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Cad. Bras. Ens. Fís., v. 28, n. 2: p. 468-475, ago. 2011.
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DOI: 10.5007/2175-7941.2011v28n2p468
UM INTERESSANTE E EDUCATIVO PROBLEMA DE
CINEMÁTICA ELEMENTAR APLICADA AO TRÂN-
SITO DE VEÍCULOS AUTOMOTORES – A DIFE-
RENÇA ENTRE 60 KM/H E 65 KM/H+*
Fernando Lang da Silveira
Instituto de Física – UFRGS
Porto Alegre – RS
Resumo
Um vídeo educativo do Monash University Accident Research Centre ins-
pira a proposição de um problema de cinemática com um resultado con-
traintuitivo. A solução do problema tem como pressupostos conhecimen-
tos sobre a aceleração máxima possível em frenagens de emergência, bem
como do intervalo de tempo que transcorre entre a percepção do perigo
de colisão pelo motorista e o início efetivo da frenagem. A resposta intui-
tiva de um engenheiro e de diversos alunos de graduação em física é dis-
cutida. O problema exemplifica que o ensino da física pode e deve envol-
ver situações conceitualmente ricas e interessantes, em contraposição às
questões repetitivas e irrelevantes usualmente encontradas nos livros-
texto.
Palavras-chave: Cinemática. Tempo de pré-frenagem. Aceleração máxi-
ma em frenagens. Trânsito de veículos automotores.
+ An interesting and educational Elementary Kinematics problem applied to automotive
traffic. The difference between 60 km/h and 65 km/h.
* Recebido: janeiro de 2011.
Aceito: abril de 2011.
Silveira, F. L.
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Abstract
An educacional video from The Monash University Accident Research
Centre inspires a Kinematics problem proposition with a counter-intuitive
result. The problem solution must have alleged knowledge on maximum
possible acceleration in emergency braking, as well as the spent interval
between the perception of the collision danger by the driver and the
beginning of the effective braking. The intuitive answer of an engineer and
various Physics undergraduated students is discussed. The problem
illustrates that Physics teaching can and must involve rich and interesting
conceptual situations, opposed to the repetitive and irrelevant questions
that are found in textbooks.
Keywords: Kinematics. Pre-braking time. Maximum acceleration in
braking. Automotive traffic.
I. O problema
O problema que proponho a seguir foi formulado tendo como referência
um instrutivo vídeo produzido na Austrália pelo Monash University Accident
Research Centre (Centro de Pesquisa de Acidentes da Universidade Monash),
instituição dedicada à pesquisa e à prevenção de acidentes com veículos automoto-
res. O vídeo, que explicitamente alerta para o perigo do excesso de velocidade no
trânsito, com tradução de áudio para o português, é encontrado em
<http://www.youtube.com/watch?v=OeDgcTOOYdo> (acessado em 03
jan. 2011).
O vídeo mostra o que ocorre com dois carros idênticos, inicialmente lado
a lado, um a 60 km/h e o outro a 65 km/h, quando, então, os motoristas percebem o
perigo e passam à ação de frenagem.
Com o objetivo de verificar a informação divulgada ao final desse vídeo,
formulei o seguinte problema:
Diferença entre 60 km/h e 65 km/h!
Um automóvel desloca-se a 60 km/h quando o motorista avista à sua fren-
te um caminhão atravessado na pista. Transcorre um intervalo de tempo de 1 s
entre a percepção do obstáculo pelo motorista e o início efetivo da frenagem do
automóvel. A frenagem ocorre em situação ideal (pista seca, pneus desgastados,
mas em bom estado, freios ABS) e o automóvel acaba por colidir com o caminhão,
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tendo no momento da colisão sua velocidade valendo 5 km/h (nesta velocidade, a
colisão produz estragos de pequena monta). Qual seria o valor da velocidade no
momento da colisão caso o automóvel, nas mesmas condições, se deslocasse inici-
almente a 65 km/h?
II. Frenagens de automóveis em condições ideais
Este problema se presta a uma profícua reflexão, contextualizada em uma
situação verossímil e, portanto, potencialmente atraente aos alunos, ensejando, para
começar, a explicação para o intervalo de tempo de pré-frenagem de cerca de 1 s.
