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1
JANE JACOBS: CONTRADIÇÕES E TENSÕES
Bianca Margarita Damin Tavolari
USP
biancatavolari@gmail.com
Em 2000, ano de sua campanha à prefeitura de São Paulo, Marta Suplicy (PT-SP) fez uma
intervenção pública para explicitar sua visão para a cidade nos próximos anos. São Paulo
deveria ter mais “vida nas ruas”, já que “quanto mais diversificado o uso da rua, maior a
segurança” (Suplicy, 2000). A fórmula é devidamente acompanhada dos créditos: The death
and life of great American cities1, de Jane Jacobs. Logo em seguida da gestão de Marta
Suplicy, José Serra (PSDB-SP) foi eleito prefeito de São Paulo e o mesmo livro passou a
ocupar sua mesa de cabeceira, além de ter sido recomendado para seus auxiliares mais
próximos.2 Após sua eleição para a prefeitura do Rio de Janeiro, César Maia (então PFL-RJ,
hoje DEM-RJ) conclamou uma renovação da esquerda. A “esquerda mecânica” que dá título a
seu artigo na Folha de São Paulo é associada à figura de Robert Moses, conhecido pelas
demolições em massa e obras viárias que atravessaram bairros inteiros na Nova Iorque dos
anos 1950 e 1960. A figura da renovação é a de Jane Jacobs, crítica explícita de Moses.
Protagonista da resistência, ela teria sido responsável por apresentar “a todos a cidade das
pessoas, dos vizinhos” (Maia, 2004). Sua admiração por Jacobs o levou a denominar a sede
do Instituto Pereira Passos de Edifício Jane Jacobs.3 Já Alfredo Sirkis (PV-RJ) diz que a
autora – “uma heroína do nosso tempo” – escreveu o livro que teria mudado sua vida.4
As ideias de Jane Jacobs estão por toda parte. As referências se multiplicam não apenas entre
políticos com as mais diferentes filiações no espectro partidário. Não é raro se deparar com
menções à autora no debate público, especialmente quando a discussão gira em torno de
intervenções urbanísticas na cidade.5 Suas ideias aparecem tanto como parâmetro para
diagnosticar problemas e potencialidades nas cidades existentes quanto como uma espécie de
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1 A primeira edição do livro é de 1961. A tradução para o português foi publicada apenas no ano 2000 sob o título Morte e
vida das grandes cidades, o que elimina o recorte feito por Jacobs para tratar apenas das cidades norte-americanas. Por essa
razão, utilizo o título em inglês para me referir ao livro ao longo deste artigo. Indicarei trechos e expressões do original em
inglês em colchetes quando diferirem muito da tradução.
2 SEGAWA, H. (2005). O livro de cabeceira do prefeito Serra. O Estado de São Paulo, Caderno Aliás, 16 de janeiro de 2005.
3 Ver Decreto n. 26.414, de 26 de abril de 2006.
4 http://www2.sirkis.com.br/noticia.kmf?noticia=4588607&canal=257&total=222&indice=220, acesso em 02.12.2014.
5 Alguns exemplos são bastante ilustrativos, ainda que sejam bastante recentes. Eventos como a 10ª Bienal de Arquitetura e o
Arq.Futuro tiveram inspiração em ideias de Jacobs [OLIVEIRA, V. (2013). A cidade no centro, Valor Econômico, 20 de
setembro de 2013]. O fundador do Instituto de Urbanismo e de Estudos para a Metrópole – URBEM também se declara um
adepto das teses da autora [CARIELLO, R. (2013). Urbanista acidental: As obsessões e os dilemas de Philip Yang, o
empresário que pretende reinventar o centro de São Paulo, Piauí, ano 7, n. 84], assim como o empresário Rafael Birmann,
dono de diversos empreendimentos na região da Faria Lima e que pretende privatizar uma rua no bairro do Itaim [SAYURI,
