ArticlePDF Available

Dinis, o Infante, e Nuno, o Condestável: dois modelos de nobre na época de Aljubarrota

Authors:

Abstract

O presente trabalho pretende analisar a trajetória de dois personagens da História Medieval portuguesa que tiveram um papel destacado na sociedade política ibérica na segunda metade do século XIV, o Infante Dinis de Castro e o Condestável Nuno Álvares Pereira. Ao observarmos os posicionamentos dos protagonistas relativamente às táticas militares, aos valores políticos e à natureza das relações com a monarquia, identificamos os traços distintivos de duas nobrezas; uma nobreza de sangue e outra de serviço. Agentes das duas categorias cristalizam seus modelos específicos em obras de caráter cronístico que perpetuam uma imagem ideal de suas ações. As gerações futuras usufruiriam desta fama ideal e construiriam um poder real em seus contextos históricos, motivados a alimentarem os mitos de heróis que levantariam bandeiras em seu nome, ainda muitos séculos depois da época em que viveram.
Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 5, n. 1, jul-dez., 2011.
DINIS, O INFANTE, E NUNO, O
CONDESTÁVEL: DOIS MODELOS DE
NOBRE NA ÉPOCA DE ALJUBARROTA.
DINIS, INFANT AND NUNO, THE CONSTABLE: TWO
MODELS OF NOBLE IN THE AGE OF ALJUBARROTA.
Fátima Regina Fernandes
Universidade Federal do Paraná
Correspondência:
Núcleo de Estudos Mediterrânicos – NEMED/UFPR
Rua General Carneiro, 460 - sala 715
Curitiba Paraná CEP: 80060-150
Resumo:
O presente trabalho pretende analisar a
trajetória de dois personagens da História
Medieval portuguesa que tiveram um papel
destacado na sociedade política ibérica na
segunda metade do século XIV, o Infante
Dinis de Castro e o Condestável Nuno
Álvares Pereira. Ao observarmos os
posicionamentos dos protagonistas
relativamente às táticas militares, aos
valores políticos e à natureza das relações
com a monarquia, identificamos os traços
distintivos de duas nobrezas; uma nobreza
de sangue e outra de serviço. Agentes das
duas categorias cristalizam seus modelos
específicos em obras de caráter cronístico
que perpetuam uma imagem ideal de suas
ações. As gerações futuras usufruiriam
desta fama ideal e construiriam um poder
real em seus contextos históricos,
motivados a alimentarem os mitos de
heróis que levantariam bandeiras em seu
nome, ainda muitos séculos depois da
época em que viveram.
Palavras-Chave:
Dinis de Castro; Nuno Álvares; Portugal
Medieval.
Abstract:
This work intends to analyze the
trajectory of two characters from
Medieval Portuguese who had a
prominent role in society Iberian politics
in the second half of the fourteen century,
the Infante Dinis de Castro and
Constable Nuno Alvares Pereira. By
observing the positions of the
protagonists with regard to military
tactics, the political values and the nature
of relations with the monarchy, we
identify the distinctive features of two
nobilities: the nobility of blood and the
other of service. Two categories of agents
seek their models and crystallize this
demand in specific works that perpetuate
an ideal image of their actions. Future
generations would enjoy this reputation
and build an ideal real power in their
specific historical contexts, motivated to
feed the myths of heroes who raise their
flags on their behalf, even many centuries
after they lived.
Keywords:
Dinis de Castro; Nuno Álvares; Medieval
Portugal.
FÁTIMA REGINA FERNANDES P á g i n a | 58
Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 5, n. 1, jul-dez., 2011.
Neste dia 14 de agosto completam-se seiscentos e vinte e quatro anos da
Batalha de Aljubarrota em Portugal quando os nobres e peões portugueses venceram
uma maioria de opositores liderados por Castela. As discussões acerca das razões
políticas deste embate, assim como as estratégias que granjearam a vitória lusa
atravessarão nosso trabalho, mas nos deteremos na construção do perfil de nobres
portugueses que partilham desta conjuntura: o Condestável Nuno Álvares Pereira e o
Infante Dinis. O primeiro, representante de uma nobreza de serviço alçada juntamente
com Avis e o segundo um Infante ilegítimo descartado por este mesmo contexto. A
batalha em si deu certo rumo ao conflito que ainda perdurou por alguns anos, no
entanto, a ascensão da dinastia de Avis e as forças limitadoras a esta proposta
escondiam antagonismos de concepções políticas, bélicas, de valores que opunham
representantes de facções da nobreza tradicional de sangue a elementos da nobreza de
serviço, mais que portugueses a castelhanos. Ambos os personagens selecionados
seriam criados junto à Corte régia e participariam diretamente das ações que se
desenrolariam no reino português na segunda metade do século XIV, servem-nos,
portanto de testemunhos da época de transição em que viveram.
