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XVII Encontro Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação (XVII ENANCIB)
GT 02 – Organização e Representação do Conhecimento
UMA INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICO-LEGAL PARA ATOS DOS DOCUMENTOS
AN INVESTIGATION OF PHILOSOPHICAL-LEGAL FOUNDATIONS OF THE DOCUMENT ACTS
Katia C. Coelho
Doutoranda em Ciência da Informação
Programa de Pós-Graduação em Gestão & Organização do Conhecimento
Christiano Pessanha
Doutor em Ciência da Informação
Programa de Pós-Graduação em Gestão & Organização do Conhecimento
Mauricio Barcellos Almeida
Doutor em Ciência da Informação
Programa de Pós-Graduação em Gestão & Organização do Conhecimento
Modalidade da apresentação: Comunicação Oral
Resumo: Documentos para diversos fins apresentam-se como uma marca da sociedade atual. Existe
extensa literatura filosófica explicando como entidades sociais são criadas a partir de atos
performativos orais e depois registradas em documentos. De fato, com a crescente complexidade da
sociedade, o uso de documentos para registrar acordos tornou-se uma necessidade para superar
deficiências da memória. Em vários contextos, documentos promovem alterações nas relações sociais
e econômicas, bem como no sistema legal. A teoria dos atos dos documentos (d-acts) foi criada para
estabelecer uma fundamentação teórica sobre o papel do documentos em nossa sociedade. No escopo
de pesquisa em andamento, identificou-se a necessidade de estabelecer fundamentação filosófica para
os d-acts e, para tal, valeu-se de revisão de literatura para buscar os pontos de contato entre os d-acts e
a filosofia da linguagem, envolvendo ainda os atos da fala, a teoria dos atos sociais, dentre outros. Este
procedimento permitiu estabelecer um marco teórico mínimo para o entendimento e construção da
fundamentação no âmbito da Ciência da Informação, onde a noção de documento é de conhecida
importância.
Palavras-chave: Atos da fala, Atos dos documentos, Filosofia da Linguagem, Entidades sociais, Atos
Performativos.
Abstract: Documents for many purposes are a mark of the modern society. There is an extensive
literature explaining how social entities are created from oral performative acts and then recorded in
documents. Indeed, from the increasing complexity of our society, the use of documents to record
agreements became a need to overcome deficiencies of the memory. Within several contexts,
documents promote changes in social and economic relations, as well as in the legal system. The
theory of document acts (d-acts for short) was created to establish solid theoretical grounds about the
role of documents in our society. In the scope of an on-going research, we identified the need of
establishing a philosophical foundation to d-acts. In order to accomplish this, we made use of a
literature review to seek points of contact between d-acts, the philosophy of language, as well as
speech acts theory and social acts theory. This procedure allowed us to establish a minimal theoretical
basis to the understanding and foundation of the subject in the scope of Information Science, a field in
which the notion of document is very important.
Keywords: Speech acts, Document acts, Philosophy of law, Social entities, Performative acts
1 INTRODUÇÃO
O uso de documentos para os mais diversos fins apresenta-se como uma marca
indelével da sociedade contemporânea. Seja numa compra individual ou por meio de algum
acordo comercial de grandes proporções entre grandes blocos comerciais, seja em uma
simples compra de bens duráveis, são necessários documentos que validem e garantam os
direitos e deveres dos participantes da transação.
Autores como Reinach
1
, Austin
2
e Searle
3
defendem teorias nas quais entidades
sociais, como obrigações e reivindicações, advém de atos performativos. Porém, a
evanescência dos atos performativos orais restringe sua ação a pequenos agrupamentos. Em
grandes comunidades, em uma sociedade, o desenvolvimento e o uso de documentos visam
superar os problemas causados por perda ou falha de memória (SMITH, 2008). Assim, a
utilização de documentos para os mais variados contextos promoveu algo longo da história
diversas alterações nas relações sociais, bem como nos sistemas legal e econômico (SMITH,
2012).
