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Apontamentos sobre a educação na Antídosis de Isócrates
Diogo Quirim
Doutorando em História ― UFRGS
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diogoquirim@gmail.com
Resumo: A Antídosis de Isócrates é um texto escrito entre 354-353 a.C., em que realiza
uma ampla defesa de seu modelo de formação para os cidadãos e de sua filosofia.
Analiso, então, alguns aspectos dessa educação, não ambicionando uma abordagem
geral, mas selecionando alguns tópicos que enfatizam a relação de sua paideía com a
contingência, com as limitações e condições para o conhecimento humano e com as
deliberações sobre o futuro da pólis. Acusado de corromper a juventude ateniense e
transformar em forte o argumento fraco, discorro sobre como Isócrates defende uma
“educação sobre os discursos” sem, com isso, apresentar apenas a persuasão como
finalidade, prevalecendo o contato entre a linguagem e as circunstâncias, entre os lógoi
e os kairoí.
Palavras-chave: Isócrates; paideía; kairós; filosofia; retórica.
●
Entre os anos de 354-353 a.C., Isócrates escreveu um texto intitulado Antídosis,
que apresenta um julgamento fictício do próprio Isócrates, sendo acusado por um
personagem chamado Lisímaco de corromper a juventude ateniense, ensinando-lhes a
fazer com que o argumento mais fraco pareça o mais forte, e enriquecer-se com o seu
ensino, não assumindo a responsabilidade dos custos de uma trierarquia. O texto, no
entanto, é mais do que uma peça jurídica, representando uma das maiores referências
que temos sobre o ensino de Isócrates e sua philosophía, posto que, por trás de toda a
narrativa constituída diante de um júri, aflora no texto como elemento distintivo uma
defesa do próprio modelo de formação da juventude ateniense que propunha.
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Orientado pelo Prof. Dr. Anderson Zalewski Vargas.
2
Pretendo, nessa comunicação, abordar alguns aspectos da paideía isocrática no
texto da Antídosis, sem a ambição de realizar uma análise geral de suas características,
utilizando referências conceituais muito particulares para delinear a minha
interpretação. Isócrates explicita sua preocupação com o futuro da pólis almejando uma
educação que forme jovens capazes de deliberar, se expressar e atuar politicamente.
Contudo, também ressalta a imprevisibilidade inerente às nossas deliberações, disposta
por um futuro intangível e pela fugacidade do nosso conhecimento em um mundo
móvel e mutável. A pergunta a fazermo-nos diante da educação isocrática é: como
formar os jovens para que conduzam a comunidade politicamente para um bom futuro,
sendo que o futuro é algo incognoscível?
●
Relendo o texto da Antídosis para compor esta apresentação, fiquei bastante
encantado com uma passagem em que Isócrates retrata parcela da juventude ateniense.
Costuma ser, para mim, profundamente estimulante encontrar trechos de textos antigos
que apresentem ou aspectos muito similares à nossa vida cotidiana contemporânea, ou
radicalmente diversos. Isócrates alerta que a grande difamação contra os sofistas,
presente em Atenas desde a popularização desses pensadores e professores geralmente
itinerantes, fez com que os jovens passassem o seu tempo bebendo, em festas, reuniões,
na vadiagem e na boa vida como um todo, descuidando-se de se instruírem para
melhorar como cidadãos, refrescando o seu vinho nas Nove Fontes,
2
ou embriagando-se
nas tavernas, ou, ainda, dedicando-se ao jogo e em busca de mulheres nas escolas das
flautistas. Em vez de detratar aqueles que se ocupam da educação dos jovens e acusá-los
de corrompê-los, deveriam agradecer tais mestres por afastar os jovens de hábitos
perniciosos. (Antídosis, 286-287). A falta de exotismo nas ocupações a que se dedicava
a juventude ateniense não é, entretanto, o que pretendo aqui ressaltar. Interessa-me,
sobretudo, a questão que subjaz esse texto, e que, de certa forma, é o mote para a
composição de todo o discurso da Antídosis: como queremos preparar os jovens para o
exercício da cidadania em Atenas e de que maneira a educação pode alterar os futuros
da pólis.
