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JUSTIÇA GRATUITA, ACESSO À JUSTIÇA E O (AINDA) NECESSÁRIO DEBATE EM TORNO DA IDEOLOGIZAÇÃO DO PROCESSO

Authors:

Abstract

O amplo e complexo conceito de acesso à justiça retoma a ideia de proteção judicial efetiva aos direitos fundamentais. Para sua garantia, o ordenamento jurídico prevê mecanismos que facilitem dito acesso, dentre os quais pode-se citar o benefício da justiça gratuita. Todavia, não raras as vezes, os critérios definidores da concessão de dito benefício acabam por restringir o alcance do mesmo, fato que não exprime o verdadeiro sentido da legislação. Tal circunstãncia, aliada à outras igualmente perceptíveis, reflete que a realidade processual cível ainda está veementemente atrelada à ideologia racionalista que, por sua vez, acaba legitimando o poder do polo hiperssuficiente da relação jurídica-processual. O presente estudo visa, portanto, por meio de uma revisão bibliográfia, apresentar uma reflexão crítica acerca da ideologização do processo como forma de limitação do acesso à justiça.
ISSN 1981-3694
(DOI): 10.5902/1981369410855
JUSTIÇA GRATUITA, ACESSO À JUSTIÇA E O (AINDA) NECESSÁRIO
DEBATE EM TORNO DA IDEOLOGIZAÇÃO DO PROCESSO
ANDRÉ KABKE BAINY,LUCAS GONÇALVES CONCEIÇÃO, VALDENIR CARDOSO
ARAGÃO
Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM www.ufsm.br/redevistadireito v. 9, n. 1 / 2014
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JUSTIÇA GRATUITA, ACESSO À JUSTIÇA E O (AINDA) NECESSÁRIO
DEBATE EM TORNO DA IDEOLOGIZAÇÃO DO PROCESSO
FREE JUSTICE, ACCESS TO JUSTICE AND THE (STILL) NECESSARY
DISCUSSION ABOUT THE PROCESS IDEOLOGY
ANDRÉ KABKE BAINY
ESTUDANTE DO CURSO DE DIREITO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS. ESTAGIÁRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, NA PROCURADORIA DA
REPÚBLICA NO MUNICÍPIO DE PELOTAS.
andrebainy@hotmail.com
LUCAS GONÇALVES CONCEIÇÃO
MESTRANDO EM DIREITO E JUSTIÇA SOCIAL PELO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE - FURG.
GRADUADO EM DIREITO PELA MESMA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE - FURG. DESENVOLVE PESQUISAS NA ÁREA DO DIREITO, COM ÊNFASE
EM QUESTÕES RELACIONADAS AO DIREITO CONSTITUCIONAL, DIREITO INTERNACIONAL E DIREITOS HUMANOS.
lucasgoncon@hotmail.com
VALDENIR CARDOSO ARAGÃO
Professor Assistente da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grade (FURG), Advogado inscrito nr.
69.378 na OAB Rio Grande /RS. Graduação em Direito pela Fundação Universidade Federal do Rio Grande/FURG
(2004), Especialista em Direito Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul/PUCRS (2006),
Mestre em Processo Civil pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul/PUCRS(2007).
valdenir_arag@yahoo.com.br
RESUMO
A realidade processual cível ainda está
veementemente atrelada à ideologia racionalista, a
qual se funda na forma, na técnica e na certeza.
Ocorre que esse paradigma racionalista acaba
legitimando o poder do polo hiperssuficiente da
relação processual, e maculando a ampla e complexa
noção de acesso à justiça, que é garantia necessária à
proteção judicial efetiva dos direitos fundamentais.
Essa situação pode ser evidenciada, por exemplo,
quando é analisada a (in)utilização dos mecanismos
previstos no ordenamento jurídico que facilitam o
acesso à justiça, como por exemplo o benefício da
justiça gratuita. Nesse caso, os critérios objetivos
definidores da concessão de dito benefício acabam por
muitas vezes restringir o alcance do mesmo, fato que
não exprime o veradeiro sentido da legislação. O
presente estudo visa, portanto, por meio de uma
revisão bibliográfia, apresentar uma reflexão crítica
acerca da ideologização do processo como forma de
limitação do acesso à justiça.
Palavras-chave: Acesso à justiça; Ideologia; Justiça
Gratuita; Legitimação do Poder.
ABSTRACT
The civil process reality is still related to the
rationalist ideology, which is based on form, technique
and certainty. However, it’s often to realize that this
rationalist paradigm legitimizes the powerful pole of
processual relation, and stains the broad and complex
idea of Access to justice, that is necessary guarantee
for the effective judicial protection for the
fundamental rights. This circumstance, as well as
others equally perceptible ones, can be noted when is
analyzed the (un-)utilization of mechanisms to
facilitate that access to justice as the free justice
benefit. In this case, the hallmarks methods for
concession of free justice benefit ends up restricting
its reach, whereas it’s not the real Law meaning.
Therefore, by the analysis of the related bibliography,
the present review pretends to present a critical
reflection about the process ideologization as a
limitation of Access to justice.
Keywords: Access to justice; Ideology; Free Justice;
Power legitimization.
ISSN 1981-3694
(DOI): 10.5902/1981369410855
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SUMÁRIO
INTRODUÇAO; 1 DO ACESSO À JUSTIÇA; 1.1 Generalidades do conceito; 1.2 Do acesso à justiça como
direito fundamental; 2 DA JUSTIÇA GRATUITA; 2.1 Panorama geral; 2.2 Da regulamentação legal da
matéria; 2.3Crítica ao entendimento adotado pelos tribunais; 3 DA IDEOLOGIZAÇÃO DO PROCESSO; 3.1
Ponto de partida do debate; 3.2 Processo e ideologia; 3.3 Do processo como instrumento de
legitimação do poder; CONCLUSÃO; REFERÊNCIAS.
INTRODUÇÃO
Segundo sustentam Cappelletti e Garth1, a expressão “acesso à justiça”, muito embora
seja de complexa definição, serve, em síntese, para definir duas finalidades básicas do sistema
jurídico: (1) que o sistema deve ser igualmente acessível a todos; (2) e que ele deve produzir
resultados que sejam individual e socialmente justos.
Pensando a partir do primeiro ponto de vista, isto é, da ideia do “acesso à justiça”
como meio garantidor do direito à apreciação jurisdicional, não é tarefa árdua identificar as
principais formas pelas quais o Estado exterioriza tal tentativa de facilitação do acesso. Através
de uma análise superficial pode-se identificar que seus principais marcos são os Juizados
Especiais Cíveis, a Assistência Jurídica Gratuita, a Assistência Judiciária Gratuita, a Justiça
Gratuita, entre outros.
Contudo, é igualmente perceptível que o efetivo e concreto acesso à justiça ainda está
longe de atingir a sua plenitude.
Isso porque, além dos usuais entraves relacionados à questão material e estrutural das
instituições envolvidas, a dogmática processual civil é pautada pelo paradigma cartesiano-
racionalista, que privilegia a certeza em detrimento da justiça, a forma em detrimento da
finalidade.
Nesse sentido, passa-se à análise do benefício da Justiça Gratuita e dos
operacionalizados critérios de deferimento (ou não) de dito benefício. Definida e regulada pelas
Leis 5.478 de 25.07.1968 e 1.060 de 05.02.1950, e tendo como razão de existência a
isenção aos necessitados de todas as despesas processuais (custas, taxas, emolumentos,
honorários advocatícios e periciais), restou estabelecido no parágrafo único do art. da lei de
1 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto
Alegre: Fabris, 1988.
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1950 que os necessitados previstos como destinatários do benefício da justiça gratuita são
aquelas pessoas cuja situação econômica não lhes permita pagar as custas do processo e os
honorários advocatícios sem prejuízo do sustento próprio ou da família. No mesmo sentido
coloca o §2º do art. da lei de 1968. Vê-se, portanto, que trata-se de critério subjetivo que
precisa ser minuciosamente avaliado pelo aplicador da lei.