J. (2014). Se essa rua fosse minha, O Estado de São Paulo, 10 de maio de 2014].
2
receita para alcançar ideais de cidade boa. Esse quadro aponta, de saída, para dois elementos
importantes. Em primeiro lugar, a arena de discussão sobre o livro ultrapassa – e muito – os
limites do debate especializado sobre urbanismo, seja ele acadêmico ou técnico. O fato de que
algumas ideias de The death and life of great American cities tenham ganhado vida própria e
apareçam no debate público de forma desassociada da referência ao livro é apenas mais um
indício desse enraizamento. Em segundo lugar, o livro de Jacobs consegue acomodar posições
práticas e teóricas bastante divergentes entre si, por mais que essa seja uma verdadeira fonte
de mal-estar entre os que vêem Jacobs como heroína, profetisa ou visionária6. Isso mostra que
ele se tornou o lugar-comum que organiza tanto a concordância quanto o conflito entre visões
de cidade distintas, o solo sob o qual se estabelecem as diferenciações, em que
posicionamentos são aproximados e disputados. Ou, para utilizar os termos do editor de um
dos poucos livros que se propõem a discutir a obra de Jacobs sem recair na mera celebração,
“muitos entenderam que ela era uma tela para projetar suas ideologias. Jane Jacobs teve um
poder duradouro por muitas razões, mas uma delas certamente é o fato de oferecer alguma
coisa para qualquer um” (Page, 2011, p.4, tradução minha).
Este artigo defende a hipótese de que a comemoração generalizada em torno dos principais
argumentos de Jacobs em The death and life of great American cities constitui um bloqueio
para leituras que pretendam analisar problemas e limitações internas a seu pensamento. Esse
travamento impede tanto a superação de posições unilaterais ou maniqueístas, em especial no
debate acadêmico, quanto o enfrentamento da questão de como o livro pode servir de base
para visões e propostas tão distintas, sobre como pode “oferecer alguma coisa para qualquer
um”. A ideia não é reconstituir o que Jacobs “quis dizer” e, assim, desautorizar alguns dos
sentidos em que ela foi apropriada.7 Trata-se antes de oferecer alguns pontos de apoio para
uma perspectiva que procure explicitar as tensões do livro como elementos constitutivos de
sua complexidade. Para tanto, a primeira parte reconstrói a principal tese do livro por meio de
dois de seus argumentos mais influentes, a fim de dar alguns elementos que ajudem a
contextualizar sua enorme repercussão. A segunda parte trata da construção da figura heróica
de Jane Jacobs a partir de uma das análises mais sofisticadas sobre este tema: o último
capítulo de Tudo que é sólido desmancha no ar, de Marshall Berman. A terceira e última
parte faz uma análise bastante próxima ao texto da própria Jacobs para mostrar como ela
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6 A lista de atributos é extensa. Para um recenseamento dos adjetivos, ver, entre outros, HIRT, S. (2012). Jane Jacobs, urban
visionary. In: HIRT, S., ZAHM, D. (eds.). The urban wisdom of Jane Jacobs. Londres: Routledge.
7 Ver, por exemplo, HARVEY, D. (2008). Condição pós-moderna. Tradução de Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela
Gonçalves. São Paulo: Loyola, p.83.
3
estabelece uma relação específica entre ordem e desordem, chave de leitura que, a meu ver,
explicita algumas das tensões que permitem a reunião de visões urbanísticas opostas sob o
mesmo denominador comum.
I. Imagens literárias fortes
Duas imagens de The death and life of great American cities são particularmente responsáveis
pela difusão dos argumentos do livro. Na primeira delas, Jacobs narra um “complexo balé”
(Jacobs, 2009, p.53) que acontece na calçada de sua rua no Greenwich Village. A dança é a
imagem escolhida para descrever o movimento das mais diversas pessoas que passam desde o
início da manhã até o fim do dia – as crianças que “desfilam” em direção à escola, o “ritual
matinal” do movimento dos táxis, trabalhadores que seguem o mesmo curso todos os dias,
“dançarinos excêntricos” como homens de barba em lambretas ou bêbados de chapéu,
adolescentes de patins, até chegar a noite, quando “o balé continua sob as luzes, rodopiando
para cá e para lá, mais forte nas poças brilhantes das luzes da barraca de pizzas do Joe, dos
bares, da confeitaria, do restaurante e da farmácia” (Jacobs, 2009, p.53-55).