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Ou fonte dos “nove canos”, enneákrounos, também chamada de Kallirróē, instalada pelos Pisistrátidas,
localizada próximo à Acrópole.
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A presença de uma inquietação com o futuro da pólis através do modo como a
educação se processa, em Isócrates, assume contornos interessantes. Em Contra os
sofistas, logo no início do texto, é dito que o futuro é algo imprevisível para os homens,
e sobre ele não pode haver conhecimento, pois mesmo os deuses são apresentados, em
Homero, deliberando acerca das decisões a serem tomadas. (Contra os sofistas, 2). À
primeira vista, essa informação me pareceu bastante banal e corriqueira; no entanto,
enquanto mais me aprofundei nos textos isocráticos, percebi que podemos sugerir
conexões com outros aspectos de sua philosophía. O tema não é novo nos textos gregos
do período, e, inclusive, lembro-me de uma passagem do Elogio de Helena, de Górgias.
Nela, pode ser interpretado que, se tivéssemos memória acerca de todas as coisas do
passado, conhecimento das do presente e previsão das que viriam a ser no futuro, os
lógoi seriam sempre os mesmos. (Elogio de Helena, 11). Não haveria discordância,
visto que há onisciência. Não haveria debates, dúvidas, distintos discursos buscando
sobrepor-se uns aos outros, nem deliberação acerca do que é melhor, mais justo ou mais
útil para a pólis. Em suma: não haveria retórica. No entanto, como essas lembranças do
passado, o saber acerca do presente e a antevisão do futuro não são típicos da natureza
humana, só podemos ter opiniões e nada mais que isso, mesmo que elas sejam
vacilantes e inseguras. O texto de Górgias situa um importante capítulo dos debates
sobre o que são epistḗmē e dóxa, sobre até onde é possível aos homens conhecer e qual
a função da linguagem nesse processo de conhecimento.
Se Isócrates foi influenciado pelo texto de Górgias, é impossível para nós sabê-
lo, e talvez nem seja a indagação de maior importância (embora pareça conhecê-lo,
como refere em seu próprio Elogio de Helena). Por outro lado, há alguma sincronia nos
textos no que diz respeito à restrição da condição do conhecimento humano às dóxai.
Tanto em Contra os sofistas quanto na Antídosis, os textos de Isócrates apontam para a
impossibilidade de o conhecimento humano alcançar um saber total sobre as coisas,
estável e perene, que antecipe o futuro e ilumine as decisões a tomarmos com
infalibilidade. Todavia, Isócrates não parece descuidar da noção de verdade. Traçar o nó
entre essa aparente contradição presente no pensamento isocrático, que, por um lado,
erige o conhecimento humano sobre um mundo movediço e incerto, e, por outro, critica
a falta de interesse de alguns com o lógos verdadeiro não é tarefa fácil nem legível de
forma evidente em suas obras.
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Traço a minha interpretação acerca das relações entre o lógos e a sua
legitimidade, validade, ou até verdade — termo sempre difícil — em Isócrates a partir
do modo como a noção de kairós surge em seus textos. Kairós é uma palavra indicativa
de um modo de conceber o tempo, que se distancia do tempo cronológico, da sucessão,
da causalidade e da continuidade. Kairós é o tempo da particularidade em vez da
perenidade, é o caso, a singularidade, o presente com aquilo que ele tem de único e não
passível de repetição, um agora com todas as circunstâncias que o fazem peculiar. É a
temporalidade da contingência. Gosto de pensar o kairós através do ditado “estar no
lugar certo, na hora certa”, pois ele subjaz duas acepções importantes: a) a
oportunidade que surge graças às configurações não repetíveis de tempo e espaço (ou
quaisquer outras marcas da ocasião particular); b) as circunstâncias configuradas de
forma tal ― única e fugaz ― que fazem emergir a oportunidade. Tanto na Antídosis
como em Contra os sofistas, Isócrates afirma que os lógoi e as dóxai, ou seja, a
linguagem e o pensamento, de acordo com a sua concepção, devem participar do kairós.
