸c˜ao, em sala de aula ou fora dela, seja no IESP, no Iuperj, MIT, Harvard ou nos
cursos de ver˜ao da USP. Especialmente, `as li¸c˜oes de Fabiano Santos, Argelina Figueiredo,
Daniel Hidalgo, C´esar Zucco Jr., Nelson do Valle, Carlos Antˆonio Costa Ribeiro, Thamy
Pogrebinschi, Jo˜ao Feres Jr., Renato Boschi, Jairo Nicolau, Marcus Figueiredo, C´esar
Guimar˜aes, Rebecca Morton, Simon Jackman, Gary King e Wanderley Guilherme dos
Santos. Pelas conversas pontuais ou aparentemente n˜ao pertinentes, mas sempre provei-
tosas, agrade¸co tamb´em aos professores Octavio Amorim Neto, Ricardo Ceneviva, Celina
Souza, Timothy Powers, Ben Ross Schneider, Carlos Pereira, Marcus Mello e Christian
Lynch. Refor¸co especial gratid˜ao a Ricardo Ceneviva e Nelson do Valle, com quem tive a
oportunidade da atuar como monitor no curso de Lego I em 2015, e a Cristiane Batista,
que aceitou meus pr´estimos na docˆencia de estat´ıstica para o curso de Ciˆencia Pol´ıtica da
UNIRIO em 2013. Finalmente, um especial´ıssimo agradecimento a Argelina Figueiredo,
com quem tive a honra de ser colaborador de pesquisa e co-autor de trabalhos acadˆemicos.
Este trabalho tamb´em n˜ao seria realizado sem o apoio dos funcion´arios do IESP,
do antigo Iuperj e do MIT, sempre prestativos, prontos para facilitar a caminhada. Agra-
decimentos sinceros a Lia Gonzalez, Caroline Carvalho, Cristiana Avelar, Louise, Simone,
Solange, Beatriz Garrido, Claudia Boccia, Carlos Henrique, Marta Alencar, Magno Pe-
reira, Edson Luiz, Silvinho, Florita, Alessandra, Maricleide, e, ´e claro, ao Jos´e M´arcio
(Rom´ario), excepcionais pessoas que passaram pelo Iuperj/IESP; al´em de Diana Gal-
lagher e Susan Twarog, que tornaram mais simples minha estada no MIT.
Sou grato, tamb´em, a todos os colegas e amigos que contribu´ıram de alguma
maneira nesse percurso; seja quanto a temas acadˆemicos, profissionais, l´udicos ou sim-
plesmente humanos. A Everton Piccolotto e S´ergio Botton Barcelos, companheiros de
movimento estudantil na UFSM, que me receberam nas primeiras ocasi˜oes em que vim ao
Rio de Janeiro fazer provas e procurar apartamento. Aos colegas de turma, desde o Iu-
perj, Carlos Pinho, Jeferson Mariano Silva, Josu´e Medeiros, Gilliard Ten´orio, Luis Falc˜ao,
Lorena Hern´andez, Joyce Louback, Bel Couto, Tatiana Oliveira e Lilian Oliveira. Aos
colegas de institui¸c˜ao, presentes e passados, Marcelo Vieira, Guilherme Sim˜oes Reis, Fe-
lipe Borba, Andr´e Coelho, Clayton Cunha Filho, Leonardo Barbosa, Carolina de Paula,
Natalia Maciel, Saulo Said, Brenda Cunha, Tiago Ventura, Adriana Aidar, Humberto
Machado, Lu´ıs Felipe Gra¸ca, C´ıntia Pinheiro, Alexandre Alves Pinto, Jorge Chaloub, So-
raia Vieira, D´ebora Thom´e, Tiago Nery, Andr´es del Rio, Tom´as Garcia, Mariana Borges,
Juan Vicente Bachiller e F´abio Vasconcellos. Aos colaboradores que felizmente conheci
no exterior, Renato Lima de Oliveira, Arnaldo Mauremberg Jr., Danilo Limoeiro, Tesalia
Rizzo, Michael Freedman, Weihuang Wong, Andrew Miller, Nina McMurry, Dean Knox,
Yiqinq Xu, Eric Timmons e Mukul Singh. E a Guilherme Duarte, Helloana Medeiros,
Rafael Magalh˜aes e V´ıtor Sandes, que mesmo atrav´es poucos contatos - n˜ao raros virtuais
- deram ensejo a ideias importantes na condu¸c˜ao deste trabalho e desta trajet´oria.
Sou grato, ainda, `as amizades que fiz e apoios que tive no Rio de Janeiro para
al´em desta Institui¸c˜ao. A Jos´e Luis Wagner e Carlos Boechat pela confian¸ca, incentivo e
oportunidade no mundo do direito. A C´ıntia Estebanez, Monica Maia, Fernanda Kratz
e Fl´avia Lameiro pelo companheirismo. A Ademilde Ferreira (Dedˆe), Maria do Carmo,
Carlos Eduardo, Cl´audio Pereira, Maria das Gra¸cas e Cl´audio Barrocas pelo aconchego,
camaradagem e franca amizade. `
A querida equipe do Edif´ıcio Coral, que ajuda fazer da
casa onde vivemos um lar.
Aos meus pais, Luiz Roberto e Vera, a gratid˜ao ´e incomensur´avel. Foram in´umeros
os esfor¸cos que empreenderam em meu apoio, desde sempre, e os cont´ınuos incentivos `as
escolhas feitas, desde quando sa´ı de casa para viver sozinho em outra cidade, aos 17 anos.
A eles fica a minha maior d´ıvida. Gratid˜ao, tamb´em, a Roberta, mais que uma irm˜a, a
melhor amiga.
Finalmente, `a minha esposa Daiana, qualquer agradecimento ser´a pouco. Nela
encontro o conforto, a compreens˜ao, o afeto, a disciplina e a for¸ca, os pilares emocionais
sem os quais a atividade intelectual n˜ao prevalece.
Veio a Rep´ublica; e que fez? Trocando, na denomina¸c˜ao desse tribunal, o predicativo de
justi¸ca pelo qualificativo de federal, n˜ao lhe tirou o car´ater de tribunal de justi¸ca,
inerente, sobre todos, `a sua miss˜ao constitucional;
sen˜ao que, pelo contr´ario, o ampliou constituindo nele o grande tribunal da Federa¸c˜ao,
para sentenciar nas causas suscitadas entre a Uni˜ao e os Estados, e em derradeira
instˆancia, nos pleitos debatidos entre os atos do governo, ou os atos legislativos, e a
Constitui¸c˜ao.
Rui Barbosa1.
1O Supremo Tribunal Federal na Constitui¸c˜ao Brasileira. hhttp://www.casaruibarbosa.gov.br/dados/
DOC/artigos/rui barbosa/p a3.pdf i
RESUMO
CANELLO, J. Judicializando a Federa¸c˜ao? O Supremo Tribunal Federal e os atos
normativos estaduais. 2016. 291 f. Tese (Doutorado em Ciˆencia Pol´ıtica) – Instituto de
Estudos Sociais e Pol´ıticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2016.
Em que condi¸c˜oes Governadores, partidos pol´ıticos, entidades representativas e o
Procurador Geral da Rep´ublica recorrem ao Supremo Tribunal Federal para contestar os
resultados do processo decis´orio legislativo estadual? Como esses casos s˜ao decididos e
de que modo diferem das quest˜oes federais? Esta tese discute a l´ogica da utiliza¸c˜ao de
A¸c˜oes Diretas relativas a constitucionalidade de leis e atos normativos estaduais, seus
padr˜oes de decis˜ao judicial e o seu impacto na organiza¸c˜ao federativa do pa´ıs e no pro-
cesso decis´orio legislativo. Teoricamente, ap´os situar o lugar institucional do Supremo e
sua trajet´oria, examina-se a intera¸c˜ao entre os poderes no ˆambito regional e o recurso a
uma arena externa, o Supremo. Empiricamente, as quest˜oes propostas s˜ao enfrentadas
com diferentes abordagens: 1) an´alise do processamento e julgamento, no Supremo Tri-
bunal Federal, das A¸c˜oes Constitucionais propostas entre 1988 e 2015, especialmente para
comparar os padr˜oes entre aquelas que tratam de assuntos estaduais e temas federais; 2)
an´alise de indicadores pol´ıticos, institucionais, econˆomicos e de produ¸c˜ao legislativa de
nove estados entre 1991-2014, para investigar a utiliza¸c˜ao da via judicial na contesta¸c˜ao
dos resultados do processo legislativo estadual. A hip´otese central ´e que o recurso ao
Supremo associa-se `a avalia¸c˜ao do comportamento judicial pelos atores pol´ıticos, sendo
influenciado por vari´aveis institucionais e pol´ıticas de cada estado. A Corte figura n˜ao
apenas como um ponto de veto potencial que favorece um federalismo centralizador, mas
tamb´em como ator que pode trazer ganhos informacionais ao processo decis´orio. Nesse
contexto, a atua¸c˜ao do STF no controle de constitucionalidade de atos normativos es-
taduais permite um aprendizado dos atores locais quanto aos contornos da organiza¸c˜ao
federativa do pa´ıs.
Palavras-chave: Pol´ıtica estadual. Pol´ıtica judicial. Federalismo. Supremo Tribunal
Federal.
ABSTRACT
CANELLO, J. Judicializing Federation? Brazil’s Supreme Court and state-level rules.
2016. 291 f. Tese (Doutorado em Ciˆencia Pol´ıtica) – Instituto de Estudos Sociais e
Pol´ıticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.
In which conditions Governors, political parties, civil society organizations and
the Attorney General’s appeal to the Supreme Court to challenge the results of state
legislative decision-making process in Brazil? How these cases are decided and how they
differ from federal ones? The dissertation discusses the rationale of Constitutional Actions
related to state rules, its decision patterns and its impacts on public policy, on the federa-
tive organization of the country, and on legislative decision-making. Theoretically, after
discuss the institutional placement of the Supreme Court and its historical trajectory, I
examine the interactions between powers at state-level and the use of an external arena,
the Supreme Court. Empirically, two approaches are employed: 1) analysis of Consti-
tutional Actions’s processing and judgment, in the Supreme Court, between 1989 and
2015, especially to compare patterns among cases dealing with state and federal rules; 2)
analysis of state level institutional, political and economic variables, as well as legislative
production, between 1991-2014, in nine states, to investigate judicial activation as a way
to contest state-level legislative process outputs. The main hypothesis is that the appeal
to Supreme Court is associated with political players antecipation of judicial behavior,
influenced by institutional and political state-level variables. The Court is not only a
potencial veto point that favors a centralizing federalism, but also as a player that can
bring infornational gains to decision-making. In this context, STF performance before
state rules allows local players to learn about the limits of the countries’ federative orga-
nization.
Keywords: State politics. Judicial Politics. Federalism. Brazil’s Supreme Court.
LISTA DE ILUSTRAC¸ ˜
OES
Figura 1 - Poder Judici´ario no Brasil. Organograma simplificado. ......... 37
Figura 2 - N´umero de Representa¸c˜oes (pr´e-1988) e ADIs (p´os-1988) por ano. Total
e a¸c˜oes propostas pelo PGR. ........................ 72
Figura 3 - 3 ju´ızes e 2 casos em uma dimens˜ao. ................... 82
Figura 4 - 3 Ju´ızes e um caso em duas dimens˜oes. .................. 83
Figura 5 - ADIs e ADOs por ano de ajuizamento, federal x estadual, 1988-2015. . 120
Figura 6 - ADIs e ADOs por ano de edi¸c˜ao do ato normativo, federal x estadual,
1988-2015. ..................................121
Figura 7 - Lapso de ajuizamento, federal x estadual, 1988-2015. Histograma. . . . 122
Figura 8 - ADIs e ADOs por ano de julgamento, federal x estadual, 1988-2015. . . 122
Figura 9 - Taxas de decis˜ao por requerente, federal x estadual, 1988-2015. (%) . . 125
Figura 10 - Taxas de julgamento de m´erito entre processos decididos por reque-
rente, federal x estadual, 1988-2015. (%) .................126
Figura 11 - Tempo de espera at´e decis˜ao final por requerente, federal x estadual,
1988-2015. ..................................127
Figura 12 - Taxa absoluta de sucesso por requerente, federal x estadual, 1988-2015.
(%) .....................................128
Figura 13 - Taxa relativa de sucesso por requerente, federal x estadual, 1988-2015.
(%) .....................................129
Figura 14 - Taxa de sucesso em processos com julgamento de m´erito por requerente,
federal x estadual, 1988-2015. (%) ....................129
Figura 15 - N´umero de pedidos de vista por ano e curva de regress˜ao local, ADIs e
ADOs, 1988-2015. .............................131
Figura 16 - Taxa relativa de sucesso em liminar por requerente, federal x estadual,
1988-2015. (%) ...............................133
Figura 17 - N´umero de ADIs e ADOs submetidas ao rito do art. 12, com curva de
tendˆencia ajustada, 1988-2015. ......................135
Figura 18 - ADIs e ADOs dos Governadores por ano de julgamento e ajuizamento,
1988-2015. ..................................140
Figura 19 - ADIs e ADOs estaduais do PGR por ano de julgamento e ajuizamento,
1988-2015. ..................................145
Figura 20 - ADIs e ADOs do PGR e de Governadores, 1988-2015. ..........147
Figura 21 - ADIs e ADOs dos Partidos por ano de ajuizamento e julgamento, es-
tadual x federal, 1988-2015. ........................150
Figura 22 - Taxas de sucesso relativo dos partidos por posi¸c˜ao ideol´ogica, 1988-
2015. (%) ..................................152
Figura 23 - Taxas de sucesso relativo dos partidos por alinhamento aos governos,
1988-2015. (%) ...............................153
Figura 24 - ADIs e ADOs dos partidos por ano, governo x oposi¸c˜ao, com curvas de
tendˆencia ajustadas, 1988-2015. ......................153
Figura 25 - ADIs e ADOs dos partidos por ano, esquerda x direita, com curvas de
tendˆencia ajustadas, 1988-2015. ......................154
Figura 26 - ADIs e ADOs de entidades por ano, Comunidade Jur´ıdica x Entidades
Gerais, 1988-2015. .............................158
Figura 27 - ADIs e ADOs de entidades por ano, Sucesso x Fracasso, 1988-2015. . . 159
Figura 28 - ADPFs propostas e julgadas por ano, 2000-2015. ............163
Figura 29 - Tempo de dura¸c˜ao das ADs sobre conflitos federativos, 1988-2015. . . . 168
Figura 30 - ADs sobre conflitos federativos por ano, 1988-2015. ...........169
Figura 31 - Probabilidades esperadas para obten¸c˜ao de decis˜ao e julgamento de
m´erito, estadual x federal, 100.000 simula¸c˜oes. ..............175
Figura 32 - Probabilidades esperadas, decis˜ao final n˜ao unˆanime, estadual x federal,
100.000 simula¸c˜oes. .............................177
Figura 33 - Principais resultados para julgamento de procedˆencia (total ou parcial). 179
Figura 34 - Probabilidades esperadas, concess˜ao de liminar e julgamento de pro-
cedˆencia, estadual x federal, 100.000 simula¸c˜oes. .............181
Figura 35 - Principais resultados para Parecer do PGR x Resultado final proce-
dente. P´os-Matching. ............................186
Figura 36 - Probabilidades esperadas para julgamento de procedˆencia em fun¸c˜ao
do Parecer do PGR, 100.000 simula¸c˜oes. Modelo p´os-matching . . . . . 187
Figura 37 - Casos iniciados e julgamentos de procedˆencia por ano. 9 UFs, 1990-2014.198
Figura 38 - Casos iniciados por Governadores e PGR. 9 UFs, 1990-2014. ......199
Figura 39 - Casos iniciados por Partidos e Entidades. 9 UFs, 1990-2014. ......199
Figura 40 - Leis e ECs contestadas, por ano de edi¸c˜ao. 9 UFs, 1990-2014. . . . . . 200
Figura 41 - A¸c˜oes propostas e julgamentos de procedˆencia, por UF. 1990-2014. . . 201
Figura 42 - A¸c˜oes propostas por Governadores e PGR, por UF. 1990-2014. . . . . . 202
Figura 43 - A¸c˜oes dos Governadores, por ano, geral e amostra. 1990-2014. . . . . . 202
Figura 44 - Contagens esperadas para a¸c˜oes estaduais em fun¸c˜ao do perfil do go-
verno. Estado/ano. 100.000 simula¸c˜oes. .................205
Figura 45 - Contagens esperadas para a¸c˜oes estaduais em fun¸c˜ao do PIB per capita.
Estado/ano. 100.000 simula¸c˜oes. .....................206
Figura 46 - Contagens esperadas para leis contestadas em fun¸c˜ao do perfil da coa-
liz˜ao. Estado/ano. 100.000 simula¸c˜oes. ..................207
Figura 47 - Modelo para leis contestadas pelo Governador. Principais resultados. . 208
Figura 48 - Contagens esperadas para leis contestadas pelo Governador. Estado/ano.
100.000 simula¸c˜oes. .............................209
Figura 49 - Contagens esperadas para leis contestadas pelo PGR. Estado/ano. 100.000
simula¸c˜oes. .................................211
Figura 50 - Contagens esperadas para leis contestadas por partidos. Estado/ano.
100.000 simula¸c˜oes. .............................212
Figura 51 - Contagens esperadas para leis contestadas por entidades. Estado/ano.
100.000 simula¸c˜oes. .............................213
Figura 52 - Contagens esperadas para leis contestadas. Antes e desde 2003. Es-
tado/ano. 100.000 simula¸c˜oes. .......................221
Figura 53 - Diferen¸cas nas m´edias padronizadas, antes (c´ırculo aberto) e ap´os (c´ırculos
preenchido) pareamento. ..........................275
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 - ADs decididas e sem decis˜ao. 1988-2015. .................112
Tabela 2 - Processos decididos com e sem julgamento de m´erito. 1988-2015. . . . 113
Tabela 3 - N´umero de A¸c˜oes Diretas por tipo de requerente. 1988-2015. . . . . . . 114
Tabela 4 - A¸c˜oes Diretas por n´ıvel federativo do ato normativo. 1988-2015. . . . . 114
Tabela 5 - ADIs e ADOs federais e estaduais por tipo de requerido. 1988-2015. . . 116
Tabela 6 - ADIs e ADOs federais e estaduais por abrangˆencia do ato impugnado.
1988-2015. ..................................117
Tabela 7 - ADIs e ADOs por ´area tem´atica, estaduais e federais. 1988-2015. . . . 118
Tabela 8 - Cruzamento entre ´area tem´atica e tipo de requerente. ADIs e ADOs.