A força da passagem do balé da rua Hudson está em conseguir sintetizar argumentos cruciais
para o livro como um todo. O primeiro argumento é o de que pessoas e grupos diferentes
fazem usos distintos da rua em diversos momentos do dia. Se isso pode parecer uma
obviedade, Jacobs aponta para a necessidade de que as ruas abriguem uma multiplicidade de
funções para que isso possa de fato ocorrer. Certamente o balé não aconteceria – ou não
aconteceria com a mesma diversidade – se a rua de Jacobs fosse estritamente residencial.
Como há uma combinação de moradias com estabelecimentos comerciais de vários tipos e
tamanhos, a rua é capaz de atrair públicos distintos que passam a também “entrar em cena”
(Jacobs, 2009, p.53). O segundo diz respeito à espontaneidade associada ao balé. Para a
autora, essa movimentação desperta o interesse por não ser uma coreografia previamente
ensaiada e planejada em detalhes, uma “dança mecânica, com os figurantes erguendo a perna
ao mesmo tempo, rodopiando em sincronia, curvando-se juntos”, mas um conjunto de
trajetórias e representações de papeis que nunca se repetem da mesma forma, que estão
“sempre repletos de novas improvisações” (Jacobs, 2009, p.52). Sua vitalidade está
justamente na articulação imprevisível de uma série de elementos específicos que tornam a
rua Hudson um lugar interessante para estar ou passar. O terceiro argumento diz respeito a
uma forma de olhar atenta às relações sociais cotidianas desenvolvidas no espaço público da
4
rua. Uma das principais críticas de Jacobs ao planejamento urbano moderno é seu
descolamento da sociedade, sua abstração que o levaria para longe das “coisas comuns e
cotidianas” (Jacobs, 2009, p.1). De novo, se a afirmação de que a cidade é conformada por
relações sociais parece óbvia, o relato de Lewis Mumford mostra que o posicionamento de
Jacobs ressoou como uma grande novidade no início dos anos sessenta. Sua participação
numa conferência de planejadores na universidade de Harvard é descrita por ele como “uma
brisa fresca do mar” (Mumford, 1962, p.152, tradução minha). Isso porque ela “chamou
atenção para um fato ao qual muitos planejadores e administradores eram indiferentes – que
um bairro não é apenas um conjunto de prédios, mas um tecido de relações sociais”
(Mumford, 1962, p.152, tradução minha).
Jacobs tira uma consequência importante da diversidade de usos da rua ao longo do dia, o que
constitui a segunda imagem do livro que se tornou bastante popular. Além de tornar o espaço
público interessante, “todos já sabem” que “uma rua movimentada consegue garantir a
segurança; uma rua deserta, não” (Jacobs, 2009, p.35). A existência de “olhos nas ruas” gera
“uma ordem surpreendente [‘marvelous’] que garante a manutenção da segurança [das ruas –
‘safety of the streets’] e a liberdade [da cidade – ‘freedom of the city’, Jacobs, 1992, p.50]”
(Jacobs, 2009, p.52). Garantir o movimento em diversos períodos do dia faz com que a rua
seja permanentemente vigiada mesmo por aqueles que estão apenas de passagem. O que
Mumford qualificou como um “remédio ingênuo”, fruto de “wishful thinking” por apostar na
desordem como fator de estabilidade social (Mumford, 1962, p.170), é hoje uma ideia
amplamente aceita entre urbanistas profissionais.8
As duas imagens estão entrelaçadas e têm forte conotação literária. Não é à toa que Berman
compara a passagem do balé da rua Hudson com grandes referências da literatura ocidental,
como Avenida Niévski, de Nikolai Gógol (Berman, 2007, p.370). O modelo do balé e dos
olhos nas ruas aponta para uma dimensão coletiva, ainda que isso só seja possível por existir
um ponto fixo do olhar que acompanha a movimentação por um período de tempo,
diferentemente do flâneur, que retrata um olhar que vagueia pelas ruas da cidade (Fraser,
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8 Ver, por exemplo, as declarações de José Armênio de Brito Cruz, presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil de São
Paulo – IAB-SP, e de Guilherme Wisnik, professor da FAU-USP e um dos curadores da X Bienal de Arquitetura, no já citado
OLIVEIRA, V. (2013). A cidade no centro, Valor Econômico, 20 de setembro de 2013. Para Brito Cruz, “[q]uando as
pessoas vivem no ambiente comum, a violência não se instala, porque todos se relacionam com todos, é aquilo que Jane
Jacobs chamava de ‘cidade com olhos’”.