Todavia, determinada parcela dos órgãos jurisdicionais brasileiros vem criando critérios
objetivos de operacionalização legislativa que aparentemente não dialogam com a lógica das
mencionadas legislações, bem como instituindo pressupostos que nunca foram por elas
idealizados, fazendo com que seus potenciais emancipatórios não sejam plenamente exauridos.
Somando-se dita circunstancia à realidade dos altos valores que envolvem os gastos em
um processo judicial os quais aqueles que não obtiveram juízo de concessão do benefício
deverão arcar -, é incontornável a conclusão de que o efetivo acesso à justiça acaba por ser, ao
menos de forma parcial, restringido.
Mais do que mácula ao direito fundamental da efetiva prestação jurisdicional, tal
restrição carrega o peso da dogmática processual cível, por sua vez ainda arraigada na exatidão
do pensamento cartesiano, que não admite outras respostas e consequências senão aquelas
prévia e historicamente estabelecidas. E essa (a definição de critérios objetivos para a
concessão do benefício da justiça gratuita) é apenas uma das hipóteses em que se pode verificar
o predomínio do paradigma racionalista.
Essa preponderância da “técnica” e da “certeza” acabam, mesmo que indiretamente,
demonstrando sobremaneira a força legitimadora do poder seja na esfera do discurso, seja no
âmbito político, ou seja, ainda, quanto ao poderio econômico - que o processo ainda tem na
sociedade.
Diante de tal problemática, o presente estudo objetiva promover uma reflexão crítica
acerca dos métodos utilizados pelos tribunais brasileiros para determinar a necessidade ou não
da concessão do benefício da justiça gratuita, e alguns significados e consequências que deles
podem se depreender.
Para tanto, foi realizada uma pesquisa bibliográfica, “que é aquela que se realiza a
partir do registro disponível, decorrente de pesquisas anteriores, em documentos impressos,
como livros, artigos, teses etc.”2, com enfoque nas principais fontes do direito (norma, doutrina
2 SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do Trabalho Científico. 23. ed. rev. e atual. São Paulo:
Cortez, 2007, p. 55.
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e jurisprudência). A abordagem adotada para a pesquisa foi a qualitativa, pois, segundo o autor,
seu caráter exploratório permite perscrutar temas pouco conhecidos ou não muito
racionalizados, ofertando ao pesquisador a possibilidade de descortinar os aspectos submersos
que indiretamente atingem o contexto em que o mesmo se insere. Por sua vez, o método
procedimental utilizado foi o monográfico, que caracteriza-se, segundo Severino3, pela
unicidade e delimitação do tema, bem como pela profundidade no tratamento da questão
abordada. Por fim, o método de abordagem adotado foi o indutivo, partindo das constatações
mais particulares para as leis e teorias mais gerais.
Contudo, a fim de evitar quaisquer desentendimentos, é preciso revisar alguns conceitos
e percepções antes de se adentrar no cerne do debate, como o conceito contemporâneo de
“acesso à justiça”, o significado e delimitação do termo “ideologia” aplicada ao processo, e a
exata definição legal da justiça gratuita.
1 DO ACESSO À JUSTIÇA
1.1 Generalidades do conceito
A vagueza da expressão “acesso à justiça” torna possível e necessária - sua análise a
partir de, pelo menos, três pontos de partida diferentes.
O primeiro deles concerne ao aspecto filosófico. Com efeito, trata-se de uma expressão
dotada de alta densidade axiológica. Ao longo da história da filosofia política, inúmeras
correntes de pensamentos buscam respostas sobre o quê efetivamente seja justiça, e qual a
forma ideal de concretizá-la baseadas, normalmente, na efetivação de algum direito
fundamental tido como base (igualdade, liberdade, propriedade etc.). Inegavelmente, um liame
central entre todas essas correntes de pensamento é o fato de que elas visam, cada uma à sua
maneira, ao bem comum e à pacificação social.
O segundo, diz respeito ao aspecto institucional de “justiça”. Isso porque a referida
expressão remete-nos à ideia de Poder Judiciário, de Foros, Tribunais, salas de audiência,
balcões de cartório etc., que devem estar literalmente abertos à população, até porque, em
última análise, a serviço dela funcionam. Trata-se, portanto, de um viés materializado na
própria estrutura do Poder Judiciário, que não pode ser (ou voltar a ser, se já foi algum dia) um
3 SEVERINO. Op. Cit., p. 55.
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poder enclausurado em suas próprias verdades, togas e belas fachadas, mas distante da
realidade social.
Por fim, o terceiro aspecto trata do seu viés jurídico-garantidor. Ora, se há direito a ser
resguardado, há de se ter meios para sua garantia e proteção. Esse já era o ensinamento de Rui
Barbosa4 que, ao distinguir direitos e garantias, aduzia que as disposições meramente
declaratórias imprimem existência legal aos direitos reconhecidos, e as disposições
assecuratórias, em defesa dos direitos, limitam o poder. Destarte, o acesso à justiça ou
melhor, o acesso à ordem jurídica justa possivelmente surge como a garantia necessária ao
exercício de todas as demais, e em última análise, a mais importante para o exercício do direito
de ação e de defesa5.
Somente tornando-se viável à população o conhecimento de seus direitos, e
possibilitando-se ainda serviços de atendimento por órgãos competentes, capacitados e
estruturados, é que se poderá falar em “acesso” de maneira legítima.
Em que pese tais generalidades e distinções, não como se negar que todos os
significados devem ser encarados em conjunto, sob pena de ser obtido um conceito restritivo,
não condizente com a amplitude daquilo que realmente significa o acesso à justiça.
Essa conclusão é, portanto, corolário lógico das premissas anteriormente afirmadas. Se
o direito é visto como fenômeno social e mecanismo de controle da sociedade, que objetiva a
solução das controvérsias surgidas a partir das complexas relações sociais, seja declarando, seja
determinando, seja proibindo, seja sancionando hipóteses abstratamente previstas; se, ademais,
em um Estado Democrático de Direito, a jurisdição6 é poder, atividade e função exclusivamente
estatal, e se a referida institucionalização da democracia pressupõe, justamente como
instrumento limitador do poderio estatal, o reconhecimento constitucional de direitos e
garantias fundamentais à sua população; e, ainda, se o processo que não tem um fim em si
4 BARBOSA, 1978 apud. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo:
Malheiros, 2009, p. 413.
5 “Na verdade, a realização do direito de acesso à justiça é indispensável à própria configuração de
Estado, uma vez que não como pensar em proibição da tutela privada, e, assim, em Estado, sem se
viabilizar a todos a possibilidade de efetivo acesso ao Poder Judiciário. Por outro lado, para se garantir a
participação dos cidadãos na sociedade, e desta forma a igualdade, é imprescindível que o exercício da
ação não seja obstaculizado, até porque ter direitos e não poder tutelá-los certamente é o mesmo do que
não os ter.” in. MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2007, p. 189.
6 CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER Ada Pellegrini Grinover e DINAMARCO, Cândido Rangel.
Teoria Geral do Processo. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 149.
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mesmo, mas ainda assim é fundamental à garantia dos direitos - é a instrumentalização7 do
direito de ação, e meio pelo qual a jurisdição é exercida; torna-se irrefutável a necessidade de o
acesso à justiça ser encarado em confronto com a realidade social, até por ser, conforme bem
lembra Marinoni, a própria ponte que liga o processo civil (antes preponderantemente técnico) à
“justiça social” 8.
E, para tanto, necessária a sua elevação a status de direito fundamental, pautando,
consequentemente, a atuação estatal no aspecto.
1.2 O acesso à justiça como direito fundamental
A Carta Política de 1988 consagrou, no rol dos direitos e garantias individuais, a tutela
judicial efetiva9 ao dispor que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou
ameaça a direito” 10 e que “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a
razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação” 11.
Conforme José Afonso da Silva12, o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional
constitui a principal garantia dos direitos subjetivos. A ele, ainda, somam-se as garantias de
independência e imparcialidade do juiz, a do juiz natural, a do direito de ão e de defesa
ambos em sua plenitude, pautadas pelo devido processo legal -, e a da razoável duração do
processo.
