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Dossiê: Místicas religiosas e seculares – Artigo original
DOI – 10.5752/P.2175-5841.2012v10n27p704
Horizonte, Belo Horizonte, v. 10, n. 27, p. 704-727, jul./set. 2012 – ISSN 2175-5841 704
A espiritualidade zen budista
The Zen Buddhist spirituality
Faustino Teixeira
Resumo
Os estudos de mística comparada e de espiritualidade inter-religiosa têm ganhado espaço cada vez mais
singular nas universidades e núcleos de pesquisa, que se proliferam por toda parte. São pesquisas que
envolvem também as religiões orientais, em seu traço místico peculiar. No âmbito do budismo, também
se pode falar em espiritualidade, entendida como um caminho de busca da libertação. Este artigo visa a
apresentar o tema da espiritualidade zen budista, com base na reflexão de Eihei Dôgen Zenji (1200-
1253), um dos mais importantes e destacados mestres da tradição Soto Zen. O objetivo é mostrar a
riqueza dessa espiritualidade e sua peculiar adesão à realidade cotidiana. Para favorecer a compreensão
da questão central apresentada, visou-se a situar a temática no contexto histórico do nascimento do zen
budismo e da inserção de Dôgen em seu campo de ação. A temática da espiritualidade zen tem-se
evidenciando na abordagem da problemática da busca do Dharma em Dôgen e em sua atenção aos
pequenos sinais do cotidiano.
Palavras-chave: Espiritualidade. Budismo. Zen. Cotidiano. Religiões.
Abstract
The studies on comparative mystique and inter-religious spirituality have gained an increasingly singular
space in the universities and research centers, which proliferate everywhere. They’re researches also
involving the Eastern religions, in their peculiar mystical trait. Within the context of Buddhism, one may
also speak of spirituality, understood as a pathway in search of liberation. This paper aims at presenting
the theme of Zen Buddhist spirituality, having the reflection by Eihei Dôgen Zenji (1200-1253) as a basis,
one of the most important and prominent masters of the Soto Zen tradition. The purpose is showing the
richness of this spirituality and its peculiar adherence to the everyday life reality. For promoting an
understanding of the key issue presented, one aimed at situating the theme within the historical context
of the birth of Zen Buddhism and the inclusion of Dôgen in its field of action. The theme of Zen
spirituality has been evidenced in the approach to the problems of searching for the Dharma in Dôgen
and in his attention to the small signs of everyday life.
Keywords: Spirituality. Buddhism. Zen. Everyday life. Religions.
Artigo recebido em 4 de agosto de 2012 e aprovado em 14 de setembro de 2012.
Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Professor no Programa de Pós-Graduação em Ciência da
Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora. Pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq). Consultor da assessoria do Instituto de Estudos da Religião (Iser). País de origem: Brasil. E-mail: fteixeira@uaigiga.com.br.
Faustino Teixeira
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Introdução
Na introdução de uma obra sobre a espiritualidade budista, a equipe
responsável pelo trabalho – ligada ao Instituto Nazan de Religião e Cultura
(Nagoia, Japão) – sinaliza que é o budismo, entre as diversas religiões, que se
concentra com maior ênfase no âmbito da espiritualidade. Não há outra religião
que:
[...] Deu maior valor aos estados de percepção e libertação espiritual, e
nenhuma outra descreveu, tão metodicamente e com tamanha riqueza de
reflexões críticas, os vários caminhos e disciplinas por meio dos quais
esses estados são alcançados, ou as bases ontológicas e psicológicas que
tornam esses estados tão importantes e esses caminhos tão eficientes
(YOSHINORI, 2007, p. IX).
Entre as diversas formas de budismo, o budismo zen traduz essa
espiritualidade em uma perspectiva profundamente prática e colada ao cotidiano.
Seu grande objetivo é “captar o fato central da vida” (SUZUKI, 1999, p. 73) no
curso mesmo de sua realização, de forma direta e vital. Mais que um sistema
filosófico-teorético, o zen traduz uma “trama existencial” (FORZANI, 2007, p. 69,
tradução nossa), que envolve aspectos religiosos, filosóficos e experienciais, sempre
inter-relacionados. Nessa “atitude de fundo” com respeito à dinâmica da vida, o zen
vai dar uma ênfase fundamental à prática, que deixa de ser um simples aspecto
particular, firmando-se como chave essencial de acesso à unidade íntima da
existência, que escapa à percepção superficial. Por meio dela desvela-se o processo
de concentração e purificação do sujeito, de seu corpo-mente, favorecendo a
captação da intensidade de cada momento e a possibilidade do exercício de
comunhão com o mundo circundante. Mediante o recurso de um “treinamento
sistemático”, o zen instrumenta o pensamento ao exercício de um novo olhar sobre
as coisas: “Abre os olhos do homem para o grande mistério que diariamente é
representado. Alarga o coração para que ele abrace a eternidade no tempo e o
infinito do espaço em cada palpitação” (SUZUKI, 1999, p. 66).
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1 Os passos de uma história
Em um dos clássicos livros do Shôbôgenzô
1
, de Eihei Dôgen Zenji (1200-
1253), o “Bendôwa” – escrito em 1231 –, há um relato interessante sobre a origem
remota do zen budismo (DÔGEN ZENJI, 2001a). Trata-se do clássico ensinamento
silencioso de Buda Shakyamuni no Pico do Abutre. Ali, naquele histórico lugar, ele
girou a flor de Udumbara, sendo correspondido pelo sorriso de seu discípulo
Mahakassyapa (DÔGEN ZENJI, 2005b). Sem necessitar de nenhum recurso verbal,
o grande mestre utiliza-se do simples gesto de girar uma flor para transmitir seu
ensinamento. Esse acontecimento simbólico vem colocado no início da transmissão
da escola, que foi nomeada ch‟an na China e zen no Japão. Esse ensinamento
(Dharma) foi transmitido, como sublinha Dôgen, de patriarca a patriarca até
chegar a Bodidarma (470-532), considerado o iniciador da tradição ch‟an na
China
2
. Depois, foi transmitido ao segundo patriarca, Hui-ko (487-593), e assim
sucessivamente, envolvendo depois as cinco grandes escolas da tradição zen:
Hogen, Igyo, Unmon, Soto e Rinzai. Dessas cinco escolas, somente a da tradição
Rinzai ganhou importante difusão na China. Duas delas tiveram boa penetração no
Japão, a Rinzai – introduzida por Eisai (1141-1215)
3
–, e a Soto, introduzida por
Dôgen.
É interessante identificar esses traços do giro da flor e do sorriso na origem
do budismo zen. A flor de Udumbara é uma metáfora do raríssimo despertar na
dinâmica histórica. Sobre esse simbolismo discorre Dôgen em outro livro do
Shôbôgenzô, “Udonge”, que trata da flor de Udumbara. E, como diz o cânone
budista, “uma flor desabrocha e o mundo se levanta” (DÔGEN ZENJI, 2005b, p.