5
2012, p.25). O olhar fixo do pedestre, à altura da rua, difere substancialmente da vista aérea
do planejamento urbano moderno (Page, 2011, p.8). As passagens evocam no leitor a
memória de já ter se colocado na posição de observador dos movimentos cotidianos da
cidade, bem como a lembrança do sentimento de segurança diante de uma rua movimentada.
A relação de identificação estabelecida pelas imagens é um dos fatores que podem ajudar a
explicar a grande repercussão do livro.9
Outro ponto importante diz respeito à síntese das críticas de Jacobs ao planejamento urbano.
A primeira frase de The death and life of great American cities parece não deixar maiores
dúvidas sobre a proposta do livro: “Este livro é um ataque aos fundamentos do planejamento
urbano e da reurbanização ora vigentes” (Jacobs, 2009, p.1). Não se trata, portanto, de apenas
criticar as principais ideias e formas de intervenção defendidas pelos planejadores urbanos,
mas de questionar as próprias bases nas quais elas se assentam. Se os alvos declarados de
forma mais direta são “o planejamento urbano e a reurbanização modernos e ortodoxos”
(Jacobs, 2009, p.1), eles são entendidos como apenas mais uma expressão das ideias que
deram origem ao planejamento urbano na virada do século XIX. Para utilizar os termos da
autora, “praticamente todo o planejamento urbano moderno é uma adaptação ou um remendo
desse material absurdo” (Jacobs, 2009, p.19). No que diz respeito aos fundamentos, não
haveria diferenças substantivas entre a cidade-jardim de Ebenezer Howard e a cidade
modernista de Le Corbusier. Ambas seriam igualmente “absurdas”. Além de defenderem uma
separação rígida entre os diferentes usos na cidade, a auto-suficiência das unidades projetadas
e de abandonarem a rua como unidade básica do traçado urbano em favor das quadras e
gramados, propostas tão distintas podem ser aproximadas na medida em que, para Jacobs, não
passam de ideais abstratos que desconsideram a vida cotidiana das cidades. Assim, a história
do planejamento urbano pode ser lida como uma série de modelos – com diferentes graus de
utopia e de aperfeiçoamento técnico – que justificam e impõem uma ordem apartada da
cidade existente.
Ambas as imagens contém essa crítica. O elogio à espontaneidade se contrapõe ao
planejamento urbano ordenador que não vê vitalidade na aparente desordem. A figura do
especialista é desestabilizada diante do conhecimento do pedestre, derivado da experiência de
viver na cidade. A legitimidade do planejamento urbano moderno é colocada em xeque. Não é
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9 Para uma discussão aprofundada sobre o caráter literário da obra de Jacobs, ver ROWAN, J. C. (2011). The literary craft of
Jane Jacobs. In: PAGE, M., MENNEL, T. (eds.). Reconsidering Jane Jacobs. Chicago: American Planning Association.
6
por outra razão que The death and life of great American cities é associado a uma mudança de
paradigma científico no urbanismo (Page, 2011, p.7; Hirt, 2012, p.1) que teria antecipado as
críticas de racionalização instrumental da vida que ganharam maior força em 1968.