7 “Falar em instrumentalidade do processo ou em sua efetividade significa, no contexto, falar dele como
algo posto à disposição das pessoas com vista a fazê-las mais felizes (ou menos infelizes) mediante a
eliminação dos conflitos que as envolvem, com decisões justas. Mais do que um princípio, o acesso à
justiça é a síntese de todos os princípios e garantias do processo, seja no plano constitucional ou
infraconstitucional, seja em sede legislativa ou doutrinária e jurisprudencial. Chega-se à ideia do acesso à
justiça, que é o polo metodológico mais importante do sistema processual na atualidade, mediante o
exame de todos e de qualquer um dos grandes princípios (...) Ela (a garantia do contraditório) e mais as
garantias do ingresso em juízo, do devido processo legal, do juiz natural, da igualdade entre as partes
todas somadas visam a um único fim, que é a síntese de todas e dos propósitos integrados no direito
processual constitucional: o acesso à justiça. Uma vez que o processo tem por escopo magno a pacifica ção
com justiça, é indispensável que todo ele se estruture e seja praticado segundo essas regras voltadas a
fazer dele um canal de condução à ordem jurídica justa.” In. DINAMARCO, Cândido Rangel. A
instrumentalidade do processo. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 359-362.
8 MARINONI, Luiz Guilherme. Op. cit, p. 189.
9 MENDES, Gilmar Ferreira e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo:
Saraiva, 2011, p.438.
10 Art. 5º, XXXV. Brasil. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília:
Senado, 1988.
11 Ibidem, art. 5º, LXXVIII.
12 SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 430-433.
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Ocorre que a tais princípios e à garantia do acesso à justiça, confronta-se o drama
constitucional da (in)efetividade13: mais do que letra fria, a Constituição deve pautar, instigar e
determinar as ações do poder público e dos particulares, em (e para) tudo aquilo que for tido
como de fundamental importância como no aspecto em comento, do acesso à justiça.
Para Cappelletti e Garth14, quanto à referida efetividade que poderia ser definida,
ainda, como “igualdade de armas” -, os obstáculos do acesso à justiça que devem ser atacados
são: as custas (judiciais, honorários etc.), tempo (que aumenta os custos, pressionando os
economicamente vulneráveis a abandonarem suas causas ou aceitarem acordos por valores muito
aquém daqueles realmente devidos), possibilidade das partes (em comparação uma com a
outra, quanto aos recursos financeiros, à aptidão para reconhecer um direito e propor uma ação
ou sua defesa, e à questão da habitualidade / eventualidade dos litigantes baseado na
frequência de encontros com o sistema judicial).
Os autores15 sustentam, ainda, a problemática da tutela dos interesses difusos, que
muitas vezes esbarra na questão da legitimidade ativa, do pequeno interesse individual na
demanda (propriamente dito, referindo-se aos “prêmios” individuais que poderiam ser obtidos
com a propositura da ação, praticamente inexistentes) e da dificuldade de reunião e organização
de todos os interessados da coletividade. Nesse sentido, acaba sendo incontornável a conclusão
de que, não obstante seja necessária a mobilização da energia privada para a superação das
fraquezas da máquina governamental, a mesma apresenta elevado grau de dificuldade de
concretização.
Ao apontarem estes obstáculos à efetividade do acesso à justiça, Cappelletti e Garth16
concluem que tais aspectos, em sua maioria, são inter-relacionados, e que, portanto, mudanças
por um lado podem acarretar barreiras por outro.
Em que pese não se olvidar que a aclamada obra “Acesso à Justiça” diz respeito a um
sistema jurídico diferente do brasileiro, é inegável que lições ainda podem ser tiradas de lá para
serem implantadas no ainda deficitário ordenamento nacional. Com efeito, poderiam ser citados
13 “A efetividade significa, portanto, a realização do Direito, o desempenho concreto de sua função social.
Ela representa a materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a aproximação tão
íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social.” In. BARROSO, Luís
Roberto. O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas. São Paulo: Renovar, 2002, p. 85.
14 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto
Alegre: Fabris, 1988, p. 15-29.
15 Ibidem, p. 26-28.
16 Ibidem, p. 29.
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os mesmos obstáculos (custas, morosidade, legitimação, possibilidade etc.) presentes na história
judiciária brasileira, mas que felizmente vêm ganhando atenção dos legisladores, dos operadores
do direito e da academia, havendo, inclusive, um avanço significativo no aspecto.
Isso porque, a trajetória constitucional pátria vem ampliando o rol daquilo que podemos
chamar de mecanismos de acesso à justiça, além de consagrar e assegurar aqueles já existentes.
Nesse sentido, pode-se vislumbrar a marcante consagração da Defensoria Pública, como
“instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a
defesa, em todos os graus, dos necessitados” (art. 134, CF)17. Inegavelmente, trata-se da forma
mais palpável de se enxergar a possibilidade dos necessitados que, pela própria condição de
necessidade, se mantém naturalmente ainda mais longe da proteção jurisdicional e da própria
mão atuante e protetora do Estado exercerem o direito de ação. Isso porque a instituição foi
criada com um “público alvo” determinado, nem mesmo sendo possível à legislação
infraconstitucional estender as atribuições da Defensoria Pública para alcançar sujeitos que não
sejam hipossuficientes18.
Além disso, inegável que outra instituição essencial à função jurisdicional do Estado, o
Ministério Público - que teve seus poderes e atribuições ampliados pela Carta Constitucional de
1988, e que goza de um evidente prestígio social19 -, ganha força de instituição necessária e
promotora do acesso à ordem jurídica justa. A defesa da ordem jurídica, do regime democrático
e dos interesses sociais e individuais indisponíveis consiste num imenso rol de atribuições,
consistindo em resposta, ademais, à problemática da tutela dos interesses difusos apontada por
Cappelletti e Garth20.
De outra banda, ainda na temática das barreiras financeiras ao acesso à justiça,
conforme anteriormente afirmado, a criação dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais (lei
9.099/95), pautados pelos princípios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia
processual, celeridade e busca da conciliação ou transação entre as partes envolvidas (art. 2º), é
marco indelével na busca pela efetivação do direito de acesso à justiça. O Microssistema
processual criado com os juizados, ao qual se atribui um rito simplificado e a isenção do
pagamento de taxas, custas e despesas em primeiro grau de jurisdição (art. 54), tornou-se
17 Art. 134. A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a
orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV.
18 MENDES, Gilmar e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op. cit., p. 1051.
19 Nesse sentido, vide recentes manifestações e protestos que culminaram na vertiginosa rejeição à
indigitada “PEC 37”.
20 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Op. Cit., p. 26-28.
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mecanismo de tutela daqueles direitos de menor expressão monetária, antes muito distantes das
realidades dos processos em tramitação nas varas comuns.
Por fim, não como se pensar atualmente em acesso à justiça, sem se falar no
benefício da justiça gratuita, instituído pela Lei 1.060/50, instituído em favor de todo aquele
que não pode arcar com as custas do processo e honorários advocatícios sem prejuízo de
sustento próprio ou da família.
2. DA JUSTIÇA GRATUITA COMO FORMA DE ACESSO À JUSTIÇA
2.1 Panorama geral
Sabidamente, a problemática do alto valor das custas relativas ao processo judicial é
um dos graves empecilhos à concreta efetivação do acesso à justiça. Essa temática, inclusive,
vem sendo objeto de intenso debate nos âmbitos acadêmico e profissional, sendo, ademais,
tema recorrente nas manifestações do Conselho Nacional de Justiça.
Nesse sentido, pode-se verificar a recente proposta de unificação dos valores cobrados a
título de custas pelos tribunais da federação, uma vez que atualmente apresentam gritantes
variações entre as diversas regiões do país, mostrando-se, na maioria dos casos, muito
excessivos, especialmente nas regiões mais pobres. Ademais, também o verificadas muitas
discrepâncias entre os graus de jurisdição - sendo o segundo grau, incoerentemente, taxado com
valores inferiores ao primeiro -, desproporcionalidades com o valor da causa - de maneira que as
custas baixam com o aumento do valor atribuído à causa -, carências de transparência em razão
da dificuldade de visualização das formas de cálculos e da grande quantidade de legislação
reguladora, entre diversos outros fatores.