As limitações advindas da evanescência natural dos atos da fala têm sido abordadas ao
se considerar documentos como entidades continuantes, as quais perduram ao longo do tempo
sem perder sua identidade. Para descrever tais entidades, Smith (2014) apresenta a teoria dos
atos dos documentos definida como uma extensão da teoria dos atos da fala. Enquanto
continuantes – os quais diferem dos atos da fala, que são ocorrentes e, portanto, existentes
somente no momento de sua execução – os documentos mantêm sua identidade, ainda que
sejam alterados no decorrer do tempo por muitos autores.
Existem diversos tipos de atos dos documentos, os quais envolvem o estabelecimento
e o funcionamento das organizações, consentimentos, obrigações, direitos e deveres, para citar
alguns. Dessa forma, identificou-se em pesquisa em andamento a necessidade de estabelecer
fundamentação para os atos dos documentos no âmbito da Ciência da Informação. Para tanto,
conduziu-se revisão de literatura não exaustiva para subsidiar a criação dessa fundamentação.
O presente artigo está organizado da seguinte maneira: a Seção 2 descreve brevemente
a metodologia da revisão de literatura sistemática; a Seção 3 trata da Filosofia da Linguagem,
apresentando noções de duas teorias relevantes para os objetivos desse artigo. A seção 4
1
Adolf Reinach (1883 – 1917), filósofo alemão.
2
John Langshaw Austin (1911 – 1960), filósofo inglês.
3
John Rogers Searle (1932 – ), filósofo americano.
expõe a teoria dos atos sociais; a seção 5 apresenta uma aplicação da teoria dos atos dos
documentos às ontologias computacionais; a seção 6 apresenta considerações finais sobre a
pesquisa em andamento.
2 O QUE É REVISÃO SISTEMÁTICA DE LITERATURA?
Pesquisas strictu-sensu exigem ineditismo e originalidade na contribuição, de forma
que a revisão bibliográfica desempenha um papel preponderante para definir o estado da arte
do assunto em questão. Por isso, conduzi-la de forma sistemática e rigorosa, contribui para o
desenvolvimento de uma base sólida de conhecimento, facilitando o desenvolvimento de
novos aspectos da teoria, bem como, identificando oportunidades para novas pesquisas
(WEBSTER; WATSON, 2002).
Uma forma de obter maior rigor em uma revisão bibliográfica é adotar uma
abordagem sistemática (CONFORTO; AMARAL; SILVA 2011). Isso significa definir uma
estratégia e um método sistemático para realizar buscas e analisar resultados que permita a
repetição por meio de ciclos contínuos até que os objetivos da revisão sejam alcançados. Para
isso, é preciso definir tópicos-chave, autores, palavras-chave, periódicos e fontes de dados
preliminares. Nesse sentido, o uso de procedimentos sistemáticos aumenta a confiabilidade e
precisão das conclusões e resultados do estudo.
Apesar de a revisão sistemática consumir tempo e recursos, custa menos do que
começar um novo estudo completo em uma área que já possui resultados publicados que não
foram devidamente explorados (MULROW, 1994). Para Bereton et al. (2007), uma revisão
sistemática permite ao pesquisador uma avaliação rigorosa e confiável das pesquisas
realizadas dentro de um tema específico. De fato, a revisão sistemática é um instrumento para
mapear trabalhos publicados no tema de pesquisa para que o pesquisador seja capaz de
elaborar uma síntese do conhecimento existente sobre o assunto (BIOLCHINI et al., 2007). É
necessário adotar um procedimento, um conjunto de passos, técnicas e ferramentas
específicas. Exemplos de uso e aplicação de tais técnicas são descritas em detalhes em
Pessanha (2016).
3 BREVES NOÇÕES DE FILOSOFIA DA LINGUAGEM
No final do século XIX e início do século XX teve lugar na Filosofia a assim chamada
“virada linguística”. Esse movimento ocorreu em decorrência das mudanças advindas do
surgimento da Filosofia Analítica (MARTINICH, SOSA; 2001). A Filosofia da Linguagem,
por sua vez, surge como uma especialidade da Filosofia Analítica cujo objeto de estudo é a
linguagem, tendo conhecido seu apogeu na primeira metade do século XX.