II. A heroína contra o “mundo da via expressa”
O epíteto de heroína dado a Jane Jacobs se sustenta em alguns fatores. O principal deles está
no fato de que Jacobs não restringia seus posicionamentos apenas a seus livros. Ela foi uma
militante ferrenha, principalmente quando a existência de seu bairro foi ameaçada pela
construção de uma avenida exclusiva para carros. Presença frequente nas audiências públicas
da comissão de Planejamento Urbano de Nova Iorque, foi retirada à força de algumas delas e
presa em 1968 por perturbar uma reunião pública que tratava da construção de uma via
expressa que atravessaria o Lower Manhattan, despejando muitas famílias em seu caminho
(Martin, 2006). Além de todos os protestos que compõem sua trajetória de ativista, fonte de
inspiração para diversas mobilizações em Nova Iorque e em outras cidades do mundo, essa
espécie de figura mítica se consolida principalmente na relação de oposição forte com Robert
Moses. Se seus confrontos foram de fato bastante raros (Page, 2011, p.9), a literatura –
principalmente a acadêmica – foi responsável por estabelecer uma guerra campal entre dois
pólos tidos como diametralmente opostos. Como afirmei anteriormente, a análise de Marshall
Berman é a mais acabada e influente nesse sentido e, por essa razão, servirá de fio condutor
para esta parte.10
Para Berman, a década de sessenta pode ser organizada a partir de duas ordens de simbolismo
urbano radicalmente diferentes entre si (Berman, 2007, p.338). Por um lado, uma das ordens é
representada por Robert Moses, responsável pelas obras públicas que deveriam “abrir
caminho a golpes de cutelo” pela cidade, uma espécie de última figura da linhagem de
construtores que remonta ao Barão de Haussmann (Berman, 2007, p.344). Enquanto Moses é
a personificação do moderno e de seu espírito propulsor que não vê qualquer obstáculo para o
progresso, Jane Jacobs é a corporificação da resistência. Mas não se trata de uma resistência
qualquer. Para Berman, The death and life of great American cities “expressa com perfeição”
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10 A análise da relação entre Jacobs e Moses como antagonistas que relembram Davi e Golias não é exclusiva de Berman,
ainda que seja provável que ele tenha sido o primeiro a tratar da questão nesses termos. Para uma interpretação mais recente
no mesmo sentido, ver FLINT, A. (2011). Wrestling with Moses: How Jane Jacobs took on New York’s master builder and
transformed the American city. Random House: Nova Iorque.
7
uma oposição baseada numa fonte “tão moderna quanto o mundo da via expressa”: a vida
cotidiana da rua (Berman, 2007, p.369). Assim, à primeira vista, o embate entre essas duas
figuras comporia linhas de força internas ao projeto moderno.
Berman atribui a Jacobs “inúmeras profecias e sugestões corretas” (Berman, 2007, p.373),
frutos de seu radicalismo e de sua originalidade. Entre as profecias, a imagem da
espontaneidade da dança para retratar a cidade passaria a ser objeto da elaboração de diversos
movimentos artísticos já ao final da década. Outro “tema profético crucial” seria oferecer
“uma visão plenamente articulada de uma mulher sobre a cidade” (Berman, 2007, p.377), o
que permitiria reabilitar o mundo doméstico como parte da modernidade, bem como antecipar
questões que se tornariam importantes para o movimento feminista. Assim, o peso dado por
Berman ao livro é bastante grande:
Creio que seu livro cumpriu um papel crucial no desenvolvimento do modernismo;
sua mensagem era que muito do significado que os homens e as mulheres modernos
buscavam desesperados encontrava-se, de fato, surpreendentemente próximo de suas
casas, perto da superfície e nas imediações de suas vidas: estava bem ali, bastando que
soubéssemos procurar (Berman, 2007, p.369).