(Antídosis, 183-184; Contra os sofistas, 13 e 16). A validade do discurso, então, não
está em suas asserções universalizantes e perenes, mas em sua intrínseca relação com a
contingência, com as circunstâncias de sua formulação. A relação entre verdade e
tempo, em Isócrates, não se desloca para a eternidade, mas para o tempo histórico.
3
Pensar a proposta de Isócrates para a educação da juventude ateniense, logo, não
é compatível com a busca de uma formação ideal do cidadão para a construção de uma
cidade incorruptível; pelo contrário, é educar os jovens para os desafios de um futuro
incerto, acerca do qual não há presciência, e sobre o qual as decisões devem ser tomadas
em um presente cujo diagnóstico não é menos vacilante e incerto. A pólis é como uma
embarcação rumando ao futuro em um mar turbulento, e a paideía deve visar à
preparação dos futuros timoneiros a guiá-la nessas circunstâncias movediças e
desafiantes.
●
A educação ministrada por Isócrates não se confundia com aquela da infância,
cujo cerne era as figuras do paidotríbēs, do kitharistḗs e do grammatistḗs. Os sofistas
3
Para uma exposição e argumentação detalhadas sobre o termo e noção de kairós em Isócrates, consultar
a minha dissertação de mestrado, em que me aprofundo no tema. (QUIRIM, 2014).
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em geral — se é que podemos utilizar este nome sem muitas ressalvas — praticavam
uma formação mais especializada, para jovens que ensaiavam sua entrada na vida
pública, que ambicionavam uma formação para tal e tinham condições financeiras para
arcar com os seus custos. Já ouvi muitas comparações entre a educação sofística e uma
espécie de “surgimento de um ensino superior”; apesar de tentadora, a analogia é
forçada e radical. No entanto, certamente, visava o desenvolvimento de uma elite
intelectual e política dentro da pólis. Os alunos de Isócrates, segundo o próprio texto da
Antídosis, permaneciam com ele de 3 a 4 anos (Antídosis, 87-88), realizando um estudo
e aprendizado aprofundados sobre os lógoi — palavra que surge para nós, aqui, como
enigma.
Isócrates define a sua philosophía e paideía — termos dificilmente separáveis
em seus textos — como a “educação sobre os discursos” (perí tḗn tṓn lógōn paideían),
ou mesmo a ocupação de quem lida com os discursos (tḗn tṓn lógōn melétēn).
(Antídosis, 180-182 e 177-179). Apenas a partir dessa definição, seria possível escrever
uma tese completa e rica, mas me arrisco a algumas observações. Já em Contra os
sofistas, coincidente com o início de suas atividades docentes, Isócrates procede a um
intenso ataque contra outros educadores contemporâneos, dentro os quais os erísticos,
que prometiam o ensino da virtude e o caminho para a felicidade, os que ensinavam os
discursos políticos, que pouco se preocupavam com a verdade do que diziam, e os
escritores de manuais de retórica, que transmitiam procedimentos fixos para a
composição de discursos, ignorando as circunstâncias diversas em que eles eram
necessários. A todos, ataca-os como sofistas. Na Antídosis, o termo sophistḗs recebe
contornos menos claros. Ora, indica seus adversários e intelectuais desqualificados, ora,
assume acepção positiva e louvável.