1988-2015. ..................................119
Tabela 9 - Parecer do PGR (conhecimento) e resultado. A¸c˜oes decididas de outros
requerentes. 1988-2015. ..........................137
Tabela 10 - Parecer do PGR (m´erito) e resultado. A¸c˜oes decididas de outros re-
querentes. 1988-2015. ............................137
Tabela 11 - Resultado por ´
Area tem´atica. ADIs e ADOs dos Governadores. 1988-
2015. .....................................139
Tabela 12 - ADIs e ADOs dos Governadores por estado (mais de 5%), 1988-2015. . 141
Tabela 13 - ADIs e ADOs do Procurador Geral da Rep´ublica por ´area tem´atica,
estadual x federal, 1988-2015. .......................143
Tabela 14 - ADIs e ADOs do PGR por resultado obtido, estadual x federal. 1988-
2015. .....................................144
Tabela 15 - ADIs e ADOs do PGR por ´area e resultado simplificado. 1988-2015 . . 146
Tabela 16 - ADIs e ADOs de entidades por ´area tem´atica e n´ıvel federativo. 1988-
2015. .....................................156
Tabela 17 - ADPFs por ´area tem´atica e n´ıvel federativo, 2000-2015 .........162
Tabela 18 - ADs sobre conflitos federativos por ´area tem´atica e tipo, 1988-2015. . . 167
Tabela 19 - ADs sobre conflitos federativos por resultado final e tipo, 1988-2015. . . 168
Tabela 20 - Estat´ısticas descritivas das principais vari´aveis estaduais. 1990-2014 . . 195
Tabela 21 - Cruzamento entre partido do governador e status do governo. 1990-2014.196
Tabela 22 - Cruzamento entre UF e status do governo. 1990-2014. .........197
Tabela 23 - Modelos de regress˜ao log´ıstica para decis˜ao em processos (final ou li-
minar). ...................................266
Tabela 24 - Modelos de regress˜ao log´ıstica para julgamento de m´erito em processos
decididos. ..................................267
Tabela 25 - Modelos de regress˜ao log´ıstica para decis˜ao n˜ao-unˆanime em julgamen-
tos no plen´ario. ...............................269
Tabela 26 - Modelos de regress˜ao log´ıstica para concess˜ao de liminar. ........270
Tabela 27 - Modelos de regress˜ao log´ıstica para procedˆencia total ou parcial da a¸c˜ao.272
Tabela 28 - Modelos de regress˜ao log´ıstica. Parecer PGR favor´avel x resultado final
procedente (total ou parcial). .......................274
Tabela 29 - Modelos de regress˜ao log´ıstica P´os-Matching. Parecer PGR favor´avel
x resultado final procedente (total ou parcial). ..............276
Tabela 30 - Testes t para diferen¸cas de m´edias em fun¸c˜ao do status do governo.
Pontos de corte em 50% (status1) e em 40% (status2), incluindo coa-
liz˜oes quase majorit´arias. ..........................278
Tabela 31 - An´alise de Variˆancia em fun¸c˜ao do status do governo. ..........278
Tabela 32 - An´alise de Variˆancia em fun¸c˜ao do partido do Governador. .......278
Tabela 33 - Modelos de regress˜ao para ajuizamento. Binomial negativa com efeitos
aleat´orios. ..................................279
Tabela 34 - Modelos de regress˜ao para ajuizamento. Binomial negativa com efeitos
fixos. .....................................280
Tabela 35 - Modelos de regress˜ao para leis contestadas. Binomial Negativa com
efeitos aleat´orios. ..............................281
Tabela 36 - Modelos de regress˜ao para leis contestadas. Binomial negativa com
efeitos fixos. .................................282
Tabela 37 - Modelos para a¸c˜oes dos governadores. Binomial negativa com efeitos
aleat´orios. ..................................283
Tabela 38 - Modelos para a¸c˜oes dos governadores. Binomial negativa com efeitos
fixos. .....................................284
Tabela 39 - Modelos para a¸c˜oes do PGR. Binomial Negativa com efeitos aleat´orios. 285
Tabela 40 - Modelos para a¸c˜oes do PGR. Binomial Negativa com efeitos fixos. . . . 286
Tabela 41 - Modelos para a¸c˜oes dos partidos. Binomial negativa com efeitos aleat´orios.287
Tabela 42 - Modelos para a¸c˜oes dos partidos. Binomial Negativa com efeitos fixos. 288
Tabela 43 - Modelos para a¸c˜oes das entidades. Binomial negativa com efeitos aleat´orios.289
Tabela 44 - Modelos para a¸c˜oes de entidades. Binomial negativa com efeitos fixos. . 290
Tabela 45 - Modelos com intera¸c˜ao (diferen¸cas em diferen¸cas) para a¸c˜oes propostas
por governador ...............................290
Tabela 46 - Testes de falsifica¸c˜ao para a¸c˜oes propostas por governador .......291
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
AD A¸c˜ao Direta
ADC A¸c˜ao Declarat´orio de Constitucionalidade
ADI A¸c˜ao Direta de Inconstitucionalidade
ADO A¸c˜ao Direta de Inconstitucionalidade por Omiss˜ao
ADPF Argui¸c˜ao de Descumprimento de Preceito Fundamental
ADs A¸c˜oes Diretas
AI Ato Institucional
AM Amazonas
BA Bahia
CF Constitui¸c˜ao Federal
CNJ Conselho Nacional de Justi¸ca
CONFAZ Conselho Nacional de Pol´ıtica Fazend´aria
CPI Comiss˜ao Parlamentar de Inqu´erito
DEM Democratas
EC Emenda `a Constitui¸c˜ao
ICMS Imposto sobre Circula¸c˜ao de Mercadorias e Servi¸cos
IPI Imposto sobre Produtos Industrializados
MG Minas Gerais
MT Mato Grosso
OAB Ordem dos Advogados do Brasil
PE Pernambuco
PEC Proposta de emenda `a Constitui¸c˜ao
PGR Procurador Geral da Rep´ublica
PIB Produto Interno Bruto
PDT Partido Democr´atico Trabalhista
PFL Partido da Frente Liberal
PMDB Partido do Movimento Democr´atico Brasileiro
PMN Partido da Mobiliza¸c˜ao Nacional
PPR Partido Progressista Renovador
PPS Partido Popular Socialista
PRS Partido das Reformas Sociais
PSB Partido Socialista Brasileiro
PSDB Partido da Social Democracia Brasileira
PSL Partido do Solidarismo Libertador
PT Partido dos Trabalhadores
PTR Partido Trabalhista Reformador
RE Recurso Extraordin´ario
RJ Rio de Janeiro
RO Rondˆonia
RP Representa¸c˜ao
RS Rio Grande do Sul
SP S˜ao Paulo
STF Supremo Tribunal Federal
STJ Superior Tribunal de Justi¸ca
STM Superior Tribunal Militar
TCU Tribunal de Contas da Uni˜ao
TJ Tribunal de Justi¸ca
TRF Tribunal Regional Federal
TRT Tribunal Regional do Trabalho
TRE Tribunal Regional Eleitoral
TST Tribunal Superior do Trabalho
TSE Tribunal Superior Eleitoral
UF Unidade da Federa¸c˜ao
SUM ´
ARIO
INTRODUC¸ ˜
AO ............................... 20
1INSTITUIC¸ ˜
OES JUDICI ´
ARIAS E CONTROLE DE CONSTI-
TUCIONALIDADE ............................ 33
1.1 Sistema Judicial Brasileiro: desenho institucional .......... 34
1.1.1 Organiza¸c˜ao do Poder Judici´ario ....................... 34
1.1.2 Supremo Tribunal Federal nas institui¸c˜oes vigentes ............. 42
1.2 Controle de Constitucionalidade e seus modos na federa¸c˜ao bra-
sileira ...................................... 50
1.2.1 Modelos de controle de constitucionalidade ................. 50
1.2.2 Sistema vigente, tipos de a¸c˜oes e t´ecnicas de decis˜ao ............ 55
1.3 Um pouco de hist´oria: Supremo e Federa¸c˜ao ............. 61
2TEORIAS DE DECIS ˜
AO JUDICIAL E INTERAC¸ ˜
AO ENTRE
PODERES .................................. 74
2.1 Marcos legais, atitudes ou estrat´egia? ................. 75
2.1.1 O modelo legal ................................. 77
2.1.2 O modelo atitudinal .............................. 81
2.1.3 O modelo estrat´egico .............................. 85
2.1.4 Complementaridades poss´ıveis para o caso brasileiro ............ 89
2.2 Jogos de separa¸c˜ao de poderes: modelos estrat´egicos em sua
dimens˜ao externa .............................. 92
2.2.1 Uma adapta¸c˜ao tupiniquim interessa? .................... 95
2.3 A ativa¸c˜ao da Corte: Federalismo como fator de assimetrias e
Supremo como ponto de veto ....................... 98
2.3.1 Atores distintos, incentivos diversos ......................100
3JULGANDO A POL´ıTICA ESTADUAL? PROCESSAMENTO
E DECIS ˜
AO EM CASOS FEDERAIS E ESTADUAIS ......111
3.1 Comparando padr˜oes ............................111
3.1.1 Governadores ..................................136
3.1.2 Procuradores ..................................142
3.1.3 Partidos .....................................147
3.1.4 Sociedade Civil ou Comunidade Jur´ıdica? ..................152
3.1.5 ADPFs, ADCs e suas circunstˆancias .....................160
3.2 Conflitos federativos ............................164
3.3 O que faz uma a¸c˜ao de controle concentrado ser bem sucedida? . 172
3.3.1 O parecer do Procurador Geral da Rep´ublica interessa? ..........182
4POR QUE RECORRER? A L ´
OGICA DA ATIVAC¸ ˜
AO JUDI-
CIAL .....................................189
4.1 Incentivos ao ajuizamento .........................191
4.1.1 Resultados gerais ................................192
4.1.2 Modelos e estimativas .............................203
4.2 Decis˜oes judiciais mudam o comportamento dos atores pol´ıticos?
Uma hip´otese informacional para os governadores ..........214
4.2.1 Estrat´egia emp´ırica ..............................216
4.2.2 Principais resultados ..............................220
CONCLUS ˜
AO ................................224
REFERˆ
ENCIAS ..............................235
APˆ
ENDICE A – Descri¸c˜ao dos dados ...................251
APˆ
ENDICE B – Notas Metodol´ogicas e resultados obtidos .......265
20
INTRODUC¸ ˜
AO
Quinta-feira, 06 de outubro de 1988. “Promulgada a nova Constitui¸c˜ao”, anun-
ciava O Globo; “Ulysses faz sua a festa da promulga¸c˜ao”, dizia a Folha de S˜ao Paulo.
Vigia a Nova Ordem Constitucional, desde as 15:50 do quinto dia daquele mˆes, subme-
tendo poderes constitu´ıdos ao novo regramento jur´ıdico-pol´ıtico m´aximo do pa´ıs. Nesse
mesmo dia, o Governador do Estado de Rondˆonia recorre ao Supremo Tribunal Federal,
atrav´es de A¸c˜ao Direta, buscando a declara¸c˜ao de inconstitucionalidade de Lei e Decreto-
Lei estaduais que tratavam sobre a remunera¸c˜ao dos Desembargadores do Tribunal de
Justi¸ca. O pedido formulado pelo primeiro governador eleito daquele estado somente foi
decidido quatro anos depois, em fevereiro de 1992, por um s´o Ministro. C´elio Borja, em
seu gabinete, aplicando a chamada jurisprudˆencia defensiva da Corte - uma pr´atica de
autoconten¸c˜ao - negou seguimento `a a¸c˜ao. Com pouco mais de 170 palavras, resumiu o
caso e indicou que n˜ao cabe a¸c˜ao direta contra ato normativo anterior `a Constitui¸c˜ao de
1988.
“STF d´a ao Senado poder de barrar impeachment”,“Dilma obt´em vit´oria no STF
sobre o rito de impeachment”, s˜ao as manchetes de capa dos mesmos jornais, 27 anos
depois, em 18 de dezembro de 2015. Noticiavam o julgamento de uma Argui¸c˜ao de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), proposta pelo Partido Comunista do
Brasil, no dia 3 daquele mˆes, e que levou duas se¸c˜oes de longos votos e debates entre os
11 Ministros do Tribunal. Por maioria, vencido o Relator, Min. Edson Fachin, decidiu-se,
em suma, que v´arios dispositivos - ou interpreta¸c˜oes poss´ıveis - de uma Lei anterior `a
Constitui¸c˜ao vigente s˜ao inconstitucionais, a de n. 1.709 de 1950, que trata sobre crimes
de responsabilidade. O ano judici´ario encerrava com um julgamento de grande repercuss˜ao
p´ublica e institucional, enunciando as regras a serem obedecidas em caso de processo de
impedimento de Presidente da Rep´ublica. Mas, ele tamb´em contou com decis˜oes plen´arias
pouco noticiadas, como uma A¸c˜ao Direta de Inconstitucionalidade (ADI) julgada no dia
em que circularam tais manchetes, proposta pelo Procurador Geral da Rep´ublica, em
1994, contra dispositivo da Constitui¸c˜ao do Estado do Maranh˜ao sobre tributos, regra
que j´a n˜ao tinha efeitos, desde uma decis˜ao liminar com mais de 20 anos.
Os epis´odios acima ilustram parte da diversidade de casos apreciados pelo Supremo
Tribunal Federal no controle direto da constitucionalidade de leis e atos normativos fede-
rais e estaduais em dois momentos distintos de sua hist´oria recente. Ao longo de quase 30
anos desde a promulga¸c˜ao da Constitui¸c˜ao de 1988 e da redemocratiza¸c˜ao do pa´ıs, o STF
tem sido chamado a decidir sobre a validade de leis e a solu¸c˜ao de situa¸c˜oes t˜ao distintas
como: processo de impeachment; Fundo de Participa¸c˜ao dos Estados; aborto de fetos
anenc´efalos; amplitude do foro de prerrogativa de fun¸c˜ao; pesquisas com c´elulas-tronco
embrion´arias; autonomia das defensorias p´ublicas estaduais; uni˜oes homoafetivas; regime
21
de precat´orios para pagamentos de d´ıvidas da Fazenda P´ublica; validade da Lei Maria
da Penha sobre violˆencia contra a mulher; planos econˆomicos, como o Plano Collor; fi-
nanciamento de campanhas eleitorais, verticaliza¸c˜ao de coliga¸c˜oes e cl´ausula de barreira;
efeitos da reforma da previdˆencia e contribui¸c˜ao de servidores aposentados; validade da
Lei da Ficha Limpa; guerra fiscal e incentivos tribut´arios dos estados; privatiza¸c˜oes, como
da Companhia Vale do Rio Doce; recep¸c˜ao da Lei de Imprensa; loterias estaduais; re-
munera¸c˜ao, cargos e carreiras de servidores p´ublicos; prerrogativas dos governadores; co-
bran¸cas de taxas de ilumina¸c˜ao p´ublica; composi¸c˜ao dos Tribunais de Contas dos estados.
Apesar do debate cont´ınuo sobre o tamanho e significado da atua¸c˜ao desse Tribunal na
democracia brasileira contemporˆanea, os exemplos s˜ao suficientes para revelar que suas
decis˜oes podem afetar diferentes ´areas de pol´ıticas p´ublicas e das rela¸c˜oes institucionais.
Desde a d´ecada de 90, influenciada pela obra de Tate e Vallinder (1995), a ciˆencia
pol´ıtica e sociologia brasileira tˆem buscado identificar e problematizar, na atua¸c˜ao do
Supremo, especialmente em a¸c˜oes constitucionais, a chamada judicializa¸c˜ao da pol´ıtica,
como nos pioneiros estudos emp´ıricos de Castro (1997)eVianna (1999a). Com enfoques
diferenciados - e melhores ou piores rendimentos anal´ıticos - um crescente de publica¸c˜oes
nas ciˆencias sociais e no direito tˆem examinado, por um lado, as implica¸c˜oes sociais,
pol´ıticas e institucionais da atua¸c˜ao da Corte em tais casos e, por outro, as influˆencias e
tens˜oes sofridas por este ´org˜ao do sistema de justi¸ca no bojo do desenho constitucional
contemporˆaneo.
´
E crescente o interesse em problemas tangentes ao campo da pol´ıtica judicial ou ju-
dici´aria (judicial politics ), sobretudo no funcionamento, lugar institucional e papel pol´ıtico
do Supremo. Mas persiste uma importante lacuna te´orica e emp´ırica quando a aten¸c˜ao
recai sobre as decis˜oes que afetam a pol´ıtica estadual. Apesar da maior parte das A¸c˜oes
Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) tratar de leis e atos normativos estaduais e do
fato do Brasil ser uma federa¸c˜ao, dividindo competˆencias legislativas entre Uni˜ao, estados
e munic´ıpios, os esfor¸cos de pesquisa na ´area geralmente restringem-se ao n´ıvel federal.
O prop´osito dessa tese ´e preencher algumas dessas lacunas. Duas dimens˜oes interessam
especialmente: 1) a ativa¸c˜ao do Supremo por atores pol´ıticos com interesses estaduais ou
federativos; 2) sua atua¸c˜ao ao decidir casos relativos a essa esfera local. Aqui, a an´alise
recai sobre as a¸c˜oes constitucionais, sobre o acionamento e performance do Tribunal ao
julgar se leis e atos normativos estaduais s˜ao constitucionais ou n˜ao.
Em perspectiva comparada, o controle de constitucionalidade e a revis˜ao judicial
(judicial review) de leis e atos normativos ´e uma das facetas mais aparentes das rela¸c˜oes
entre o Poder Judici´ario e o Legislativo. Atrav´es de tais ferramentas jur´ıdico-pol´ıticas,
Cortes interagem com parlamentos e governos afetando o processo decis´orio e interferindo
no desenvolvimento e implementa¸c˜ao de pol´ıticas p´ublicas. Mesmo nos pa´ıses perif´ericos,
a era em que o Judici´ario poderia ser deixado `a irrelevˆancia pol´ıtica j´a passou. De um lado,
o princ´ıpio democr´atico e o rule of law, traduzidos em renovados desenhos institucionais,
22
incluindo o regime brasileiro p´os-1988, revelam a importˆancia deste Poder no est´agio final
do processo decis´orio legislativo, especialmente por meio da revis˜ao judicial exercida pelas
Cortes constitucionais. Por outro lado, o sentido das decis˜oes judiciais pode afetar n˜ao
apenas o conte´udo das pol´ıticas, mas tamb´em os limites `a implementa¸c˜ao, situando os
atores judiciais como policy-makers ocasionais. Finalmente, atores “tradicionais”(como
partidos, governos, legisladores, grupos e organiza¸c˜oes da sociedade civil) encontram um
recurso pol´ıtico adicional, permitindo a contesta¸c˜ao dos resultados de processos decis´orios
e expandindo as possibilidades de debate pela “judicializa¸c˜ao”de quest˜oes ent˜ao restritas
a outras arenas.
Embora os founding fathers da democracia americana (HAMILTON,1788) alertas-
sem para a fragilidade relativa de um Poder que n˜ao tem influˆencia sobre a espada, nem
sobre a bolsa - raz˜ao para sua independˆencia -, desde o texto seminal de Dahl (1957), n˜ao
´e mais poss´ıvel ignorar o papel, mais do que eventual, das Cortes nos processos pol´ıticos,
inclusive em apoio a pol´ıticas do governo, para al´em da fun¸c˜ao contramajorit´aria dog-
maticamente atribu´ıda ao judici´ario.2. Com marco em tal reflex˜ao, o campo da judicial
politics desenvolveu-se na ciˆencia pol´ıtica norte-americana. Suas preocupa¸c˜oes v˜ao desde
as condi¸c˜oes e efeitos da intera¸c˜ao entre Cortes, Legislativos e Executivos at´e a an´alise das
decis˜oes judiciais, seus incentivos e motiva¸c˜oes. Com a terceira onda de democratiza¸c˜ao
(HUNTINGTON,1991)(HAGOPIAN; MAINWARING,2005) e a prolifera¸c˜ao de Cortes
Constitucionais, a pol´ıtica comparada passou a examinar esse conjunto de problemas.