Os problemas de uma abordagem dual que parte do completo espelhamento de dois
personagens aparecem apenas ao final do último capítulo de Tudo que é sólido desmancha no
ar. Berman precisa quebrar a imagem da heroína que ele próprio construiu para dar conta do
ar bucólico que permeia o texto, um dos pontos de apropriação dos ideólogos da ‘nova direita’
que teriam feito de Jacobs “um de seus santos padroeiros” (Berman, 2007, p.380): “abaixo da
superfície de seu texto modernista há um subtexto antimodernista, uma espécie de
contracorrente de nostalgia (...)” (Berman, 2007, p.380). Agora a posição de Jacobs precisa
ser matizada e isso é feito a partir da relação entre texto e subtexto. A crítica que contrapõe
uma forma de planejamento urbano abstrata e desenraizada dos laços sociais a uma vida
pulsante da grande cidade estaria na superfície do livro, subjacente a uma perspectiva de
regresso a uma vida bucólica, de valorização do bairro e da família em si mesmos, entendida
como antimodernista. A dança da rua Hudson mostra uma interação bastante próxima entre
vizinhos e comerciantes que se conhecem pelo nome. Os conflitos são esporádicos e
remediados por esse todo social coeso que garante a segurança de todos. A vitalidade da
cidade é atribuída a esse tipo de sociabilidade em que o conflito é marginal. Nas palavras de
Berman, é uma visão da cidade “antes da chegada dos negros”: “[s]eu mundo abrange desde
sólidos trabalhadores brancos, na base, a profissionais liberais brancos de classe média, no
8
topo. Não existe nada ou ninguém acima; no entanto, o que é mais importante aqui, não há
nada ou ninguém abaixo – a família de Jacobs não tem enteados” (Berman, 2007, p.381). Ao
contrário de Avenida Niévski, a descrição da rua Hudson não tem qualquer fantasmagoria.
Ainda que Berman reconheça a multiplicidade de camadas que o livro oferece, parece que
texto e subtexto podem ser distinguidos e separados por completo, como se não houvesse
interpenetração entre eles. Tanto é assim que Berman primeiro coloca Jacobs e The death and
life of great American cities como representantes de um momento “crucial no
desenvolvimento do modernismo” (Berman, 2007, p.369) sem trazer qualquer elemento
antimodernista para o primeiro plano. A profetisa visionária e a mulher de classe média presa
a vínculos domésticos e tradicionais não parecem se encontrar. Se a questão for colocada
nesses termos duais, o quadro representado pelo livro encerraria uma contradição de difícil
conciliação.
III. A relação entre ordem e desordem
A proposta de uma leitura que leve as tensões internas ao pensamento de Jacobs a sério não
pode partir de uma estrutura dual, em que o problema da contradição seria resolvido pela
escolha por um dos lados em detrimento do outro, ou seja, pela adoção do viés moderno ou do
antimoderno. Para que ambos possam ser mantidos sob tensão, é preciso olhar mais de perto a
partir de que lugar a autora critica o planejamento urbano moderno. A relação que ela
estabelece entre ordem e desordem é, a meu ver, um bom caminho para essa análise.
Como já indiquei anteriormente, um dos principais pontos da crítica de Jacobs ao
planejamento urbano moderno se apoia no fato de que os planejadores desconsideram as
relações sociais que se desenrolam nas cidades. Para a autora, os urbanistas se esforçam para
entender como a cidade deveria funcionar a partir de modelos que eles próprios construíram e
não a partir de como a cidade funciona de fato: “[é] tolice planejar a aparência de uma cidade
sem saber que tipo de ordem inata e funcional ela possui” (Jacobs, 2009, p.14, grifo meu).
Há, portanto, uma ordem natural das cidades que não se resume à aparência e que deve ser
levada em consideração por um planejamento urbano que pretenda superar o estado de
9
pseudociência.11 Mas, da perspectiva do planejamento urbano moderno, essa ordem inata não
é percebida de imediato na medida em que ela surge como desordem, como parte do
“comportamento aparentemente misterioso das cidades” (Jacobs, 2009, p.12-13) ou como
enigma que os urbanistas não conseguem – e nem pretendem – decifrar (Jacobs, 2009, p.481).