4
Aos sofistas, geralmente foi atribuído esse
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No início do texto (1-3), por exemplo, sugere que alguns sofistas falam mal de sua profissão e afirmam
caluniosamente que Isócrates se dedica a discursos judiciais, o que seria, para ele, o mesmo que
considerar Fídias um copista ou criador de miniaturas. Logo em seguida (4-5), também se diferindo dos
sofistas, reclama que exageram a sua riqueza e que o confundem com tais pensadores. Outra passagem,
muito incômoda para os que abordam os intelectuais do período tentando separá-los claramente entre
filósofos e sofistas, faz parecer que os termos são intercambiáveis e podem até atuar como equivalentes,
pois descreve os filósofos, através das palavras que um amigo de Isócrates tivera lhe dito, realizando
epideíxeis em festas e reuniões privadas, competindo entre si, prometendo coisas exageradas, se irritando
e se injuriando mutuamente; frases após, o texto afirma que Isócrates vive de modo diverso desses
sofistas (146-148). Mesmo equivalendo aqui filósofos e sofistas, nosso autor intitula-se, em outros
momentos, um philósophos. Adiante, afirma Isócrates que o maior e mais belo ganho para um sofista é
que alguns de seus discípulos tornem-se homens honrados, sensatos e com boa reputação entre os
cidadãos, pois, assim, fazem boa propaganda da própria paideía, incluindo-se, aqui, claramente, entre os
sofistas (217-220). Em outros momentos, faz elogios ao termo sofista (235-236), apresentando a antiga
boa acepção do termo em heptá sophistṓn, e defende que a difamação sofística é prejudicial para Atenas,
já que ela é a cidade do ensino do lógos por excelência (295-302). Tentar resolver as contradições e
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interesse na linguagem, nos discursos e na persuasão irresponsável com a verdade,
crítica consumada de forma drástica no Górgias platônico, que talvez consista em um
dos mais violentos e ressonantes ataques à retórica. Contudo, Isócrates, que parece
buscar ora um afastamento em relação à má fama sofística, ora uma reabilitação do
próprio termo, intitula o seu ensino como uma educação sobre os lógoi. O que podemos
entender disso?
Uma das acusações contra Isócrates apresentadas pelo personagem Lisímaco na
Antídosis é a de que seu ensino visava instruir os jovens a fazer com que o argumento
mais fraco parecesse o mais forte. (Antídosis, 14-15). Tal investida era bastante comum
contra o ensino sofístico no período, sendo muito bem representada, ainda no século
anterior a Isócrates, no diálogo entre o Discurso Justo (díkaios lógos) e o Discurso
Injusto (ádikos lógos) em As Nuvens, de Aristófanes. Este diálogo apresenta duas
formas de educação que passariam a entrar em conflito durante os séculos V e IV a.C.
em Atenas, gerando muitas disputas em torno de qual seria o melhor modelo de
formação para a juventude ateniense e para o futuro da pólis. De um lado, o díkaios
lógos se mostra como a educação antiga e tradicional, calcada nas figuras do kitharistḗs
e do paidotríbēs, marcadamente física e aristocrática, exaltando virtudes como a
sophrosýne e demonstrando certa desconfiança com os que se ocupam excessivamente
dos assuntos da ágora. Por outro lado, o ádikos lógos desenha a sofística em seu ápice
no período da composição da peça, o amor pelos debates e pelos discursos, as
constantes problematizações em torno da contraposição entre nómos e phýsis, e a
habilidade de fazer com que as coisas injustas soassem justas e vice-versa através do
poder da persuasão. (ARISTÓFANES, As nuvens, 960-1080). A acusação de Lisímaco,
de certo modo, repercute a intensa desconfiança que pairava na população ateniense
diante daqueles que ensinavam as habilidades concernentes ao lógos, que Isócrates, na
Antídosis, busca desfazer, apresentando com mais detalhes de que se trata a sua
philosophía, ou a sua perí tḗn tṓn lógōn paideían.
Um dos trechos mais importantes e belos, a meu ver, no texto da Antídosis, é um
elogio ao lógos, que delineia a centralidade da importância da linguagem em sua
dissonâncias presentes entre os termos philosophós e sophistḗs em Isócrates é, por um lado, buscar um
significado original da palavra, puro, a ser alcançado pela nossa investigação e, por outro, projetar uma
precisa distinção entre filosofia e sofística que esteve em jogo diversas vezes na tradição ocidental, e que
jamais foi ponto pacífico. Os termos em Isócrates são, como todos os termos, amplos, complexos,
ambíguos e ambivalentes. Para mim, o texto isocrático não se autocontradiz, mas constrói uma noção de
filosofia particular e diversa da platônica e da aristotélica, muito consagradas pelo cânone filosófico
posterior.