Segundo estudo elaborado pelo Departamento de Pesquisas Judiciárias do Conselho
Nacional de Justiça21, grande parte das incongruências verificadas na política de fixação de
custas na justiça brasileira poderiam ser atenuadas através de duas linhas de ação: (1) edição de
lei nacional aplicável a todo o país acerca das custas dos serviços forenses, que tal é de
competência da União, nos termos do art. 24, IV, da Constituição Federal; (2) elaboração de
resolução ou recomendação contendo minuta de projetos de leis para os Tribunais de Justiça e
21 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Departamento de Pesquisas Judiciárias. Perfil da fixação de
custas judiciais no Brasil e análise comparativa da experiência internacional. Brasília, DF, 2010.
Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/images/poder-
judiciario/relatorio%20pesquisas%20custas%20judiciais_julho_260710.pdf>. Acesso 20 set. 2013.
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DEBATE EM TORNO DA IDEOLOGIZAÇÃO DO PROCESSO
ANDRÉ KABKE BAINY,LUCAS GONÇALVES CONCEIÇÃO, VALDENIR CARDOSO
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Assembleias Legislativas no sentido de alterar as legislações estaduais que regulam as custas
judiciais, intencionando a redução das custas onde os valores são demasiadamente elevados e
incompatíveis com a realidade social de cada unidade da federação.
No entanto, e conforme conclui o próprio estudo elaborado pelo Departamento de
Pesquisas Judiciárias, por mais que haja uma política de padronização de procedimentos,
sistemáticas e critérios, o Poder Judiciário brasileiro somente garantirá de forma completa o
acesso à justiça no momento em que impulsionar ações de maneira sistêmica com vistas a conter
os gargalos atualmente existentes e que assolam injustificadamente os jurisdicionados
hipossuficientes. Ou seja, a solução ao problema desse acesso à justiça ainda parece questão
utópica.
Mas outro aspecto que não se pode escusar da abordagem é o fato de que, por óbvio,
quanto mais moroso o processo for, mais caro o mesmo será. Isso significa, inclusive, que o polo
hipossuficiente numa demanda, além de sair prejudicado pela longa espera da prestação
jurisdicional, poderá, também, sair prejudicado por ter que arcar com valores mais altos do que
os naturalmente necessários sem contar, ainda, a possibilidade da aceitação de acordos
esdrúxulos que só são levados a efeito para que a morosidade não esgote a pretensão.
2.2 Da regulamentação legal da matéria
Atualmente, a matéria é regida pelos institutos da Assistência Judiciária, Justiça
Gratuita e Assistência Jurídica, os quais, em que pese serem próximos e acarretarem confusões
doutrinárias e legais, uns com os outros não se confundem.
O equívoco legislativo tem origem na Lei 5.478/68 que instituiu a expressão justiça
gratuita no mesmo sentido da assistência judiciária prevista pela Lei 1.060/50 que inclusive é
anterior e acabou criando duas denominações para um mesmo instituto. A Lei 1.060/50 utiliza
a expressão assistência judiciária referindo-se, na verdade, à justiça gratuita, como é o caso do
seu art. 3º: “a assistência judiciária gratuita compreende as seguintes isenções: (...)”.
Em contrapartida, a expressão assistência judiciária é posteriormente utilizada pela
mesma Lei 1.060/50 no sentido correto do ponto de vista doutrinário, nos §§ 1º e 2º do art.22.
22 Art. 5º. O juiz, se não tiver fundadas razões para indeferir o pedido, deverá julgá-lo de plano,
motivando ou não o deferimento dentro do prazo de setenta e duas horas.
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-se, destarte, que tratam-se de duas expressões que estão sendo utilizadas num
mesmo sentido, sejam pelos juízes ou tribunais, sejam pelas próprias legislações.
Mas Castro23 sustenta que a assistência judiciária é, inicialmente, a faculdade legal
assegurada ao necessitado de ver seu direito individual ofendido apreciado pelo poder judiciário
sem que tenha que despender com o pagamento de despesas processuais. Segundamente,
assistência judiciária é o órgão estatal encarregado de oferecer “advogado” ao necessitado para
que tal possa postular em juízo. A justiça gratuita, por sua vez, é espécie do gênero assistência
judiciária, isto é, é a consequência da assistência judiciária, no sentido de isenção de todas as
despesas processuais, como custas, taxas, emolumentos, honorários advocatícios e periciais, por
exemplo.
a assistência jurídica, conforme assegura Pierri24, engloba a assistência judiciária,
sendo ainda mais ampla que esta, por envolver também serviços jurídicos não relacionados ao
processo, tais como consultorias individuais ou coletivas, esclarecimentos de dúvidas, ou mesmo
programas de informações à toda a comunidade.
E esta diferenciação, é preciso evidenciar, embora pareça estar adstrita ao mero debate
acadêmico ou à filigranas processuais, tem algumas implicações no cotidiano forense. Segundo
aduz Pierri25, não foram poucos os problemas de confusão conceitual após a instituição da ordem
constitucional brasileira atual.
A Constituição Federal Brasileira, em seu art. 5º, inciso LXXIV, dispôs que “o Estado
prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”.
Nesse sentido, muitos entenderam que em razão da redação deste inciso LXXIV a nova ordem
constitucional não teria recepcionado o art. da Lei nº 1.060/50 ou mesmo o §2º do art. 1º da
Lei 5.478/68, mediante as quais bastaria que se afirmasse na petição inicial a condição de
pobreza para que tal benefício fosse concedido.
§ 1º. Deferido o pedido, o juiz determinará que o serviço de assistência judiciária, organizado e mantido
pelo Estado, onde houver, indique, no prazo de dois dias úteis o advogado que patrocinará a causa do
necessitado.
§ 2º. Se no Estado não houver serviço de assistência judiciária, por ele mantido, caberá a indicação à
Ordem dos Advogados, por suas Seções Estaduais, ou Subseções Municipais.
23 CASTRO, Jose Roberto de. Manual de Assistência Judiciária: Teoria, Prática e Jurisprudência. Rio de
Janeiro: Editora Aide, 1987
24 PIERRI, J.C.C. Diferenças entre Assistência Jurídica, Assistência Judiciária e Justiça Gratuita. Saber
Digital: Revista Eletrônica do CESVA, Valença, v.1, n.1, p. 7-17, mar./ago. 2008. Disponível em <
http://www.faa.edu.br/revista/v1_n1_art01.pdf >. Acesso em: 15 de Julho de 2013.
25 PIERRI, J.C.C. Op. Cit.
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Acontece que da análise do ordenamento jurídico pátrio e do contexto político em que
foi engendrado é possível e provável afirmar que a nova lógica constitucional veio com clara
intenção de ampliar os direitos individuais e sociais como um todo. A inclusão no corpo do texto
constitucional do princípio contido no inciso LXXIV “teve a intenção de proporcionar um acesso
mais efetivo do necessitado à justiça, e não de restringir um direito que a lei ordinária lhe
conferia”26.
Mas a partir daí, segundo Pierri27, foi considerável o número de magistrados que
indeferiu pedido de justiça gratuita em atenção da necessidade constitucionalmente
estabelecida de comprovação da insuficiência de recursos. Tal entendimento, frise-se, ainda não
foi completamente abandonado por alguns juízes e tribunais brasileiros.
Vislumbrada toda essa importante diferenciação doutrinária, é preciso evidenciar que a
justiça gratuita no Brasil, segundo Hagemann28, aparece pela primeira vez nas Ordenações
Filipinas, promulgadas em 1603, isentando o réu criminal pobre de pagar as custas até que
adquirisse condições de pagá-las. Disposição esta que somente entrou em vigor a partir de 1841,
por meio da Lei nº. 261, que regulava as custas no processo penal.
Nessa mesma linha, segundo relata Castro29, são o regulamento nº. 120, de 31 de
janeiro de 1842, que estabelecia o pagamento da metade das custas pelos cofres municipais e a
outra metade pelo réu, quando melhorasse sua situação financeira, e a Lei nº. 150, de 9 de abril
de 1842, que tratava do das custas no processo civil, isentando o litigante necessitado de pagar
o dízimo das chancelarias.