1
Trata-se do mais importante trabalho realizado por Dôgen, que se tornou um clássico da tradição budista japonesa. O Shôbôgenzô (O
tesouro do olho do Dharma verdadeiro) foi escrito entre 1231 e 1253, cobrindo os diversos períodos da vida de Dôgen. É uma obra
dividida em vários livros ou fascículos, de extensões diversificadas.
2
Para conhecer a árvore de transmissão do zen na China e no Japão, ver Dôgen Zenji e Ejo (2011).
3
Que tem na origem de sua linha de transmissão a importante presença de Lin Chi (m. 867). É com ele que se firma uma nova visão de
mundo na tradição zen, com atenção ao mundo fenomênico. Viver plenamente o presente, esse era o seu mote. Em um de seus
discursos, assinala essa ideia: “Oh, irmãos de caminhada, deveis saber que na realidade do budismo não há nada de extraordinário
que deveis cumprir. Viveis simplesmente como é costume sem nunca intencionar fazer algo em especial, satisfazendo vossas
necessidades naturais, vestindo roupas, consumindo alimentos e deitando-se ao se sentir cansados” (IZUTSU, 2009, p. 17).
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187-189, tradução nossa)
4
. Dôgen faz, aqui, menção ao tema da “ressonância”.
Como assinala Yoko Orimo (2005a, p. 18, tradução nossa), na introdução de um
dos volumes do Shôbôgenzô, dada a “eclosão de uma só flor, o mundo inteiro se
transforma, pois esse mundo é um mundo da ressonância, onde todos os existentes
fazem eco uns aos outros, posto que esse eco do universo seja audível à nossa
escuta concreta”. No processo do
[...] desenvolvimento de suas pétalas, a flor abre seu coração para escutar
o vento, para receber a água e a luz, para divertir-se com as borboletas e se
doar ao mundo. É neste universo da ressonância onde todas as coisas
fazem eco a todas as coisas, doando-se umas às outras, que a Via do
despertar deve se realizar como presença (ORIMO, 2005b, p. 222,
tradução nossa).
Na tradição zen, a relação entre mestre e discípulo, tão bem expressa nesse
episódio da flor de Udumbara, situa-se em um plano de grande importância. A
experiência direta, de coração a coração, vem afirmada como valor substantivo, o
que não significa a relativização ou desprezo das letras dos textos sagrados
(TOLLINI, 2001). De modo particular, a espiritualidade de um mestre como Dôgen
sempre esteve enraizada no Sutra do Lótus (NHAT HANH, 2008), assim como em
outros textos sagrados, que também transmitiam com vigor o espírito do Buda.
O budismo teve boa recepção na China em razão de sua semelhança com a
doutrina do filósofo Lao-Tsé, que, também como Buda, sinalizava a centralidade do
vazio e a impermanência. Mas era um budismo essencialmente teórico, e contra ele
posicionou-se Bodidarma,
que quis estabelecer na China o genuíno Budismo de Gautama, todo ele
vivência e ação. Como recomendava a prática da meditação dhyana
(Ch‟an em chinês, Zen em japonês) como método para o desenvolvimento
do prajna, o conhecimento intuitivo, seus seguidores passaram a ser
conhecidos como adeptos de uma escola Zen, embora Bodidarma não
pensasse em fundar nenhuma seita ou escola, e sim transmitir o
verdadeiro espírito do Budismo (GONÇALVES, 1976, p. 24).
4
Trata-se de uma expressão de Hannyatara (Prajnâtara), o 27º patriarca indiano e mestre do primeiro patriarca chinês, Bodidarma.
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Bodidarma foi também um “asceta do zazen”
5
, a meditação sentada. Quando
ele se estabeleceu no templo de Shaolin, no monte Sung, passava grande parte do
tempo sentado em meditação, com o olhar voltado para a parede (pi-kuan). E
assim ocorreu por nove anos. Era grande o destaque que concedia à meditação
silenciosa, em lugar da leitura ou meditação dos sutras ou de outros comentários
escritos (KASULIS, 2007).
Os primeiros mosteiros zen surgiram na época do quinto patriarca, Hung-
Jen (601-674). Visualizavam-se a partir desse período dois traços distintivos da
espiritualidade que se firmava: a comunidade monástica e a harmonia com a
natureza. Com o sexto patriarca, Hui-Neng (638-713), consolida-se o principal
ramo do zen budismo, o zen do sul, que depois será subdividido em várias escolas,
como já assinalado. É ao sexto patriarca que “toda a tradição zen do presente
remete sua origem” (YAMPOLSKY, 2007a, p. 3).
Entre os grandes mestres da tradição ch‟an encontra-se o monge Ma-tsu
Tao-i (Baso Doitsu – 709-788), da dinastia T‟ang, ao qual vem associada a escola
Hung-chou. Com ele, processa-se uma mudança importante no foco da prática da
meditação. Não que ele tenha deslocado seu valor, mas possibilitou um “retorno”
da experiência contemplativa para a realidade cotidiana. A grande máxima passa a
ser: “Essa mente mesma é Buda”. Isso significa, em outros termos, que “a meta
mais remota e transcendental é o que está, paradoxalmente, mais próximo de nós”
(WRIGHT, 2007, p. 35). A iluminação, entendida como busca da natureza búdica, é
vista, então, como uma retomada ou encontro com a natureza mais profunda do
sujeito, sua natureza original. O praticante vem, assim, orientado a se sintonizar
com o presente, com o que já se encontra aqui, o corriqueiro, que, na perspectiva
anterior, era objeto de superação. O que a escola Hung-chou enfatiza é essa
“reorientação da atenção para o „corriqueiro‟ e o „cotidiano‟” (WRIGHT, 2007, p.
36). O cotidiano, ou a mente do cotidiano, firma-se como o caminho
6
. Nesse
5
A palavra japonesa zazen deriva-se da palavra chinesa tso-ch’an e indica o estar sentado em meditação.
6
No clássico texto de “Wou-men”, Passe sans porte (Wou-men-kouan), composto em 1229, há uma regra que vai bem nessa linha: “O
coração cotidiano é a Via”. Trata-se da regra 19.
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sentido, “a meditação não precisa ser uma atividade especial que quer seu próprio
tempo, ambiente e postura. Todo momento da vida, estando-se „sentado, de pé, ou
deitado‟, deve ser visto como uma manifestação da natureza búdica” (WRIGHT,
2007, p. 36).
Ao adentrar o Japão, por volta do século XII (período Kamakura)
7
, o
budismo zen adquire características próprias. Sua introdução ocorreu por meio de
duas escolas rivais, da China: as escolas Rinzai e Soto. Como nomes conhecidos na
tradição Rinzai, podem ser mencionados Eisai (1141-1215) e Myosen (1184-1225).