Nesse sentido, Tate e Vallinder (1995) enfatizam a expans˜ao do poder judicial ao redor
do globo e promovem ou incentivam uma extensa - e n˜ao esgotada3- discuss˜ao sobre a
judicializa¸c˜ao da pol´ıtica.
Dado o desenho institucional apresentado pela Constitui¸c˜ao de 1988 e os acha-
dos emp´ıricos sobre o crescente uso do Supremo na tentativa de revis˜ao dos resultados
2No plano da dogm´atica constitucional cl´assica, calcada numa interpreta¸c˜ao mais corriqueira do
princ´ıpio da separa¸c˜ao de poderes, o Judici´ario funciona como mecanismo de freios e contrapesos
`a medida em que se op˜oe a decis˜oes da maioria que afrontem direitos individuais ou fundamentais. A
partir disso, no caso americano, foi desenvolvida a ideia de “dificuldade contramajorit´aria” (BICKEL,
1986), progressivamente ampliada como ponto de tens˜ao no constitucionalismo democr´atico. Ou seja,
em que medida ´e poss´ıvel aceitar que o controle de constitucionalidade, num regime democr´atico, seja
exercido contra a vontade dominante dos representantes do povo? Nessa linha, a expectativa que as
Cortes exer¸cam concretamente tal tipo de papel pode fazer da judicializa¸c˜ao esp´ecie de ant´ıdoto, das
elites pol´ıticas, `a participa¸c˜ao democr´atica e `a pol´ıtica majorit´aria (HIRSCHL,2004).
3Em pol´ıtica judicial comparada, h´a importantes an´alises de casos e coletˆaneas que examinam o tema.
Ginsburg (2003) trata sobre as novas Cortes Constitucionais em pa´ıses asi´aticos; Ginsburg (2008)
revisa a literatura e discute a problem´atica sobre a amplia¸c˜ao da revis˜ao judicial ao redor do mundo;
Hirschl (2008) trata, especificamente, da discuss˜ao sobre o conceito de judicializa¸c˜ao da pol´ıtica, suas
causas e a fronteira relativa `a “mega pol´ıtica”; enquanto Hirschl (2004) debate a amplia¸c˜ao do poder
das Cortes Constitucionais no processo pol´ıtico nos casos do Canad´a, Nova Zelˆandia, Israel e ´
Africa do
Sul. Para os pa´ıses da Am´erica Latina, destacam-se as coletˆaneas de Sieder, Schjolden e Angell (2005)
eHelmke e Figueroa (2011).
23
do processo pol´ıtico decis´orio, essas preocupa¸c˜oes tamb´em est˜ao presentes para o caso
brasileiro. Vianna (1999a) and Pogrebinschi (2011) s˜ao representativos de dois est´agios
distintos e complementares desse debate. Inicialmente, a descoberta do crescente uso
das A¸c˜oes Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) por diferentes atores sociais e pol´ıticos
sugeriu: 1) a judicializa¸c˜ao de quest˜oes e decis˜oes pol´ıticas, 2) que direitos negados no
processo pol´ıtico usual poderiam ser postulados na arena judicial, dando ensejo a for-
mas distintas de cidadania e representa¸c˜ao democr´atica e 3) que minorias passaram a
demandar o exerc´ıcio de um papel institucional de veto pelo STF. Num segundo mo-
mento, com o exame sistem´atico das decis˜oes desses casos e o eventual reexame dos temas
pelo Congresso, a imagem do papel contramajorit´ario desse Poder passa a ser desafiada.
Considerando atos normativos federais, o comportamento modal do STF ´e confirmar de-
cis˜oes do Legislativo. Nesta seara, sugere-se a possibilidade do Tribunal desempenhar um
certo “experimentalismo democr´atico”(POGREBINSCHI,2011) ou promover “di´alogos
constitucionais”(BRAND˜aO,2012), `a luz dos casos em que, por um lado, a interpreta¸c˜ao
constitucional desafia a autoridade legislativa, mas, por outro, a atividade governamental
e parlamentar redimensionam as restri¸c˜oes judiciais.
Apesar do avan¸co desses interesses de pesquisa no Brasil, com uma preocupa¸c˜ao
crescente na inclus˜ao do judici´ario - e da Suprema Corte - como um ator importante no
sistema pol´ıtico, o foco priorit´ario dos estudos na esfera federal passa ao largo daqueles
casos de maior recorrˆencia: o exame da constitucionalidade de leis e atos normativos es-
taduais. Sob um primeiro aspecto, as tentativas de refinamento te´orico e desenvolvimento
de modelos anal´ıticos para explicar a decis˜ao judicial tˆem incorporado, basicamente, as
intera¸c˜oes com o Congresso e Governo Federal (TAYLOR,2008) (MAGALH˜aES; MIG-
NOZZETTI,2012). Em adendo, os poucos estudos dedicados a decis˜oes sobre quest˜oes
estaduais raramente desdobram as associa¸c˜oes emp´ıricas ou raz˜oes te´oricas com maior de-
talhamento (KAMINSKI,2013) (TOMIO; FILHO,2013) (COSTA; BENVINDO,2014).
Nos ´ultimos vinte e cinco anos, as ciˆencias sociais brasileiras desenvolveram um
volume significativo de estudos explorando facetas importantes do sistema pol´ıtico brasi-
leiro e suas institui¸c˜oes p´os-redemocratiza¸c˜ao. No bojo desses esfor¸cos, desenvolveram-se
literaturas paralelas sobre o Congresso Nacional e suas rela¸c˜oes com o Executivo, por um
lado, e os estudos sobre judici´ario, especialmente quanto `a “judicializa¸c˜ao da pol´ıtica”,
por outro. Associadas ao primeiro, tamb´em aparecem an´alises sobre o processo decis´orio
subnacional, assim como em rela¸c˜ao ao federalismo brasileiro.
De modo geral, as influˆencias te´oricas que tˆem orientado cada um desses interesses
de pesquisa s˜ao distintas. No caso dos estudos sobre legislativo, especialmente preocupa-
dos com problemas de governabilidade, predominou um tipo de an´alise institucional com
forte influˆencia da literatura norte-americana. Veja-se, por exemplo, a referˆencia cen-
tral que se tornou o texto de Limongi (1994) ao resenhar as principais vertentes anal´ıticas
desse campo de estudos nos EUA. Ao longo do per´ıodo, o desenvolvimento dessa literatura
24
esteve recorrentemente vinculado a teorias de escolha racional, inclusive `a modelagem for-
mal, bem como fez uso de tratamento estat´ıstico ou econom´etrico na an´alise emp´ırica. ´
E
nesse contexto acadˆemico que o “presidencialismo de coaliz˜ao” ganhou relevo nos debates
nacional e subnacional.
No caso dos estudos sobre judici´ario, uma perspectiva de an´alise similar `a pri-
meira, em alguma medida assemelhada aos modelos estrat´egicos ou atitudinais de decis˜ao
judicial, ´e de menor tamanho na academia brasileira. Apesar de existir uma significativa
produ¸c˜ao sob essa linha em estudos comparados e relativos `a Suprema Corte dos EUA,
a preocupa¸c˜ao estrat´egica quanto `a atua¸c˜ao do judici´ario brasileiro, seus modos de deci-
dir e sua ativa¸c˜ao pelos atores pol´ıticos tem merecido pouca aten¸c˜ao. Nessa abordagem,
respons´avel pelo desenvolvimento dos “jogos de separa¸c˜ao de poderes”, assume-se que as
Cortes tamb´em possuem preferˆencias sobre as pol´ıticas submetidas `a sua aprecia¸c˜ao e
suas decis˜oes s˜ao estrat´egicas na medida em que consideram as preferˆencias dos demais
atores e suas a¸c˜oes. Do mesmo modo, salvo exce¸c˜oes, n˜ao se encontra na an´alise nacional
modelos atitudinais que busquem explicar a decis˜ao judicial em moldes an´alogos ao pro-
duzido na literatura internacional. Por essa vertente, considera-se que a decis˜ao ´e tomada
a partir das atitudes e valores ideol´ogicos sinceros do juiz, minimizando o componente
estrat´egico, mas permanecendo importante seu conte´udo pol´ıtico.
Nos estudos feitos no Brasil, ao menos em sua primeira gera¸c˜ao, prevaleceram
quest˜oes de ordem jur´ıdica, sociol´ogica ou “macropol´ıtica”, com alguma influˆencia de au-
tores europeus4, mas tendo a autorreferˆencia como marca. Tal como identifica Taylor
(2007), apenas a an´alise do tipo institucional parece ter vingado (ainda que ela seja dis-
tinta do formato “institucional” dos estudos legislativos, por exemplo), com pouco espa¸co
para os modelos estrat´egico e atitudinal. Ao final, nossas pesquisas sobre judici´ario e
pol´ıtica, ao insistirem num nebuloso debate sobre “judicializa¸c˜ao”, pouco buscam re-
ferˆencias, te´oricas ou comparativas, na produ¸c˜ao acadˆemica do campo da judicial politics.
Por conta desse descolamento de perspectivas e interesses, os estudos sobre o sis-
tema pol´ıtico brasileiro mais preocupados em entender e identificar como fatores pol´ıticos
de contexto ou de desenho institucional afetam as pol´ıticas p´ublicas apenas recentemente
tˆem incorporado o judici´ario. A ˆenfase ora recai no executivo, legislativo, partidos, sis-
tema eleitoral, federalismo, grupos de interesse, mas dificilmente no judici´ario e, quando
faz, a interpreta¸c˜ao ou an´alise pouco considera suas intera¸c˜oes com as outras institui¸c˜oes
no ˆambito dos processos decis´orios. Tal preocupa¸c˜ao j´a foi vocalizada por Taylor (2007) e
come¸cou a ser enfrentada partir dos trabalhos de Taylor e Ros (2008), Pogrebinschi (2011)
e outros, formando, junto com crescente produ¸c˜ao exposta nos congressos nacionais de
Ciˆencia Pol´ıtica e Ciˆencias Sociais, uma segunda gera¸c˜ao de estudos sobre o judici´ario no
4Tais como: Garapon (1996); Ost (1991) e Cappelletti (1989);Cappelletti e Garth (1989).
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sistema pol´ıtico brasileiro.
Se o judici´ario n˜ao est´a suficientemente presente nas investiga¸c˜oes sobre pol´ıticas
p´ublicas em geral, ele ´e quase um ausente quando a preocupa¸c˜ao se d´a em torno da
elabora¸c˜ao de leis ou no ˆambito das rela¸c˜oes entre governo e Congresso, com algumas
exce¸c˜oes (valendo citar Pogrebinschi (2011)). Assim como a edi¸c˜ao de legisla¸c˜ao pode ser
considerada uma fase intermedi´aria ou mesmo inicial da produ¸c˜ao de pol´ıticas p´ublicas, ela
tamb´em n˜ao corresponde ao momento derradeiro do processo decis´orio legislativo. Apesar
da aten¸c˜ao da academia `a fase congressual da produ¸c˜ao de leis (especialmente porque nesse
momento a rela¸c˜ao entre executivo e legislativo e a interveniˆencia dos partidos pol´ıticos ´e
mais vis´ıvel), ap´os esse trˆamite e a possibilidade de veto pelo executivo, os atores pol´ıticos
podem tamb´em recorrer ao judici´ario, especialmente ao Supremo Tribunal Federal no
controle concentrado de constitucionalidade. Mesmo sendo esse um aspecto b´asico da
institucionalidade brasileira atual, bem como um fenˆomeno emp´ırico recorrente, tal como
j´a indicavam os estudos de Vianna (1999a), Vianna, Burgos e Salles (2007), ou Castro
(1997), a l´ogica da ativa¸c˜ao do judici´ario no bojo do processo decis´orio legislativo e da
tomada das decis˜oes judiciais tem encontrado pouco espa¸co, com estudos primordialmente
explorat´orios ou descritivos.
Em adendo, esses mesmos estudos da judicializa¸c˜ao da pol´ıtica no Brasil, quando
observam o volume de A¸c˜oes Diretas de Inconstitucionalidade tramitando no Supremo
Tribunal Federal, apontam a predominˆancia dos Governadores como autores dessa esp´ecie
de a¸c˜ao judicial e indicam que as Leis Estaduais comp˜oem o principal tipo de legisla¸c˜ao
impugnada desse modo (Vianna (1999a)eVianna, Burgos e Salles (2007), por exemplo).
Do mesmo modo, os trabalhos que observam o resultado das ADIs tamb´em indicam que
o julgamento de procedˆencia ou parcial procedˆencia (declara¸c˜ao de inconstitucionalidade)
recai sobretudo nas normas estaduais (SILVA,2011) (POGREBINSCHI,2011). Ou seja,
em certo sentido, a pol´ıtica estadual e seu processo decis´orio legislativo figuram no centro
do controle concentrado de constitucionalidade, daquilo que parte da literatura aponta
como revelador da judicializa¸c˜ao da pol´ıtica (ou uma de suas condi¸c˜oes necess´arias).
Apesar dos estudos explorat´orios e an´alises descritivas da primeira gera¸c˜ao j´a in-
dicarem essa prevalˆencia, bem como apontarem o sentido recorrente das decis˜oes (ponto
relevante para o tema do federalismo brasileiro), s˜ao poucas as tentativas de apreender
as motiva¸c˜oes da ativa¸c˜ao judicial pelos atores pol´ıticos regionais e as raz˜oes das decis˜oes
dos ju´ızes sob uma abordagem que combine elementos estrat´egicos e institucionais, re-
lacionando as especificidades do sistema federativo e desenho das regras de controle de
constitucionalidade, com os jogos, interesses e objetivos dos atores pol´ıtico regionais.
Uma segunda gera¸c˜ao de estudos tem enfrentado, gradativamente, algumas dessas
quest˜oes. Por exemplo, a rela¸c˜ao entre Congresso Nacional e Supremo Tribunal Federal
vista a partir das a¸c˜oes de constitucionalidade propostas e julgadas foi alvo de aten¸c˜ao
sistem´atica por Pogrebinschi (2011). Produ¸c˜ao importante tamb´em tem aparecido no
26
ˆambito dos encontros acadˆemicos de ´area, inclusive com a proposi¸c˜ao de modelos formais
para a an´alise das intera¸c˜oes estrat´egicas entre Judici´ario e Legislativo no plano nacional,
tal qual em Magalh˜aes e Mignozzetti (2012). O papel do Supremo como “arbitro da fe-
dera¸c˜ao” foi objeto da pesquisa de Oliveira (2009). As dinˆamicas do processo decis´orio e
motiva¸c˜oes dos julgadores, inclusive no que tange `a influˆencia da opini˜ao p´ublica, s˜ao te-
mas dos estudos de Oliveira (2012c), Oliveira (2011a), Falc˜ao e Oliveira (2013). Tamb´em
o controle de constitucionalidade de legisla¸c˜ao estadual e a atua¸c˜ao de governadores nesse
processo s˜ao alvos de investiga¸c˜ao, como em Tomio e Filho (2013), que recorrem `a teoria
dos atores com poderes de veto (TSEBELIS,2002). Mesmo assim, a rationale da ativa¸c˜ao
e atua¸c˜ao judicial no que diz respeito `as normas estaduais, ou seja, ao espa¸co de gover-
nadores e Assembleias, ainda n˜ao foi objeto de adensamento te´orico ou an´alise emp´ırica
detalhada.
Este trabalho busca suprir algumas dessas lacunas te´oricas e emp´ıricas, utilizando
o instrumental de an´alise estrat´egica mais recorrente na literatura norte-americana sobre
judicial politics para investigar como o Judici´ario, atrav´es do STF, atua diante do processo
decis´orio legislativo estadual. Esse problema de pesquisa desdobra-se em pelo menos duas
quest˜oes: qual ´e a rationale dos principais atores pol´ıticos (governadores, PGR, partidos e
organiza¸c˜oes da sociedade civil) para chamar o Supremo a intervir no processo decis´orio?
Como essas decis˜oes judiciais s˜ao tomadas e de que maneira elas afetam a elabora¸c˜ao
de pol´ıticas na via legislativa? Por sua vez, cada uma dessas quest˜oes tamb´em guarda
desdobramentos, seja quanto `a descri¸c˜ao do fenˆomeno, ao exame de seus condicionantes,
`a revela¸c˜ao das estrat´egias dos atores e aos resultados pol´ıticos. Assim, o objetivo central
dessa investiga¸c˜ao ´e discutir a l´ogica da utiliza¸c˜ao de A¸c˜oes Diretas de Inconstitucionali-
dade por atores regionais contra atos normativos estaduais e o seu impacto no processo
decis´orio legislativo.
A proposta dialoga com a literatura pertinente a duas linhas de pesquisa da Ciˆencia
Pol´ıtica brasileira: os estudos legislativo, com aten¸c˜ao para a dimens˜ao subnacional e ar-
ranjo federativo; e o tema da judicializa¸c˜ao da pol´ıtica. Quanto `a primeira dimens˜ao,
o campo de estudos sobre decis˜oes legislativas no Brasil cresceu significativamente nas
´ultimas duas d´ecadas, segmentando-se em t´opicos distintos, bem como alcan¸cando as es-
feras subnacionais, mas ainda est´a longe de exaurido. O debate provocado a partir do
artigo de Abranches (1988) e seu “presidencialismo de coaliz˜ao” contribuiu para o avan¸co
das an´alises sobre o Congresso Nacional e suas rela¸c˜oes com o Executivo durante os anos
90 e 2000, tendo como outro marco do per´ıodo a obra de Figueiredo e Limongi (1999).
Na sequˆencia, al´em de prof´ıcua produ¸c˜ao que, em alguma medida, repercutiu poss´ıveis
aplica¸c˜oes das teorias utilizadas na explica¸c˜ao do Congresso Americano para o caso bra-
27
sileiro5, os livros de Andrade (1998), Abrucio (1998)eSantos (2001) descortinaram as
quest˜oes de governabilidade nos estados e suas rela¸c˜oes executivo-legislativo.
Tal segmento de investiga¸c˜ao revelou-se, primeiramente, com estudos de caso e, de-
pois, com an´alises comparadas. Boa parte desses esfor¸cos resultou em trabalhos apresen-
tados nos encontros da Associa¸c˜ao Nacional de Ciˆencia Pol´ıtica (ABCP) e da Associa¸c˜ao
Nacional de P´os-Gradua¸c˜ao e Pesquisa em Ciˆencias Sociais (ANPOCS), disserta¸c˜oes, te-
ses e artigos cient´ıficos6. Todavia, quando o assunto ´e a esfera estadual, o exame do
processo decis´orio tem normalmente se resumido `as rela¸c˜oes entre governadores e Assem-
bleias. Apesar dos dados emp´ıricos j´a existentes, a impugna¸c˜ao judicial dos resultados do
processo decis´orio legislativo estadual poucas vezes foi objeto de aten¸c˜ao e, salvo exce¸c˜oes
(KAMINSKI,2013) (TOMIO; FILHO,2013), n˜ao foi tratada sistematicamente como um
problema relevante de pesquisa.