As imagens utilizadas por Jacobs são, novamente, bastante fortes:
É preciso ter compreensão para ver os complexos sistemas de ordem funcional como
ordem, e não como caos. As folhas que caem das árvores no outono, a parte interna de
um motor de um avião, as entranhas de um coelho dissecado, a redação de um jornal –
tudo isso parece caótico se não for compreendido. Assim que são compreendidos
como sistemas ordenados, eles realmente são vistos de modo diferente. (Jacobs, 2009,
p.419, grifo original)
Essa ordem natural que se reproduz e regenera por si própria – tal como um organismo
(Jacobs, 2009, p.488) – é a fonte da vitalidade defendida no livro. Há inúmeras passagens em
que Jacobs explicita esse ponto: “As cidades vivas têm uma estupenda capacidade natural de
compreender, comunicar, planejar e inventar o que for necessário para enfrentar as
dificuldades” (Jacobs, 2009, p.498), “As cidades monótonas, inertes, contêm, na verdade, as
sementes de sua própria destruição e um pouco mais. Mas as cidades vivas, diversificadas e
intensas contêm as sementes de sua própria regeneração” (Jacobs, 2009, p.499). É esse plano
que os planejadores urbanos não conseguem acessar. Eles pretendem ordenar o que percebem
como caos a partir de formas subjetivas de pensamento (Jacobs, 2009, p.244), sejam elas
derivadas da tradição utópica ou realista (Jacobs, 2009, p.418). Essa ordem artificial criada
pelo planejamento urbano é fadada ao fracasso: “É a coisa mais fácil do mundo pegar
algumas formas, dar-lhes uma uniformidade rígida e tentar impor o resultado em nome da
ordem. No entanto, a uniformidade rígida, trivial, e os sistemas significativos de ordem
funcional raramente são compatíveis com a realidade” (Jacobs, 2009, p.419).
Até aqui, o argumento pode ser sintetizado da seguinte forma: as cidades são naturalmente
diversas, é a intervenção por meio do planejamento urbano que desvirtua essa vitalidade na
medida em que se opõe à interação de usos e funções, à rua como espaço público por
excelência – as ruas são entendidas como “órgãos mais vitais da cidade” (Jacobs, 2009, p.29)
– e à alta densidade populacional. A crítica feita por Jacobs pode ser descrita a partir do que
Boltanski e Chiapello denominam de crítica estética (critique artistique).12 A manifestação
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11 Jacobs faz uma analogia entre o planejamento urbano e a prática da sangria na medicina tradicional. O planejamento
estaria no mesmo estágio de superstição, apoiado em “dogmas” e “alicerces absurdos” por ainda não ter se lançado na
“aventura de investigar o mundo real” (Jacobs, 2009, p.11-13).
12 Ainda que não concorde com o conceito de crítica como um elemento funcional ao capitalismo, a distinção entre crítica
social e crítica estética ajuda a situar o posicionamento de Jacobs, principalmente no capítulo em que os autores tratam dos
10
genuína da ordem da cidade só acontece quando ela está livre de coerção, impedimentos e
limitações. Qualquer determinação externa parece limitar a possibilidade de autorrealização
na cidade. Há uma exigência de autenticidade na crítica à uniformização e à perda da
diferença, tanto que Jacobs ataca “a Grande Praga da Monotonia” (Jacobs, 2009, p.43) como
um dos efeitos perversos do planejamento urbano. E a monotonia nada mais é do que “o
oposto da interação de usos e, portanto, da unidade funcional” (Jacobs, 2009, p.142). Apesar
de Jacobs não utilizar a palavra “autenticidade”, o tema está lá13 – a ordem urbana natural
também é descrita como uma “ordem verdadeira que luta para existir e ser atendida” (Jacobs,
2009, p.14, grifo meu). Assim, apesar de Jacobs insistir na atenção às relações sociais, o foco
da crítica não é social. Despejos e falta de moradia são temas laterais no livro que, para ficar
apenas no aspecto da habitação, está muito mais concentrado na insatisfação das pessoas de
baixa renda com os conjuntos públicos, justamente em razão da falta de diversidade de usos
desses empreendimentos.