Na tradição Soto firma-se com destaque o nome de Dôgen (1200-1253), que
introduziu essa escola no Japão. Enquanto a tradição Rinzai centrava-se na prática
dos koans, em que se exigia dinâmica atividade mental, a tradição Soto
concentrava-se na prática do zazen, voltada para um processo de “iluminação
gradual” (IZUTSU, 2009, p. 139-144, tradução nossa)
8
.
2 A presença de Dôgen
Dôgen destaca-se como uma das mais importantes figuras criativas da
humanidade. Foi um grande reformador e revitalizador da tradição budista
japonesa na virada do século XIII. Foi ele o introdutor da tradição Soto Zen no
Japão. Foi, sobretudo, a partir da década de 1930 que ocorreu uma recepção mais
ampla de seu pensamento, quando passou a ser percebido como “um guia
espiritual da humanidade”
9
. Sua inserção mais viva no âmbito dos estudos do
budismo é firmada no período do pós-guerra, ou seja, a partir de 1945, quando se
intensificam os esforços de incorporar Dôgen “no contexto histórico, social e
7
Fala-se, aqui, em budismo zen, pois a tradição budista já tinha entrado no Japão na metade do século VI a.C., com cerca de 1.000 anos
de tradição e presença diversificada em quase toda a Ásia.
8
Como assinala Hee-Jin Kim, o Zen Rinzai é marcado pela dinâmica da “introspecção mediante os koans”, enquanto o Zen Soto é
marcado pela “iluminação silenciosa” através do “zazen Soto” (shikantaza) (JIN KIM, 2010, p. 79, tradução nossa). Na perspectiva da
literatura da escola zen, o koan é “um texto escrito ou oral de conteúdo hermético ou mesmo ilógico ou absurdo, utilizado como
instrumento, ou ‘hábil meio’, para guiar o praticante para a compreensão da realidade” (TOLLINI, 2001, p. 177, tradução nossa).
9
Como assinalou Hee-Jin Kim, os estudos de Dôgen ficaram circunscritos aos estudiosos da Ordem Soto por cerca de setecentos anos,
só vindo a ganhar uma projeção mais ampla a partir de 1926, quando ocorre uma nova fase do despertar das reflexões em torno de
suas obras (JIN KIM, 2010).
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cultural no qual se formou o seu pensamento” (JIN KIM, 2010, p. 21-23, tradução
nossa).
Grande parte dos trabalhos de recuperação do pensamento de Dôgen, em
particular de sua obra capital, o Shôbôgenzô, foi realizada no Oriente. Não só
estudos importantes visando à compreensão dessa obra, mas, também, de outros
escritos do mestre da tradição Soto. Houve investigações não apenas nos âmbitos
filosófico-religiosos, mas, também, linguístico, textual e literário. Não houve,
infelizmente, semelhante acompanhamento reflexivo sobre a obra de Dôgen no
Ocidente. Os trabalhos de difusão do budismo zen no Ocidente foram favorecidos
pela reflexão de D. T. Suzuki, com base, sobretudo, no Zen Rinzai (JIN KIM, 2010).
Muitas são as dificuldades de acesso ao complexo pensamento de Dôgen.
Tanto sua reflexão como sua linguagem “são extremamente difíceis e sutis, e,
entretanto, irresistivelmente intrigantes” (JIN KIM, 2010, p. 24, tradução nossa). O
contato com sua obra abre inusitados horizontes para a reflexão e uma visada
inovadora para a compreensão efetiva e aprofundada do zen budismo. Daí a
escolha de seu itinerário como ponto de partida para nossa reflexão.
Dôgen nasceu em janeiro de 1200, em uma família aristocrática. Sua vida foi
marcada pela experiência precoce da impermanência, tendo perdido seu pai em
1202 e sua mãe um pouco depois, quando tinha apenas 7 anos. Apesar das
dificuldades decorrentes dessas perdas, conseguiu ter uma formação linguística e
cultural refinada, e isso pode ser observado em sua excelência poética. Não se
deixou abater pelo pessimismo, que também rondava sua época, mas reforçou a
dinâmica de seu caminho com substantiva vitalidade. Ele dizia: “Com uma vida
assim, transitória, não deveria haver outro empenho senão a Via” (JIN KIM, 2010,
p. 40, tradução nossa)
10
.
10
Em comentário à obra de Dôgen intitulada Instruções a um cozinheiro zen, Uchiyama Roshi assinala como o espírito de alegria sempre
envolveu o grande mestre zen. Sublinha um pensamento de Dôgen que exemplifica isso: “A mente alegre é aquela da gratidão e do
otimismo” (DÔGEN; ROSHI, 1986, p. 98, tradução nossa).
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Depois da perda de seus pais, Dôgen passou a ser criado pelo irmão mais
jovem de sua mãe, Fujiwara Moroie, que previa para o menino uma carreira
aristocrática brilhante. O destino, porém, reservou-lhe uma sorte diversa, tendo
decidido pelo caminho monacal. Entra no noviciado em 1213, com a idade de 13
anos, em ofício dirigido por Kôen, então abade do templo Enryakuji, no monte
Hiei. Iniciou-se, ali, seu estudo sistemático dos sutras budistas. No curso de seus
estudos, ele deparou-se com uma interrogação que o acompanharia por muitos
anos: “Se todos os seres humanos são dotados da natureza de Buda desde o
nascimento, por que os budistas de todos os tempos buscam incessantemente a
iluminação, empenhando-se na prática espiritual?”. Trata-se de uma interrogação
que ninguém no monte Hiei conseguiu fornecer uma resposta satisfatória (JIN
KIM, 2010).
Segue seu caminho com essa delicada questão na bagagem. Passa pelo
templo de Onjôji, na província de Omi, sob os cuidados do mestre Koin (1145-
1216). Este o envia ao templo de Kenninji, em Kyoto, tornando-se, então, aluno de
Myozen (1184-1225), discípulo de Eisai, que tinha introduzido o Zen Rinzai no
Japão. Dôgen (2001a, p. 125, tradução nossa) relata no “Bendôwa” esse encontro:
Depois de ter despertado o desejo de iluminação e de busca da Via, vaguei
por este país buscando o conhecimento. Foi quando, então, encontrei o
mestre Myozen no templo Kenninji. Passaram-se rapidamente nove anos
e, estando com o mestre nesse período, aprendi diversas coisas da tradição
Rinzai. Myozen era o principal discípulo do fundador (do Rinzai) Eisai e
era o único a ter recebido a correta transmissão suprema do budismo
(DÔGEN ZENJI, 2001a, p. 125, tradução nossa).
É no encontro com Myozen que Dôgen toma ciência do budismo zen, e
reconhecia que nenhum outro mestre se igualava a ele na dinâmica de transmissão
correta do budismo. Porém, mesmo a presença desse mestre não respondeu ao
sentimento de insatisfação que o acompanhava desde os tempos de sua estadia no
monte Hiei. Identificava limites no ensinamento dos mestres japoneses, que, a seu
ver, não conseguiam penetrar a “compreensão intelectual da doutrina”. Não
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logravam transmitir a seus discípulos senão “palavras e letras”, ou “nomes e sons”.