A expressão “filosofia da linguagem” possui duas acepções: a primeira refere-se a uma
investigação filosófica acerca da natureza e do funcionamento da linguagem; a segunda diz
respeito a abordagem de problemas filosóficos metodologicamente orientada por uma
investigação da linguagem (MIGUENS, 2007). Historicamente, existem duas espécies de
filosofia da linguagem: a filosofia da linguagem ideal e a filosofia da linguagem ordinária. A
primeira é influenciada pela lógica simbólica desenvolvida a partir de Frege
4
, principalmente
pelo cálculo dos predicados. A segunda, por sua vez, toma como modelo a linguagem do
quotidiano, tentando investigar a sua estrutura funcional. E é dentro da proposta desta última
vertente que se localiza a Teoria dos Atos da fala (AUSTIN, 1962).
3.1 A TEORIA DOS ATOS DA FALA
A teoria dos atos de fala (AUSTIN, 1962) não tinha por objetivo a apresentação de
uma concepção teórica sobre a natureza e a função da linguagem; não se pretendia descrever a
natureza da linguagem. Ao contrário, buscava-se propor um método de análise filosófico
através do exame do uso da linguagem entendida como forma de ação, isto é, como modo de
se realizar atos por meio de palavras. Para Austin, a tarefa da filosofia da linguagem consistia
na elucidação das diferentes formas de uso da linguagem, sendo esta uma das principais
características de sua teoria.
No que diz respeito à análise da linguagem, a Teoria dos Atos de Fala é considerada
uma das principais correntes da filosofia contemporânea. A concepção básica de Austin
consiste em afirmar que os constituintes elementares do uso e da compreensão da linguagem
natural são atos de fala, os quais tem condições de sucesso e de felicidade para sua realização.
Austin na considera que as sentenças são sempre proposições possuidoras de condições de
verdade, tal como de defende nas teorias do significado da vertente lógica da filosofia da
linguagem. No início do século XX, essa vertente era representada principalmente por Frege,
Russell
5
e Wittgenstein
6
.
Austin explica que sua concepção do uso da linguagem como uma forma de agir seja
estendida para toda a linguagem, considerando o ato de fala como a unidade básica de
significação. Nesse contexto, o ato da fala é constituído por três dimensões integradas: ato
locucionário, ato ilocucionário e ato perlocucionário. O ato ilocucionário, que pode ser
considerado o núcleo do ato de fala, tem como aspecto fundamental sua força ilocucionária:
trata-se do performativo propriamente dito, o que constitui o tipo de ato realizado. Por
4
Friedrich Ludwig Gottlob Frege (1848 – 1925), lógico e filósofo alemão.
5
Bertrand Arthur William Russell (1872 – 1970), matemático e lógico inglês.
6
Ludwig Joseph Johann Wittgenstein (1889 – 1951), filósofo austríaco.
exemplo, na proposição “prometo que lhe pagarei amanhã”, proferir o verbo “prometer”
constitui o próprio ato de prometer. Não se trata de uma descrição de intenções ou de um
estado mental: ao proferir a sentença realiza-se a promessa, ou seja, a força do ato é a
promessa.
Searle (1969) sugeriu uma classificação para os tipos de atos da fala desenvolvendo
uma classificação própria e alternativa, na qual estabelece cinco tipos: assertivo,
compromissivo, diretivo, declarativo e expressivo, em substituição aos cinco propostos
inicialmente por Austin (SEARLE, 1979). Searle define também sete componentes da força
ilocucionária em termos dos quais os tipos propostos são definidos. A formulação desses
componentes resulta do desenvolvimento da noção de que o ato de fala é o resultado da
combinação de uma proposição “p” dotada de um conteúdo semântico determinado que
estabelece sua relação com os fatos no mundo. Essa proposição pode ser verdadeira ou falsa e
a força ilocucionária “f” que se acrescenta à proposição leva à realização do ato de fala. Esta
relação é representada formalmente pela fórmula f(p).
Searle (1969) desenvolve a análise dos atos de fala em uma nova direção,
apresentando uma versão elaborada da classificação das forças ilocucionárias e de seus
componentes através da formulação de uma lógica ilocucionária (SEARLE;
VANDERVEKEN, 1985). O objetivo visado era definir o papel da classificação ou
taxonomia das forças ilocucionárias no escopo da teoria dos atos de fala e da metodologia da
análise da linguagem.