O Infante Dinis de Castro, filho bastardo do rei Pedro I com Inês de Castro seria
bastante incisivo em suas opções políticas, possivelmente por encontrar-se numa remota
posição de sucessão ao trono. Seu pai deixara herdeiro legítimo, D. Fernando e as
expectativas de sucessão de seu meio-irmão seriam igualmente limitadas diante do
potencial de seu irmão mais velho, o Infante João de Castro. Tais condições adversas
não seriam suficientes, no entanto, para que desistisse de suas pretensões ao trono
português apoiado por linhagens descontentes com os rumos da monarquia. Assim, em
1372 recusa-se a beijar a mão da nova rainha, Leonor Teles, acusada de bigamia fazendo
eco à posição de João Lourenço da Cunha 1, o que reflete o início das conexões entre os
Castro e os Cunha, as quais seriam duradouras e decisivas na manutenção futura de uma
alternativa às opções de Avis.2
O fato é que tal posicionamento granjeia franca oposição do rei português,
acirrada, pela iniciativa do Infante Dinis de Castro liderar levantamentos contra este
casamento régio. Escaparia de ser morto pelo próprio rei e a partir deste episódio não
retornaria mais ao reino português senão para combatê-lo.3 Após o retomar das
hostilidades contra Castela invadiria o território português acompanhado de Martim
Vasques da Cunha e Diogo Lopes Pacheco e apoiaria o cerco a Lisboa de 1373 contando
com moradores da cidade lisboeta, fiéis a Pacheco, que deveriam facultar a entrada do
1 Diogo Lopes confirma, inclusive, esta informação nas Cortes de Coimbra de 1385 a fim de fortalecer
a ilegitimidade da filha de D. Fernando com Leonor Teles.
2 LOPES, Fernão, Crónica de D. Fernando, ed. Salvador Dias ARNAUT, Porto: Civilização, 1966, p.
213. LOPES, Fernão, Crónica de D. João I, lª p, introd. Humberto Baquero MORENO e prefácio de
António SÉRGIO, Barcelos. Porto: Civilização, 1991, p. 397.
3 LOPES, F., Crónica... op. cit., p. 166-194; AYALA, Lopez de, Crónica del Rey Don Pedro y del Rey Don
Henrique, su hermano, EVIII (1373): 3:1-10 e 5:1-6.
FÁTIMA REGINA FERNANDES P á g i n a | 59
Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 5, n. 1, jul-dez., 2011.
rei castelhano4. Apesar de serem todos naturais do reino português, os três nobres seriam
perdoados do crime de traição por D. Fernando através de cláusula obrigatória do
Tratado de Santarém de 1373.
Durante estes episódios encontramos o jovem Nuno Álvares, considerando-se ter
nascido em 1360, com treze anos em 1373, seria armado escudeiro pelas mãos da própria
rainha Leonor Teles com o arnês do Mestre de Avis.5 Teria presenciado a recusa do
Infante Dinis em beijar a mão de sua rainha, mas não tinha idade suficiente para atuar
na defesa da mesma.
Enquanto isso, o grupo composto pelo Infante Dinis, Cunha e Cunha seria
responsável ainda, por uma tentativa frustrada de regicídio contra D. Fernando. A
resposta viria no testamento régio de 1378, onde todos os Infantes Castro seriam
afastados de qualquer pretensão sucessória identificando-os como ilegítimos e no caso de
Dinis e sua irmã Beatriz, traidores do reino6. Mais uma vez abortavam-se as pretensões
dos Castro e de seu grupo em Portugal.