Assim, não parece haver qualquer lugar possível para o planejamento urbano, que teria sido
invalidado por completo. Essa ideia é ainda reforçada pela afirmação de que a maior parte da
diversidade é criada por agentes privados (Jacobs, 2009, p.267). Por mais que a autora
reconheça os limites de qualquer analogia biológica, a imagem da cidade como organismo
vivo, autossuficiente e capaz de se regenerar sozinho também sugere que a atuação estatal
seria desnecessária.14 Mas Jacobs deixa claro que sua pretensão é “introduzir novos princípios
no planejamento urbano e na reurbanização” (Jacobs, 2009, p.1) que partam da análise da
ordem urbana natural e que respeitem as relações sociais existentes nos bairros que serão
objeto de intervenção. A figura do Estado aparece apenas na terceira parte do livro, quando
Jacobs aponta – pela primeira vez e de forma breve – para alguns elementos de destruição da
diversidade gerados pela própria cidade ou por agentes privados. A função do planejamento
estatal seria – novamente – a de garantir a diversidade por meio de instrumentos como o
zoneamento e a tributação (Jacobs, 2009, p.280). Mas a função do Estado aparece sempre
como residual: apenas para dar um exemplo, em vez de moradias construídas pelo poder
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anos sessenta. Ver BOLTANSKI, L., CHIAPELLO, E. (2009). O novo espírito do capitalismo. Tradução de Ivone C.
Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, p.417 e seguintes.
13 Ver ELLIN, N. (1996). Postmodern urbanism. Cambridge: Blackwell Publishers, p.1-3. A autora defende que The death
and life of great American cities pode ser lido como reação à perda de sentido e do sentimento de lugar nas cidades, como
forma de buscar por uma comunidade ou centralidade.
14 Apesar dos problemas, a imagem biológica tem uma conotação positiva se considerarmos o contexto em que o livro foi
escrito. Os urbanistas modernos costumavam associar a cidade à máquina. A perspectiva orgânica pretendia tanto se
diferenciar dessa visão quanto denunciar sua ausência de humanidade, o que negaria a cidade como lugar de encontro. Para o
mapeamento dessas analogias, ver ELLIN, N. (1996). op. cit., p.242 e seguintes.
11
público, a autora defende um sistema de subsídios para que os habitantes se tornem
proprietários de suas casas (Jacobs, 2009, p.362).
A reconstrução da relação entre ordem e desordem permite ver que a crítica de Jacobs se abre
para posicionamentos bastante distintos em relação à forma de planejar a cidade. Por um lado,
a exigência de diversidade como autenticidade derivada do cotidiano é um forte argumento
contra qualquer tipo de intervenção externa, principalmente estatal. As limitações ao livre
desenvolvimento da cidade como organismo poderiam ser denunciadas como expansão da
racionalidade instrumental para todos os âmbitos da vida, como criadoras de “desencanto,
inautenticidade, [da] ‘miséria da vida cotidiana’, [da] desumanização do mundo sob o império
da tecnicização e da tecnocratização” (Boltanski, Chiapello, 2009, p.200). Por outro lado, não
é propriamente a crítica social que é endereçada, mas uma crítica da técnica como único
critério legítimo para a tomada de decisões que afetam a vida das pessoas. A figura do
especialista é colocada em xeque a todo tempo no livro, que valoriza a riqueza do
conhecimento das pessoas comuns. A relação entre ordem e desordem abre, portanto, um
flanco para o questionamento do planejamento urbano como procedimento. Isso gerou uma
“reação imediata da esquerda (...) [de] convocar os próprios planejadores para virarem a mesa
e praticarem o planejamento de baixo para cima” (Hall, 1988, p.394), movimento que serve
de base para autores como Manuel Castells e David Harvey nos anos setenta.
Considerações finais
The death and life of great American cities é um dos livros mais lidos e influentes sobre
urbanismo de que se tem notícia. A pretensão desse artigo foi a de levar os argumentos de
Jane Jacobs a sério e, portanto, apontar para limitações internas e tensões em seu pensamento.
Se o livro se tornou o solo em que se apoiam as mais diferentes visões sobre a cidade hoje,
isso exige um esforço renovado da crítica.
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