Estes breves, mas relevantes aspectos da teoria dos atos da fala demonstram sua
abrangência, e fazem vislumbrar seu potencial de aplicação em áreas como a comunicação, o
direito, a computação, dentre outras. A proposta de Austin (1990) gerou um novo paradigma
teórico, onde a linguagem é considerada como uma forma de atuação sobre o real e não mais
sua representação. Porém, uma restrição que perpassa por todas essas áreas e possibilidades
de aplicação é a característica da evanescência do ato da fala: a própria natureza da oralidade
restringe o ato da fala temporalmente. A teoria dos atos dos documentos busca superar esta
limitação.
3.2 A TEORIA DOS ATOS DOS DOCUMENTOS
A temática dos atos do documento é relevante uma vez que o documento – como
objeto de interesse de diferentes domínios do conhecimento, como objeto informacional, base
de conhecimento, estudo ou prova, dentre outros fins – envolve entidades sociais e agrega
importantes funções no contexto econômico e social.
Conforme já mencionado, atos da fala são declarações existentes somente no momento
de sua execução, enquanto documentos são continuantes capazes de persistir através do tempo
enquanto mantém sua identidade a despeito das alterações (SMITH, 2005).
Diferente das antigas sociedades onde deveres e promessas eram estabelecidos por
meio de atos da fala, as modernas sociedades requerem o registro em documentos. Em vários
contextos, pedidos e obrigações podem existir numa esfera que transcende a localidade da
interação dos contatos pessoais, envolvendo partes que nunca realizarão tal tipo de interação.
Os fatores psicológicos que garantiam o cumprimento de uma promessa numa
pequena comunidade não se mostraram suficientes para atender as necessidades correntes das
pessoas, uma vez que existe um espaço temporal entre acordos e promessas, bem como a
distância física que separa os envolvidos. Nem mesmo o uso exclusivo da memória não
consegue resolver a questão. Por sua vez, um documento é uma entidade cuja identidade
perdura através do tempo, de forma que pode ser arquivado, assinado, copiado, registrado,
inspecionado, ratificado, anulado, transferido, marcado, perdido ou destruído. Além disso,
vários documentos podem ser reunidos ou combinados para formar um novo documento
(SMITH, 2014).
Dessa forma, documentos tornam possíveis novos tipos persistentes de relações e
entidades sociais estendendo a memória, antes privada, através de documentos públicos.
Estas novas práticas resultaram em alterações nas relações sociais legais e econômicas,
trazendo à realidade novos artefatos sociais como recibos, documentos de identidade, boletins
de ocorrência, templates de documentos, contratos, contas bancárias, cartões de crédito, entre
outros. Torres e Almeida (2014) explicam:
Percebe-se, portanto, que alguns documentos não apenas registram informações,
mas podem ser utilizados na criação de uma variedade de tipos de poderes sociais e
institucionais relacionados a objetivos do Direito, permitindo o estabelecimento de
condutas em sociedade e preservando a memória socialmente compartilhada.
Além disso, documentos desempenham um papel importante em muitas interações
sociais, uma vez que atuam como peça essencial para o estabelecimento de relações
duradouras entre pessoas, grupos ou nações (SMITH, 2005; SMITH, 2012; SMITH, 2013).
Muitas dessas relações só se tornam possíveis por meio do poder dos documentos, o poder
deôntico.
Assim um contrato gera uma obrigação, um título de propriedade gera um direito à
propriedade, uma patente gera direitos exclusivos, um contrato de aluguel gera uma relação
proprietário e inquilino, dentre outros. Existem atos de documentos que criam tipos de
entidades, como um contrato que cria obrigações, uma certidão de nascimento que cria um
registro civil, um diploma que cria uma qualificação; e tipos de atos de documentos que
anulam as entidades previamente criadas, como uma sentença de divórcio que termina um
casamento ou um aviso de demissão que termina uma relação de emprego (SMITH, 2012).
Finalmente, cabe destacar que o sucesso do ato do documento se relaciona a condições
com as quais os atos de fala estão envolvidos, além de fatores como autoridade que
promovem o entendimento as pessoas sobre a intenção e o contexto de produção e uso do
documento.