Dôgen ansiava por algo ainda mais profundo. Decidiu, então, empreender nova
aventura em viagem à China, para buscar conhecimento entre os grandes mestres
fundadores. Entendia que ali poderia encontrar o “melhor do budismo”. Assinalava
que seria melhor não estudar o budismo na ausência de um verdadeiro mestre (JIN
KIM, 2010).
Em 1223, Dôgen parte para a China, em difícil viagem marítima. Junto com
ele, o mestre Myozen. Sua intenção era aprofundar os estudos em mosteiros da
tradição zen. Em um dos pontos de ancoragem do navio, ocorreu um dos famosos
episódios do encontro de Dôgen com um monge cozinheiro chinês, de 61 anos, que
veio ao navio em busca de shitake japonês, fornecido pelos mercadores a bordo. O
singular diálogo travado entre os dois vem relatado no livro de Dôgen intitulado
Instruções a um cozinheiro zen (Tenzo kyokun), publicado em 1237 (DÔGEN;
RÔSHI, 1986). Estranhando essa tarefa exercida por um monge em final de
carreira, Dôgen indaga ao cozinheiro se não seria mais pertinente dedicar seu
tempo à prática do zazen ou ao estudo dos koans, em vez de um trabalho duro
como o de tenzo. Em resposta, o velho monge desatou em risos e fez a seguinte
observação: “Meu bom amigo estrangeiro! Tu não compreendes ainda em que
consiste a prática, nem conhece o significado dos caracteres”. Foi uma verdadeira
lição para Dôgen, como uma luz que se acendeu em sua consciência, acionando
uma compreensão distinta e novidadeira do zen
11
. Pôde perceber que no simples e
cotidiano trabalho na cozinha, como tenzo, alguém pode viver plenamente a
experiência do zen autêntico, do bodidarma. Na obra citada, Tenzo Kyokun, escrita
mais de uma década depois daquele encontro, Dôgen reconhece que o trabalho de
cozinheiro na tradição zen só é exercido por “mestres estáveis na Via”, ou por
mestres que despertaram em si o espírito do bodhisattva. Ao longo dos séculos,
11
Os dois monges irão encontrar-se novamente na China, durante o sétimo mês de presença de Dôgen ali, quando tinha sido admitido
no templo de Ching-tê-ssu. O velho tenzo estava para se retirar de seu encargo no mosteiro de A-iu-wang. Retomaram a velha
discussão. Esses dois encontros foram decisivos para a vida e o pensamento de Dôgen, como bem lembrou Hee-Jin Kim. Foi a partir
deles que ele conseguiu compreender a “relação entre prática e linguagem, entre ações e palavras, entre atividade e expressões”,
bem como a força da linguagem e dos símbolos em seu poder de abertura para a compreensão da realidade (JIN KIM, 2010, p. 48,
tradução nossa).
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essa nobre tarefa foi exercida por grandes mestres e patriarcas, recorda Dôgen. É
um trabalho que toca um dos temas mais fundamentais da tradição zen, ou seja, o
espírito de cuidado e atenção. Nada mais importante, relata Dôgen, do que
preparar o alimento com aplicação e poder ocupar-se pessoalmente de cada detalhe
do preparo das refeições. Diz ele: “Deixe que, dia e noite, todas as coisas entrem e
permaneçam em vossa mente. Cuide para que vossa mente e todas as coisas
possam agir conjuntamente como um todo” (DÔGEN; RÔSHI, 1986, p. 19,
tradução nossa). Nada mais sagrado do que essa harmonização da vida com o
trabalho. Diz, ainda: “Manuseie uma única folha de verdura de modo que manifeste
o corpo do Buda” (DÔGEN; RÔSHI, 1986, p. 21, tradução nossa).
Na China, Dôgen visitou vários mosteiros junto com o mestre Myozen. Na
ocasião, o budismo chinês vivia uma situação de dificuldade e declínio. Eram
múltiplas as causas dessa situação, entre as quais a degeneração moral da
comunidade monástica em razão da venda pelo governo de certificados monásticos
e títulos honoríficos para fazer frente à crise financeira. Nesse contexto
desfavorável, mestres zen passaram a se envolver na política e os mosteiros dessa
tradição tornaram-se centros de vida social e política. Dôgen expressa seu
descontentamento com tudo isso e reage contra o empobrecimento daqueles que se
proclamam descendentes do Buda e o enfraquecimento do ensinamento da Via
(JIN KIM, 2010). As críticas de Dôgen voltavam-se não apenas à situação geral do
budismo, mas, também, à ordem Rinzai, muito popular na época.
As viagens realizadas por Dôgen pela China proporcionaram a ele um bom
conhecimento do budismo chinês, mas não lhe possibilitaram o acesso a um
verdadeiro mestre. Marcado por certa desilusão, ele resolveu voltar ao Japão.
Decide fazer uma última visita ao monte T‟ien-t‟ung, onde estava adoentado seu
mestre Myozen. No templo de Chiug-shan Wan-shoussu, Dôgen encontra um velho
monge, que acende nova luz em seu caminho ao falar de um famoso mestre, Ju-
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Ching (1163-1228)
12
, que assumia a função de abade no mosteiro de Ching-te-ssu,
no monte T‟ien-t‟ung. Foi a senha necessária para realizar um encontro que marcou
decisivamente sua vida. O contato com Ju-Ching aconteceu no quinto mês de 1225.
O acolhimento foi caloroso, e entre os dois ocorreu o desvelamento do mistério do
Dharma.
O mestre Ju-ching reagia às divisões sectárias do budismo e aspirava a um
budismo aberto e universalizante. Não gostava nem mesmo de nomear sua prática
como sendo zen. O objetivo essencial de seu trabalho era aprofundar o Dharma. Ao
tratar da personalidade desse mestre, Dôgen assinala seu traço dinâmico e
carismático e sua intransigente defesa do zazen Soto, entendido como caminho
essencial do budismo. Para Ju-Ching, segundo a descrição tecida por Dôgen a seu
respeito, o budismo “não devia reverenciar nada daquilo que sinalizasse glória e
poderes mundanos; devia, sim, contentar-se com a virtude da pobreza e do viver na
profunda paz das montanhas. O Dharma deveria ser buscado para o bem do
Dharma” (JIN KIM, 2010, p. 56, tradução nossa).