O Infante Dinis passaria a viver em Castela onde Enrique II Trastâmara o
manteria como potencial alternativa ao rei português7 até pelo menos 1379 quando o
Infante João exila-se neste reino. O protagonismo das ações passaria a este último e o
Infante Dinis não participaria dos enfrentamentos luso-castelhanos de 1380-3, por se
encontrar cativo em Castela.8. Enquanto isso, o Infante João punha cerco contra Elvas
que havia sido sua cidade, durante 25 dias, manifestando a predileção por uma guerra de
sítio, típica da nobreza de sangue e na defesa de interesses temporariamente comuns
entre o rei castelhano e o Infante Castro.
Nuno Álvares, por sua vez, começaria a dar sinais de sua audácia e estilo bélico
no episódio da defesa de Lisboa do cerco castelhano de 1382.9 Ao contrário do Infante
Dinis, Nuno prezaria pela defesa da integridade das terras alentejanas, mas também das
4 Fernão Lopes relata a desconfiança dos moradores em relação a alguns que seriam servidores e
aliados de Diogo Lopes. Desconfiança que leva à morte de pelo menos um deles (LOPES, F., Crónica de
D. Fernando... op. cit., p. 199-200). O plano, no entanto, não dá certo e com isto Enrique II desgosta-se
do conselho de Diogo devido à demora excessiva em tomar a cidade, o que acontece após a
intervenção marítima de Miçe Ambrósio Boca Negra (LOPES, CDF, caps. XXX-XXXI, pp. 209-213 e
AYALA, Lopez de, Crónica del Rey Don Pedro y del Rey Don Henrique, su hermano, EVIII (1373): 3:1-10 e
5:1-6).
5 LOPES, Fernão, Crónica de D. João , p. 67-8 e Chronica do Condestabre de Portugal Dom Nuno Alvarez
Pereira, ed. Mendes dos REMÉDIOS, Coimbra, 1911, p. 3- 6.
6 ARNAUT, Salvador Dias, A Crise Nacional dos Fins do Século XI: a Sucessão de D. Fernando, Coimbra,
Instituto de Estudos Históricos Dr. António de Vasconcelos, 1960, 2 vols, p. 294.
7 Fora-lhe prometido o casamento com uma filha natural do rei castelhano; acordo que consta do
testamento de Enrique II de 29 de maio de 1374 (ARNAUT, op.cit, p. 227-8).
8 Segundo Arnaut teria sido preso dois anos antes de seu irmão, portanto, em 1381 (ARNAUT, op.cit,
p. 228-9.)
9 Em 1382 Gonçalo Mendes de Vasconcelos falha na defesa dos arrabaldes de Lisboa e Pedro Álvares
Pereira que substituira seu pai no Priorado da Ordem do Hospital e tomaria seu lugar; neste episódio
Nuno Álvares que acompanhava seu meio-irmão apareceria como combatente destemido (Chronica do
Condestabre de Portugal... op. cit., p. 16-26 e SANTOS, Frei Manoel dos, Monarquia Lusitana, Lisboa:
INCM, 1988, parte VIII, p. 366-7).
FÁTIMA REGINA FERNANDES P á g i n a | 60
Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 5, n. 1, jul-dez., 2011.
cidades portuguesas, espaços de maior horizontalidade social. O patrimônio municipal
muitas vezes seria sacrificado, mas sempre para acelerar a tomada de cidades opositoras
evitando os cercos demorados e custosos que Dinis e a nobreza mais tradicional
apoiavam como estratégia eficiente e que o Infante João havia imposto a algumas
cidades portuguesas. Os efeitos propagandísticos da tomada de um lugar ou cidade após
rápido ataque seriam destacados como importantes para intimidação do inimigo nas
próprias palavras de Nuno Álvares, como veremos mais à frente. Começava-se a definir,
assim, seu estilo bélico.
A morte do rei D. Fernando em outubro de 1383 e a invasão do reino por Juan I
Trastâmara seria um momento de fração aberta destes quadros sócio-políticos do reino.