Em rela¸c˜ao `a segunda dimens˜ao, a atua¸c˜ao do STF no controle concentrado de cons-
titucionalidade, p´os-88, passou a ser problematizada como “judicializa¸c˜ao da pol´ıtica”, sob
a influˆencia do volume organizado por Tate e Vallinder (1995), a partir, ao menos, dos ar-
tigos de Castro (1997) e do livro de Arantes (1997), encontrando importante repercuss˜ao
depois do estudo de Vianna (1999a). Ao longo da ´ultima d´ecada, a produ¸c˜ao sociol´ogica,
pol´ıtica e mesmo jur´ıdica no que tange a essa tem´atica avolumou-se7, inclusive atrav´es de
grupos de trabalho e ´areas tem´aticas nos encontros das associa¸c˜oes nacionais de ciˆencias
sociais, mas tamb´em em peri´odicos cient´ıficos e livros. No centro de preocupa¸c˜oes est˜ao
o papel e a dimens˜ao do impacto da Corte Suprema na condu¸c˜ao de quest˜oes pol´ıticas,
especialmente em termos de processo decis´orio e produ¸c˜ao de pol´ıticas p´ublicas.
De uma forma geral, os estudos nacionais mais ligados `a ciˆencia pol´ıtica e preocupa-
dos com o judici´ario e sua Corte maior segmentam-se entre aqueles que buscam debater o
conceito de judicializa¸c˜ao ou aqueles interessados em verificar empiricamente se o recurso
ao Supremo - principalmente via a¸c˜oes diretas - indica sua existˆencia ou mesmo aponta
para o ativismo judicial, uma categoria distinta, mas muitas vezes tratada como sinˆonimo
(CAMPOS,2014). Sob a abordagem mais emp´ırica, as pesquisas dividem-se entre aquelas
voltadas a verificar quais atores - pol´ıticos ou sociais - estariam promovendo a ativa¸c˜ao
5Como Mainwaring (1999); Ames (2003); Pereira e Muller (2000); Pereira e Renn´o (2001); Pereira e
Muller (2002); Neto e Tafner (2002); Santos (2003); Neto, Cox e McCubbins (2003); Neto e Santos
(2003); Pereira e Muller (2003); Carvalho (2003); Samuels (2003);Figueiredo e Limongi (2008); Power
e Zucco (2011); Santos e Almeida (2011); Lemos e Power (2013); etc.
6Destacando Castro, Anastasia e Nunes (2009); Tomio (2009); Tomio, Ortolan e Camargo (2011); Tomio
e Ricci (2012); Borges (2011); Nunes (2012); Nunes (2013); dentre outros.
7Tais como: Castro (1997); Arantes (1997); Vianna (1999a)eVianna, Burgos e Salles (2007); Vianna
(2002); Vianna e Burgos (2005); Maciel e Koerner (2002); Carvalho (2004); Oliveira (2005); Carvalho
(2009); Carvalho e Marona (2009); Taylor (2007); Taylor e Ros (2008); Taylor (2008); Vieira (2008);
Pogrebinschi (2011), dentre v´arios outros.
28
do judici´ario e aquelas que tratam das rela¸c˜oes do Supremo com os demais poderes, bus-
cando dimensionar melhor seu espa¸co concreto de atua¸c˜ao. Al´em dessas perspectivas, h´a
tamb´em uma preocupa¸c˜ao recorrente quanto aos efeitos da atua¸c˜ao judicial no atendi-
mento de demandas e anseios sociais, no ˆambito da representa¸c˜ao e, de modo mais amplo,
para a qualidade da democracia brasileira.
Outro aspecto recorrente nas publica¸c˜oes desse campo, ´e o reconhecimento da ne-
cessidade de levar a cabo investiga¸c˜oes que incluam o judici´ario e o Supremo como com-
ponentes relevantes no processo decis´orio legislativo e na produ¸c˜ao de pol´ıticas p´ublicas.
Nesse ponto, Pogrebinschi (2011) avan¸ca ao produzir uma pesquisa sistem´atica reve-
lando parˆametros concretos das rela¸c˜oes entre STF e Congresso Nacional no que tange `a
produ¸c˜ao de legisla¸c˜ao federal e sua revis˜ao judicial. Indo al´em do simples exame da pro-
positura das A¸c˜oes Diretas de Inconstitucionalidade, a an´alise debru¸ca-se sobre as pr´oprias
decis˜oes, substantivamente, inclusive avaliando as rea¸c˜oes do legislativo. Essa contribui¸c˜ao
redimensiona o papel do Supremo no processo decis´orio, revelando a raridade de ju´ızos
de inconstitucionalidade contramajorit´arios, a inexistˆencia de v´acuo normativo deixado
pelo Poder Legislativo e a n˜ao ocorrˆencia de enfraquecimento do parlamento por conta da
atua¸c˜ao judicial, apontando, por outro lado, a Corte como um espa¸co de fortalecimento
da representa¸c˜ao pol´ıtica. Todavia, apesar de sua importˆancia, o trabalho de Pogrebins-
chi (2011) sofre de, pelo menos, duas limita¸c˜oes: (1) restringe-se `a legisla¸c˜ao federal e ao
Congresso Nacional, mesmo reconhecendo que tais normas representam menos de 20% do
total de a¸c˜oes; (2) n˜ao deixa expl´ıcito os incentivos e restri¸c˜oes que conduzem as decis˜oes,
bem como n˜ao ajusta a conex˜ao entre a fase da decis˜ao judicial e a pr´evia etapa da pro-
positura da a¸c˜ao, ou seja, deixa de investigar com mais min´ucia as raz˜oes que movem os
atores pol´ıticos relevantes. Nesse ˆambito, o exame emp´ırico promovido enfatiza aspectos
descritivos, sem avaliar a consistˆencia das associa¸c˜oes reveladas com maior sofistica¸c˜ao,
at´e por conta da raridade de julgamentos significativos de inconstitucionalidade dentre
os casos. Dessa discuss˜ao decorrem algumas claras lacunas: a importˆancia de examinar
com aten¸c˜ao as ADIs relativas `as normas estaduais, que s˜ao a maioria; a importˆancia de
tratar sobre a rationale dos atores pol´ıticos envolvidos, dadas suas motiva¸c˜oes, incentivos
e restri¸c˜oes; e a necessidade de conectar a “ativa¸c˜ao” do Supremo `a sua “atua¸c˜ao”.
Um dos objetivos deste trabalho ´e combinar as dimens˜oes relativas `as rela¸c˜oes
executivo-legislativo no plano estadual com os problemas pr´oprios dos estudos sobre ju-
dici´ario em geral e sobre o Supremo em particular. Do mesmo modo, a importˆancia
acadˆemica da pesquisa est´a na tentativa de ultrapassar a simples an´alise descritiva do
fenˆomeno e o uso recorrente apenas de casos exemplares, examinando tanto o comporta-
mento do Tribunal, quanto as raz˜oes da ativa¸c˜ao judicial pelos atores pol´ıtico, atrav´es de
um conjunto de dados amplo e sistem´atico. Este esfor¸co tamb´em apresenta um recorte
pr´oprio, enfatizando casos relativos a leis e atos normativos estaduais. E essa delimita¸c˜ao
da an´alise, por sua vez, coloca em cena mais um campo ou objeto de interesse da ciˆencia
29
pol´ıtica: o federalismo. Aqui, os arranjos entre centraliza¸c˜ao/descentraliza¸c˜ao e concen-
tra¸c˜ao/desconcentra¸c˜ao de competˆencias (sobretudo legislativas), combinados `a capaci-
dade de revis˜ao judicial s˜ao pe¸cas que interagem na defini¸c˜ao dos limites e possibilidades
do sistema pol´ıtico8.
Para o caso brasileiro, as rela¸c˜oes entre o Supremo e a federa¸c˜ao s˜ao relevantes
desde a origem da Rep´ublica. A ideia de um Tribunal da Federa¸c˜ao remonta `a cita¸c˜ao
cl´assica de Rui Barbosa e j´a foi objeto de an´alise emp´ırica, no desenho constitucional con-
temporˆaneo, por Oliveira (2009), que examinou a¸c˜oes diretas representativas de conflitos
federativos. Contudo, seu estudo deixa v´arias possibilidades em aberto e convoca mais
pesquisa sobre a tem´atica. Apesar de importante descentraliza¸c˜ao promovida pela Consti-
tui¸c˜ao de 1988 em compara¸c˜ao ao regime anterior, muitas pol´ıticas p´ublicas s˜ao decididas
no plano federal, com munic´ıpios respons´aveis pela sua implementa¸c˜ao, de modo que
tach´a-la simplesmente de centralizada ou descentralizada n˜ao parece adequado (SOUZA,
2005). No plano das capacidades legiferantes, governos estaduais e Assembleias Legisla-
tivas tˆem apenas competˆencia residual (TOMIO; ORTOLAN; CAMARGO,2011), al´em
de muitas ´areas de regula¸c˜ao terem passado por um processo de centraliza¸c˜ao a partir
de meados dos anos 90. De acordo com Souza (2005), trˆes quest˜oes desafiam o tipo de
federalismo adotado no Brasil: 1) as desigualdades regionais; 2) o tratamento uniforme
conferido aos estados pelas leis e institui¸c˜oes, limitando seus poderes; e 3) a raridade de
mecanismos de coordena¸c˜ao ou coopera¸c˜ao intragovernamental. O tema do controle de
constitucionalidade exercido pelo Supremo situa-se propriamente no segundo ponto.
Nesse contexto, dialogando com trˆes conjuntos de preocupa¸c˜oes da ciˆencia pol´ıtica
(e algumas do direito), esse trabalho ´e uma tentativa de trazer o Supremo para dentro da
an´alise institucional, especificamente em sua importˆancia para o federalismo e resultados
do processo pol´ıtico nos estados. Trata-se de examinar n˜ao apenas de que modo o Tribunal
tem desempenhado, no processamento das a¸c˜oes diretas, seu papel de tutor do arranjo
federativo, mas tamb´em de discutir como os atores pol´ıticos regionais percebem essa
atividade e reagem a ela. Novamente, o esfor¸co ´e de enfrentar aspectos ligados tanto `a
“ativa¸c˜ao” do Supremo, quanto `a sua “atua¸c˜ao” ao regular os limites das competˆencias
legiferantes dos estados.
8Lijphart (2008) j´a apontava a descentraliza¸c˜ao de poderes aos entes federados e a capacidade de revis˜ao
judicial, especialmente por Cortes constitucionais, como indicadores de democracias consociativas.
Tsebelis (2002) n˜ao apenas situa o federalismo - especialmente atrav´es do bicameralismo - como um
arranjo que aumenta o n´umero de atores com poderes de veto, como tamb´em discute o papel de
ju´ızes e Cortes na estabilidade das pol´ıticas. No plano comparado, Watts (1996) conduz um amplo
estudo de v´arios pa´ıses, destacando, entre outros aspectos, a importˆancia crescente do controle de
constitucionalidade como modo de regular a reparti¸c˜ao das competˆencias legislativas. Halberstam
(2008) tamb´em comenta o papel do judici´ario em sistemas federativos, apontando, ao rebater um
conjunto de cr´ıticas recorrentes, que as Cortes centrais podem ser institui¸c˜oes ´uteis ao federalismo.
30
Este trabalho dedica-se ao estudo de institui¸c˜oes pol´ıticas brasileiras. Mais especifi-
camente, de alguns dos modos de conex˜ao entre as a¸c˜oes desempenhadas pelo Supremo no
controle concentrado de constitucionalidade (representando o ´apice do Poder Judici´ario)
com foco em leis e atos normativos estaduais (que manifestam o resultado de processos de-
cis´orios subnacionais no ˆambito das rela¸c˜oes executivo-legislativo). Trata-se de um tema
e uma abordagem, em alguma medida, “(neo)institucional”. Dito isso, necess´ario discutir
algumas no¸c˜oes anal´ıticas que se encontram ancoradas nesse conjunto de correntes te´orico-
metodol´ogicas. Em primeiro lugar, importa reconhecer o que se entende por institui¸c˜oes.
Grosso modo, estas s˜ao compreendidas como “as regras do jogo”, ou a estrutura de incen-
tivos e restri¸c˜oes que indica as possibilidades de a¸c˜ao dos atores. Nesse sentido, pode-se
abarcar tanto regras e normas, formais ou informais. Relevante na Ciˆencia Pol´ıtica con-
temporˆanea, a corrente do institucionalismo da escolha racional (HALL; TAYLOR,1996)
tem por pressupostos b´asicos: o individualismo metodol´ogico, explicando as a¸c˜oes a partir
dos indiv´ıduos e com o objetivo de maximiza¸c˜ao no ganho de utilidade; a identifica¸c˜ao
expl´ıcita dos atores, seus objetivos e preferˆencias; e a identifica¸c˜ao expl´ıcita das insti-
tui¸c˜oes, seus custos e benef´ıcios para a atua¸c˜ao dos atores. Entende-se que as preferˆencias
por si s´o n˜ao informam os resultados; as estrat´egias tamb´em s˜ao moldadas pela estrutura
de incentivos e restri¸c˜oes institucionais. Poss´ıvel, ainda, considerar as institui¸c˜oes sob
pelo menos duas maneiras: como fator explicativo ou como objeto de investiga¸c˜ao.
Nesse sentido, Diermeier e Krehbiel (2003) assumem o institucionalismo como me-
todologia. Admitem que n˜ao h´a mais diferen¸ca intr´ınseca entre regularidades comporta-
mentais robustas e institui¸c˜oes. De tal forma, o conceito n˜ao deve ser tomado ontologi-
camente, mas metodologicamente. Ainda, tais autores definem institui¸c˜ao pol´ıtica como
“a set of contextual features in a collective choice setting that defines constraints on, and
opportunities for, individual behavior in the setting”9(DIERMEIER; KREHBIEL,2003).
Ao tratar das teorias institucionais10, tais autores descrevem um m´etodo de pesquisa em
quatro etapas. Primeiro, definir e fixar os postulados comportamentais para os atores
pol´ıticos, ou seja, estabelecer os axiomas. Segundo, caracterizar formalmente as insti-
tui¸c˜oes que geram efeitos nesses atores pol´ıticos. Em seguida, deduzir o comportamento
decorrente dos efeitos institucionais, dado o postulado comportamental, e caracterizar as
consequˆencias (outcomes ) resultantes do comportamento. Por fim, comparar as dedu¸c˜oes
9Tradu¸c˜ao livre: um conjunto de aspectos contextuais em um arranjo de decis˜ao coletiva que define
restri¸c˜oes a - e oportunidade para - o comportamento individual nesse arranjo.
10 No mesmo artigo, Diermeier e Krehbiel (2003) distinguem teorias institucionais (institutional theories)
de teorias de institui¸c˜oes (theories of institutions). As primeiras referem-se, essencialmente, a mode-
lagem dos efeitos das institui¸c˜oes sobre as a¸c˜oes individuais. As segundas tratam, principalmente, das
modifica¸c˜oes nas pr´oprias institui¸c˜oes. Embora esta tese apresente uma narrativa hist´orica do Supremo
em um de seus cap´ıtulos, o foco principal da investiga¸c˜ao amolda-se melhor `a primeira ideia. N˜ao se
faz, aqui, uma teoria de institui¸c˜oes.
31
com regularidades emp´ıricas e dados, donde pode decorrer o refinamento das hip´oteses e
dos modelos propostos.
Uma investiga¸c˜ao que encare o institucionalismo como metodologia regularmente
segue o esquema de pesquisa proposto pelos autores. N˜ao basta dizer e repetir que “insti-
tui¸c˜oes importam”. ´
E preciso identificar se elas tˆem influˆencia independente nos resulta-
dos, bem como quais institui¸c˜oes contam e qual o sentido do impacto que proporcionam.
Para o tema, a quest˜ao ´e: as institui¸c˜oes pol´ıticas-judici´arias (o arranjo constitucional e
legal do STF no controle de constitucionalidade) tˆem impacto nos resultados do processo
decis´orio e no que tange `a dimens˜ao federativa e aos atos normativos estaduais? E mais:
que comportamentos dos atores pol´ıticos ligados `as dinˆamicas estaduais s˜ao incentivados
ou inibidos pelo desenho institucional nas dimens˜oes de ativa¸c˜ao e atua¸c˜ao do Supremo
relativamente aos estados?
Entender o enfoque institucional contribui para uma an´alise adensada da rela¸c˜ao
entre a Suprema Corte e os atores pol´ıticos locais ou subnacionais. De qualquer maneira, ´e
preciso restringir-se a essa abordagem? Embora o institucionalismo (e sua vertente ligada
`a escolha racional) forne¸ca instrumentos importantes, ´e plenamente poss´ıvel o conv´ıvio de
explica¸c˜oes distintas em fun¸c˜ao da natureza do problema. Diante disso, apesar da maior
parte deste trabalho estar associado a essa vis˜ao institucional, o exame do problema de
pesquisa tamb´em encontra apoio em outras variantes explicativas e metodol´ogicas.
A tese est´a organizada em quatro cap´ıtulos. O primeiro, “Institui¸c˜oes judici´arias
e controle de constitucionalidade”, monta o cen´ario institucional no qual a investiga¸c˜ao
est´a imersa, situando o objeto de pesquisa. O ponto de partida ´e compreender o lugar
do judici´ario e do STF no desenho institucional brasileiro. Aqui, interessa conhecer a
trajet´oria da Corte, suas competˆencias em diferentes momentos, os recursos e mecanismos
decis´orios dispon´ıveis aos Ministros e, sobretudo, sua posi¸c˜ao na dimens˜ao federativa.
Essa narrativa introdut´oria tamb´em ´e relevante para permitir uma compreens˜ao mais
proveitosa do leitor n˜ao habituado com a nomenclatura jur´ıdica e suas nuances.
“Teorias de decis˜ao judicial e intera¸c˜ao entre poderes”´e o segundo cap´ıtulo. Nele,
enfrento alguns dos problemas te´oricos relativos `as duas dimens˜oes do funcionamento do
Supremo destacadas na tese, ativa¸c˜ao e atua¸c˜ao. Estudos de judicial politics (seja para o
caso americano ou an´alise comparada) servem de fio condutor para apresenta¸c˜ao e cr´ıtica
dos trˆes marcos explicativos ou conjunto de modelos para a tomada de decis˜ao judicial:
legal, atitudinal e estrat´egico. ´
E nesse mesmo caldo anal´ıtico, com apoio na teoria dos
jogos e da escolha racional, que s˜ao elaborados os chamados “jogos de separa¸c˜ao de po-
deres”. Embora esta tese n˜ao desenvolva formaliza¸c˜oes matem´aticas, as possibilidades de
adapta¸c˜ao dos modelos ao caso brasileiro, com aten¸c˜ao `as particularidades da intera¸c˜ao
com a esfera estadual, s˜ao exploradas em tal momento, formulando-se hip´oteses veri-
fic´aveis. Essa mesma literatura tamb´em serve de guia para a sugest˜ao de explica¸c˜oes e
modelos n˜ao formais relativos `a ativa¸c˜ao da Corte. Nesse ponto, ´e significativo observar
32
a existˆencia de incentivos distintos para os atores diversos que est˜ao habilitados a iniciar
o controle de constitucionalidade de leis e atos normativos.