A assistência judiciária, aqui tratada no real sentido de patrocínio profissional gratuito
por advogados, principiou, conforme sustenta Castro30, com a difundida praxe forense de os
advogados simplesmente atenderem aos pobres que os procurassem. Ao longo da história houve
diversas e incipientes regulamentações que acabaram culminando com a solene instalação da
Assistência Judiciária, em 5 de maio de 1890, em concorrida sessão no Instituto dos Advogados
Brasileiros, contando, inclusive, com a presença do então Ministro da Justiça.
O tempo foi passando, novas ordens constitucionais se formando, umas com viés
autoritário, outras com padrões democráticos, até que em 5 de fevereiro de 1950 foi publicada a
26 PIERRI, J.C.C. Op. Cit., p.13/14.
27 PIERRI, J.C.C. Op. Cit.
28 HAGEMANN, 1982 apud CASTRO, 1987.
29 CASTRO. Op. Cit.
30 CASTRO. Op. Cit.
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Lei 1.060, consolidando a dispersa legislação que tratava da temática e, justamente por isso,
sendo considerada como um passo legislativo “de grande significação para a assistência
judiciária aos legalmente necessitados”31.
Posteriormente, em 1968, foi publicada a Lei 5.478, tratando, especialmente, da Ação
de Alimentos, mas trazendo também disposições acerca da justiça gratuita, da presunção de
pobreza e de algumas outras regras procedimentais.
Mas é importante destacar que a justiça gratuita hoje, nos termos da legislação de
1950, será concedida tanto aos nacionais quanto aos estrangeiros residentes no país que
necessitem recorrer à Justiça penal, civil, militar ou do trabalho e que sejam necessitados nos
termos da Lei.
O parágrafo único do art. 2º da referida legislação estabelece claramente o critério para
definição de tal necessidade, que restringe-se, unicamente, ao fato de o pagamento das custas
processuais e dos honorários advocatícios comprometer o próprio sustento ou de sua família 32.
Isso quer dizer que o que deve ser considerado no momento de avaliar a imperatividade ou não
da concessão do benefício da justiça gratuita é tão somente se a situação econômica do
requerente suporta o pagamento das custas do processo e dos honorários do advogado.
Assim, elucidando o que preceitua essa legislação de 1950, não importa se o requerente
percebe mensalmente uma renda de dois ou de vinte salários mínimos. O que substancialmente
interessa é ponderar os valores mensalmente despendidos com a totalidade da renda auferida.
Se, por exemplo, a família aufere mensalmente treze mil reais e despende onze ou doze mil
reais com o tratamento médico de um de seus integrantes, tranquilamente será considerada
necessitada nos termos da lei e, consequentemente, será merecedora da justiça gratuita. Na
mesma linha, se, por exemplo, determinada pessoa detém uma renda mensal de um mil reais e
tem suas despesas pagas por seu empregador ou mesmo por familiares não deverá ser
considerada necessitada nos termos da lei.
Nesse sentido, não o que se falar em qualquer averiguação do estado de
miserabilidade do requerente para concessão do mencionado benefício.
31 CASTRO. Op. Cit., p.37.
32 Art. 2º. Gozarão dos benefícios desta Lei os nacionais ou estrangeiros residentes no país, que
necessitarem recorrer à Justiça penal, civil, militar ou do trabalho. Parágrafo único. - Considera-se
necessitado, para os fins legais, todo aquele cuja situação econômica não lhe permita pagar as custas do
processo e os honorários de advogado, sem prejuízo do sustento próprio ou da família.
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A Lei 1.060/50 ainda estabelece que a parte gozará da justiça gratuita mediante
simples declaração nos autos de que não detém as condições de arcar com as despesas
processuais e com os honorários advocatícios e periciais, independentemente de qualquer
comprovação. Isto quer dizer que se presume pobre até que se prove o contrário.
E como os benefícios dessa justiça gratuita a lei, em seu art. 3°, exemplifica33 a isenção
das taxas judiciárias e dos selos; dos emolumentos e custas devidos aos serventuários da justiça;
das despesas com publicações indispensáveis em jornais; das indenizações devidas às
testemunhas que deixaram de trabalhar para ir a juízo; dos honorários de advogado e de perito;
das despesas com a realização de exames de DNA; dos depósitos previstos em leis para
interposição de recursos, ajuizamento de ações e demais atos processuais inerentes ao exercício
do contraditório e da ampla defesa.
Enfim, fundamental foi a importância da legislação de 1950 para a ampliação e
facilitação do acesso à justiça aos mais necessitados, haja vista a consolidação de todas as
legislações sobre a temática e a positivação de importantes preceitos dotados de caracteres
altamente emancipatórios.
2.2 Crítica ao entendimento adotado pelos tribunais
Conforme outrora ponderado, o benefício da justiça gratuita será concedido, nos termos
do art. da Lei 1.060/50, a todo aquele, brasileiro ou estrangeiro residente no Brasil, que
seja necessitado na forma da lei, isto é, a todo aquele que com o pagamento das custas do
processo e dos honorários do advogado comprometa seu próprio sustento ou de sua família.
Nota-se, destarte, que basta a configuração da necessidade para a concessão do
benefício da justiça gratuita, não se falando em qualquer análise do estado de miserabilidade.
Conforme anteriormente esclarecido, segundo os ditames da legislação de 1950, também não
importa a renda auferida mensalmente pelo requerente, se de dois ou vinte salários mínimos,
mas sim o que efetivamente despende no referido período.
33 O rol é meramente exemplificativo, podendo haver outras formas de isenção que não as previstas neste
art. da Lei 1.060/50. Nesse sentido aduz que melhor seria se o referido artigo dissesse que o
beneficiário da assistência judiciária estaria isento de todas as despesas processuais, em todas as suas
fases e em todos os graus de jurisdição, de quaisquer espécies, inclusive as atinentes à sucumbência e às
de cunho extrajudicial. Isso evitaria, segundo o autor, que alguns escrivães confundissem as partes de que
tais e tais atos não estariam cobertos por tal benefício (CASTRO. Op. cit.)
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Atualmente, contudo, tem se percebido que determinados magistrados e tribunais
brasileiros, ao conceder ou denegar tal benefício, vêm adotando critérios objetivos de
operacionalização legislativa que visivelmente não dialogam com a lógica do ordenamento
jurídico brasileiro, bem como instituindo pressupostos que nunca foram por ele idealizados,
fazendo com que seus potenciais emancipatórios não sejam plenamente exauridos.
É o caso, por exemplo, do entendimento consolidado no STJ de que é lícito ao juiz
determinar a comprovação do estado de miserabilidade do requerente do benefício34,
pressuposto que, diga-se de passagem, nunca integrou a lei reguladora da justiça gratuita.
Entendimento este que ainda acaba se refletindo nos tribunais de justiça dos estados, como o
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, que julga exatamente nesta mesma linha35,
e, em alguns casos, inclusive em juízo monocrático.
E o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, especialmente a 24º Câmara Cível, vai
ainda mais além. Segundo entendimento consolidado na referida câmara, a necessidade de
concessão do benefício da assistência judiciária gratuita será presumida quando a parte
requerente comprovar o recebimento de renda bruta mensal inferior a cinco salários mínimos.
Na decisão em análise, inclusive, por os vencimentos do requerente simplesmente extrapolarem
o parâmetro estabelecido pela Câmara, se entendeu que não faria jus a tão importante
benefício.
Não obstante a isso, no Estado do Rio Grande do Sul existem ainda os Enunciados da
Coordenadoria Cível dos Juízes de Porto Alegre/RS, que são frutos de reuniões mensais
34 ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA. DETERMINAÇÃO DE COMPROVAÇÃO DO ESTADO DE POBREZA.
POSSIBILIDADE. 1. É assente nesta Corte Superior o entendimento de que ao Juiz é lícito determinar a
comprovação do estado de miserabilidade antes de decidir sobre a concessão da assistência judiciária
gratuita. 2. Agravo regimental improvido (grifei, AgRg no Ag n. 1051800/MG, Turma, Rel. Min. Jorge
Mussi, julgado em 30.10.2008, DJe 15.12.2008 grifou-se).
ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. JUSTIÇA GRATUITA. JUIZ. EXIGÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO ESTADO
DE MISERABILIDADE. REVISÃO. IMPOSSIBILIDADE. REEXAME DE PROVA. SÚMULA Nº 07 DO STJ. PRECEDENTES.
1. É possível ao magistrado condicionar a concessão da justiça gratuita à comprovação do estado de
miserabilidade do beneficiário. Precedentes. (...). 3. Agravo regimental desprovido (AgRg no Ag
691366/RS, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 20/09/2005, DJ 17/10/2005 p. 339
grifou-se).
35 AJG. NÃO COMPROVAÇÃO DA NECESSIDADE DO BENEFÍCIO. PAGAMENTO DE CUSTAS AO FINAL. SUPRESSÃO
DE GRAU DE JURISDIÇÃO. PEDIDO INADMISSÍVEL. AJG é de caráter restritivo, destinado às classes menos
favorecidas da sociedade, sob pena de desvirtuamento da lei. (...). DECISÃO MONOCRÁTICA. RECURSO
PARCIALMENTE CONHECIDO, E NESTA, NEGADO SEGUIMENTO. (Agravo de Instrumento 70019566157,
Décima Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Alexandre Mussoi Moreira, Julgado em
04/05/2007 grifou-se).
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integradas pelos magistrados da Comarca de Porto Alegre atuantes na área cível, e têm como
grande objetivo debater possibilidades de qualificar a prestação jurisdicional, bem como
orientar os Juízes leigos e conciliadores atuantes nas Centrais de Conciliação e Mediação no
momento da fixação dos valores das indenizações.
O Enunciado 236, inclusive, trata dos tais parâmetros objetivos para a concessão do
benefício da justiça gratuita. Estabelece que tal benefício pode ser concedido, sem maiores
averiguações, aos que tiverem renda mensal de até dez salários mínimos. Com fundamento nesse
Enunciado nº 2 foi julgada, dentre tantas outras, a apelação cível nº 7005363785637.
Ainda no âmbito da justiça gaúcha, também quem diga que o requerente que vai a
juízo patrocinado por advogado particular e não por Defensor Público não merece ver deferida a
assistência judiciária gratuita. Entretanto, não qualquer ligação entre o patrocínio particular
e a situação de necessidade prevista na lei. O procurador particular pode sem problema nenhum
prestar seus serviços por caridade ou benevolência, como inclusive é a gênese do instituto da
assistência judiciária. Felizmente trata-se de posicionamento isolado e o tribunal gaúcho não
coaduna com esse descabido entendimento38.
Tratam-se, como visto, de posicionamentos e decisões que visivelmente não refletem a
intenção do legislador ordinário.
Sabe-se que a concessão da gratuidade na justiça não deve e também não pode ser
banalizada pelos tribunais, bem como que é a exceção à regra de que para se ir a juízo é preciso
adimplir com uma série de encargos. E justamente por excepcionar a regra, a justiça gratuita foi
introduzida no ordenamento jurídico brasileiro com uma série de pressupostos a serem
cumpridos para o seu deferimento. Porém, uma vez preenchidos tais pressupostos, a justiça
gratuita deve ser pura e simplesmente concedida.
36 ENUNCIADO 2: "O benefício da gratuidade judiciária pode ser concedido, sem maiores perquirições,
aos que tiverem renda mensal de até dez (10) salários mínimos." (aprovado na reunião de 23/05/2002).
37 Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. IMPUGNAÇÃO À ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUÍTA. O benefício da
Assistência Judiciária Gratuita é deferido àquele que declara ser hipossuficiente, nos termos do art. 4º da
lei 1.060/50, gozando essa alegação de presunção relativa de veracidade, que somente cede diante de
prova em contrário. No caso, prova de que os rendimentos do apelante são superiores a 10 salários
mínimos, o que implica no indeferimento da AJG. APELO DESPROVIDO. (Apelação Cível 70053637856,
Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Munira Hanna, Julgado em 26/06/2013)
38 AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO CAUTELAR DE EXIBIÇÃO DE DOCUMENTOS. ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA
GRATUITA. COMPROVAÇÃO DA NECESSIDADE. (...) PATROCÍNIO POR ADVOGADO PARTICULAR. O
patrocínio da ação por advogado particular, por si só, não obsta o deferimento de AJG, uma vez que,
aceitando a causa, exercerá a advocacia sob o múnus daquele benefício. DOU PROVIMENTO AO
AGRAVO, EM DECISÃO MONOCRÁTICA. (Agravo de Instrumento 70042026039, Primeira Câmara Especial
Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: João Moreno Pomar, Julgado em 12/05/2011 grifou-se).
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Dessa forma, não cabe aos tribunais o estabelecimento de critérios que não foram
idealizados pela legislação ordinária. A Lei 1.060/50, ao regular a concessão do benefício da
justiça gratuita, determinou clara e unicamente que o brasileiro ou estrangeiro residente no país
que esteja, ainda que transitoriamente, na condição de necessitado que significa dizer, frise-
se, que não é capaz de arcar com as custas do processo e com os honorários do advogado sem o
comprometimento do sustento próprio ou da família estará isento do pagamento de todos
aqueles encargos previstos no art. 3º da mencionada legislação. A referida legislação, portanto,
nunca mencionou essa miserabilidade, não podendo por isso ser pressuposto para indeferimento.
Theodoro Júnior39, inclusive, aquiesce com este posicionamento, também afirmando
que o necessitado, para o legislador, não é necessariamente o miserável, mas todo aquele cuja
situação econômica não lhe permita pagar as custas do processo e os honorários do advogado.
Enfim, não há o que se falar em miserabilidade para concessão do benefício da justiça gratuita.
Menos ainda cabe aos tribunais estabelecerem critérios objetivos para a concessão de
tal benesse, haja vista que se trata de situação muito peculiar e que merece ser
detalhadamente analisada nos casos concretos. Isso porque, em verdade, mais importa analisar
os valores despendidos mensalmente pelo requerente do que os auferidos, já que serão os reais
balizadores da necessidade.
Ademais, nessa linha de fixação de critérios objetivos, se está desprezando todas as
possíveis variáveis referentes ao sustento do requerente, como, principalmente, as concernentes
às particularidades da localidade em que o requerente reside. Sem sombra de dúvidas, não
podem ser abarcados pelo mesmo critério objeto os litigantes que residem em localidades
interioranas e os que residem nos grandes centros urbanos brasileiros.
Sabe-se, obviamente, da seriedade de todos os problemas de abarrotamento que o
Poder Judiciário vem ultrapassando nos últimos anos, e de todas as dúvidas concernentes às
formas de superação de tal realidade (uniformização da jurisprudência através da edição de
súmulas, por exemplo), contudo, se falar em decisão em juízo monocrático de indeferimento de
justiça gratuita com fundamentação extraída da simples análise dos salários percebidos
mensalmente pelos requerentes é transformar a busca pelo direito em mero mecanismo
congelado de aplicação da lei.
39 THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Vol. I. 51ª Ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2010.
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Novamente, o paradigma cartesiano invade a seara jurídica, imobilizando quaisquer
tentativas de argumentação em sentido contrário à ideologia racionalista imposta ao
arcabouço jurídico.
3. DA IDEOLOGIZAÇÃO DO PROCESSO
3.1 Ponto de partida do debate
Como se pode depreender, diversos aspectos, dentre os quais aqueles relativos à
temática do acesso à justiça, demonstram a contínua necessidade de ainda manter-se como
pauta dos debates jurídicos a questão da ideologização do processo, sob a ótica crítica da sua
finalidade e, em última instância, da finalidade do próprio direito.