4 NOÇÕES SOBRE A TEORIA DOS ATOS SOCIAIS
Austin e Searle não foram os primeiros a tratar da linguagem enquanto elemento
performativo de atos sociais. Um filósofo alemão chamado Adolf Reinach foi o precursor, e o
contato com a obra de Husserl
7
o tornou influenciado pela fenomenologia. Sob a influência
desta corrente filosófica, Reinach creditou a possibilidade de conhecimento a priori a certas
características especiais dos objetos como por exemplo: necessidade, universalidade,
atemporalidade e inteligibilidade. Viu essas características especiais de certas essências como
recursos diretos da realidade, insistindo assim que chamar algo de a priori não implicaria na
aceitação de qualquer tipo de misticismo.
Para Reinach, estados materiais das coisas a priori e essências existem
independentemente das mentes contingentes que podem detê-los e dos objetos individuais que
podem instanciá-los. Assim, o filósofo aplicou seus princípios e método ao estudo do direito,
buscando fundamentos a priori para vários institutos jurídicos, como a obrigação e a
propriedade. Sua abordagem, diferente da teoria dos atos da fala, parte de um questionamento
de fenomenológico à atividade social. Por tal metodologia, sua pesquisa se detém nas
atividades internas espontâneas do sujeito.
Reinach desenvolve sua teoria dos atos sociais, cujo fundamento principal postula que
se pode descobrir uma determinada estrutura familiar de essências para cada domínio de
objetos – psicológicos, materiais, matemáticos ou linguísticos – caracterizando relações a
priori entre si como reflexo das leis a priori que sustentam objetos concretamente
considerados. Essas leis, certas e imutáveis, transcendem qualquer convenção humana e são
válidas independentemente de reconhecimento de quaisquer sujeitos. Portanto, partindo de
sua teoria dos atos sociais para o domínio do Direito em particular, Reinach pressupõe que o
homem não cria o direito a partir do nada e de forma arbitraria, mas sim, encontra e reconhece
os seus fundamentos a priori. Assim, não há liberdade plena para o legislador, haja vista a
7
Edmund Gustav Albrecht Husserl (1859 – 1938), filósofo alemão.
transcendência do objeto jurídico à própria racionalidade humana.
A doutrina de Reinach é pautada na busca de fundamentos fenomenológicos que vão
suportar a construção em concreto do fenômeno jurídico em qualquer lugar e em qualquer
época. Esses fenômenos são imutáveis e indissolúveis pelo fato de não serem construções
humanas, apreensões feitas pela racionalidade do ser humano. Tais características, não
derivariam de uma necessidade psicológica pensar de uma certa forma, mas sim de uma
necessidade interna, estrutural, que está presente tanto no estado das coisas em geral como
nos particulares.
Refinando ainda mais a aplicação de sua filosofia, Reinach busca os fundamentos a
priori dos mais prestigiados e duradouros institutos do direito civil. Dentre eles, a obrigação e
a propriedade. Em relação ao primeiro, Reinach afirma que pretensão e obrigação
necessariamente envolvem um titular e um conteúdo. Assim, o fundamento da obrigação
residiria no princípio da boa-fé, da dignidade da pessoa humana e da responsabilidade civil.
Assim, a promessa feita por alguém gera legítima expectativa no destinatário de que
determinado ato que lhe fora prometido será cumprido. A respeito da propriedade, Reinach
entende esse ser um direito que pode existir entre uma pessoa e uma coisa, que dá ao titular o
direito de usufruir do modo que quiser.
Assim, sobre os dois institutos civis da obrigação e a propriedade, o primeiro estaria
fundamentado sobre legítimas expectativas por uma parte criada em outra em decorrência de
promessas vinculativas; enquanto o segundo representaria a mais forte e profunda relação que
um sujeito pode desenvolver com um objeto qualquer – o que lhe daria o direito de usar, fruir,
gozar e dispor do bem como bem apetecesse ao sujeito.
Reinach não baseia seus fundamentos do direito civil em aspectos empíricos ou
experimentais, senão em princípios apriorísticos que, muito embora alcançados pela
racionalidade do homem a partir da materialidade das coisas e do mundo, transcendem à
própria existência humana. Smith (2012) creditou a noção de atos dos documentos aos
esforços de Reinach em definir ações sociais e suas resultantes entidades sócio-legais.