Tal se deve ao bem conhecido tempo de reação do condutor (0,2 a 0,4 s), acrescido
do tempo de transferência do pé (0,2 a 0,3 s) em direção ao pedal do freio e do
tempo de resposta e de pressurização (0,3 a 0,4 s) para que o sistema hidráulico
que aciona os freios efetivamente atue nas rodas (Bosch, 2005). De fato, 1 s é um
intervalo de tempo razoável para o início da frenagem, mas em algumas situações,
dependendo do estado de atenção do motorista e da integridade do seu sistema
perceptivo e de reação, poderá ser maior (ARTMANOV et al., 1976).
Em condições ideais (pneus desgastados, pista seca com pavimento asfál-
tico ou cimentado), com sistema de freios ABS – Anti-lock Breaking System
(Sistema de Freio Antibloqueante) – e em velocidades inferiores a 90 km/h, é pos-
sível se obter, durante a frenagem, acelerações médias de cerca de 36 km/h/s ou 10
m/s2. Cabe aqui um comentário importante sobre as condições dos pneus, em con-
flito com as recomendações usualmente dadas em revendas de pneus. Os pneus
novos (sem desgaste) apresentam um coeficiente de atrito estático com a estrada,
seca e pavimentada com concreto ou com asfalto, de 0,85, enquanto que os pneus
já desgastados (com profundidade de sulco na banda de rodagem não inferior a 1,6
mm) têm esse mesmo coeficiente em cerca de 1,0 (Bosch, 2005). Dessa forma,
pneus novos acarretam acelerações, em frenagens e em curvas, inferiores àquelas
que podem ser conseguidas com pneus desgastados, pois tais acelerações depen-
dem do coeficiente de atrito. Por outro lado, a possibilidade de ocorrência de acele-
rações maiores repercute em distâncias de frenagem menores, bem como maior
segurança nas curvas. A troca de pneus deve, preferencialmente, ocorrer com dois
deles apenas, colocando-se os pneus novos no eixo traseiro do automóvel. Nas
frenagens de emergência os pneus que mais colaboram para o efeito de “segurar” o
automóvel são os pneus dianteiros e por isto não devem ser novos.
Silveira, F. L.
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III. Resposta intuitiva ao problema
Tomei conhecimento do vídeo, que serve de inspiração para o problema
proposto, através de um aluno do Curso de Licenciatura em Física, que me questi-
onava sobre o resultado surpreendente e contraintuitivo apresentado no vídeo. O
aluno expressava dúvidas sobre a plausibilidade do que o vídeo expõe e pedia a
minha opinião. O vídeo indica que, no momento da colisão, a velocidade do auto-
móvel mais veloz (lembremos que inicialmente os automóveis se movimentavam,
um a 60 km/h e o outro a 65 km/h) excede em 27 km/h a velocidade de colisão do
automóvel menos veloz (enquanto um automóvel atinge o caminhão a 5 km/h, o
outro o atinge a cerca de 32 km/h). O resultado intuitivo para o problema, apresen-
tado pelo aluno que me questionava sobre a verossimilhança do que assistia no
vídeo, era de que a diferença inicial de 5 km/h, entre as velocidades dos dois car-
ros, se conservasse até a colisão.
No dia seguinte à chegada do questionamento, eu o repassei para diversos
alunos de Física e, de um modo geral, eles se mostraram surpresos com o que vi-
am, verbalizando sua intuição de que, até a colisão, haveria conservação da dife-
rença entre as velocidades dos dois veículos.
Ao repassar o vídeo para outras pessoas com formação científica, afian-
çando eu a verossimilhança do que lá é apresentado, recebi de um engenheiro o
comentário que transcrevo literalmente: A intuição nos diria que, na hora da bati-
da, a diferença de velocidade entre os dois carros deveria ser os mesmos 5 km/h
do momento do início da freada! Vou aguardar tua explicação.
IV. A solução do problema
No problema que formulei na Seção 1, temos um único automóvel, em
duas situações que diferem apenas pela velocidade inicial, que é conhecida em
ambas as situações. É dada, também, a duração do intervalo de tempo de pré-
frenagem, e assumirei agora um valor para a aceleração de frenagem compatível
como as informações da literatura (vide seção 2). Conhecida a velocidade no mo-
mento da colisão, para a situação de menor velocidade inicial, queremos calcular
com que velocidade colidirá o automóvel, na situação de maior velocidade inicial.