A visão instrumentalista do processo, conforme já aduzido alhures, trouxe à dogmática
jurídica a feliz conclusão de que o processo é meio logo, não tem um fim em si mesmo. Nesse
sentido, as valiosas palavras de Scarpinella Bueno ao afirmar que:
O direito processual civil não pode ser compreendido como algo solto, perdido,
no tempo e no espaço, como se ele valesse por si só, como se ele fosse “só” uma
“disciplina jurídica”, “só” um “ramo do direito”, como se ele tivesse existência
própria, independentemente de quaisquer prescrições normativas, de quaisquer
realidades políticas e jurídicas vigentes em determinados espaços de tempo em
determinados lugares. A falta de percepção de que as “coisas” do direito
existem no direito e, com ele, variam aos sabores das ideologias reinantes em
cada ordenamento jurídico é responsável por desvios de toda a ordem. Não
“direito processual civil” na natureza. Ele existe, apenas, no plano jurídico,
embora e é disto que o pensamento contemporâneo do direito processual civil
tem se ocupado ele se volte para o mundo não jurídico, exterior, externo a ele
próprio.40
Ora, o processo é instrumento, caminho, método. Não é nem “bom” nem “mau” por
essência. É, sim, a forma pela qual o Estado exerce seu autoritário poder jurisdicional na busca
de solução dos conflitos, e que, muito embora nem sempre dê a melhor resposta à lide, goza do
status da prestigiada certeza jurídica41.
40 BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil Vol. 1:Teoria geral do
direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 83.
41 Nesse sentido, descartando a mera ideia de ’pacificação social’ como objetivo da jurisidição: “na
realidade, como não é dificil perceber, a pacificação social é uma mera consequência da existência de um
poder de resolução dos conflitos que se sobreponha sobre os seus subordinados, e não um resultado
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E nessa senda, vale ressaltar que, em tempos onde “tudo se pede”, e onde o
individualismo aflora cada vez mais na sociedade - e no qual o comportamento humano passa a
tornar a visão do outro como inimigo, antagonista, sendo até mesmo justificável a utilização da
violência para aniquilá-lo, podendo assim ser garantida a satisfação do seu desejo individual -,
os mecanismos tradicionais de resolução de conflitos acabam por perder sua credibilidade,
devendo haver, necessariamente, a apresentação de alternativas42.
E, no aspecto, tem-se entendido que a discussão de meios alternativos de solução de
conflitos passa, ademais, pelo resgate do papel da própria comunidade, sendo essa entendida
como equilíbrio entre o bem comum e autonomia individual. Daí, como possível meio alternativo
e adequado, surge a mediação comunitária, destinada a criar e fortalecer os laços entre as
pessoas, tratando e prevenindo conflitos, e fomentando, ainda, uma cultura de paz43.
Esse é justamente o maior argumento em favor da propagação dos meios alternativos de
solução de conflito: ao contrário de a solução ser imposta coercitivamente por um terceiro (o
juiz, como acontece na prestação jurisdicional), a resposta ao conflito seria encontrada em
consenso, diálogo e conjunta participação dos envolvidos e, por isso, sua efetividade e
legitimidade seria de maior profundidade da encontrada naquela o que poderia, inclusive,
levar a efeito soluções substanciais à crises periféricas da relação controvertida. Essa conclusão
novamente retoma a ideia de que o processo, por óbvio, não tem uma finalidade própria: não
“há” por si só.
Todavia, sabido é que nem sempre a composição do litígio é possível. E nisso reside a
importância de se poder invocar o poder jurisdicional estatal para que diga o direito ao caso
concreto.
Para que o fim almejado seja legitimamente alcançado, tal prestação, por envolver
interesses antagônicos, ideologia distintas e relações de poder (seja de qualquer um dos sujeitos
da relação jurídico-processual), deve se dar de forma humana, e, consequentemente, menos
burocrática.
particular e próprio do Estado constitucional”. In,:MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo.
Op. Cit., p. 113.
42 SPENGLER, Fabiana Marion. GIMENEZ, Charlise P. Colet. O Resgate da comunidade e o papel da
mediação comunitária na sociedade globalizada e individualista. In: SPENGLER, Fabiana Marion (org.).
Mediação de conflitos e justiça restaurativa. Curitiba: Multideia, 2013, p. 19-20.
43 Ibidem, p. 20.
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Ainda, que se frisar a fundamental importância da reaproximação entre o direito
material e o direito processual44. Com efeito, não se está em afirmar que pode ir a juízo o
“proprietário do direito material”. Se defende, entretanto, que, uma vez iniciada a relação
processual, a tutela jurisdicional deverá, necessariamente, levar em consideração das
necessidades do direito material45.
Isso significa concluir que nem mesmo o famoso brocardo “o que não está nos autos não
está no mundo” é justificativa plausível para que a jurisdição seja prestada com base apenas e
tão somente nos aspectos técnico-formais do procedimento, sem atrelar-se à realidade social,
porque, se assim o for, não poderá se falar em plenitude do acesso à justiça.
3.2 Processo e ideologia
O paradigma racionalista trouxe à ciência na qual ora se inclui o direito a
necessidade de se buscar, mais do que qualquer coisa, a segurança. A busca insaciável por tal
“certeza” e absolutização ensejou a elevação da dogmática, enquanto forma e técnica, a um
patamar irretorquível no âmbito processual civil.
Todavia, inegavelmente a referida dogmática fundamenta-se sob interesses não tão
expressamente evidenciados que, muito embora escondidos, o devem ser tirados de vista.
Nesse sentido, valem os ensinamentos de Ovídio Baptista da Silva ao esclarecer que:
O autoritarismo que se oculta sob o dogmatismo, foi sem dúvida o principal
ingrediente na formação do Direito processual Civil, como ciência formal e
abstrata. Assim, como as verdades matemáticas são absolutas, enquanto
categorias intemporais, do mesmo modo pretendeu-se absolutizar as instituições
processuais, desligando-as de seus compromissos históricos, o que as
relativizaria, situação que o industrialismo nascente com sua exigência de
segurança jurídica não poderia tolerar. A relação entre dogmatismo e
autoritarismo, afinal entre direito formal e formas autoritárias de organização
política, não pode ser esquecida.46
44 “É importantissimo, destarte, que o estudo do direito processual civil tenha consciência de que o plano
material lhe diz respeito também e influencia, de forma mais ou menos tênue, consoante o caso, o
próprio ‘ser’ do direito processual civil (...). O direito processual civil realiza o direito material, e, por
isto memso, deixa-se influenciar de forma mais ou menos intensa por ele (...). É imprescindível estreitar
ao mínimo indispensável os campos do ‘direito material’ e do ‘direito processual’”in. BUENO, Cassio
Scarpinella. Op. Cit. p 88.
45 MARINONI, Luiz Guilherme. Op. Cit., p. 114.
46 SILVA, Ovídio A. Baptista da. Processo e ideologia: o paradigma racionalista. Rio de Janeiro: Forense,
2006, p. 65-66.
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A dogmática, travestida de técnica jurídica, é eminentemente conservadora. E “a
‘astúcia da razão conservadora’ está, precisamente, na ideologia que somos levados a reproduzir
da velha e conhecida separação entre o dictum e o factum47. Ou seja: diz-se que o racionalismo
jurídico está morto e sepultado o que é o discurso -, mas, no mundo real, zela-se
religiosamente pela preservação de tais instituições e pela crença no encanto de suas virtudes
milagrosas o que é o fato. “É o discurso invertido que, no mesmo tempo em que impede a
evolução do sistema, mantém-nos confiantes em seus prodígios. Conclui o autor que, em assim
sendo, necessária se apresenta uma mudança paradigmática para a consequente democratização
da produção do direito, aproximando-o da realidade social e de seus problemas48.
Aliás,reconhece-se que a crise49 enfrentada pelo processo civil se dá, principalmente,
na seara da democracia representativa. Até porque o dogmatismo jurídico, ao se transformar
em simples artefato da manutenção do status de poder, entra em conflito com a autêntica
democracia participativa. Se se faz necessário o reconhecimento de que nenhum sistema
jurídico pode sobreviver sem sólidas bases dogmáticas o que em nenhum momento tenta-se
evidenciar -, também se faz necessário que a função dogmática deva consistir numa maneira
de lidar com aporias, tais como justiça, utilidade, certeza, prudência, legitimidade e outras
tantas que a experiência judiciária nos oferece”50.