Momento decisivo na experiência de aprendizado de Dôgen sob a guia de Ju-
Ching ocorreu em 1225. No decorrer de uma prática de zazen, na primeira manhã
de um retiro intensivo (Geango), um monge que estava ao seu lado adormeceu. Em
advertência a tal acontecimento inesperado, Ju-Ching bradou com firmeza em sua
direção: “No zazen é imperativo abandonar o corpo e a mente. Como podes ceder
ao sono?”. O toque dado por Ju-Ching acabou fazendo efeito em Dôgen, que sentiu
todo o seu ser estremecer, provocando a experiência de uma grande alegria em seu
coração. Na mesma manhã, nos aposentos de Ju-Ching, Dôgen ofereceu incenso e
se prostrou diante da imagem de Buda. Admirado pela atitude de Dôgen, o mestre
Ju-Ching perguntou-lhe sobre a razão de tal procedimento. Recebeu como resposta
uma frase reveladora: “O meu corpo e a minha mente foram abandonados!”. Uma
expressão que se tornou célebre no livro “Genjo koan” do Shôbôgenzô: shinjin
12
Ju-Ching (ou Nyojo), embora estivesse em um mosteiro vinculado à ordem Rinzai, pertencia à tradição Soto Zen. Era um fervoroso e
regular praticante do zazen.
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datsuraku (deixar cair o corpo e a mente) (DÔGEN ZENJI, 2001d; 2001e). Diante
da exuberância da resposta de Dôgen, e sua certeira percepção, Ju-Ching
reconheceu a autenticidade de sua iluminação. No nono mês de 1225, ele conferiu a
Dôgen, um monge japonês, o certificado oficial da sucessão patriarcal da linha
Chen-hsieh da Ordem Tsao-tung, uma novidade na história do budismo chinês
(JIN KIM, 2010).
Dôgen, finalmente, conseguia a resposta à questão que tanto o angustiara
durante muitos anos, desde os tempos de sua presença no monte Hiei. Na certeira
percepção desse “deixar cair corpo e mente” estava a chave de acesso à
compreensão da natureza búdica. Através da prática do zazen Soto, isto é,
simplesmente se sentar (shikantaza), consegue, finalmente, acessar a perspectiva
de uma existência não dualística. E esse “abandonar corpo e mente” não anulava,
em hipótese alguma, a existência histórica e social, mas a acionava em uma
perspectiva nova e distinta, de modo a facultar a “encarnação autocriativa e
autoexpressiva da natureza do Buda” (JIN KIM, 2010, p. 59, tradução nossa).
Durante dois intensos anos, entre 1225 e 1227, os dois mestres viveram uma
rica experiência de prática e ensino comum na busca da verdadeira compreensão
do Dharma. Em 1227, Dôgen expressou ao seu mestre o desejo de retornar ao
Japão, recebendo na ocasião o hábito sacerdotal, que é o documento genealógico da
sucessão patriarcal.
O mestre Dôgen retornou ao Japão com as “mãos esvaziadas” de sutras,
imagens ou documentos. Trazia para seus conterrâneos apenas seu corpo, sua
mente e sua existência, agora libertados das amarras do ego e radicalmente
transformados. Esse retorno ocorreu, provavelmente, no outono de 1227. Ele logo
assume o templo Kenninji, depois dos anos de ausência. Nesse mesmo ano, escreve
o breve texto “Fukan zazengi”, com os conselhos práticos em torno do zazen. É um
livro que não faz parte do Shôbôgenzô, mas que expressa um traço importante do
ensinamento de Dôgen, sendo a primeira descrição do zazen realizada por um
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autor japonês (TOLLINI, 2001).
O tempo de permanência de Dôgen em Kenninji foi de três anos. Depois,
deslocou-se para o templo de An‟yoin em Fukakusa, onde escreveu um dos
clássicos livros do Shôbôgenzô, o “Bendôwa”, que é, na verdade, um discurso sobre
a prática da Via. Trata-se de uma obra que desvela os traços fundamentais do
ensinamento de Dôgen. Com esses dois primeiros escritos, Dôgen lança as bases de
sua concepção religiosa e filosófica.
Com o crescimento do número de seus discípulos, Dôgen transfere-se para o
templo de Kosho-horinji – uma ampliação do original Kannon-dorin –, onde
permanece por dez anos (1233-1243). Foi, talvez, o período mais criativo para ele,
compondo simplesmente 44 capítulos do Shôbôgenzô, entre os quais alguns de
grande importância, como o “Genjo-koan” e o “Bussho”. Foi também ali que
acolheu Koun Ejo (1198-1280) como seu discípulo. Entre os dois nasceu uma forte
amizade, que os manteve ligados por quase vinte anos, até a morte de Dôgen
13
. Os
dois trabalharam juntos para a afirmação do Soto Zen no Japão.
O templo de Kosho-horinji foi um espaço aberto à comunidade, traduzindo
uma preocupação sempre presente em Dôgen, de fazer do budismo uma “religião
do povo”. Em um de seus breves e belos livros, “Shôji”, que trata dos nascimentos e
mortes, Dôgen expressa sua ideia da compaixão ilimitada. Assinala que a estrada
que conduz ao despertar passa necessariamente por uma “profunda compaixão por
todos os seres” (DÔGEN ZENJI, 2007b, p. 353). Para que isso ocorra, é necessário
um coração liberado do pequeno eu egoísta, de forma a poder acolher e ressoar
todos os seres do universo.
A itinerância de Dôgen continuou pelos templos de Kippoji e Daibutsuji,
onde se estabeleceu no sétimo mês de 1244. Em junho de 1246, ele mudou o nome
13
Além de ser um fiel discípulo, Ejo assumiu igualmente a função de chefe dos monges (shuso) em Kosho-horinji. Foi posteriormente
nominado por Dôgen, em 1253, como seu sucessor e responsável pelo mosteiro de Eiheiji. Como indica Yampolsky (2007b), ele
igualmente auxiliou Dôgen na compilação do Shôbôgenzô, podendo também ter ampliado o texto depois da morte de seu mestre.
Faustino Teixeira
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do templo para Eiheiji, que significa paz eterna. Consegue, então, realizar seu
sonho de “fundar uma comunidade monástica ideal segundo os ditames de Po-
chang Huai-hai (720-814), no coração das montanhas e dos cursos de água” (JIN
KIM, 2010, p. 71, tradução nossa). Nesse templo, ele escreveu oito capítulos do
Shôbôgenzô, mas se dedicou, sobretudo, à formulação dos preceitos e regras de
consolidação da vida monástica. O mosteiro de Eiheiji tornou-se um importante
ponto de referência como comunidade educativa e religiosa.
A saúde de Dôgen começou a agravar-se a partir de 1250, limitando suas
atividades monásticas. Escreve, ainda, um derradeiro capítulo do Shôbôgenzô, em
1253 – o “Hachi-dainingaku” –, expressando uma última mensagem a seus
discípulos, já prevendo a proximidade de sua morte. Ele nomeia Ejo como seu
sucessor em 1253 e, no oitavo mês do mesmo ano, vem a falecer, junto a seus
discípulos, em postura de zazen.
3 Dôgen e os caminhos do Dharma
Um dos traços fundamentais do ensinamento de Dôgen está relacionado ao
jijuyu zanmai, ou seja, à capacidade intrínseca do ser humano para a iluminação.