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educação. Para Isócrates, de todas as coisas que existem na natureza humana (en tḗi tṓn
anthrṓpōn phýsei), o lógos é a causa de muitos bens,
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pois, em outras qualidades que
temos, somos inferiores aos animais, como em rapidez ou em força. No entanto, nos
humanos, existe a capacidade de persuadirmo-nos mutuamente e de, através do lógos,
esclarecer aos outros sobre as decisões que tomamos, e essas características fizeram
com que nos afastássemos da vida selvagem e nos reuníssemos em póleis,
estabelecendo leis (nómoi) e descobrindo especialidades (téchnai). Sem o lógos,
portanto, não haveria leis e nem as especializações do conhecimento constituintes da
nossa cultura. Além disso, o justo e o injusto, o belo e o feio, em Isócrates, não são
objetos ou entes a serem alcançados pela nossa cognição, mas categorias estabelecidas
pela vida política, civilizada e cultural através do lógos. A linguagem está em tudo, e
permitiu que vivêssemos em comunidade. Expressar-se com propriedade é a maior
prova de que se pensa bem e validamente; as ideias, as crenças e a linguagem são
categorias entretecidas em Isócrates. Um lógos verdadeiro, então, é o reflexo de uma
alma boa (psychḗ agathḗs) e confiável (pistḗs). As crenças (pístesin) com as quais
buscamos persuadir os demais ao falar são as mesmas que utilizamos em nossas
reflexões, e chamamos rhetorikoí quem tem a capacidade de se expressar publicamente.
Em nada do que se faz com a inteligência deixa de estar o lógos; ele é o guia de todos os
nossos pensamentos e ações, e quem se destaca por sua sabedoria deve aprender a bem
utilizá-lo. Não estranha, com isso, que o ensino de Isócrates seja nele enraizado.
(Antídosis, 253-257).
Lidar com a persuasão para tornar forte o argumento fraco ou justo o injusto,
acusação dirigida por Lisímaco no texto, não é algo compatível para Isócrates com a sua
philosophía. Apesar de sua educação se propor a conferir um lugar privilegiado à
linguagem, não pretende que essa linguagem se desvincule de uma noção de verdade ou
de validade, mesmo que de modo muito peculiar e contingencial. Na Antídosis,
Isócrates critica os “antigos sofistas”, dentre os quais inclui Empédocles, Alcmeão,
Parmênides, Melisso e Górgias, por perderem-se em divagações ontológicas. Isócrates
parece, para mim, estar interessado na associação da linguagem/pensamento com as
circunstâncias, e a validade do discurso é inseparável dos kairói e da contingência. A
busca por entes a serem entendidos pela cognição e ditos pela linguagem, de existência
exterior ao sujeito e perenes no mundo, para Isócrates, constitui “minúcias exageradas”
5
Há discurso semelhante em Nícocles (5-9).
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(perittologías) e truques de pensamento (thaumatopoías), que não beneficiam a
ninguém e não devem compor o cerne da educação. A philosophía não é a busca dos tá
onta, e o saber é inseparável da política. Outras disciplinas, como a astronomia e a
geometria, na Antídosis, não são consideradas como prejudiciais aos alunos. Pelo
contrário, são úteis. Embora não sejam úteis para os assuntos públicos e não beneficiem
a não ser àqueles que delas se ocupam, quem se dedica à astronomia e à geometria está
obrigado a depositar a sua atenção em assuntos difíceis, e, por estarem acostumados
com essas disciplinas, podem aprender com facilidade e rapidez os assuntos mais
complexos — o que Isócrates chama de philosophía. Contudo, não se pode chamar de
philosophía uma atividade que, nas circunstâncias presentes (en tṓi parónti), não ajude
a falar e a agir. (Antídosis, 261-269).