O Infante Dinis preso em Castela juntamente com seu irmão seria mero espectador da
crise que se instala. Enquanto isso, Nuno Álvares Pereira passaria a protagonista das
ações, apoiante incondicional da causa do Mestre de Avis, enquanto este recusa, hesita
em aceitar seu destino, Nuno Álvares aparece como jovem dotado de grande iniciativa
ainda que dominado por um idealismo quase pueril durante toda a sua vida, atirando-
se destemidamente na ação. O sucesso da causa abraçada daria seus frutos e seria
eternizada nos relatos da crônica régia de D. João I que abre imensos espaços narrativos
para falar exclusivamente de Nuno Álvares, assim como em sua crônica particular que
daria aos Pereira uma dimensão de linhagem co-fundadora da dinastia de Avis.
Nos relatos de Fernão Lopes observamos o cuidado em associar a recepção do
cargo de Condestável em 1385 com a construção de um perfil de sua identidade. Aqui,
destacam-se as virtudes pessoais do nobre exemplar, à moda humanista, dotado de
temperantia, fortitudo, fidelitas, valores clássicos aos quais se acrescenta uma ética cristã,
afirmando que os homens de sua hoste representariam honesta religião de defensores,
convertidos pela firmeza de seu senhor. Um perfil com alguns paralelos com o Mestre,
o Mexias de Lisboa, mas que ao longo de sua trajetória se acentua como seu próprio, do
Condestável.
Sobre os condicionantes da opção de Nuno Álvares ao partido do Mestre,
podemos dizer que era justamente nestes momentos de incerteza que jovens como
Nuno Álvares encontravam espaço de ascensão. Um jovem representante desta nobreza
em renovação, singular, sob alguns aspectos, polêmico, mas acima de tudo com um
perfil que corresponderia às necessidades do reino naquele momento.
A causa do Mestre, tíbia em seus apoios e iniciativas, apresentaria muitos
indecisos frente a tão incerta demanda. Álvaro Peres de Castro e seu filho, confiantes
na força do Infante D. João aprisionado em Castela seriam dos primeiros a questionar
o verdadeiro potencial do Mestre em vencer o rei castelhano, pelo que seria chamado
à atenção por Nuno Álvares. No relato da Crônica de D. João I, Fernão Lopes
destacaria a ousadia do jovem em confrontar abertamente um nobre de tão alta
categoria. Álvaro Peres considera os capitães do mestre de Avis demasiado jovens e
inexperientes para combater com os de Castela. Opinião que denota um conceito
oligárquico de guerra, fundado totalmente na cavalaria e no poder senhorial, noção que
justamente neste momento começava a ser substituída pela de guerra dos peões, dando
FÁTIMA REGINA FERNANDES P á g i n a | 61
Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 5, n. 1, jul-dez., 2011.
prioridade à ação da infantaria e da estratégia militar mais que da força numérica
senhorial.
Nuno Álvares, despontava, assim, em meio a um contexto de acirrado
rotativismo das partidarizações, pleno de episódios de traições contra os protagonistas
parciais de ação e resistência, Juan I Trastâmara e o Mestre de Avis promovidos pelos
Teles, Castro e Cunha. Todos rivais de Nuno Álvares, alvo que devia ser eliminado
em benefício da recuperação do status quo da nobreza de sangue em Portugal.
Vários são os estudos clássicos e altamente reconhecidos que nos falam dos
períodos-chave de recomposição dos quadros nobiliárquicos nos reinos ibéricos,
especialmente Portugal e Castela, seja relativizando seus efeitos, seja reforçando
alterações efetivas. Quase todos reconhecem a Batalha de Aljubarrota como um
momento importante deste fenômeno em função das baixas nos quadros sócio-políticos
dos dois reinos envolvidos e das estratégias dos monarcas na reconstrução de sua
sociedade política. Salvador de Moxó, Mitre Fernandez e Baquero Moreno destacam
esta significativa quebra demográfica e as estratégias de composição sócio-política das
dinastias de Trastâmara e Avis respectivamente10. O recente estudo de Quintanilla Raso
aplicado à nobreza trastamarista atualiza esta discussão apresentando a dialética gerada
por esta crise generalizada de valores dentro do próprio universo intelectual do culo
XV11. Os autores que defendiam a autonomia da nobreza de sangue vêem-se
confrontados com outros que catapultados pelo serviço direto à monarquia Trastâmara
defendiam a validade da nobilitação a partir de dois eixos básicos, o mérito pessoal e o
reconhecimento régio. Na continuidade, estes seriam aferidos quanto à manutenção de
suas qualidades e sendo aprovados partilhariam da mesma nobreza herdada requisitada
pelos mais conservadores. Posturas distintas que tinham diretamente a ver com a história
individual de cada um, mais que com mobilidade ou dinamismo nobiliárquico como
ressalta a autora. Sem as perdas demográficas e políticas do período de ascensão de
Enrique II em Castela e da crise de 1383 em Portugal, não haveria espaço ou condições
de ascensão destes grupos nobiliárquicos de baixa extração ou mesmo extra-
nobiliárquicos no panorama sócio-político, a nível empírico e teórico luso-castelhano do
século XV. Adaptação é a palavra-chave e o resultado é a renovação e atualização
nobiliárquica geradora de uma nobreza menos autônoma e com um papel mais
direcionado ao serviço à monarquia como fonte de sua grandeza. .