O deslocamento total dT do automóvel na situação de menor velocidade inicial,
desde o momento em que o motorista percebe a presença do caminhão até o mo-
mento da colisão, é a soma de dois deslocamentos (vide a Fig. 1): o deslocamento
d1, durante o intervalo de tempo tPF = 1 s, de pré-frenagem, que ocorre com veloci-
dade constante v1 = 60 km/h = 16,7 m/s; e o deslocamento d2, durante a etapa
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em que o automóvel efetivamente freia com aceleração constante a = -10
m/s2. Esse segundo deslocamento é facilmente calculado, pela equação de Torri-
celli, pois são conhecidas as velocidades v1, no início, e v2, no final da frenagem
(no momento da colisão com o caminhão, v2 = 5 km/h = 1,39 m/s). Assim,
்݀ൌ݀
ଵ݀
ଶൌݒ
ଵǤݐ
ி ௩మ
మି௩భ
మ
ଶǤ . (1)
Representemos, agora, por DT o deslocamento do automóvel na segunda
situação, desde o momento que o motorista percebe o caminhão até a sua colisão.
Novamente, esse deslocamento é a soma de dois deslocamentos: o deslocamento
D1, durante o intervalo de tempo de pré-frenagem tPF = 1 s, que ocorre com veloci-
dade constante V1 = 65 km/h = 18,1 m/s; e o deslocamento D2, durante a etapa em
que o automóvel efetivamente freia com aceleração constante a = - 10 m/s2. Da
mesma forma que na situação anterior, usaremos a equação de Toricelli para ex-
pressar esse segundo deslocamento em função das velocidades V1 e V2, no início e
no final da frenagem, respectivamente. Assim,
Fig. 1 - O deslocamento do automóvel até o momento da colisão.
ܦ்ൌܦ
ଵܦ
ଶൌܸ
ଵǤݐ
ி
మ
మି
భ
మ
ଶǤ . (2)
Evidentemente, os deslocamentos dT e DT, dados pelas expressões (1) e
(2), são iguais. Portanto, podemos escrever:
ݒଵǤݐ
ி ௩మ
మି௩భ
మ
ଶǤ ൌܸ
ଵǤݐ
ி
మ
మି
భ
మ
ଶǤ (3)
do qual, isolando V22, e usando o fato de que a = -|a|, obtemos:
ܸଶ
ଶൌܸ
ଵ
ଶݒ
ଶ
ଶെݒ
ଵ
ଶʹǤȁܽȁǤሺܸ
ଵെݒ
ଵሻǤݐ
ி. (4)
Silveira, F. L.
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Substituindo em (4) os valores conhecidos das velocidades ݒଵ, ݒଶ, ܸ
ଵ, do
tempo ݐி de pré-frenagem, e da aceleração a durante a frenagem, determinamos
ܸଶ
ଶൌͺǡͷమ
௦మ , (5)
e, finalmente, a velocidade procurada:
ܸଶൌ ͺǡͺ
௦ ؆ ͵ʹ
. (6)
Concluímos, portanto, que, caso o automóvel se deslocasse inicialmente a
65 km/h, sua velocidade no momento da colisão seria de 32 km/h. Esse valor cor-
robora a informação divulgada no vídeo. O vídeo é impactante, pois mostra o au-
tomóvel mais veloz “mergulhando” por baixo da carroceria do caminhão e, portan-
to, danificando diretamente a cabine dos passageiros. Dessa forma, o vídeo de-
monstra dramaticamente que aquela pequena diferença entre as velocidades iniciais
pode determinar colisões com consequências muito diversas.