Na visão do mestre japonês, o Dharma está presente no íntimo de cada pessoa, mas
sua vinda à luz depende de um exercício da prática. Assinala no “Bendôwa” que um
“método misterioso” foi transmitido de Buda a Buda, que é aquele do sentar-se em
zazen. Não há outro “portal” mais propício para a iluminação: trata-se “da
verdadeira Via para se alcançar a iluminação” (DÔGEN ZENJI, 2001a, p. 123-124,
tradução nossa)
14
.
Na visão de Dôgen, não há como separar a prática da iluminação. O acesso à
iluminação não se dá tanto por meio especulativo, mas, sobretudo, por intermédio
de uma ação que se desdobra do fundo de si mesmo. Há, em verdade, uma unidade
14
No seu livro Zazengi, Dôgen assinala que o zazen constitui “simplesmente a entrada no Dharma da grande paz” (DÔGEN ZENJI, 2001b,
p. 45, tradução nossa).
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de prática e iluminação (shusho ichinyo)
15
. O caminho dessa prática, quando
orientada por um bom mestre, leva ao horizonte da iluminação. O simplesmente
sentar-se, retamente orientado, favorece a percepção do “selo do Buda”, e o olhar
se desprende para captar em todas as coisas do universo uma presença iluminada
(DÔGEN ZENJI, 2001a, p. 127, tradução nossa).
Os traços da prática do zazen foram particularmente desenvolvidos em três
obras de Dôgen: “Zazengi”, “Fukan zazengi” e “Zazenshin”. Na primeira obra,
“Zazengi”, Dôgen assinala que “a prática do zen é o zazen”. Nesse livro, Dôgen
aborda as condições propícias para a realização dessa prática: as condições do lugar
e o estado mental desejado para o seu exercício. É necessário deixar-se habitar pelo
“sem pensamento”
16
, rompendo com todos os laços ou vínculos que prejudiquem a
concentração do praticante. Não há de ter objetivos, nem mesmo o de se tornar
Buda. O zazen deve ser assumido em “alta consideração” (DÔGEN ZENJI, 2001b,
p. 43-44, tradução nossa). Há de se deixar “cair” corpo e mente, livrando-se de
todos os condicionamentos e “simplesmente sentar”, sem nada esperar. No “Fukan
zazengi”, que foi o primeiro texto escrito por Dôgen (1227), ele aborda os princípios
do zazen. Sugere que o praticante volte-se para o interior, mediante a prática do
zazen, buscando o fundamento originário do caminho, ou da Via. Esse
fundamento, ao contrário da opinião contemporânea em certa tradição budista,
permeia todas as coisas. O samsara e o nirvana não são dimensões separadas, mas
interpenetradas. O nirvana acontece no processo mesmo do samsara
17
. E esse
“rosto originário” do Dharma não emerge senão quando o corpo e a mente deixam-
se cair, e isso ocorre naturalmente, com o desdobramento da prática. Os aspectos
formais e físicos do zazen são desenvolvidos por Dôgen em sua obra “Zasenshin”.
Ele retoma, ali, o tema essencial do exercício do “não pensamento” na prática do
15
Na perspectiva de Dôgen, as palavras “shu” (prática) e “sho” (iluminação) são indicadas com uma palavra só, e justamente para
indicar que elas não podem ser compreendidas separadamente.
16
Segundo Dôgen, o que diferencia o não pensamento do sem pensamento é que o primeiro ainda comporta a presença de um eu
egoístico, enquanto o segundo prescinde da presença de um eu, que se deixou abandonar ou cair. Com a ausência desse eu, não é
mais possível falar em amarras ou vínculos de apego (DÔGEN ZENJI, 2001c).
17
Trata-se de uma perspectiva acentuada no budismo mahayana, de modo particular no sutra Prajna paramita. O que se indica ali,
como lembra Okumura (2012, p. 43, tradução nossa), é que “samsara e nirvana são uma só coisa. Se não encontramos o nirvana no
interior do samsara, não há lugar onde possamos encontrá-lo”.
Faustino Teixeira
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zazen: o desafio de “pensar o não pensamento”. Na prática mesma do zazen se dá a
dinâmica da iluminação, não devendo o praticante deixar-se levar por nenhum
desejo, nem mesmo o de tornar-se Buda
18
. Trata-se de algo tão impossível como
fazer de uma telha um espelho mediante seu polimento com uma pedra. Para
Dôgen, há de se ultrapassar o “fato imediato” que se apresenta aos olhos e saber
buscar mais fundo, visando a captar o mistério das coisas. Isso é, para ele, o
significado mais largo do estudo do budismo. Seguindo a trilha aberta pelo mestre
Nangaku Daie (677-744), Dôgen sinaliza a importância do exercício de gratuidade
no zazen. Não há por que se preocupar com as “formas do sentar-se”, é necessário
apenas se voltar para seu “princípio”. Para tanto, a disposição essencial é “deixar
cair mente e corpo” (DÔGEN ZENJI, 2001d, p. 60-70).
Essa expressão “deixar cair o próprio corpo/mente” (shinjin datsuraku), tão
citada por Dôgen, tornou-se muito famosa, traduzindo de forma límpida e sintética
a essência de sua reflexão sobre o budismo. Sua forma mais precisa na obra do
autor encontra-se no “Genjo Koan”:
Aprender o budismo é aprender a si mesmo; aprender a si mesmo e
esquecer-se de si mesmo. Esquecer-se de si mesmo é ser despertado para
a realidade. Despertar-se para a realidade é deixar cair o próprio
corpo/mente e o corpo/mente dos outros (DÔGEN ZENJI, 2001e, p. 180,
tradução nossa)
19
.
A dinâmica desse precioso aprendizado envolve a presença de um bom
mestre, que possibilita abrir o caminho da transmissão correta. É um “aprendizado
de desaprender”, como tão bem mostrou Fernando Pessoa em seu Guardador de
rebanhos. Há de romper a percepção da realidade que se funda na perspectiva de
um “eu permanente”. Não há o que fazer com a ideia de um “eu permanente”.
Como sublinha Dôgen Zenji (2001e, p. 180), “a realidade não se baseia sobre o
nosso eu”. O exercício do zazen faculta a emergência de um si mesmo que nasce a
18
Dôgen Zenji (2001d, p. 69) faz menção a uma citação do mestre Nangaku Daie (ou Nangaku Ejo – 677-744): “Se tu fazes o Buda
sentado, então tu matas o Buda”. Há, portanto que se desfazer no zazen da concepção mesma da budicidade (de uma concepção fixa
do Buda), ou seja, libertar-se do Buda para incorporá-lo na vida.
19
Ver também Jin Kim (2010) e Okumura (2012).