O cap´ıtulo seguinte ´e intitulado “Julgando a pol´ıtica estadual? Processamento
e decis˜ao em casos federais e estaduais” e promove o exame emp´ırico quantitativo da
dimens˜ao de atua¸c˜ao da Corte nos casos de controle direto de constitucionalidade. Em
primeiro lugar, destacam-se as raz˜oes de importˆancia da esfera estadual, seja do ponto
de vista da pr´opria organiza¸c˜ao federativa do pa´ıs, seja pelo n´umero expressivo - e pouco
explorado - de casos enfrentados pelo Supremo. Os padr˜oes de decis˜ao - semelhan¸cas
e diferen¸cas - entre a¸c˜oes sobre atos normativos federais e estaduais s˜ao comparados.
Aten¸c˜ao especial ´e posta para identificar casos de conflitos federativos, sob a hip´otese de
que o Supremo atua como “´arbitro da federa¸c˜ao”. Finalmente, s˜ao desenvolvidos modelos
econom´etricos para determinar as probabilidades de sucesso no julgamento de m´erito e
pedidos cautelares das a¸c˜oes diretas, bem como para investigar se o parecer do Procurador
Geral da Rep´ublica tem efeitos nas a¸c˜oes propostas por outros atores.
O ´ultimo cap´ıtulo - “Por que recorrer? A l´ogica da ativa¸c˜ao judicial” - trata sobre
a segunda dimens˜ao relevante do controle de constitucionalidade de leis e atos normativos
estaduais que pouca aten¸c˜ao recebeu da literatura especializada: a ativa¸c˜ao da Corte, as
raz˜oes e os fatos que indicam os modos e os porquˆes de atores pol´ıticos regionais (ou com
interesses federativos) buscarem, no STF, a revis˜ao judicial dos resultados do processo
decis´orio legislativo estadual. Sob a perspectiva emp´ırica, esta etapa da pesquisa utiliza
um segundo conjunto de dados quantitativos, combinando o n´umero de a¸c˜oes propostas,
liminares concedidas e julgamentos favor´aveis em mat´eria estadual a uma s´erie de indi-
cadores pol´ıticos, institucionais e econˆomicos de diferentes estados, al´em de informa¸c˜oes
sobre produ¸c˜ao legislativa estadual (emendas constitucionais e leis). Al´em de descrever in-
forma¸c˜oes coletadas para um conjunto de nove estados (Amazonas, Bahia, Minas Gerais,
Mato Grosso, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rondˆonia, Rio Grande do Sul e S˜ao Paulo)
ao longo de vinte e quatro anos (1990-2014), busco identificar os fatores determinantes
do ajuizamento de a¸c˜oes, especialmente a hip´otese de que conjunturas pol´ıticas regionais
impulsionam governadores a recorrerem ao Supremo, estimando modelos econom´etricos
para dados de contagem. Ao final, avalio empiricamente a hip´otese informacional de que
os atores locais aprendem os limites de suas competˆencias a partir das decis˜oes da Corte,
frente aos resultados globais da ativa¸c˜ao e atua¸c˜ao do STF no controle de constituciona-
lidade de leis e atos normativos estaduais.
33
1 INSTITUIC¸ ˜
OES JUDICI ´
ARIAS E CONTROLE DE
CONSTITUCIONALIDADE
Indiv´ıduos, grupos sociais e atores pol´ıticos n˜ao agem no vazio. Buscam seus obje-
tivos, interesses, anseios e ideias imersos em ambientes institucionais. A intera¸c˜ao pol´ıtica
obedece regras, assume-se, mesmo que sejam informais ou imperfeitamente cognosc´ıveis.
Uma das tarefas da ciˆencia ´e tentar percebˆe-las e compreendˆe-las. Mais ainda: no mundo
contemporˆaneo e seus regimes pol´ıticos estatais, democr´aticos ou n˜ao, sob o paradigma
moderno e liberal da separa¸c˜ao de poderes, regra da lei e supremacia da Constitui¸c˜ao, as
institui¸c˜oes pol´ıticas formais, usualmente traduzidas em regramentos jur´ıdicos e operando
por meio de aparatados burocr´aticos do Estado, importam.
Os fenˆomenos pol´ıticos brasileiros acontecem sob institui¸c˜oes montadas e transfor-
madas nos termos desse paradigma. Uma rep´ublica federativa que divide atribui¸c˜oes de
pol´ıticas p´ublicas - e processamento de demandas coletivas, portanto - verticalmente entre
uma autoridade central (a Uni˜ao), 27 autoridades regionais (Estados e Distrito Federal) e
5570 poderes locais (munic´ıpios) e horizontalmente entre os Poderes Executivo, Legislativo
e Judici´ario, seus modos e estruturas, d´a corpo a processos complexos e sofisticados. O
papel e funcionamento desse arcabou¸co institucional, bem como sua abertura a dinˆamicas
n˜ao estatais da sociedade, s˜ao objeto recorrente da Ciˆencia Pol´ıtica e Sociologia.
Esta pesquisa p˜oe uma lupa sob alguns tra¸cos do desenho das institui¸c˜oes formais
do Estado brasileiro. Dedica aten¸c˜ao principal a uma fatia da segmenta¸c˜ao horizontal da
autoridade pol´ıtica - o Supremo Tribunal Federal, pe¸ca maior do Judici´ario - e sua perfor-
mance na regula¸c˜ao das atribui¸c˜oes conferidas `a esfera estadual, sem ignorar as intera¸c˜oes
existentes com diversos atores pol´ıticos relevantes, aqueles que recorrem `a via judicial
para questionar o resultado do processo decis´orio realizado na via legislativa. Trata-se de
examinar, por um lado, em que condi¸c˜oes, contextos e sob qual rationale diversos seg-
mentos e atores procuram o STF atrav´es do controle concentrado de constitucionalidade
sobre quest˜oes regionais e, por outro, qual ´e o comportamento da Corte nesses casos em
compara¸c˜ao com os temas federais. Al´em disso, a conex˜ao entre as quest˜oes pr´oprias de
desenho institucional e a dinˆamica mais ampla do sistema pol´ıtico no caldo social contem-
porˆaneo exige reflex˜oes sobre o impacto na organiza¸c˜ao federativa do pa´ıs, suas pol´ıticas
p´ublicas e no processo decis´orio legislativo subnacional.
Antes de enfrentar os problemas afeitos `as duas dimens˜oes de interesse desta tese
na atividade do Supremo em rela¸c˜ao aos estados - sua atua¸c˜ao e ativa¸c˜ao -, ´e necess´ario
contextualizar o objeto da pesquisa. Uma primeira tarefa ´e revelar algumas caracter´ısticas
importantes da organiza¸c˜ao do Poder Judici´ario brasileiro, em geral, e do Supremo Tri-
bunal Federal, em particular, tanto no momento atual, quanto ao longo de sua trajet´oria
hist´orica. Isso permite perceber as continuidades e descontinuidades no funcionamento
34
dessa institui¸c˜ao, balizando eventuais cr´ıticas a preconceitos de primeira m˜ao e lugares-
comuns.
O objetivo deste cap´ıtulo ´e permitir, mesmo ao leitor n˜ao familiarizado com a no-
menclatura jur´ıdica ou com a hist´oria da justi¸ca brasileira, uma compreens˜ao suficiente
do funcionamento do Supremo Tribunal Federal e do Poder Judici´ario no Brasil no que
pertine `a intera¸c˜ao com demais poderes e na arena pol´ıtica, impacto em pol´ıticas p´ublicas
e rela¸c˜ao com o processo decis´orio legislativo estadual. Este ´e o ponto de partida ne-
cess´ario para avaliar criticamente os debates correntes - nas ciˆencias sociais e no direito -
sobre o universo tem´atico em que o objeto de investiga¸c˜ao da tese est´a inserido. Sem uma
percep¸c˜ao minimamente cuidadosa da trajet´oria da Suprema Corte brasileira e dos recur-
sos jur´ıdico-pol´ıticos atualmente dispon´ıveis, afirma¸c˜oes sobre ativismo, judicializa¸c˜ao ou
papel federativo do Tribunal correm o risco de falsear aspectos relevantes.
O passo inicial ´e reconhecer, em termos gerais, como funciona o Poder Judici´ario
no Brasil. Isso compreende, al´em de suas estruturas no marco institucional que sucede
a Constitui¸c˜ao de 1988, um passeio pela sua hist´oria, desde a Primeira Rep´ublica. Im-
portante, tamb´em, detalhar nuances do sistema de controle de constitucionalidade aqui
adotado, incluindo suas formas de funcionamento e mesmo t´ecnicas de decis˜ao. Latente
em toda a an´alise, `a espreita de tomar a cena, fica o tema da federa¸c˜ao, chave das interfaces
de relacionamento e interferˆencia do Supremo perante atores pol´ıticos estaduais.
1.1 Sistema Judicial Brasileiro: desenho institucional
1.1.1 Organiza¸c˜ao do Poder Judici´ario
O Poder Judici´ario brasileiro estrutura-se na forma de um sistema federativo, com-
posto por Cortes estaduais e federais, segundo a tradi¸c˜ao continental ou civil law11 , al´em
de apresentar alguns ramos do direito com jurisdi¸c˜ao autˆonoma (justi¸ca comum x espe-
cial). Como ´e t´ıpico nos Estados de Direito do mundo contemporˆaneo, cumpre a fun¸c˜ao
jurisdicional, resolvendo conflitos e distribuindo a justi¸ca. Embora sua atividade tenha
efeitos sociais, econˆomicos e pol´ıticos, em rigor ele atua de modo reativo, em resposta `a
11 Sobre o sistema da civil law, ver Merryman (1979).
35
provoca¸c˜ao de outros atores, individuais, coletivos ou que integrem o aparato estatal12.
A Constitui¸c˜ao da Rep´ublica disp˜oe sobre a organiza¸c˜ao desse Poder em seus artigos 92 e
seguintes, cujo conte´udo sofreu importantes altera¸c˜oes atrav´es da Emenda Constitucional
45, de 2004, que promoveu a Reforma do Judici´ario.
No ˆambito da justi¸ca comum, cada unidade da federa¸c˜ao (Estados e Distrito Fe-
deral) possui ao menos um Tribunal (de Justi¸ca e/ou de Al¸cada). Organizada em duas
instˆancias - ju´ızes, primeira; Tribunal, segunda -, `a justi¸ca estadual compete todas as
mat´erias que n˜ao s˜ao reservadas aos ´org˜aos federais ou aos ramos especiais. Isso inclui
a maior parte das quest˜oes penais e c´ıveis, perpassando temas de direito contratual, em-
presarial, agr´ario, consumidor, fam´ılia e sucess˜oes, tributos e administra¸c˜ao estadual e
municipal, dentre outros. Quanto `a jurisdi¸c˜ao federal - respons´avel pelos crimes federais
e pelas causas em que forem parte a Uni˜ao, autarquias, funda¸c˜oes e empresas p´ublicas
federais -, cinco Tribunais Regionais (TRFs)13 dividem o pa´ıs.
Alguns ramos do direito encontram justi¸cas especializadas, n˜ao apenas com le-
gisla¸c˜ao espec´ıfica (material e processual), mas tamb´em com aparatos burocr´aticos pr´oprios.
A mais antiga ´e a Justi¸ca Militar, organizada pela primeira vez em 1808, com a vinda da
fam´ılia Real ao Brasil14. Nas regras atuais, sua jurisdi¸c˜ao recai sob o crimes militares e,
desde a EC 45/04, sob atos disciplinares (LENZA,2006).
As Justi¸cas do Trabalho e Eleitoral representam importantes inova¸c˜oes da Era
Vargas. A segunda tem seu marco inicial em 1932, atribuindo-se a um ´org˜ao jurisdicional
a administra¸c˜ao e tutela do processo eleitoral, o que, em alguma medida, figura como
uma resposta do regime `as fraudes eleitorais sistem´aticas da Primeira Rep´ublica. Apesar
de n˜ao ter funcionado durante o Estado Novo, sendo restabelecida em 1945, trata-se
de institui¸c˜ao consolidada e relevante no funcionamento da democracia eleitoral vigente.
Atualmente, al´em de contar com um Tribunal Superior integrado por Ministros do STJ,
12 Na dogm´atica jur´ıdica, duas categorias revelam, combinadamente, o suposto de reatividade do Poder
Judici´ario: a) o princ´ıpio do pedido; e b) e o princ´ıpio do acesso `a justi¸ca, ou da presta¸c˜ao da tutela
jurisdicional. Ambos possuem matriz constitucional (art. 5, XXXV). Na pr´atica, isso significa que o
juiz deve se ater aos pedidos apresentados pelas partes, n˜ao sendo adequado decidir mais - extra petita
- ou menos - infra petita - do que o postulado. H´a, contudo, exce¸c˜oes, como exemplifica uma quest˜ao
preliminar ao julgamento da ADPF 378, sobre o processo de impeachment. Do outro lado, isso indica
que s˜ao os indiv´ıduos (particulares, empresas ou entes p´ublicos), organiza¸c˜oes (associa¸c˜oes, sindicatos)
e atores estatais (Minist´erio P´ublico, em especial) que levam seus interesses ao judici´ario.
13 Em 2013, foi editada a Emenda Constitucional 73, criando outros quatro TRFs. Uma liminar conce-
dida pelo Min. Joaquim Barbosa na ADI 5017, proposta pela Associa¸c˜ao Nacional dos Procuradores
Federais, suspendeu a mudan¸ca.
14 O fato de consistir na mais antiga jurisdi¸c˜ao autˆonoma tem importˆancia hist´orica. Por um lado,
´e relevante notar que sua primeira Chefia fora do pr´oprio Imperador, em momento decisivo para a
forma¸c˜ao do Estado brasileiro. O uso da justi¸ca militar tamb´em ´e significativo durante a Primeira
Rep´ublica e especialmente nos regimes autorit´arios, tanto no per´ıodo varguista, quanto na ditadura
militar.
36
STF e advogados indicados, ´e tamb´em composta por Tribunais Regionais em cada Estado
e no Distrito Federal, al´em de ju´ızes e juntas eleitorais. Apenas seus servidores formam
em quadro de pessoal autˆonomo, n˜ao existindo carreira pr´opria de Juiz eleitoral, que s˜ao
provenientes da Justi¸ca Estadual.
Embora o direito do trabalho conte com hist´oria relevante nas Primeira e Segunda
Rep´ublicas, inclusive com a cria¸c˜ao das Juntas de Concilia¸c˜ao e Julgamento em 193215,
a instala¸c˜ao de sua Justi¸ca Especializada autˆonoma, com atribui¸c˜oes jurisdicionais e n˜ao
apenas administrativas, ocorre em 1941. Na sequˆencia, o Estado Novo edita a Conso-
lida¸c˜ao das Leis Trabalhistas, marco legal desse ramo do direito, que, apesar das modi-
fica¸c˜oes, permanece em vigor. Suas atribui¸c˜oes correntes compreendem o julgamento de
diversas quest˜oes relativas `as rela¸c˜oes de trabalho no ˆambito privado, individuais e cole-
tivas, incluindo direito de greve, atividade sindical, negocia¸c˜oes e acordos sobre sal´arios,
condi¸c˜oes e regras laborais, indeniza¸c˜oes, etc. Tamb´em est´a organizada com um Tribu-
nal Superior, Tribunais Regionais (TRTs) e Ju´ızes do Trabalho. Estes, ao contr´ario do
que ocorre no eleitoral, formam uma carreira pr´opria, com ingresso atrav´es de concurso
p´ublico.
Al´em dessas instˆancias e mecanismos, o sistema de justi¸ca brasileiro conta com
os atuais Juizados Especiais16 , antigos “Pequenas Causas”, abrangendo a¸c˜oes c´ıveis de
menor valor econˆomico e quest˜oes criminais de menor potencial ofensivo, destacando-se,
por exemplo, a concentra¸c˜ao de processos que tratam sobre direito do consumidor. Na
bojo das preocupa¸c˜oes sobre a efetividade jurisdicional e acesso `a justi¸ca, internacional-
mente divulgadas pelo relat´orio de Cappelletti e Garth (1989), as leis que regulamentam
o sistema atual de juizados, assim como todo aparato burocr´atico acess´orio, trouxeram
importantes inova¸c˜oes, ampliando as possibilidades de busca do judici´ario pela popula¸c˜ao
com menores custos. No campo das ciˆencias sociais, ao menos desde o estudo de Vianna
(1999a), este segmento do judici´ario tem sido objeto de an´alise privilegiada sobre o tema da
judicializa¸c˜ao das rela¸c˜oes sociais. Sua estrutura tamb´em compreende ´org˜aos de segunda
instˆancia, as Cˆamaras ou Turmas Recursais, formadas, em geral, por Ju´ızes de Direito ou
Federais convocados. Quanto `a mat´eria federal, o sistema tamb´em busca uniformidade,
15 Sob uma perspectiva sociol´ogica e pol´ıtica, o desenvolvimento do direito trabalhista no Brasil, no bojo
das lutas sindicais, encontra an´alise decisiva em Vianna (1999b). Ver tamb´em Santos (1979).
16 Regidos pelas Lei 9.099/1995 e 10.259/2001 nos ˆambitos estaduais e federais, respectivamente. ´
E,
todavia, enganoso perceber os juizados como inova¸c˜oes absolutas que rompem completamente com as
institui¸c˜oes anteriores. Tais ´org˜aos foram constru´ıdos ao longo do tempo, baseados em experiˆencias
relevantes, como os Conselhos de Concilia¸c˜ao e Arbitragem no Rio Grande do Sul, em 1982, e os
antigos Juizados de Pequenas Causas, em 1984 (VIANNA,1999a). ´
E poss´ıvel dizer, ainda, que a
l´ogica de dividir a jurisdi¸c˜ao pelo “valor da causa”remonta aos tempos do Imp´erio, quando ao juiz
de paz cabia decidir, mediante rito sumar´ıssimo e verbal, lides de at´e 16$000 (KOERNER,1998). A
medida exata das inova¸c˜oes relevantes e com efeitos positivos concretos e de logo prazo dos Juizados
Especiais permanece um ponto aberto.
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Figura 1 - Poder Judici´ario no Brasil. Organograma simplificado.
Fonte: Elabora¸c˜ao pr´opria
atrav´es das Turmas Regionais e Nacional de Uniformiza¸c˜ao de Jurisprudˆencia.
No topo da hierarquia, residem as Cortes Superiores. Trˆes delas organizam as ra-
mos especializados: o Tribunal Superior do Trabalho (TST), o Tribunal Superior Eleitoral
(TSE) e o Superior Tribunal Militar (STM). As outras duas, talvez as mais importan-
tes, uniformizam as mat´erias pr´oprias da justi¸ca comum: o Superior Tribunal de Justi¸ca
(STJ), com atribui¸c˜oes principais na uniformiza¸c˜ao da aplica¸c˜ao da lei federal; e o Su-
premo Tribunal Federal (STF), no ´apice, julgando tal qual Suprema Corte, com a palavra
final em quest˜oes constitucionais. Por um lado, como o STJ trata, em grau recursal, ape-
nas da legisla¸c˜ao federal, a interpreta¸c˜ao sobre o sentido de dispositivos de lei estadual
e municipal tem como ponto final os Tribunais de Justi¸ca. Por outro, sendo o Supremo
int´erprete final e “guardi˜ao”da Constitui¸c˜ao, seu posicionamento, em muitos casos, acaba
superando decis˜oes das outras Cortes superiores, bastando que haja provoca¸c˜ao da parte
e que o Tribunal perceba a existˆencia e relevˆancia de tema constitucional afetado17 . O
organograma 1resume a montagem do Poder Judici´ario brasileiro.