10 MOXÓ ORTIZ DE VILLAJOS, Salvador de, De la nobleza vieja a la nobleza nueva, in: Cuadernos
de História, Madrid, Instituto Jerónimo Zurita, vol.3, 1969, p.1-210; MITRE FERNANDEZ, Emilio, La
emigracion de nobles portugueses a Castilla a fines deI siglo XIV, in: Hispânia: Revista Espanhola de
Historia, Madrid, CSIC/ Instituto Jerónimo Zurita, vol. 104, 1966, p. 513-525; BAQUERO MORENO,
Humberto Carlos, Exilados portugueses em Castela durante a crise dos finais do século XIV (1384-88),
in II Jornadas Luso-Espanholas de História Medieval, Porto, Centro de História da Universidade do Porto/
INIC, vol. 2, 1989, p. 69-101.
11 QUINTANILLA RASO, Maria Concepción, La renovación nobiliária em la Castilla bajomedieval:
entre el debate y la propuesta, in La Nobleza Medieval en la Edad Media. Actas Del Congreso de Estudios
Medievales, Fundación Sánchez-Alborñoz, Leon, 1999, p. 255-296.
FÁTIMA REGINA FERNANDES P á g i n a | 62
Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 5, n. 1, jul-dez., 2011.
O nobre Nuno Álvares Pereira representava a nobreza regenerada que gerava
desconforto na monarquia, acostumada a regras militares e diplomáticas formais.
Mesmo quando João I vai a Ceuta ainda teria uma motivação medieval básica,
empreitada cruzadística que ensaiava algumas estratégias novas apenas aplicadas nos
séculos seguintes. Oposição também da nobreza de sangue que apresentava um perfil de
atuação nos moldes de uma tradição comportamental e política clássica. Um homem de
vanguarda que faz sua trajetória ascendente e trabalha para manter suas prerrogativas
frente a um contexto especialmente concorrencial apoiando-se em homens simples de
baixa extração social que compartilham de suas habilidades e alguns interesses. A ética
moralizante de Nuno Álvares serviria de modelo aos servidores de Avis, adaptado às
realidades de transição do século XIV-XV e moldado em valores específicos desta
nobreza construídos a partir de seus instrumentos ideológicos tradicionais: literatura
genealógica, cantigas e romances, mas também a partir destes séculos finais da Idade
Média, na cronística nobiliárquica particular e na inserção na cronística régia. A
historiografia seria fonte de legitimidade desta nobreza regenerada oficializando uma
nova relação da monarquia com a nobreza a partir de Avis, num fenômeno paralelo
àquele que identifica Quintanilla Raso para a nobreza trastamarista do século XV.
Enquanto isso, o Infante Dinis de Castro, representante da nobreza de sangue que
percebe o predomínio das facções mais dinâmicas da nobreza peninsular se impondo em
meio a esta crise. Toma consciência de sua condição de bandeira usada pelo rei
castelhano e por facções nobiliárquicas portuguesas que buscam inutilmente recuperar
espaço junto às monarquias ibéricas, visto que os Infantes Castro haviam se tornado
excedentes no panorama sócio-político pós-Aljubarrota. Precisaria, portanto, rever suas
estratégias de estabelecimento, ainda que com pouco sucesso, visto que seus rígidos
paradigmas éticos e culturais o arrastariam ainda em muitas desventuras ao longo de sua
vida.