A expressão (4) é útil para uma discussão adicional. Ela pode ser reescrita
da seguinte forma:
ܸଶ
ଶെܸ
ଵ
ଶൌݒ
ଶ
ଶെݒ
ଵ
ଶʹǤȁܽȁǤሺܸ
ଵെݒ
ଵሻǤݐ
ி. (7)
Caso o tempo de pré-frenagem tPF pudesse ser desprezado (melhor situa-
ção possível para o automóvel mais veloz) haveria conservação da diferença entre
os quadrados das velocidades iniciais, isto é, a diferença entre os quadrados das
velocidades no momento da colisão seria a mesma diferença entre os quadrados
das velocidades iniciais. Dessa forma, para velocidades iniciais de 60 km/h e 65
km/h, a expressão 7 resulta em
ܸଶ
ଶെͷଶൌݒ
ଶ
ଶെͲଶ, (8)
ܸଶ
ଶെݒଶ
ଶൌͷ
ଶെͲଶൌ ʹͷ మ
మ. (9)
A diferença de 625 km2/h2, entre os quadrados das velocidades iniciais,
manter-se-ia e assim, se o automóvel inicialmente menos veloz tiver velocidade de
5 km/h no momento da colisão, o automóvel mais veloz se chocaria com uma ve-
locidade de ξʹͷ ʹͷ ؆ ʹͷȀ. Fica assim bem demonstrado que, contraria-
mente à intuição dos alunos e do engenheiro, a diferença entre as velocidades dos
automóveis, no momento da colisão, é de, no mínimo, (25 - 5) km/h = 20 km/h,
sendo esta diferença ampliada quando se considera tempos de pré-frenagem realis-
tas.
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Finalmente, a resposta que dei ao questionamento do engenheiro (vide o
final da seção 3) foi a seguinte:
Quanto à tua intuição primeira (sobre a conservação da velocidade rela-
tiva, ou seja, da conservação da diferença de 5 km/h) está correta dado que as
acelerações dos dois carros durante a frenagem são iguais, mas tal se aplica ao
mesmo instante de tempo. De fato, os eventos de colisão são temporalmente dife-
rentes, considerando que o início das frenagens é simultâneo como proposto no
vídeo. Explicando melhor, quando o automóvel mais veloz colide, então a 32 km/h,
a velocidade do outro automóvel é 27 km/h. Mas o automóvel menos veloz ainda
está distante do caminhão (ainda não bateu) e continuará a ser freado durante
mais algum tempo, colidindo, portanto, a uma velocidade menor ainda, amplian-
do, assim, a diferença entre as velocidades de colisão para os dois carros.
A Fig. 2 representa os dois automóveis inicialmente alinhados e depois,
quando o automóvel mais veloz colide com o caminhão a 32 km/h, o outro auto-
móvel se movimenta a 27 km/h mas lhe resta (como é fácil demonstrar) cerca de 3
m de espaço para frenagem até bater, então a apenas 5 km/h.
Fig. 2 - Representação dos dois automóveis inicialmente alinhados e de-
pois quando o mais veloz colide com o caminhão.
V. Conclusão
Este instrutivo e interessante problema possui outras abordagens possí-
veis. Aqui, restringi-me a tratá-lo cinematicamente; uma abordagem dinâmica, por
exemplo a partir do Teorema Trabalho - Energia Cinética, é possível também.
Entretanto, intencionalmente o resolvi dessa forma, com o objetivo de mostrar que
a cinemática pode (e deve, em nossa opinião) ser desenvolvida em contextos inte-
Silveira, F. L.
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ressantes e desafiadores, conceitualmente ricos, evitando os problemas maçantes e
de mera aplicação de fórmulas.
Finalmente, transcrevo o pertinente comentário de um dos dois árbitros
ad-hoc do CBEF que julgaram o artigo:
O artigo apresenta uma situação simples e extremamente relevante que cer-
tamente vai interessar aos alunos do Ensino Médio e, mais importante ain-
da, acessível até mesmo àqueles que estão iniciando o seu estudo de física
no Ensino Médio. É claro que isso só vai ocorrer se o professor iniciar o
curso pela cinemática, procedimento criticado por muitos educadores da
área de ensino de física, em geral sob a insensata alegação de que “cinemá-
tica não é física”. Se não o for, este artigo trata do que?
É verdade que o ensino da cinemática costuma ser lamentavelmente esten-
dido ou inchado com problemas repetitivos e irrelevantes, mas essa não me
parece razão suficiente para propor a sua exclusão. Que conteúdo da Física
não costuma sofrer essa deformação no Ensino Médio?
Agradecimento
Agradeço à Profa Maria Cristina Varriale do IM-UFRGS pela leitura crite-
riosa e pelas sugestões apresentadas. Agradeço também aos árbitros do CBEF por
comentários e sugestões dadas.
Bibliografia
ARTMONOV, M. D.; ILARIONOV, V. A.; MORIN, N. M. Motor vehicles.
Moscou: MIR, 1976.
BOSCH, R. Manual de tecnologia automotiva. São Paulo: Edgard Blücher,
2005.