H´a um importante detalhe quanto `a jurisdi¸c˜ao do STF e STJ. As tarefas menciona-
das acima correspondem `as atribui¸c˜oes dessas Cortes como ´org˜ao recursal que, para al´em
de atender ao princ´ıpio do duplo grau, em alguma medida nacionalizam a jurisprudˆencia.
Al´em disso, ambos s˜ao respons´aveis por processos neles iniciados, de sua competˆencia ori-
gin´aria, como a¸c˜oes penais para titulares de prerrogativa de foro pelo exerc´ıcio de fun¸c˜ao
(Governadores, Desembargadores, membros dos Tribunais de Contas no STJ; Presidente,
Vice, Deputados, Senadores e Procurador-Geral da Rep´ublica, em crimes comuns, e Mi-
17 A Lei processual geral e especial prescreve as formas de levar o conhecimento de uma causa `a jurisdi¸c˜ao
constitucional do Supremo. Em sede geral, o Recurso Extraordin´ario ´e o meio usual de sustentar que
ac´ord˜ao do Tribunal de Justi¸ca viola regra da Constitui¸c˜ao, por exemplo. A legisla¸c˜ao eleitoral e o
direito do trabalho tamb´em apresentam as hip´oteses de recurso ao Supremo, inclusive das decis˜oes do
TSE e TST.
38
nistros de Estado, Comandantes das For¸cas Armadas e membros dos Tribunais Superiores
em crimes comuns e de responsabilidade, no STF), mandados de seguran¸ca, habeas data e
habeas corpus para atos e autoridades espec´ıficas, mandados de injun¸c˜ao, alguns conflitos
de competˆencia, homologa¸c˜ao de senten¸cas estrangeiras, extradi¸c˜oes, bem como julgam
recursos ordin´arios de causas de competˆencia origin´aria dos Tribunais locais. Ao Supremo,
em especial, tamb´em compete decidir sobre causas e conflitos entre Uni˜ao e Estados, ou
entre uns e outros, como nos pedidos de interven¸c˜ao federal, al´em de julgar as a¸c˜oes cons-
titucionais, promovendo o controle direto, abstrato e concentrado da constitucionalidade
de leis e atos normativos federais e estaduais, o que ser´a discutido na pr´oxima se¸c˜ao.
O Judici´ario brasileiro carrega a pecha da demora, seja para o usu´ario em geral
ou mesmo para a comunidade jur´ıdica. Um processo regular (c´ıvel ou criminal) come¸ca
perante um juiz singular ou juizado especial (estadual ou federal, dependendo da mat´eria),
que ouve as partes, conduz a produ¸c˜ao de provas, aprecia incidentes e decide. As senten¸cas
do juiz de primeira instˆancia normalmente s˜ao reapreciadas por uma Corte estadual ou
regional (federal), atrav´es de recurso ou reexame, especialmente quando entes ou ´org˜aos
p´ublicos s˜ao litigantes. Na sequˆencia, as decis˜oes colegiadas dos Tribunais de segunda
instˆancia, chamadas Ac´ord˜aos, podem ser objeto de recurso ao STJ (arguindo viola¸c˜ao de
lei federal), ao STF (por viola¸c˜ao `a Constitui¸c˜ao), ou ambos. Quase todo assunto levado
ao judici´ario pode ser transformado em mat´eria constitucional, alcan¸cando a jurisdi¸c˜ao
do Supremo, se ele assim entender18. Nesse contexto, mesmo casos usuais e corriqueiros
podem durar anos ou d´ecadas.
Os n´umeros atuais sobre o funcionamento do sistema de justi¸ca, assim como sua
evolu¸c˜ao recente, mostram um cen´ario pouco confort´avel. Contando com aproximada-
mente 17 mil ju´ızes e mais de 400 mil funcion´arios, o Poder Judici´ario tem gerido a
impressionante carga de mais de 90 milh˜oes de processos nos ´ultimo 3 anos. Em pers-
pectiva comparada, segundo o relat´orio de 2015 do World Justice Project, o Brasil ocupa
a posi¸c˜ao 46 no Rule of Law Index global (entre 102 pa´ıses), sendo o d´ecimo terceiro
lugar no ranking regional (entre 31), com tendˆencia de baixa nos fatores a) restri¸c˜oes
18 A trajet´oria de progressiva constitucionaliza¸c˜ao de direitos - fenˆomeno que tamb´em se associa `a terceira
onda de democratiza¸c˜ao - ´e comumente associada `a amplia¸c˜ao do ˆambito de atua¸c˜ao do Supremo. A
prodigalidade da Constitui¸c˜ao em regular diversos aspectos da vida social e prever direitos e obriga¸c˜oes
em vasta amplitude de assuntos contribuiria para esse movimento, conferindo estatura constitucional
a v´arias mat´erias antes restritas ao seu ramo especializado do direito. Nessa linha, Couto e Arantes
(2006) percebem a op¸c˜ao do constituinte por um desenho maximalista com a inclus˜ao de v´arias policies,
algo que afeta o pr´oprio processo pol´ıtico-decis´orio, como sugerem as taxas de emendamento `a Carta.
39
aos poderes governamentais, b) direitos fundamentais e c) enforcement regulat´orio19 . No
plano interno, o Conselho Nacional de Justi¸ca produz, anualmente, o relat´orio “Justi¸ca
em N´umeros”. Trata-se de iniciativa importante, lan¸cada durante a presidˆencia do Min.
Nelson Jobim20, que, entre outras coisas, apresenta indicadores quantitativos da produti-
vidade de ju´ızes e tribunais e taxas de congestionamento. Entre 2009 e 2014, por exemplo,
os gastos da justi¸ca subiram de 51,17 para 68,39 bilh˜oes de reais, sendo aproximadamente
89% dessa quantia consumida com despesa de pessoal. A taxa de congestionamento de
processos tem permanecido est´avel, variando entre 69,7% e 71,4%, com um passivo de
mais de 70 milh˜oes de casos pendentes em 2014. An´alises cr´ıticas ao desempenho do
sistema s˜ao muitas e diversificadas, vindo de longa data e tendo motivado, inclusive, as
discuss˜oes sobre a Reforma do Judici´ario, ocorrida na ´ultima d´ecada.
Em termos de custos, Ros (2015) aponta que as despesas do Judici´ario, em 2014,
alcan¸caram 1,30% do PIB, uma propor¸c˜ao muito maior do que outros pa´ıses analisados, a
exemplo da Venezuela, em segundo lugar, com 0,34%. Al´em disso, n˜ao est´a claro que tais
encargos representem melhoria nos servi¸cos prestados e qualidade da jurisdi¸c˜ao, com o
Brasil, por exemplo, contando com 8,2 ju´ızes por 100.000 habitantes, enquanto nossa vizi-
nha Colˆombia alcan¸ca uma taxa de 10,4 ju´ızes. Boa parte dos custos podem estar alocados
no funcionalismo, hoje na faixa de 205 servidores por 100 mil habitantes, o maior n´umero
entre os casos investigados. Analisando seus achados com apoio em outros indicadores de
presta¸c˜ao jurisdicional, o autor indica que temos “um custo alt´ıssimo especialmente ante
a conhecida demora de tais decis˜oes, que gera uma taxa de congestionamento de cerca de
70% ” e que “talvez seja o momento de considerar que o pˆendulo or¸cament´ario em rela¸c˜ao
ao Poder Judici´ario tenha ido muito longe, particularmente em um momento no qual o
Brasil enfrenta dif´ıceis escolhas em rela¸c˜ao ao seu equil´ıbrio fiscal”.
Dois outros aspectos do desenho institucional merecem coment´ario: a) o conjunto
de garantias conferidas aos ju´ızes e a forma de acesso ao cargo; e b) a presen¸ca e cres-
cente importˆancia do Minist´erio P´ublico. Desde Os Federalistas americanos, o tema da
independˆencia judicial, em apoio ao check and balances, integra as preocupa¸c˜oes de cons-
titucionalistas, constituintes e polit´ologos. Ap´os a terceira onda de democratiza¸c˜ao, a
19 O relat´orio ´e produzido por uma organiza¸c˜ao independente e combina pesquisas domiciliares e de experts
ranqueando os sistemas de justi¸ca de mais de uma centena de pa´ıses com base em 44 indicadores atrav´es
de 8 dimens˜oes ou fatores: 1) constraints on government powers; 2) absence of corruption; 3) open
government; 4) fundamental rights; 5) order and security; 6) regulatory enforcement; 7) civil justice;
8) criminal justice(WJP. . . ,2012). Os resultados podem ser consultados numa plataforma on-line em
hhttp://data.worldjusticeproject.org/i.
20 Dispon´ıvel em hhttp://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/pj-justica-em-numerosi. As primeiras inici-
ativas e desafios do CNJ, enquanto Nelson Jobim ocupou a Presidˆencia do STF, s˜ao comentadas pelo
pr´oprio Ministro em seu depoimento ao projeto de Hist´oria oral do Supremo (FONTAINHA et al.,
2015).
40
tem´atica ganhou for¸ca na pol´ıtica comparada, acompanhada dos estudos sobre justi¸ca
transicional21. A forma de recrutamento da magistratura e as condi¸c˜oes alcan¸cadas aos
ju´ızes para o desempenho de sua atividade s˜ao comumente apontadas como aspectos da
autonomia perante os outros poderes e atores pol´ıticos (HELMKE; FIGUEROA,2011).
Mesmo sem aprofundar o assunto, vale descrever o caso brasileiro.
O ingresso na magistratura, em primeira instˆancia, ocorre por meio de concurso
p´ublico, altamente competitivo, para bachar´eis em direito que comprovem tempo m´ınimo
de experiˆencia jur´ıdica. Diferente de outros sistemas, o juiz de primeiro grau n˜ao ´e eleito
ou indicado por ´org˜aos pol´ıticos. O acesso aos Tribunais de Justi¸ca e Regionais Federais
ocorre por meio de promo¸c˜ao por merecimento e antiguidade, n˜ao se podendo descartar,
de plano, a influˆencia de alguma pol´ıtica interna, corporativa. A partir desse n´ıvel, cabe
obediˆencia `a regra do “quinto constitucional”, reservando-se assentos para profissionais
egressos da advocacia e do Minist´erio P´ublico, usualmente escolhidos por sistemas de listas
tr´ıplices (o que tamb´em n˜ao exime pol´ıtica interna). Ainda que os TRFs e o STJ sejam
preenchidos por indica¸c˜ao do Presidente da Rep´ublica, as listas tr´ıplices s˜ao formadas
pela pr´opria magistratura ou segundo a regra do “quinto”. A exce¸c˜ao ´e o Supremo, cuja
indica¸c˜ao, com requisitos diferenciados, ´e livre do Chefe do Executivo, com aprova¸c˜ao
pelo Senado Federal em vota¸c˜ao secreta.
A Constitui¸c˜ao vigente concede, aos ju´ızes, as garantias funcionais da vitaliciedade
(somente perder´a o cargo por senten¸ca judicial transitada em julgado), inamovibilidade
(n˜ao ser´a removido sem consentimento, regra n˜ao absoluta) e irredutibilidade de subs´ıdios
(valor nominal da remunera¸c˜ao n˜ao diminui). Al´em disso, aos magistrados somente ´e per-
mitido acumular fun¸c˜oes e cargos de magist´erio, sendo vedado o exerc´ıcio da advocacia22 e
o exerc´ıcio de atividade pol´ıtico-partid´aria. Tratam-se de presumidos incentivos adicionais
`a imparcialidade no exerc´ıcio da judicatura, para al´em da pr´opria independˆencia do ´org˜ao.
No plano das garantias ditas institucionais, o Poder Judici´ario e suas estruturas estadu-
ais e federais contam com autonomia administrativa e financeira, inclusive na elabora¸c˜ao
21 Quanto aos temas de independˆencia judicial, justi¸ca transicional e judicializa¸c˜ao, vale citar: Tate e
Vallinder (1995), como pioneiros; Iaryczower, Spiller e Tommasi (2002)eHelmke e Rosenbluth (2009),
par ao caso argentino; Brinks (2004)eR´ıo (2014), comparando Argentina e Brasil; Solomon (2007),
para um estudo sobre Justi¸ca em regimes autorit´arios; Franck (2009) e sua an´alise longitudinal do caso
francˆes; P´erez-Li˜n´an e Castagnola (2009), para um estudo comparado sobre indica¸c˜ao presidencial de
ju´ızes em Altas Cortes na Am´erica Latina; Helmke e Figueroa (2011), em coletˆanea que comenta v´arios
casos latino-americanos; Taylor (2014) ao tratar do caso venezuelano sob Ch´avez; Bowen (2013) e sua
an´alise sobre Am´erica Central; al´em de Woods e Hilbink (2009) e Chavez, Ferejohn e Weingast (2011)
debatendo aspectos te´oricos do tema da independˆencia judicial; e o artigo de Vanberg (2015) revisando
a literatura recente, enfatizando a abordagem estrat´egica e reportando os desafios postos `a ciˆencia.
22 Magistrados e Membros do Minist´erio P´ublico voltam a poder exercer a advocacia depois de deixarem
o cargo por motivo de exonera¸c˜ao ou aposentadoria e ultrapassado um per´ıodo de “quarentena”,
usualmente de trˆes anos.
41
de seus or¸camentos. O aspecto possivelmente negativo desse conjunto de prerrogativas
institucionais e funcionais, combinando a um esprit du corps de quem est´a diante da ta-
refa de distribuir justi¸ca ou tutelar o interesse p´ublico, ´e a possibilidade de insulamento
auto-interessado desses aparatos da burocracia ou de sua ades˜ao a ideologias autorit´arias,
com roupagens por vezes meritocr´aticas ou tutelares. Nesse quesito, a cr´ıtica recorrente
´e quanto a eventuais problemas de legitimidade decis´oria em tem´aticas de maior apelo
p´ublico, uma vez que ju´ızes e tribunais n˜ao seriam respons´aveis - accountable - perante
os cidad˜aos.
Desde a d´ecada de 1980, paralelamente ao movimento de redemocratiza¸c˜ao do pa´ıs,
ocorreram importantes transforma¸c˜oes no ordenamento jur´ıdico em dire¸c˜ao `a tutela de
direitos coletivos, difusos e transindividuais. Um marco importante foi a cria¸c˜ao da A¸c˜ao
Civil P´ublica, em 1985; outro foi o fortalecimento do Minist´erio P´ublico, sobretudo a
partir da Constitui¸c˜ao de 1988. Seu papel tutelar, frequentemente identificado na chave
da representa¸c˜ao funcional (VIANNA,2002), n˜ao ficou restrito a quest˜oes criminais, mas
alcan¸ca, especialmente, temas ambientais, de administra¸c˜ao p´ublica e prote¸c˜ao ao consu-
midor. No campo da Ciˆencia Pol´ıtica, impulsionado pela obra de Arantes (2002), o MP,
seu lugar institucional e seu papel pol´ıtico na democracia brasileira contemporˆanea tˆem
sido objetos de amplo e crescente debate.
E como o Poder Judici´ario afeta ou relaciona-se, de modo mais geral, com a orga-
niza¸c˜ao federativa do pa´ıs? Em primeiro lugar, diferente de executivos e legislativos, ele
n˜ao se ordena em trˆes n´ıveis, inexistindo Justi¸ca Municipal. Os judici´arios estaduais, com
seus Tribunais de Justi¸ca e Ju´ızes de Direito, n˜ao apenas possuem autonomia funcional e
administrativa perante Assembleias e Governadores, mas tamb´em podem ocupar espa¸co
n˜ao desprez´ıvel na cena pol´ıtica estadual, especialmente por conta das competˆencias ori-
gin´arias para julgamento de prefeitos, com foro por prerrogativa de fun¸c˜ao no pr´oprio TJ.
´
E frequente, tamb´em, que as categorias funcionais mais fortes no servi¸co p´ublico esta-
dual sejam aquelas ligadas ao Poder Judici´ario ou Minist´erio P´ublico. Como ser´a visto
adiante, elas ocupam lugar relevante no controle de constitucionalidade de atos norma-
tivos funcionais, sendo um dos agentes pol´ıtico-burocr´aticos respons´aveis (ainda que na
condi¸c˜ao de benefici´arios) pela eventual judicializa¸c˜ao da federa¸c˜ao. A forma de ascens˜ao
ao cargo de Desembargador de Justi¸ca, junto aos TJs, tamb´em se d´a autonomamente,
sugerindo a constitui¸c˜ao de um poder local. Negocia¸c˜oes entre os poderes no ˆambito esta-
dual, sobretudo em temas or¸cament´arios, tamb´em n˜ao s˜ao de todo estranhas ao notici´ario
42
pol´ıtico23 .
Uma vez que nem a Justi¸ca Federal nem as jurisdi¸c˜oes especializadas intervˆem de
maneira muito expressiva nas competˆencias estaduais, as atribui¸c˜oes mais voltadas `a tutela
do sistema federativo recaem no STJ para uniformiza¸c˜ao da interpreta¸c˜ao de lei federal,
no STF quanto `a mat´eria constitucional e no pr´oprio CNJ, para al´em das atividades
jurisdicionais24. Note-se que, do ponto de vista processual, o STJ n˜ao possui competˆencia
para interpretar lei estadual ou municipal. ´
E o Tribunal de Justi¸ca quem profere a ´ultima
palavra sobre isso. N˜ao cabe, portanto, a um ´org˜ao judici´ario nacional dizer sobre a
aplica¸c˜ao de lei subnacional. Nesse sentido, ´e o controle direto de constitucionalidade,
via STF, que permite a uniformiza¸c˜ao de expedientes legiferantes locais ou a regula¸c˜ao
dos limites pol´ıtico-jur´ıdicos dos Poderes Estaduais ao editar atos normativos. Por essa
principal raz˜ao, quando se pensa em federa¸c˜ao e judici´ario, analisando-se a pluralidade
dos estados, o foco primeiro de an´alise ´e a atua¸c˜ao do Supremo nas a¸c˜oes diretas.
Ou seja, embora as diferentes quest˜oes pol´ıticas - seja quanto a disputas, orga-
niza¸c˜ao do aparato estatal ou produ¸c˜ao e implementa¸c˜ao de policies - possam ser levadas
ao judici´ario atrav´es de m´ultiplos instrumentos jur´ıdicos, inclusive quanto aos temas esta-
duais ou de interesse federativo, a caracter´ıstica mais relevante do modo como o sistema
est´a organizado ´e a centraliza¸c˜ao da tutela das capacidades legiferantes dos entes federa-
dos pelo Supremo Tribunal Federal. ´
E esse elemento, sem ignorar a existˆencia e eventual
importˆancia de outros meios, que indica o lugar possivelmente privilegiado daquilo que se
pode chamar de uma judicializa¸c˜ao da federa¸c˜ao.