Assim, quando se viu liberado da vigilância imposta pelo rei castelhano, seria
recebido no Porto em 1387 por João I de Avis12, onde encontraria um acolhimento
apenas formal. Após isto, embarcaria numa aventura desafortunada que o manteria
afastado de tudo até 1391, ainda que existam menções a esparsos contatos mantidos
neste meio tempo com seus partidários em Portugal .Viajaria em direção à Inglaterra,
mas não chegaria a seu destino tendo sido aprisionado por bretões que debalde
pediram resgate por sua liberdade. Acabaria sendo solto e retornaria a Castela de onde
seu irmão o enviaria novamente em embaixada à Inglaterra de Ricardo II. Desconfia-
se de ter sido uma armadilha para que fosse novamente retido, visto que Ricardo II
nunca o receberia depois de ver as cartas de portugueses seus aliados e de Avis que o
aconselham a livrar-se definitivamente do potencial espião. O Infante Dinis fugiria de
Inglaterra, no entanto, naufragaria e seria novamente cativo por volta de outubro de
1388. Ficaria preso por mais de um ano até que o Duque de Borgonha e Conde da
Flandres, Filipe, o Temerário, negociaria, com pouca disposição a sua liberdade. Os
12 ARNAUT, op.cit, p. 229.
FÁTIMA REGINA FERNANDES P á g i n a | 63
Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 5, n. 1, jul-dez., 2011.
partidários de Dinis em Portugal, possivelmente os Cunha e Pacheco, teriam mantido
nesta época uma correspondência secreta com o cativo e Arnaut considera que daí o
Conde da Flandres o ter considerado peça interessante no xadrez da Guerra dos Cem
Anos. Dinis de Castro viveria um ano em Bruges sob vigilância e manutenção do
Conde visto encontrar-se na miséria, após o que chegaria a meados de 1391 a Navarra
de onde Carlos II pagaria as dívidas do Infante.13
O Infante Dinis retornaria a Castela depois do abandono a que fôra votado e
casaria-se com uma tia de Enrique III Trastâmara. Quanto a suas pretensões em Portugal
manteriam-se legalmente distantes, visto que o tratado que prolongaria as pazes entre os
dois reinos manteria uma cláusula de proibição de atribuição de qualquer benefício aos
Infantes Castro por parte do rei castelhano14.
Os projetos do Infante Dinis ao trono português após a morte de seu irmão em
1396-7 seriam fortalecidas junto a Enrique III com o apoio de Martim Vasques da Cunha
e seus aliados no exílio e trariam episodicamente de volta estes nobres ao reino numa
condição de hostilidade em troca de benefícios avultados em Castela.15 No entanto, as
fidelidades cobradas pelos Cunha e mesmo pelo Infante Dinis em Portugal escasseavam,
tornando a empreitada de invasão pouco produtiva 16.
Por sua vez, Nuno Álvares Pereira, no reino português permaneceria
monopolizador dos Condados portugueses durante toda a vida, apenas partilhados após
o casamento de sua filha com o Duque de Bragança e a sua própria descendência
fundida à da Casa régia. No entanto, o Condestável aparecia sempre como líder de
peregrinos abnegados, pobres e famintos que com sua coragem granjeariam a vitória,
mas tal imagem não agradaria totalmente ao rei português e o desacordo viria a
propósito dos seus métodos de ação e da crescente projeção e autonomia do vassalo,
especialmente após Aljubarrota.
Fernão Lopes retrata um debate entre o rei D. João I e o seu Condestável onde
o primeiro defendia o cerco como estratégia legítima e honrada de luta contrariamente
às correrias e roubos pelas terras. Nuno Álvares apresenta suas razões de oposição aos
cercos alegando os altos custos financeiros de manter muitos homens e armamentos
estacionados durante longo espaço de tempo, cujos soldos geravam a necessidade de
peitas e mesmo quebra-de-moeda para serem liquidados. Além disso, alega os altos
custos dos mantimentos, cuja carruagem, além de tornar a deslocação lenta, seria alvo
fácil de roubos. O risco de doenças, o tédio dos sitiadores e mesmo o baixo índice de