5 ATOS DOS DOCUMENTOS EM UMA ONTOLOGIA FORMAL
A perspectiva filosófica apresentada pelo presente artigo busca contribuir com
discussões nos diferentes campos do conhecimento científico, nos quais o documento é objeto
de interesse como, por exemplo, na Documentação e na Ciência da Informação. Embora
relevante, não fazem parte do escopo do presente artigo problemas relacionados ao
significado semântico do documento, relativos aos meios particulares de comunicação em que
os documentos são utilizados.
Embora abordar em detalhe as aproximações com tais perspectivas seja relevante,
apresenta-se a seguir o contributo dos atos dos documento que tem sido adotado no contexto
das ontologias computacionais, em especial pela ontologia sob o ponto de vista da Basic
Formal Ontology (BFO)
8
. A BFO é uma ontologia de alto-nível criada para apoiar pesquisas
científicas. Ontologias de alto nível descrevem conceitos gerais como espaço, tempo, matéria,
objeto, evento, ação, para citar alguns, os quais não dependem do problema ou domínio
(ARP; SMITH, 2008).
A BFO adota uma visão da realidade que compreende as entidades continuantes e
ocorrentes já mencionadas no presente artigo (GRENON; SMITH, 2004). Continuantes são
entidades que persistem através do tempo, como objetos, qualidades e funções; ocorrentes são
eventos ou acontecimentos onde participam continuantes. Continuantes e ocorrentes existem
no tempo sob diferentes formas. Continuantes estão sujeitos a constantes mudanças, enquanto
os ocorrentes dependem de continuantes para serem seus portadores.
FIGURA 1 – Estrutura da Basic Formal Ontology
Fonte: http://ifomis.uni-saarland.de/bfo/
A ontologia dos atos dos documentos ou d-acts (BROCHHAUSEN; ALMEIDA;
SLAUGHTER 2013) foi criada numa perspectiva além da visão realista das entidades naturais
da BFO, numa vertente da ontologia do social. Nesse contexto, documentos são importantes
8
Disponível na Internet em: <http://www.ifomis.org/bfo/>. Acesso em: 20/03/2011
entidades sociais, portadoras de poderes deônticos.
A representação dos atos do documento na d-acts especifica tanto as pessoas
envolvidas quanto os papeis que assumem num ato de documento, como por exemplo: i) os
criadores do modelo do documento; ii) os usuários do documento; iii) o alvo das
concretizações de entidades sociais criados por atos de documentos. Além disso, são
constituídas minimamente de: classes, as quais são representadas daqui em diante em negrito;
propriedades das classes, as quais são representadas daqui em diante em itálico; e operadores
representadas daqui em diante em letras maiúsculas, como apresentado a seguir:
Continuante sócio-legal com dependência genérica: são continuantes que podem
depender de mais de um portador, passam a existir através de declarações, e são
concretizadas como papéis. Cada entidade dessa categoria é concretizada somente uma
vez a cada momento, por exemplo: a reivindicação de um pedaço de terra; a obrigação
de pagamento pelo aluguel de um carro a um dono de uma locadora de veículos, etc.
Ato social: trata-se de um processo realizado por um ser consciente (ou um grupo
deles) em direção a outros seres conscientes (ou agregados dos mesmos) e precisa ser
percebido, por exemplo: Coronel Rapa dá uma ordem ao Sargento Blitz; Jeniffer
promete a Cláudia levá-la ao baile de formatura; etc.
Declaração: é um ato social que transfere ou revoga uma continuante sócio-legal com
dependência genérica. Declarações não dependem de palavras proferidas ou escritas.
De fato, são ações como, por exemplo, a assinatura em um documento. Exemplos são:
meu consentimento verbal para comprar uma TV usada por R$500,00; Jane que assina
os papéis do divórcio, João que pega as joias da senhora Silva; etc.
Revoga legalmente: uma entidade sócio-legal revoga legalmente “s” se “s” participa
em “d”. É importante notar que o deixar de existir de “s” é completo, ao contrário do
deixar de existir das entidades materiais que basicamente se transformam em outra
coisa. Após a declaração, nada resta do continuante sócio-legal com dependência
genérica em questão.