1.1.2 Supremo Tribunal Federal nas institui¸c˜oes vigentes
A maior parte dos estudos sobre os impactos pol´ıticos do Judici´ario e sua intera¸c˜ao
com governos e legislativos tem como objeto b´asico de aten¸c˜ao o Supremo Tribunal Fede-
23 Epis´odios recentes dessa esp´ecies passam, inclusive, por quest˜oes federativas e pela tutela do Supremo.
Um tema em voga ´e a utiliza¸c˜ao de recursos relativos `a dep´ositos judiciais, especialmente para a
quita¸c˜ao de precat´orios. Essa pr´atica j´a fora utilizada ou sinalizada recentemente pelos estados do Rio
Grande do Sul, do Rio de Janeiro e o Munic´ıpio de S˜ao Paulo e tem sido discutida no ˆambito do CNJ e
STF. Outro assunto de impacto p´ublico relativo `a atua¸c˜ao do Judici´ario frente aos Poderes e Adminis-
tra¸c˜ao regionais diz respeito `as d´ıvidas dos Estados, algo que inclui um conjunto de a¸c˜oes e iniciativas
no Supremo, al´em de medidas judiciais frequentes nos Tribunais de Justi¸ca, como s˜ao exemplos os
pedidos de sequestro de ativos para pagamento do funcionalismo p´ublico ou outras despesas.
24 ´
E interessante pensar que a dicotomia centraliza¸c˜ao/descentraliza¸c˜ao tamb´em se reproduz, em alguma
medida, no interior do Poder Judici´ario. Fruto de uma longa trajet´oria e muito trabalho pol´ıtico,
o CNJ, como ´org˜ao central, tem recorrentemente encontrado resistˆencias dos Tribunais locais. Um
primeiro enfrentamento se deu na quest˜ao relativa ao papel exclusivo ou concorrente das corregedorias
locais e nacional para investigar e punir magistrados. Mais recentemente os TJs tˆem unido esfor¸cos na
tentativa de criar um segundo Conselho, apenas para a Justi¸ca Estadual, contrapondo-se ao CNJ.
43
ral. Os temas recorrentes da judicializa¸c˜ao e ativismo, embora mais amplos, tiveram como
ponto de partida ou marco principal precisamente investiga¸c˜oes emp´ıricas e te´oricas sobre
a atua¸c˜ao da Suprema Corte e a amplia¸c˜ao do acesso `a sua jurisdi¸c˜ao proporcionados
pela Constitui¸c˜ao de 1988. Este Tribunal tamb´em ´e o centro desta tese, tendo em vista
sua competˆencia e participa¸c˜ao, at´e mesmo hist´orica, no encaminhamento de conflitos
federativos revelados pela elabora¸c˜ao de leis.
´
Org˜ao de c´upula do Poder Judici´ario, “guardi˜ao da Constitui¸c˜ao”, nos termos de
seu art. 102, o STF ´e atualmente composto por onze Ministros, nomeados pelo Presidente
da Rep´ublica, ap´os aprova¸c˜ao da escolha pela maioria absoluta do Senado Federal. Trˆes
de seus membros tamb´em integram o TSE e seu Presidente tamb´em preside, durante dois
anos, o Conselho Nacional de Justi¸ca (CNJ). Embora n˜ao exista tempo de mandato para
a fun¸c˜ao de Ministro, a aposentadoria compuls´oria ocorre aos 75 anos de idade.25.´
E
poss´ıvel aposentar antes da idade m´axima, havendo casos, inclusive de afastamentos por
motivos pessoais. Considerando os membros da Corte entre 1988 e 2015, incluindo aqueles
no exerc´ıcio, o tempo m´edio de permanˆencia pode ser estimado em aproximadamente 14
anos, com o m´ınimo de 2 (Menezes Direito, falecido em 2009) e m´aximo de 33 (Dias
Toffoli, com aposentadoria compuls´oria prevista para 2042).
Os principais estatutos jur´ıdicos que regem seu funcionamento s˜ao o Regimento
Interno e a pr´opria Constitui¸c˜ao. Suas competˆencias est˜ao previstas nos incisos do art.
102 da Carta. ´
E classificado pelos manuais de direito (LENZA,2006) (MORAES,2004)
(MOTTA; BARCHET,2009), pela doutrina constitucional (MENDES,2005) (SILVA,
2005) e pelos estudos de ciˆencia pol´ıtica (ARANTES,1997) como um Tribunal misto,
h´ıbrido, n˜ao puramente uma Corte Constitucional, assemelhada a exemplos europeus,
seja por decidir recursos - ainda que essa seja a fun¸c˜ao constitucional da Suprema Corte
americana, por exemplo - mas, sobretudo, por decidir temas n˜ao constitucionais em com-
petˆencia origin´aria. Nessa linha, Falc˜ao, Cerdeira e Arguelhes (2012) apontam para a
existˆencia de trˆes personas sob um mesmo Tribunal: a constitucional; a ordin´aria; e a
recursal.
Sua atribui¸c˜ao mais destacada pela literatura ´e o controle direto, concentrado e
abstrato da constitucionalidade de leis e atos normativos federais e estaduais, objeto fre-
quente de estudos da ciˆencia pol´ıtica. Sob esta nomenclatura est˜ao inclu´ıdas: a a¸c˜ao
direta de inconstitucionalidade (inclusive por omiss˜ao) (ADI e ADO); a a¸c˜ao declarat´oria
de constitucionalidade (ADC) e a argui¸c˜ao de descumprimento de preceito fundamental
decorrente da pr´opria Constitui¸c˜ao (ADPF), assim como as medidas cautelares desses
25 At´e a Emenda Constitucional 88 de 2015 (apelidada de PEC da Bengala), a idade m´axima era de
70 anos. Ao redor do mundo, mesmo nas Altas Cortes com cargos vital´ıcios, esse aspecto ´e bastante
vari´avel. Nos EUA, por exemplo, n˜ao h´a sequer limite de idade, tendo a Corte Suprema daquele pa´ıs
j´a contado com Justices octa e nonagen´arios.
44
processos. Em sua faceta ordin´aria, voltando-se `a esfera internacional, compete-lhe, por
exemplo, decidir sobre a extradi¸c˜ao solicitada por Estado estrangeiro, sendo o Caso Ba-
tisti o exemplo recente de maior repercuss˜ao p´ublica26 . Por for¸ca do “caso do mensal˜ao”,
ganharam destaque as competˆencia origin´arias na ´area penal, como o julgamento, nas in-
fra¸c˜oes comuns, do Presidente da Rep´ublica, o Vice-Presidente, os membros do Congresso
Nacional, seus pr´oprios Ministros e o Procurador-Geral da Rep´ublica, entre outros27.
Funcionando como tribunal recursal, o Supremo decide recursos ordin´arios de habeas cor-
pus, mandados de seguran¸ca e habeas data decididos em ´unica instˆancia pelos Tribunais
Superiores, se denegat´oria a decis˜ao, e aprecia recursos extraordin´arios, de causas deci-
didas em ´unica ou ´ultima instˆancia, quando a decis˜ao recorrida contrariar dispositivo da
Constitui¸c˜ao. Em termos quantitativos, o I Relat´orio Supremo em N´umeros (FALC˜aO;
CERDEIRA; ARGUELHES,2012) identificou, para o per´ıodo entre 1988 e 2009, que a
persona recursal do STF correspondeu a quase 92% dos processos recebidos (1.120.597),
seguida de suas fun¸c˜oes ordin´aria, com 7,80% (95.306), restando `a Corte Constitucional
propriamente dita apenas 0,51% (6.199) dos volume processual.
Internamente, as atividades est˜ao divididas entre o Plen´ario, as Turmas e a Pre-
26 Barroso (2013) oferece uma detalhada descri¸c˜ao desse epis´odio, na vis˜ao de um professor constituci-
onalista tamb´em advogado, atuando pelo extraditando. O caso tem sido objeto de v´arias an´alises e
reflex˜oes, n˜ao restritas ao direito internacional, mas voltadas para as dimens˜oes do ativismo judicial
(CAMPOS,2014) e compreens˜ao do processo decis´orio no Supremo (MELLO,2015b).
27 A jurisdi¸c˜ao do Supremo, para processos em competˆencia origin´aria, est´a prevista no inciso I do
art. 102 da CF/88. Al´em das a¸c˜oes constitucionais, suas medidas cautelares, a extradi¸c˜ao, e as
infra¸c˜oes penais comuns das autoridades mencionadas, est˜ao previstas: as infra¸c˜oes penais comuns e
os crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Ex´ercito e da
Aeron´autica, ressalvado o disposto no art. 52, I, os membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal
de Contas da Uni˜ao e os chefes de miss˜ao diplom´atica de car´ater permanente; o habeas corpus, sendo
paciente qualquer das pessoas referidas nas al´ıneas anteriores; o mandado de seguran¸ca e o habeas data
contra atos do Presidente da Rep´ublica, das Mesas da Cˆamara dos Deputados e do Senado Federal,
do Tribunal de Contas da Uni˜ao, do Procurador-Geral da Rep´ublica e do pr´oprio Supremo Tribunal
Federal; o lit´ıgio entre Estado estrangeiro ou organismo internacional e a Uni˜ao, o Estado, o Distrito
Federal ou o Territ´orio; as causas e os conflitos entre a Uni˜ao e os Estados, a Uni˜ao e o Distrito
Federal, ou entre uns e outros, inclusive as respectivas entidades da administra¸c˜ao indireta; o habeas
corpus, quando o coator for Tribunal Superior ou quando o coator ou o paciente for autoridade ou
funcion´ario cujos atos estejam sujeitos diretamente `a jurisdi¸c˜ao do Supremo Tribunal Federal, ou se
trate de crime sujeito `a mesma jurisdi¸c˜ao em uma ´unica instˆancia; a revis˜ao criminal e a a¸c˜ao rescis´oria
de seus julgados; a reclama¸c˜ao para a preserva¸c˜ao de sua competˆencia e garantia da autoridade de suas
decis˜oes; a execu¸c˜ao de senten¸ca nas causas de sua competˆencia origin´aria, facultada a delega¸c˜ao de
atribui¸c˜oes para a pr´atica de atos processuais; a a¸c˜ao em que todos os membros da magistratura sejam
direta ou indiretamente interessados, e aquela em que mais da metade dos membros do tribunal de
origem estejam impedidos ou sejam direta ou indiretamente interessados; os conflitos de competˆencia
entre o Superior Tribunal de Justi¸ca e quaisquer tribunais, entre Tribunais Superiores, ou entre estes e
qualquer outro tribunal; o mandado de injun¸c˜ao, quando a elabora¸c˜ao da norma regulamentadora for
atribui¸c˜ao do Presidente da Rep´ublica, do Congresso Nacional, da Cˆamara dos Deputados, do Senado
Federal, das Mesas de uma dessas Casas Legislativas, do Tribunal de Contas da Uni˜ao, de um dos
Tribunais Superiores, ou do pr´oprio Supremo Tribunal Federal e; as a¸c˜oes contra o Conselho Nacional
de Justi¸ca e contra o Conselho Nacional do Minist´erio P´ublico.
45
sidˆencia. Cada Turma ´e constitu´ıda por cinco Ministros - o Presidente da Corte n˜ao
integra nenhuma - e presidida pelo mais antigo dentre seus membros, por um per´ıodo
de um ano. A elas cabe a maior parte dos processos, destacando-se os recursos extra-
ordin´arios, agravos, mandados de seguran¸ca e de injun¸c˜ao, reclama¸c˜oes, casos de habeas
corpus e algumas a¸c˜oes penais relativas a titulares de prerrogativa de foro pelo exerc´ıcio
de fun¸c˜ao. O Pleno ´e respons´avel pelas a¸c˜oes de controle direto de constitucionalidade,
a¸c˜oes penais de crimes comuns do Presidente da Rep´ublica, Vice, Presidentes da Cˆamara
dos Deputados e Senado Federal, Ministros do Supremo e Procurador Geral da Rep´ublica
(PGR), lit´ıgios entre Estados estrangeiros ou organismos internacionais contra Entes na-
cionais, conflitos entre Uni˜ao e Estados ou entre uns e outros, interven¸c˜ao federal nos
Estados, revis˜ao criminal e a¸c˜ao rescis´oria de seus pr´oprios julgados, al´em de hip´oteses
especiais de mandado de seguran¸ca e habeas corpus.
A regra b´asica de distribui¸c˜ao dos processos ´e o sorteio. Isso implica, a princ´ıpio,
que todo Ministro, ressalvado o Presidente, tem a mesma chance de se tornar relator de
um caso28. As exce¸c˜oes s˜ao as mesmas que existem no Poder Judici´ario como um todo,
de natureza processual. Nos casos examinados nesta tese, ´e frequente que processos tra-
tando sobre o mesmo tema, mas propostos por diferentes requerentes, fiquem apensados,
tramitando de modo unificado a maior parte do tempo. Tamb´em ´e recorrente a realiza¸c˜ao
de julgamentos em conjunto, seja quanto a feitos apensos, ou mesmo processos que n˜ao
versam sobre a mesma legisla¸c˜ao, mas tratam de mat´eria assemelhada. Exemplos impor-
tantes de julgamento conjunto, mas n˜ao apenso, em rela¸c˜ao `a normas estaduais, s˜ao as
leis de cria¸c˜ao de munic´ıpios e o funcionamento de loterias estaduais.
As decis˜oes judiciais do Supremo podem ser monocr´aticas ou colegiadas, tanto no
Pleno, quanto nas Turmas. Arguelhes e Hartmann (2015) indicam que o percentual m´edio
de decis˜oes monocr´aticas, entre 1992 e 2013, ´e de 93%, destacando a “monocratiza¸c˜ao”do
Tribunal n˜ao apenas em sua persona recursal (que representa em torno de 9 d´ecimos dos
processos examinados), mas tamb´em enquanto Corte Constitucional. E mais: o aumento
da propor¸c˜ao de decis˜oes proferidas por um s´o Ministro nesses casos pode estar associado
com mudan¸ca nas regras processuais promovida em 1999, diminuindo a quantidade de
liminares apreciadas em prol da ado¸c˜ao de um “rito sum´ario”(art. 12 da Lei 9.868/99)
28 O fato da distribui¸c˜ao dos processos ser por sorteiro, a princ´ıpio aleat´orio, abre uma gama de possibi-
lidades ainda n˜ao exploradas pela ciˆencia pol´ıtica brasileira. A aleatoriedade na distribui¸c˜ao, contro-
ladas eventuais mudan¸cas por conta de aspectos processuais ou externos, permite encontrar situa¸c˜oes
an´alogas a de experimentos naturais em eventos de interesse no campo da pol´ıtica judici´aria. Sendo
essa uma regra comum nos Tribunais brasileiros, tais possibilidades n˜ao ficam resumidas aos estudos
sobre o STF. Hidalgo, Canello e Oliveira (2016) aproveitam isso para discutir os efeitos da escolha
de conselheiros de TCEs na rejei¸c˜ao de contas municipais. No plano internacional, discutindo decis˜ao
judicial, Boyd, Epstein e Martin (2010) tratam sobre os efeitos de gˆenero e Alesina e Ferrara (2014)
sobre ra¸ca.
46
que pouco tem de c´elere (FALC˜aO; HARTMANN; CHAVES,2014). Quando colegiadas,
as decis˜oes s˜ao tomadas por maioria, obedecendo alguns qu´oruns especiais, mas sendo
frequente o julgamento por unanimidade. Se a posi¸c˜ao do Relator designado n˜ao pre-
valecer, restando vencido, o Ministro cujo voto abriu a divergˆencia, ou aquele vitorioso
no maior n´umero de pontos, ser´a designado Redator para o Ac´ord˜ao, durante a pr´opria
sess˜ao, competindo-lhe elaborar a ementa - ou seja, o resumo - e o dispositivo da decis˜ao.
Oquorum geral para delibera¸c˜ao do Plen´ario ´e de 8 ministros. Nas decis˜oes sobre
constitucionalidade de leis, ´e necess´ario uma maioria de 6 votos. Al´em disso, nos casos
especiais de modula¸c˜ao dos efeitos da decis˜ao, a maioria deve ser constitu´ıda por 2/3 dos
membros do Tribunal. Este ´org˜ao interno tamb´em ´e respons´avel pelas decis˜oes adminis-
trativas colegiadas e outros assuntos de economia interna, em especial a reforma de seu
pr´oprio Regimento. Mendes (2005) lembra que a Constitui¸c˜ao n˜ao autoriza o Supremo
a editar normas internas que tratem sobre mat´eria processual, apenas excepcionalmente,
em caso de omiss˜ao legal. Tais quest˜oes, em sua maior parte, s˜ao regidas pela pr´opria
Carta e por legisla¸c˜ao ordin´aria29. Como acontece nas outras instˆancias do Judici´ario,
um Ministro pode ser exclu´ıdo de julgamento por motivo de impedimento ou suspei¸c˜ao.
Embora tal pr´atica n˜ao devesse ser admitida em processos de controle concentrado (MEN-
DES,2005), frequentemente Ministros n˜ao participam de decis˜oes por terem atuado como
advogado antes de ingressar na Corte, como, na composi¸c˜ao atual, Dias Toffoli e Gilmar
Mendes, ambos ex-Advogados Gerais da Uni˜ao.
Todos julgamentos e decis˜oes tˆem ao menos um resumo - a Ementa - publicados
no Di´ario Oficial. Todos as decis˜oes colegiadas - os Ac´ord˜aos - em a¸c˜oes constitucionais
tamb´em s˜ao disponibilizadas, na ´ıntegra, atrav´es do website.´
E a publica¸c˜ao que torna a
jurisprudˆencia conhecida. N˜ao ´e necess´ario que todos Ministros participantes de um julga-
mento ofere¸cam voto por escrito. A tradi¸c˜ao da Corte costumava registrar textualmente o
voto escrito do Relator (ou Redator, condutor do voto vencedor), os votos orais de outros
integrantes quando apresentem elementos de fundamenta¸c˜ao, e eventuais votos vencidos,
manifestando a posi¸c˜ao divergente, al´em dos debates orais travados entre os julgadores.
Com o passar do tempo, tem se tornado mais frequente a apresenta¸c˜ao de um n´umero
maior de votos escritos, cada vez mais longos. As poss´ıveis influˆencias da TV Justi¸ca,
da informatiza¸c˜ao e das mudan¸cas de composi¸c˜ao s˜ao objeto de recorrente debate nesse
sentido. A metodologia empregada pelo STF para tomada de decis˜ao, compreendendo
a forma de elabora¸c˜ao dos ac´ord˜aos e ementas, a tomada dos votos e a pr´opria publici-
29 Destacando-se o C´odigo de Processo Civil quanto aos recursos ordin´arios e extraordin´arios, a Lei n.
8.038/1990 quanto `a a¸c˜ao penal, reclama¸c˜ao, interven¸c˜ao federal, habeas corpus, e as Leis 9.869/1999
e 9.882/1999 sobre as a¸c˜oes diretas, incluindo a ADPF. As duas ´ultimas representam um importante
marco modificativo do desenho institucional da Corte, incrementando poderes e fornecendo novos
incentivos estrat´egicos aos atores pol´ıticos.
47
dade da delibera¸c˜ao do colegiado, tem sido objeto de reflex˜ao acadˆemica, ressaltando-se
as diferen¸cas com outros sistemas, especialmente o norte-americano30 .