13 LOPES, F., Crónica de D. João... op. cit., cap.CXXIX. (ARNAUT, op.cit, p. 233-42).
14 Idem, p. 242.
15 Martim Vasques da Cunha aconselharia a Enrique III ações conjugadas sobre o território português
que levariam o Infante Dinis e os Cunha, Pacheco e Pimentel a Portugal, assim como uma entrada do
Mestre de Santiago pela Comarca do Condestável, simultaneamente a novo cerco naval imposto sobre
Lisboa. O plano que teria a coordenação do Cunha em resultando seria pago com um Condado em
Castela (LOPES, F., Crónica de D. João... op. cit., cap. 159, p. 347-8 e cap. 170-1, p. 372-5). Gonçalo
Vasques Coutinho permaneceria fiel a D. João I e participaria ao rei a entrada dos Cunha na Beira
(Idem, cap. 172, p. 376).
16 LOPES, F., Crónica de D. João... op. cit., cap. 172, p. 376-80.
FÁTIMA REGINA FERNANDES P á g i n a | 64
Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 5, n. 1, jul-dez., 2011.
conquistas efetivas seriam ainda argumentos contrários à adoção do sítio como
estratégia militar pelo Condestável. A favor de se correr as terras estariam os baixos
custos da empresa, além da disponibilidade de carruagem de mantimentos visto que
estes seriam roubados, frescos para consumo imediato. No entanto, o fator mais
decisivo seria o impacto de uma vitória em batalha nas regiões circundantes, os ecos
de uma vitória que geravam a entrega voluntária de outros castelos e cidades. O
debate se encerra sem que haja um convencimento de uma das partes, no entanto,
para nós manifesta a mentalidade do nobre que ao ascender por seus méritos de ação e
serviço imprime a mesma óptica à lógica de ação do próprio rei. .
O segundo episódio de atrito seria a distribuição de bens promovida pelo
Condestável entre seus vassalos devido à pacificação anunciada do reino. Dar-lhes-ia
rendas de lugares que ele tinha recebido em préstamo do rei e que repassava na mesma
condição a seus fiéis, os quais em troca manteriam escudeiros para serviço do rei e do
nobre Nuno Álvares Pereira. Este, senhor de sua própria sociedade política, afrontaria
o rei com esta iniciativa e aguçaria a ambição dos outros nobres que passariam a
defender uma emergencial recaptação patrimonial régia dos bens doados ao
Condestável para fazer frente às necessidades inerentes aos três descendentes de D.
João I nascidos. O rei resolve-se por um chamamento régio que na verdade,
atingiria o Condestável, mas também outros beneficiados, obrigados a devolver ou
vender as terras recebidas do rei, protagonistas de nova vaga de exílios rumo a
Castela. Nuno Álvares, após este episódio pensa também em abandonar o reino,
desgostoso com a postura de força do rei português. Uma ameaça para D. João I preso
à necessidade de manter o equilíbrio na distribuição dos benefícios entre a sua
nobreza, mas ao mesmo tempo consciente de sua dependência em relação a Nuno
Álvares, reflexão que resultaria no convencimento do Condestável a permanecer no
reino.
Após uma vida de serviço dedicada ao seu senhor o rei, Nuno Álvares deixaria
os assuntos temporais e seus bens e passaria ao serviço divino ingressando na Ordem
dos Carmelitas no Convento do Carmo que ele fundara, assumindo o nome de Irmão
Nuno de Santa Maria, onde permaneceria até sua morte em 1431. Enquanto o rei D.
João I seguia sua demanda régia, Nuno Álvares seguia uma via de ascese
completando uma vida de perfeito cavaleiro dos romances medievais arturianos.
Fernão Lopes, em sua Crónica de D. João I interrompe neste ponto o relato e
insere uma Crônica abreviada deste personagem. Aqui, sumariavam-se todos os
elementos até então dispersos no relato da História do reino e traçava-se um perfil
idealizado do nobre e vassalo ideal, cuja trajetória alicerçadora dos ideais de Avis
estaria definitivamente inserida na construção do passado português. Restava ao
Cronista mostrar a transcendência desta vida nos destinos futuros do reino e no
penúltimo capítulo da segunda parte da Crônica, fala da união do filho legitimado do
rei, Infante Afonso com a sua filha, Beatriz. A junção do sangue e do patrimônio
destes dois paradigmas da História portuguesa selaria o futuro da monarquia de Avis.