Transfere legalmente: “d” legalmente transfere “l” se “l” participa em “d” e “d” em
uma entrada especificada e uma saída especificado onde a concretização de l1 e a
concretização de l2 não são idênticas.
Ato do documento: trata-se de uma declaração feita via um documento para que os
efeitos desta declaração possam ser temporalmente estendidos. Exemplos são: o
preenchimento de um formulário de imigração, um juiz assinando e carimbando uma
ordem judicial; etc.
Objeto da declaração: é um ser humano ou organização, ou agregado de qualquer um
destes, que é o portador da concretização de um continuante sócio-legal com
dependência genérica provocado por ou transferido a partir de um ato de documento
específico. Exemplos são: eu como portadora do papel de esposa, que participa de um
ato do documento; José como portador de um papel de devedor que participa em um
ato do documento; etc.
Papel do executor da declaração: um papel inerente a um ser humano ou uma
organização, ou a um agregado de qualquer um destes, que é realizado pelo portador
agente em uma declaração. Exemplos são: o papel de juiz em assinar uma ordem
judicial; o papel de um comitê hospitalar para sancionar a conformidade de uma
orientação específica para os empregados de um hospital; etc.
Papel do criador do modelo: um papel inerente a um ser humano, uma organização
ou de um agregado de qualquer um destes, que prepara um documento que é a entrada
especificada para um ato de documento. Exemplos são: o papel de um serviço de
imigração realizado pela criação de um formulário de imigração preenchido; o papel
de uma associação profissional realizada pela criação de uma orientação clínica para
ser certificada; etc.
FIGURA 2 – Exemplo de aplicação da d-acts a entidades da realidade
Fonte: ALMEIDA (2016)
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A teoria dos atos da fala é importante principalmente em dois aspectos: primeiro, a
função ilocucionária das declarações das normas legais, o elemento que as torna legais não é
imanente, o que deve ser entendido no ponto em que as autoridades legais emitem a norma.
Segundo, o sucesso e falha dos atos performativos não devem ser reduzidos ao nível da
declaração de normas: devem ser vistos na perspectiva do sucesso ou falha de atos da
linguagem humanos (AMSELEK, 1988).
No escopo do presente artigo, buscar e investigar a possibilidade da fundamentação
dos atos dos documentos junto à filosofia, filosofia da linguagem, direito e Ciência da
Informação se apresentar com um caminho profícuo e adequado, pois o poder gerador do
documento só possui valor se os preceitos do direito forem respeitados. Um documento só
gera uma obrigação se, pela perspectiva do Direito, o que estiver estabelecido não interfira em
nenhum preceito legal.
Sob o ponto de vista da aplicação prática, observa-se que a ontologia dos atos dos
documentos, ou simplesmente d-acts, ainda que em fase de desenvolvimento, é uma
referência que pode ser aplicada a diferentes domínios socioeconômicos na construção de
ontologias. Tais aplicações podem ser observadas em trabalhos de Almeida et al., (2012);
Brochhausen et al., (2013); Almeida; Souza (2012); Coelho et al., (2014) e Coelho et al.,
(2016).
Nos trabalhos de Coelho et al., (2014) e Coelho et al., (2016), apresenta-se pesquisa
em andamento cujo objetivo é buscar melhorias em um método para modelagem
organizacional baseado em ontologias corporativas. A proposta de incorporação tanto dos
fundamentos teóricos-filosóficos quanto da d-acts a um método específico em estudo parece
possível por sua base teórica também se fundamentar na teoria dos atos de fala.
Argumenta-se que os fatos contidos nos documentos são formalizações de atos
sociais, incluindo direitos e obrigações, e dessa forma entidades necessárias para se cumprir
compromissos na criação de qualquer produto ou serviço no contexto organizacional. Os atos
do documento formalizam a criação de artefatos sociais, atribuindo responsabilidades a quem
produz, quem assina, quem recebe, quem executa. Apenas documentos são capazes de
estender os compromissos de longo prazo assumidos em atos sociais, como os atos de fala.
Espera-se dar continuidade a essa pesquisa apresentando aplicações práticas baseadas em
casos reais.
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