3.3 Do processo como instrumento de legitimação do poder
Conforme é possível se perceber, as elevadas custas relacionadas ao processo são um
evidente entrave à concretização do efetivo acesso à ordem jurídica justa. E nem mesmo os
47 Ibidem, p. 55.
48 Ibidem, p. 55. Grifou-se.
49 Falando ainda sobre a crise vivida pela realidade processual civil enquanto confrontada com o
paradigma do individualismo exacerbado, o autor aduz que: ”A crise do Direito mostra sua cara a partir do
momento em que o Estado perde legitimidade, ante o ataque impiedoso do neoliberalismo, em seu
empenho de privatizá-lo ainda mais, destruindo metodicamente o sentido de coletividade, numa
exasperação do individualismo que é, como se sabe, o pilar da modernidade. A influência exercida pelo
individualismo sobre o processo civil é enorme uma vez que todos os institutos e o conjunto de categorias
de que se utiliza a doutrina processual, foram concebidos para a tutela de direitos e interesses
individuais, a partir dos movimentos formadores do Mundo Moderno, especialmente através da influência
das ideias do Renascimento e da reforma religiosa. É nisto que reside a dificuldade com que se debate o
processo civil quando tem de lidar com direitos supraindividuais, com as ações coletivas, para as quais a
maioria das categorias tradicionais tornam-se imprestáveis.” Ibidem, p. 56.
50 Ibidem, p. 55. Grifou-se.
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notórios (e dignos de congratulações) institutos legais no aspecto, que facilitaram dito acesso de
inúmeras formas, são capazes de estabelecer um patamar equânime de acesso para todos os
cidadãos.
Segue a lógica do “quem tem mais, pode mais”, o que acaba por evidenciar uma
disparidade ainda real entre as diversas camadas socioeconômicas. Essa é a face do processo
como instrumento de legitimação do poder econômico, que acaba por afastar os hipossuficientes
de uma prestação jurisdicional adequada, efetiva, célere e justa.
Igualmente é digno de nota que a legitimação do poder não se exaure apenas nessa
temática.
Com efeito, é sabido que o processo é o campo natural da argumentação. Aquele que
melhor fundamenta, leva clara vantagem. Essa é a face do processo como instrumento de
legitimação do poder do discurso, proferido pelos iluminados doutos da lei. Transforma-se o
processo num campo de batalha dialogal, no qual os “combatentes” pretendem afirmar-se numa
imposição de poder discursivo em relação ao outro e à própria sociedade externa à relação
processual. Aquele que melhor impor seu argumento à verdade dos autos sairá vencedor.
Por fim, em uma realidade evidenciada pela judicialização da política e pelo ativismo
judicial desenfreado, mostra-se inegável que, consoante adverte Ovídio Baptista da Silva, “a
alienação dos juristas e seu confinamento no ‘mundo jurídico’ foram determinados por
interesses políticos e econômicos da maior relevância51. Ao se criticar esse viés do processo
como instrumento de legitimação do poder político, não se está a criticar a ausência de
neutralidade do julgador individualmente considerado - até porque essa, felizmente, é
inalcançável. Entretanto, ao passo que, em razão da sua própria e forçada alienação, todo um
sistema jurídico é transformado em mero mecanismo de legitimação das manifestações de poder
político, resta claro que a base racionalista do processo acaba por negar conteúdo valorativo às
demandas sociais52.
Em verdade, ao se reduzir o Direito ao “mundo jurídico”, e mantendo-o formalmente
isolado do “mundo político”, defende-se uma neutralidade que não como se sustentar. E,
como visto, dita “neutralidade” é carregada dos mais variados interesses do poder.
51 SILVA, Ovídio A. Baptista da. Op. Cit., p. 301. Grifou-se.
52 LUCAS, Doglas Cesar. A Crise Funcional do Estado e o cenário da jurisdição desafiada. In. MORAIS, José
Luis Bolzan de (org.). O Estado e suas crises. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 179.
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CONCLUSÃO
Percebeu-se, portanto, que o pensamento dominante na seara jurídica brasileira,
especialmente no que tange à doutrina e à práxis processual cível, é aquele pautado pela lógica
racional-cartesiana, que busca respostas exatas semelhantes àquelas obtidas pela matemática e
demais ciências exatas. Ocorre que, por mais importante que seja a técnica e o dogma o
presente trabalho sequer cogitou discordar desse fato -, esses não bastam por si, haja vista nem
sempre ser possível encontrar-se a exatidão e a certeza, tampouco poder-se falar em processo
com um fim em si mesmo.
Nesse sentido, buscou-se evidenciar esse argumento a partir da análise do entendimento
quanto à (in)aplicabilidade dos mecanismos de acesso à justiça, especificamente o benefício da
justiça gratuita.
Com efeito, o ordenamento jurídico brasileiro detém diversas e importantes
ferramentas impulsionadoras e garantidoras do “acesso à justiça”. Todavia, referidos
mecanismos ainda mostram-se circunstancialmente precários àquilo que lhes é proposto atingir,
como é o caso do benefício da assistência judiciária gratuita que, enquanto importante
ferramenta emancipatória que isenta os necessitados do pagamento das elevadas despesas
processuais, acaba muitas vezes restringido haja vista determinados tribunais brasileiros ainda
não terem conseguido efetivar todo o seu potencial.
Não conseguiram, principalmente, em razão dos dois fatores analisados: (1) pela
instituição de critérios objetivos de operacionalização legislativa que não dialogam com a lógica
do ordenamento jurídico brasileiro; (2) e pela invenção de determinados pressupostos que nunca
foram idealizados pela legislação que regula a temática.
Referidos fatores exemplificam que o processo civil ainda é dominado pelos dogmas e
pelo racionalismo, muito mais pautada pela certeza jurídica do que pelo reequilíbrio social, o
que muitas vezes impede a concretização da microjustiça no âmbito da relação jurídico-
processual.
Jamais se olvidou da importância da técnica enquanto expressão das “regras do jogo”
previamente estabelecidas. Outrossim, jamais se cogitou esquivar-se da necessária certeza
jurídica que a atividade do Estado-juiz deve dar à sociedade, tampouco do malfadado dogma,
haja vista um sistema dificilmente sobreviver sem o mesmo.
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Todavia, esses institutos não se subexistem por si só. Em uma visão instrumentalista do
processo, que deve estar cada vez mais relacionada à tutela efetiva do direito material
(finalidade) em debate, não se pode permitir que a dogmática entre em conflito com a autêntica
democracia e com as necessidades sociais, mas, em verdade, a elas sirva.
Enquanto não houver uma ruptura ao menos parcial em relação a essa ideologia
racionalista e mantenedora do status de poder dominante, esse continuará a ser legitimado pela
própria ação estatal, que continuará a consagrar injustiças na seara processual e,
consequentemente, no plano material da realidade.
Afinal, o acesso à justiça consiste não só nos instrumentos propulsores para a invocação
da atividade jurisdicional, mas, também, na concreta paridade de armas quando do seu
exercício e na busca efetiva do fim almejado, que é a concretização de direitos.
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Recebido em: 01.10.2013
Correções em: 29.12.2013
Aprovado em: 09.01.2014
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Divulgação dos SUMÁRIOS das obras recentemente incorporadas ao acervo da Biblioteca Ministro Oscar Saraiva do STJ. Em respeito à lei de Direitos Autorais, não disponibilizamos a obra na íntegra. STJ00082172 347.91/.95(81) D583ip 14.ed.
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Divulgação dos SUMÁRIOS das obras recentemente incorporadas ao acervo da Biblioteca Ministro Oscar Saraiva do STJ. Em respeito à lei de Direitos Autorais, não disponibilizamos a obra na íntegra. STJ00079707 347.91/.95(81) T388c 41.ed. STJ00083675 347.91/.95(81) T388c 51.ed. 2.tir.
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Divulgação dos SUMÁRIOS das obras recentemente incorporadas ao acervo da Biblioteca Ministro Oscar Saraiva do STJ. Em respeito à lei de Direitos Autorais, não disponibilizamos a obra na íntegra. STJ00080056 347.9(81) C575t 25.ed.
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Divulgação dos SUMÁRIOS das obras recentemente incorporadas ao acervo da Biblioteca Ministro Oscar Saraiva do STJ. Em respeito à lei de Direitos Autorais, não disponibilizamos a obra na íntegra. STJ00079869 342(81) S586c 32.ed. STJ00083054 342(81) S586c 33.ed.
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