A singularidade do Condestável posta a serviço do reino seria definitivamente
FÁTIMA REGINA FERNANDES P á g i n a | 65
Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 5, n. 1, jul-dez., 2011.
recompensada e definiria um perfil de nobreza regenerada em cujas ações os fins
seriam mais determinantes que os meios. 17
o Infante Dinis, perdido em suas opções éticas, políticas e culturais
permaneceria como exemplo de traidor do reino, defensor dos interesses castelhanos,
boicotador da causa avisina, enfim, o contra-modelo ou o reverso da moeda do
Condestável. Seus ideais o teriam levado por caminhos diferentes cerca de um século
atrás, no entanto, nesta segunda metade do século XIV cenário de importantes
inflexões na hierarquia dos valores e das práticas validadas para esta nobreza
peninsular, o resultado seria o ostracismo. Para tanto, contribuíam fortemente
elementos do próprio contexto, tais como a Guerra dos Cem Anos, o Exílio de
Avinhão e o Cisma do Ocidente, manifestando o ruir de concepções predominantes e
construtoras da supremacia francesa e pontifícia na Cristandade latina desde o século
XI até os fins do XIII com importantes ecos na Península Ibérica. Uma época de
transição que promoveria a convivência, nem sempre pacífica de valores e concepções
diferentes e conjunturalmente reconhecidas entre os vários estratos sociais e no caso
que nos interessa entre facções nobiliárquicas que acompanham os movimentos das
monarquias ibéricas no sentido da modernidade.
Autora convidada, artigo recebido em 08/08/2011.
17 LOPES, F., Crónica de D. João... op. cit., caps. 31-9, p. 63-78, cap. 193, p.424-7 e Idem, vol.2, caps.
198-200, p.447-456 e cap. 202, p. 460-1. Vide ainda FERNANDES, Fátima R, Estratégias de
legitimação linhagística em Portugal nos séculos XIV e XV, Revista da Faculdade de Letras. Série de
História, Porto, vol. 7 (2007), p. 263-284; FERNANDES, Fátima R, Os exílios da linhagem dos
Pacheco e sua relação com a natureza de suas vinculações aos Castro (segunda metade do século XIV),
in: Cuadernos de Historia de España, Universidad de Buenos Aires / Instituto de Historia de España
D.Cláudio Sánchez-Alborñoz, Buenos Aires, v. LXXXII (2008), p. 31-54; FERNANDES, Fátima R,
Sociedade e poder na Baixa Idade Média portuguesa, Curitiba: Editora da UFPR, 2003.
Article
Full-text available
No âmbito da historiografia medieval, em diversos momentos encontramos uma relação minuciosa entre o presente e o passado. Tal relação favoreceu, no ato historiográfico, a transição de elementos entre estes dois tempos, e muitas das vezes transportando significados entre os mesmos. Neste artigo, analisamos o objeto historiográfico Vida y hechos heroicos del gran condestable de Portugal D. Nuño Alvares Pereyra Conde de Barcelos, de Rodrigo Méndez Silva (1607-1670), composto entre o final de 1639 e a metade de 1640, e impresso em 1640. Nosso objetivo é analisar a transferência do termo “patria” do contexto de composição da obra (anos 1639-1640) para o passado medieval português (anos 1360-1431, referente à vida de Dom Nuno Álvares Pereira), para compreender o significado histórico desta obra em seu contexto de composição.
Vide ainda FERNANDES, Fátima R, Estratégias de legitimação linhagística em Portugal nos séculos XIV e XV
  • F Lopes
  • . . Crónica De D. João
  • Op
LOPES, F., Crónica de D. João... op. cit., caps. 31-9, p. 63-78, cap. 193, p.424-7 e Idem, vol.2, caps. 198-200, p.447-456 e cap. 202, p. 460-1. Vide ainda FERNANDES, Fátima R, Estratégias de legitimação linhagística em Portugal nos séculos XIV e XV, Revista da Faculdade de Letras. Série de História, Porto, vol. 7 (2007), p. 263-284;
Sociedade e poder na Baixa Idade Média portuguesa, Curitiba: Editora da UFPR
  • Fátima R Fernandes
FERNANDES, Fátima R, Sociedade e poder na Baixa Idade Média portuguesa, Curitiba: Editora da UFPR, 2003.