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partir da morte de um eu egocentrado. Esse eu “deixa-se cair” para fazer emergir o
verdadeiro si (jiko). Trata-se do si real ou universal, habitado pela realidade da
vida. O passo essencial da prática do zazen é facultar a emergência desse “si” que
inclui toda coisa (UCHIYAMA, 2006)
20
.
Tem razão Taisen Deshimaru quando assinala que o zazen favorece um
“alargamento da consciência e o desenvolvimento da intuição”. Não é uma prática
que desloca o sujeito da vida e da história, mas provoca, antes, um adentramento
singular em sua concretude. É uma técnica que possibilita atenção permanente,
concentração viva “sobre cada instante da vida” (DESHIMARU, 1981, p. 30,
tradução nossa).
Há de se salientar, seguindo as pistas abertas por Dôgen, que também se
percorre a Via por caminhos inusitados, que não se restringem à prática específica
do zazen. É uma realização que se estende para todo o universo, pois sua luz emana
de toda parte. Está presente no golpear e sibilo do vento e no misterioso som de um
sino. Todo fenômeno é para Dôgen Zenji (2001a) portador da possibilidade de
iluminação
21
.
4 Uma espiritualidade do cotidiano
Toda a espiritualidade zen acentua com vigor o valor e o significado da
experiência da vida. Mesmo reconhecendo a relevância imprescindível da prática
do zazen, a base essencial onde habita o múnus do Dharma é a vida mesma, em
toda a sua tessitura. Em rica reflexão de Uchiyama Roshi, Como cozinhar a vossa
vida, ele aborda o tema do “apaixonar-se pela vida”. Reconhece que na tradição
budista Mahayana a vida é o que há de “mais essencial” (DÔGEN; ROSHI, 1986, p.
67).
20
Como mostrou Uchiyama (2006), o jiko identifica-se com um “si que vive a inteira verdade”. Ele não se refere a um si egoístico, mas a
um si que ultrapassa a ideia de uma “consciência pessoal”. O verdadeiro si, o si total, está envolvido por uma “força ou qualidade da
vida” (UCHIYAMA, 2006, p. 48-51, tradução nossa).
21
Aldo Tollini (2001), em comentário de passagem do Bendowa, sublinha que essa possibilidade de iluminação também fora da prática
do zazen vem reconhecida por diversos textos canônicos da tradição zen.
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Dôgen sublinha a todo tempo a importância do cuidado, delicadeza e
atenção para com o presente em cada um de seus instantes. Há, para ele, uma
relação de proximidade entre a natureza e o despertar. Os diversos capítulos ou
fascículos do Shôbôgenzô, bem como os poemas recolhidos no Sanshodoei
22
,
expressam esse “profundo amor” do mestre zen pela natureza. Alguns títulos da
grande obra de Dôgen expressam essa presença: Tsuki (a lua), Shunju (primavera e
outono), Katto (cipó), Hakujushi (cipreste), baika (flor de pêssego), udonge (a flor
de udumbara) keisei sanshokoku (a voz dos vales, as formas/cores das montanhas),
sansuikyo (montanhas e rios como sutra).
Há todo um rico aprendizado favorecido na tradição zen de desvendar a
presença do invisível, ou do mistério, no âmbito mesmo do visível e poder captar a
ressonância essencial do universo. Porém, quando, por exemplo, Dôgen fala em
natureza, sua percepção é distinta daquela usual no Ocidente. O termo é carregado
de uma clara conotação religiosa. Não há como separar a compreensão de natureza
da experiência do despertar. O termo natureza vem desvelado como “a realidade
concreta percebida a partir do despertar, o mundo mesmo do despertar” (FAURE,
1987, p. 23, tradução nossa). Sob essa perspectiva, Dôgen pode cantar em um de
seus poemas do Sanshodoei: “O eco dos vales e o grito dos símios nas alturas não
fazem senão recitar sem cessar as Escrituras” (FAURE, 1987, p. 25, tradução
nossa)
23
. Na verdade, toda a realidade natural, envolvendo as montanhas, rios e
toda a imensidão da terra constituem “o oceano da natureza de Buda”. Ou, ainda,
como assinalado no livro Hotsumujôshin, em cada poeira “existem milhares de
escrituras santas e um número incomensurável de despertares” (DÔGEN ZENJI,
2005a, p. 173, tradução nossa).
Essa percepção profunda da realidade natural pressupõe, porém, um
trabalho da interioridade, um exercício de aperfeiçoamento do olhar. Não são todos
que conseguem captar a ressonância do universo, mas aqueles que passaram por
22
Dôgen Zenji e Ejo (2011). Trata-se do livro que recolhe os poemas de Dôgen, compostos entre 1245 e 1253.
23
Ou, ainda, em outro poema do Sanshodoei: “O contorno dos cumes, o murmúrio dos vales, não são senão a voz e o espírito de nosso
Buda Shakyamuni” (FAURE, 1987, p. 25, tradução nossa).
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uma transformação interior, rompendo com a perspectiva egoica e possessiva,
deixando-se envolver pela “experiência direta”, que antecede toda distinção entre
sujeito e objeto (FAURE, 1987, p. 26, tradução nossa).
Em esclarecedora obra sobre a filosofia do budismo zen, Toshihiko Izutsu
aborda essa questão do “Ver” na tradição zen. Com o recurso da visão ordinária,
que se limita ao fato imediato, nem sempre se consegue captar o “outro lado” das
coisas, ou o seu mistério implícito. É quando o olhar se perde nas coisas sem,
porém, reconhecê-las. Nem sempre a visão daquilo que está diante dos olhos
favorece a percepção de sua profundidade. Como assinala Izutsu (2009, p. 20-21,
tradução nossa),
para poder ver em uma só flor uma manifestação da unidade metafísica de
todas as coisas, não só de todos os denominados objetos, mas também do
sujeito observador, o ego empírico deve ter sofrido uma transformação
total, uma completa anulação de si mesmo – a morte de seu próprio “eu” e
seu renascer em uma dimensão de consciência totalmente distinta.
Verifica-se que na tradição zen não existe nada senão a realidade do mundo
fenomênico. Não se fala, ali, de uma ordem de coisas transcendental, que se
destaca do espaço e do tempo. O que há é esse mundo sensível e concreto, na sua
espessura vital. O pensamento de Dôgen reflete essa dedicada atenção ao fluxo da
existência cotidiana, sem que ocorra um acento em uma transcendência específica.
Há algo de “singularmente profano” e “absolutamente cotidiano” no zen por ele
apresentado. Relata-se que Bodidarma, ao ser indagado pelo imperador Wu sobre o
traço de santidade presente no ensinamento do budismo, respondeu com
tranquilidade: “Uma imensa vacuidade, e nada o que fazer com a santidade”
(COOK, 1981, p. 59, tradução nossa). Em ilustrativo capítulo do Shôbôgenzô,
dedicado ao tema da vida cotidiana (Kajo), Dôgen assinala que os grandes mestres
e patriarcas do zen simplesmente “comem arroz e bebem chá”. Não há nada de
muito “nobre” na vida desses grandes homens: “O chá ordinário e as refeições
frugais de sua vida cotidiana constituem os pensamentos daqueles que
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despertaram e as palavras dos patriarcas” (DÔGEN ZENJI, 2007a, p. 306, tradução
nossa).