Nas delibera¸c˜oes colegiadas, cada Ministro profere seu voto em ordem definida. No
plen´ario, ap´os manifesta¸c˜ao do Relator, os pronunciamentos v˜ao do integrante mais novo
ao mais antigo. Qualquer deles pode paralisar o julgamento para analisar o processo,
pedir vista. Tanto o pedido de vista pode ser renovado (justificadamente), quanto pode
ser apresentado por mais de um julgador, sucessivamente. Trata-se de aspecto impor-
tante no processo decis´orio do STF, mas ainda pouco estudado, interferindo no tempo
do processo, usualmente como um componente estrat´egico31.Falc˜ao, Hartmann e Chaves
(2014) examinam dados do Tribunal e apontam que menos de um quarto dos pedidos s˜ao
devolvidos dentro do prazo razo´avel de 30 dias, havendo casos com vistas durante mais
de 20 anos (AI 13275532), por exemplo.
Ao mesmo tempo em que a redemocratiza¸c˜ao, coroada pela Constitui¸c˜ao de 1988,
potencializou um movimento de expans˜ao das institui¸c˜oes judiciais em geral e do Supremo
em particular, as avalia¸c˜oes negativas sobre a presta¸c˜ao jurisdicional e o diagn´ostico de
crise tamb´em cresceram. A Reforma do Judici´ario tornou-se tema recorrente. (SADEK;
ARANTES,1994) (SADEK,1996) (SADEK,2004). Ap´os mais de uma d´ecada desde a
apresenta¸c˜ao da primeira proposta em 1992 e uma situa¸c˜ao de vetos cruzados (SADEK;
ARANTES,1994), a Constitui¸c˜ao foi alterada pela EC 45/2004, j´a no Governo Lula,
trazendo modifica¸c˜oes significativas para as atividades da Corte, com poss´ıvel impacto em
seu processo decis´orio. Trˆes delas merecem destaque: a cria¸c˜ao das “s´umulas vinculantes”,
do instituto da “repercuss˜ao geral”e do Conselho Nacional de Justi¸ca (CNJ). Por um
lado, foi introduzida a possibilidade do Tribunal aprovar, ap´os reiteradas decis˜oes sobre
30 Mello (2015b) e Rodriguez (2013) enfrentam, cada qual ao seu modo, problemas relativos a forma como
as decis˜oes s˜ao tomadas no Supremo. Enquanto a primeira chama aten¸c˜ao para o modelo agregativo
de julgamento colegiado, o segundo debate a pr´opria forma de constru¸c˜ao dos votos individuais e das
decis˜oes judiciais em geral no sistema brasileiro. As pesquisas de ciˆencia pol´ıtica tamb´em tˆem, crescen-
temente, discutido o impacto de quest˜oes internas do processo decis´orio colegiado. Aqui, o debate tem
sido entre as teses do “Supremo Relator” (OLIVEIRA,2012c), enfatizando a forte associa¸c˜ao entre
o voto do Ministro Relator e o resultado dos julgamento, e das “Onze Ilhas” (KLAFKE; PRETZEL,
2014), que destaca a individualiza¸c˜ao na manifesta¸c˜ao de posi¸c˜oes pelos julgadores, sem tentativas de
constru¸c˜ao de maiorias ou consensos.
31 O exemplo recente de maior repercuss˜ao foi o pedido do Min. Gilmar Mendes, na ADI 4650, que
tratou sobre financiamento empresarial de campanhas eleitorais. O Ministro chegou a ser alvo de
campanha na internet, contando com peti¸c˜oes p´ublicas e atua¸c˜ao em m´ıdias sociais (Devolve, Gilmar).
No anedot´ario, esse instrumento processual ´e conhecido por “perdido de vista”.
32 Conforme Falc˜ao, Hartmann e Chaves (2014): O AI 132755 trata de execu¸c˜ao fiscal promovida pela
Fazenda P´ublica do Estado de S˜ao Paulo contra a empresa Ind´ustrias J. B. Duarte S/A e foi protocolado
em agosto de 1989. Em setembro do mesmo ano houve pedido de vista do ministro Celso de Mello. Em
abril de 1990, houve um segundo pedido de vista, dessa vez do ministro aposentado Sep´ulveda Pertence.
Em novembro de 2009, o pedido foi devolvido, para que o julgamento pudesse finalmente ocorrer. Como
seria de se esperar, em abril de 2011, o processo foi julgado prejudicado – 22 anos ap´os seu in´ıcio e
com mais de 20 anos em pedido de vista.
48
mat´eria constitucional, s´umula com efeito vinculante em rela¸c˜ao aos demais ´org˜aos do
Poder Judici´ario e `a administra¸c˜ao p´ublica direta e indireta, nas esferas federal, estadual e
municipal (art. 103-A da CF/88). Tal instrumento refor¸ca o papel de Corte constitucional
do STF, podendo funcionar como instrumento de racionaliza¸c˜ao e economia processual
(ao resolver assuntos repetitivos j´a existentes) ou de redu¸c˜ao da inseguran¸ca jur´ıdica e
prolifera¸c˜ao de processos (ao tratar de quest˜oes novas, antes que primeira e segunda
instˆancia recebam enxurradas de a¸c˜oes)33 .
Por outro lado, o mecanismo da Repercuss˜ao Geral exige que o autor de Recurso
Extraordin´ario demonstre que a quest˜ao constitucional posta seja relevante do ponto
de vista econˆomico, pol´ıtico, social ou jur´ıdico, ultrapassando os interesses subjetivos
da causa. Em alguma medida, trata-se de uma tentativa de possibilitar maior controle
de acervo na admiss˜ao de casos (docket control). Atrav´es do Plen´ario Virtual, a Corte
decide pelo reconhecimento ou n˜ao da repercuss˜ao. Quando n˜ao reconhecida, os recursos
sobre o tema - que ficam sobrestados nos Tribunal locais - s˜ao liminarmente indeferidos.
Quando reconhecida e julgado o m´erito, os pr´oprios Tribunais locais podem rever suas
posi¸c˜oes e o entendimento firmado praticamente vincula as outras instˆancias do Judici´ario
e a Administra¸c˜ao P´ublica. A expectativa era de que a ado¸c˜ao dessa sistem´atica traria
uma diminui¸c˜ao na carga processual do STF. Por´em, isso pode esconder a realidade da
segunda instˆancia, com o represamento de milhares de processos em cada Tribunal local.
Em termos pr´aticos, portanto, ainda h´a d´uvida sobre a efetividade desse novo instituto e
o que de fato ele representa em maior rapidez para a solu¸c˜ao de a¸c˜oes judiciais.
Finalmente, a Reforma tamb´em criou um ´org˜ao que buscou, em alguma medida,
fazer as vezes de um “controle externo”do judici´ario nacional, composto tanto por ma-
gistrados, membros do Minist´erio P´ublico e representantes da advocacia: o Conselho
Nacional de Justi¸ca. Antes mesmo de sua cria¸c˜ao, o CNJ encontrava resistˆencia de parte
da magistratura, sendo alvo de um conjunto de ADIs ap´os sua instaura¸c˜ao. Com mais
de uma d´ecada de atividade, o ´org˜ao tem se destacado por atuar em processos disciplina-
res de magistrados e servidores, combater o nepotismo, discutir o teto salarial, promover
a¸c˜oes de informatiza¸c˜ao e transparˆencia (programas Justi¸ca Aberta, Justi¸ca em N´umeros e
Justi¸ca Plena) e atuar diretamente em pol´ıticas p´ublicas, como nos not´aveis exemplos dos
mutir˜oes carcer´arios, de concilia¸c˜ao e de audiˆencias de cust´odia. Continua, contudo, so-
frendo resistˆencias, principalmente quanto `a atua¸c˜ao da Corregedoria Nacional de Justi¸ca
e na publiciza¸c˜ao de dados.
Em perspectiva comparada, mesmo contando com controle concentrado de cons-
33 Uma cr´ıtica t´ıpica ao uso das S´umulas Vinculantes, inclusive no campo do direito, ´e que esse instru-
mento permite `a Corte criar atos normativos gerais e abstratos, aptos `a regular conjuntos de situa¸c˜oes
concretas e n˜ao se limitando a orientar como os ´org˜aos jurisdicionais devem decidir processos. Isso
representaria uma esp´ecie de competˆencia propriamente legislativa.
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titucionalidade, o STF ´e considerado mais fraco do que a Suprema Corte dos EUA, por
exemplo (TAYLOR,2008) (STEPAN,2000). Apesar das mudan¸cas institucionais inicia-
das em 2004, acima comentadas, n˜ao existe um equivalente exato para o writ of certiorari
americano, que permite aos Justices fazer uma forte filtragem dos casos que ser˜ao decidi-
dos pela Corte Suprema, controlando o volume processual. Os precedentes tamb´em n˜ao
aparentam ter a for¸ca atribu´ıda pelo stare decisis americano, funcionando muito mais
como pe¸ca de apoio argumentativo ou ret´orico a julgadores e partes, do que como raz˜oes
de decidir vinculantes sobre determinando assunto, sendo frequentemente desrespeitados
por Tribunais inferiores e ju´ızes de primeira instˆancia. Ademais, a “doutrina das quest˜oes
pol´ıticas” ´e d´ubia, contando com trajet´oria hist´orica pendular (SIQUEIRA et al.,2012)
(TEIXEIRA,2005) e poucas de suas decis˜oes possuem efic´acia perante todos, erga omnes,
para al´em das partes que integram o processo.
´
E bom notar que n˜ao apenas as a¸c˜oes diretas ou o controle concentrado de consti-
tucionalidade das leis e atos normativos apresentam relevˆancia ou efeitos pol´ıticos. Ou-
tros tipos de a¸c˜oes, como Recursos Extraordin´arios com repercuss˜ao geral, mandados
de seguran¸ca envolvendo figuras p´ublicas e ato realizados por atores pol´ıticos relevan-
tes, tamb´em podem interferir nos movimentos pr´oprios do jogo pol´ıtico e parlamentar34.
Al´em disso, os Mandados de Injun¸c˜ao tˆem se mostrado outro tipo de a¸c˜ao constitucio-
nal, de competˆencia origin´aria do STF, no qual indiv´ıduos ou grupos tˆem buscando a
efetividade de direitos garantidos pela Constitui¸c˜ao, mas ainda n˜ao consolidados atrav´es
de legisla¸c˜ao ordin´aria, complementar ou regulamentos. Ao final, mesmo as a¸c˜oes pe-
nais de competˆencia origin´aria podem apresentar efeitos na arena pol´ıtica, embora seja
controvertido enquadrar tal tipo de atua¸c˜ao do Supremo como um movimento de “judici-
aliza¸c˜ao” propriamente dito, uma vez que n˜ao discorre sobre policy ou sobre a tutela dos
jogos pol´ıtico-parlamentares-administrativos, mas trata de processamento e julgamento
de condutas alegadamente criminosas35. Exemplos recentes s˜ao o caso “mensal˜ao” e os
inqu´eritos e a¸c˜oes envolvendo a “opera¸c˜ao lava jato”.
34 Siqueira et al. (2012), a partir de um estudo de caso sobre Mandado de Seguran¸ca relativos `a CPI e
quest˜oes pol´ıticas sugerem a amplitude de espa¸cos no qual decis˜oes do Supremo afetam o legislativo,
por exemplo. Os recentes casos envolvendo as iniciativas para o impeachment da Presidente Dilma
Roussef e mandados de seguran¸ca tratando da nomea¸c˜ao do ex-Presidente Lula para Ministro da Casa
Civil s˜ao outras evidˆencias dessa possibilidade.
35 Ainda que se considere o processo penal de competˆencia origin´aria do Supremo, em algumas situa¸c˜oes,
uma esp´ecie de teatro jur´ıdico para pretens˜oes pol´ıticas de fundo, ou que tais expedientes sejam uti-
lizados por oposi¸c˜oes com objetivo de aniquilar advers´arios pol´ıticos, a evidˆencia sistem´atica imp˜oe
ressalvas `a sua classifica¸c˜ao como caso de “judicializa¸c˜ao da pol´ıtica”. O contrafactual extremo de se
considerar tais casos como interferˆencia do judici´ario em atividade que n˜ao lhe seria t´ıpica ´e a irrespon-
sabilidade criminal plena de um conjunto expressivo de ocupantes de cargos pol´ıticos. Dito de maneira
simples: o foro privilegiado n˜ao transmuta toda e qualquer quest˜ao criminal ou ato il´ıcito em quest˜ao
pol´ıtica.
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Na ordem constitucional vigente, o Supremo tamb´em figura com relevantes atri-
bui¸c˜oes frente `a organiza¸c˜ao federativa do pa´ıs. O controle concentrado de constitucio-
nalidade das leis e atos normativos ´e a principal dela. ´
E o objeto central desse trabalho.
O desenho constitucional da Carta de 1988, especialmente no que tange `a reparti¸c˜ao de
competˆencias legislativas entre os entes federativos (TOMIO; ORTOLAN; CAMARGO,
2011), combinado `as a¸c˜oes diretas, confere, ao Supremo, poderes de tutela da federa¸c˜ao.
A tese recorrente (TOMIO; FILHO,2013) ´e de que, atrav´es de tais mecanismos, o STF
corresponde a um ator com poder de veto (TSEBELIS,2002) (ou um ponto de veto po-
tencial ativado por outros atores (TAYLOR,2008), algo distinto) significativo em rela¸c˜ao
`as autonomias estaduais. ´
E o pr´oprio arranjo institucional, portanto, que revela a oportu-
nidade e importˆancia da pesquisa. Para al´em disso, o papel de “arbitragem federativa” ou
de “Poder Moderador da Rep´ublica”, quando observadas as rela¸c˜oes entre estados e destes
com a Uni˜ao, pode ocorrer em outros processos. Destaca-se a possibilidade de interven¸c˜ao
federal, dentro das hip´oteses constitucionalmente tuteladas, que inclui a desobediˆencia de
decis˜ao judicial pelo Governador. Trata-se, por´em, de uma seara praticamente inexplo-
rada pela ciˆencia pol´ıtica.
1.2 Controle de Constitucionalidade e seus modos na federa¸c˜ao brasileira
A investiga¸c˜ao aqui proposta debru¸ca-se sobre a ativa¸c˜ao e atua¸c˜ao do STF no
controle concreto da constitucionalidade de leis e atos normativos estaduais, com aten¸c˜ao
para a interferˆencia desse fenˆomeno na condu¸c˜ao do processo decis´orio legislativo nos
estados. Conhecido o pano de fundo que revela os lugares do judici´ario e do Supremo
no debate, importa identificar os recursos procedimentais dispon´ıveis para o exerc´ıcio
da jurisdi¸c˜ao constitucional abstrata, sem esquecer o caminho percorrido para chegar
at´e aqui. Primeiramente, veremos quais modelos dogm´aticos a doutrina constitucional
usualmente reconhece e como o caso brasileiro est´a classificado. Depois, ser˜ao detalhadas
algumas particularidades relevantes dos procedimentos em uso.
1.2.1 Modelos de controle de constitucionalidade
Sob o Estado moderno, a faceta mais relevante do poder pol´ıtico possu´ıdo pelo
judici´ario decorre de sua capacidade de controlar atos dos demais poderes ou ´org˜aos es-
tatais, especialmente as leis produzidas pelos legislativos. Trata-se do judicial review e
do controle judicial de constitucionalidade de leis e atos normativos, instrumentos insti-
tucionais de certo modo deduzidos do princ´ıpio pol´ıtico liberal da separa¸c˜ao de poderes.
Manuais de direito (LENZA,2006) (MORAES,2004) (MOTTA; BARCHET,2009) e a
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dogm´atica constitucional (MENDES,2005) (MIRANDA,2002) aproximam, em alguma
medida, os modelos de controle aos sistemas e fam´ılias constitucionais, situando o exerc´ıcio
dessas fun¸c˜oes, muitas vezes, com a pr´opria natureza do Estado Democr´atico de Direito
(CANOTILHO,1999). Em termos de fam´ılias constitucionais, Miranda (2002) identifica
as matrizes britˆanica, americana, francesa, sovi´etica, bem como sistemas n˜ao integrados,
entre eles o austr´ıaco. Exclu´ıdos os casos que enfatizam a “supremacia do parlamento”,
bem como os sistemas de controle pol´ıtico, os pa´ıses que adotam a revis˜ao propriamente
judicial s˜ao comumente classificados em sistemas difusos,concentrados ou mistos. ´
E bom
ressalvar que tais classifica¸c˜oes, ao desenhar “modelos” jur´ıdico-doutrin´arios, est˜ao mais
propriamente ligadas a idealiza¸c˜oes de caracter´ısticas pretensamente desejadas ou supos-
tamente t´ıpicas do que ao conjunto de arranjos institucionais empiricamente verific´aveis,
seja nas pr´aticas judiciais, ou mesmo nos textos legais.
O primeiro modelo tem como referˆencia paradigm´atica propagada os EUA. Sua
origem mitol´ogica remonta `a interpreta¸c˜ao dada pelo juiz John Marshal no famoso caso
Marbury vs Madison, em 180336, no sentido de que, havendo conflito entre a aplica¸c˜ao
de uma lei e a Constitui¸c˜ao em um caso concreto, ´e a Constitui¸c˜ao que prevalece, por
ser hierarquicamente superior37. No controle difuso, tamb´em chamado de concreto ou
incidental, o ju´ızo sobre a constitucionalidade de norma aplic´avel pode ocorrer na decis˜ao
de qualquer lide formada por partes em lit´ıgio, em qualquer processo ou caso levado ao
judici´ario. Assim como o juiz decide se perante a situa¸c˜ao de fato ´e aplic´avel a norma
contida no dispositivo legal A ou B, ele tamb´em pode afastar a aplica¸c˜ao de B ou A se
o dispositivo em quest˜ao for incompat´ıvel com a Constitui¸c˜ao. N˜ao apenas a Suprema
Corte, mas cada juiz singular pode emitir julgamento de constitucionalidade. Nessa sis-
tem´atica, via de regra, os efeitos da decis˜ao ficam restritos `as partes do processo julgado.
A ressalva ocorre quando a mat´eria ´e apreciada pela Corte Suprema e constitui precedente
judicial com efic´acia vinculante. Note-se, ainda, que nesse modelo a quest˜ao constitucional
concreta somente chegar´a a mais alta Corte do Judici´ario por meio de recursos. Ou seja,
o Tribunal n˜ao aprecia diretamente o tema, apenas na via incidental, ap´os as instˆancias
ordin´arias.
O segundo modelo ´e o concentrado, abstrato ou direto, tendo como caso t´ıpico mais
referido a jurisdi¸c˜ao constitucional austr´ıaca. Sua mitologia costumeiramente faz tributos
36 Historicamente, teses de judicial review figuraram em casos anteriores, como Hylton vs United States
em 1796 e Holmes v Watson, em 1780. A configura¸c˜ao de condi¸c˜oes sociais para o desenvolvimento
desse tipo de pr´atica judicial, antes mesmo do caso mitificado, ´e discutida por Treanor (2005) e Marcus
(2009).
37 Essa ´e uma simplifica¸c˜ao das consequˆencias do caso. A controv´ersia e interpreta¸c˜ao presentes em
Marbury vs Madison n˜ao se resume a isso, possuindo, especialmente, componentes estrat´egicos na
tomada de decis˜ao. Quanto a essa possibilidade, ver, dentre v´arios, Segal e Spaeth (2002) e Mello
(2015b).