O que o zen, porém, pontua é que o mundo fenomênico não se reduz à trama
das coisas sensíveis que se apresentam ao ego empírico ordinário. Ele pode estar
vitalizado por uma particular espécie de poder dinâmico capaz de redimensionar o
ver (IZUTSU, 2009). Enquanto o olhar ordinário, essencialista, só consegue ver a
montanha como montanha e o rio como rio, o olhar zen passou pela experiência do
“abismo do Nada”, pela experiência fundamental do desapego. Para além da
superfície fenomênica, ele consegue, agora, dinamizado por distinta experiência,
captar a mesma montanha sob uma nova perspectiva: “A montanha é de novo
montanha”, ou ainda: “A montanha é simplesmente montanha”. O olhar é
revigorado a partir de seu “renascimento desde o próprio abismo do Nada”,
sinalizando a presença de um indivíduo que foi completamente transformado em
sua estruturação interna. Trata-se, segundo Dôgen, de um olhar que passou por
uma atividade específica (gyoji), pontuada por um modo de conceber e viver a
própria vida cotidiana segundo a espiritualidade zen.
Um dito tradicional do mestre zen Ma-tsu (709-788), muito repetido por
Suzuki (1993), indica que o “zen é a consciência cotidiana”. Todas as coisas
“cantam a verdade”, também sinaliza Dôgen. Não há necessidade, portanto, de sair
do mundo para gozar da experiência espiritual. Se alguém quer, de fato, penetrar a
verdade do zen, indica Suzuki (1993), com base em Pen-hsien, deve fazê-lo quando
está de pé ou andando, dormindo ou sentado, na palavra ou no silêncio e em meio
aos afazeres do trabalho cotidiano.
Acolher o cotidiano na sua elementar maravilha é dos mais importantes
desafios apresentados pela tradição zen, e por Dôgen em particular (TOLLINI,
2012). A percepção da novidade das coisas em cada singular momento ou instante é
favorecida pelo olhar que passou por processo dinâmico de mudança. É um olhar
capaz de captar a essencial gratuidade (mushotoku) das coisas. O mestre Kodo
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Sawaki (1880-1965) dizia: “Os homens acumulam conhecimentos, mas eu penso
que o fim último seja poder sentir o som dos vales e olhar as cores da montanha”
(FAZION, 2003, p. 101, tradução nossa). A autêntica meditação não se dá no
distanciamento do instante presente, mas no adentramento de sua espessura. Ela
envolve uma atenção vigilante aos pequenos detalhes do cotidiano, com a mente
aberta e desimpedida. O zazen não se dá somente em um tempo específico e em um
lugar privilegiado, mas acontece em todo momento, iniciando-se com o abrir dos
olhos pela manhã e finalizando com o seu fechamento à noite, de modo que todas
as atividades realizadas no dia sejam tradução viva de uma prática (COOK, 1981).
Em outro fascículo de seu Shôbôgenzô, “Zenki”, Dôgen aborda o precioso
tema do instante. Para ele “cada instante é um instante de plenitude”. Questiona
duramente nessa obra aqueles que ensinam que o alcance do nirvana se dá com a
saída do mundo ordinário. Sublinha enfaticamente que os dois mundos, do
nirvana e do samsara, necessitam-se mutuamente. Na verdade, assinala que o
nirvana se opera no samsara (DÔGEN ZENJI, 2011). Na visão de Dôgen, “o
acontecimento por excelência é a vida”, a vida que se vive em cada um de seus
instantes e por meio da qual todos podem celebrar a alegria de estar aí. O despertar
espiritual, assinala o mestre zen, não é nada mais que a tomada viva de consciência
desse instante presente, nas suas misteriosas malhas de enigma, surpresa e
gratuidade. Só há plena consciência, adverte Dôgen (2011), quando a consciência
consegue abraçar todas as coisas em cada instante.
O organismo privilegiado para acolher essa pulsação de vida que se acomoda
em cada instante da vida cotidiana é, para Dôgen, o coração (shin – kokoro).
Porém, para que ele possa “ressoar com a multidão dos seres do universo”,
necessita de esvaziamento, de destacamento dos traços do “pequeno eu” que
impedem o abraço universal da acolhida e da compaixão. É o coração liberto que
coloca o ser humano em disponibilização para ouvir com alegria o “canto das
coisas”, ou, na expressão de Dôgen, o “sentimento e a emoção das flores” (DÔGEN
ZENJI, 2007b, p. 348).
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Conclusão
Em sua obra de introdução ao zen budismo, Suzuki (1999) aborda a questão
de ser ou não o budismo zen um misticismo. Com o humor típico dos grandes
mestres, ele indica que o zen “é um misticismo a seu próprio modo”. Sinaliza que
ele “é místico no sentido de que o sol brilha” ou “no sentido de que uma flor
desabrocha”. Reconhece que o traço de religiosidade habita a presença de uma
camélia em flor, em mesma proporção que sua evidência no ato explicitamente
religioso de se prosternar diante dos deuses ou outras atividades rituais (SUZUKI,
1999). Trata-se, em verdade, de uma espiritualidade fundada na experiência mais
singela do cotidiano. Há muito de humano, demasiadamente humano, na
espiritualidade zen. É o que este artigo buscou sublinhar de várias formas. A
tradição zen budista vive a espiritualidade no tempo, sem deslocar a experiência da
iluminação para um além incognoscível, ou um nirvana impalpável. É nesse
“tumultuado” mundo do samsara que se dá a oportunidade de iluminação. É por
isso, como tão bem mostrou Francis Cook (1981), que o budismo convoca a todos
para uma atitude de observação da vida, com delicadeza, clareza e atenção, visando
a encontrar uma liberdade única e um bem-estar partilhado, sempre nesse espaço
dado e nas condições precisas que constituem o edifício da vida humana.
REFERÊNCIAS
COOK, Francis Dojun. Come allevare un bue. La pratica dello zen come è insegnata
nello Shôbôgenzô del Maestro Dôgen. Roma: Ubaldini, 1981.
DESHIMARU, Taisen. Lo zen passo per passo. La pratica passo per passo. Roma:
Ubaldini, 1981.
DÔGEN ZENJI, Eihei. Bendôwa. In: TOLLINI, Aldo. Pratica e illuminazione nello
shôbôgenzô. Roma: Ubaldini, 2001a. p. 123-176.
DÔGEN ZENJI, Eihei. Zazengi. In: TOLLINI, Aldo. Pratica e illuminazione nello
shôbôgenzô. Roma: Ubaldini, 2001b. p. 43-45.
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