●
Uma das descrições da paideía e da philosophía apresentadas por Isócrates no
texto da Antídosis merece uma atenção mais prolongada. A nossa natureza humana se
compõe, descreve, de uma divisão básica entre corpo e alma, entre sṓma e psichḗ. Entre
elas, a psichḗ se distinguiria como a mais louvável, pois é sua tarefa deliberar sobre os
assuntos privados e públicos, enquanto ao corpo, cabe-lhe apenas obedecer aos
julgamentos da alma. Os antepassados (de Isócrates) teriam percebido que diversas
especialidades — téchnai — acerca de muitos temas haviam se estabelecido; todavia,
nada de semelhante existia para a psichḗ e para sṓma. Então, duas especialidades foram
criadas e transmitidas de geração em geração: para o corpo, criou-se a paidotribikḗ, da
qual uma parte é a ginástica (gimnastikḗ); para a alma, criou-se a philosophía. A
educação de Isócrates, com isso, forma-se como um assunto estritamente mental.
(Antídosis, 180-182).
Ambas as téchnai — a ginástica e a filosofia — são unidas e antistróficas
(antistróphous kaí sýzygas). O termo antístrophos tem outra ocorrência muito
importante na retórica grega, sendo o modo como Aristóteles, em sua Retórica,
contrapõe a disciplina em relação à dialética. (Retórica, 1354a). O termo é tomado de
debates e interpretações possíveis. No texto isocrático, parece sustentar que a filosofia é
contraposta e correlata à ginástica, sendo de forma semelhante para a mente ao que a
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ginástica é para o corpo, embora, todavia, corpo e alma sejam categorias aqui em
oposição inseparável. Através da ginástica e da filosofia, os professores fazem os corpos
mais saudáveis e as almas mais inteligentes (phronimōtéras), e as duas formas de
educar, paralelamente, usam exercícios (gymnasíais) e outros cuidados. A filosofia,
então, para Isócrates, é uma espécie de ginástica para o pensamento/linguagem. Pois,
enquanto os paidotríbai ensinam as posições e as formas do exercício gímnico, os
professores da philosophía ensinam os procedimentos (tás idéas) que o lógos utiliza.
Optei por traduzir idéa por procedimento e não por forma para não induzir ao
pensamento de que Isócrates instruía os seus alunos para que utilizassem métodos fixos
na composição dos seus discursos, prática que ele mesmo critica com veemência em
Contra os sofistas. (12). Embora, também em Contra os sofistas, Isócrates apresente os
procedimentos necessários para a composição de um discurso ― muito semelhantes ao
que a tradição retórica viria a chamar de invenção, elocução e disposição, além da
consideração do kairós (16-17) ―, não acredito que os procedimentos (idéai) referidos
nesse trecho da Antídosis possam se limitar a esses. Na sequência, Isócrates propõe que
se examine e exercite esses procedimentos através dos quais o lógos se manifesta, uma
analogia ao exercício da ginástica. Ainda, a linguagem/pensamento ― lógos e dóxa ―
deve ajustar-se o melhor possível às circunstâncias contingentes, ou seja, ao kairós. No
entanto, em todos os assuntos, as circunstâncias escapam ao conhecimento certeiro —
epistḗmē —, e essa associação entre um conhecimento nunca absoluto e atemporal,
habitando as dóxai, e as circunstâncias singulares e únicas do presente é o desafio a que
se propõe a educação isocrática, visando preparar a juventude para as decisões e
discussões permeadas de incertezas características da política.
Não me escapa, ao ler essa analogia traçada pelo texto isocrático entre a
ginástica e a política, a lembrança do Górgias platônico. Nele, a retórica é
desconsiderada como uma téchnē por se tratar de crença e não de conhecimento, numa
oposição entre epistḗmē e pístis que seria inconcebível nos textos isocráticos, pois,
neles, a epistḗmē sobre o que fazer e dizer não é da natureza humana. No Górgias, a
retórica é um eídōlon da política, uma imagem falsa, corrompida, um simulacro da
verdadeira téchnē. Enumerando uma série de especialidades e suas corruptelas, o
Sócrates de Platão apresenta a ginástica como uma especialidade contraposta à
culinária; esta, visaria apenas ao prazer, enquanto a ginástica visaria ao bem do corpo,
mesmo que se necessitasse de algum desprazer para alcançá-lo. Há um incômodo
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importante no Górgias com os aspectos do agrado ao auditório proporcionado pela
retórica, com a adaptação às circunstâncias em que se discursa para fins de
convencimento, abrindo mão da verdade e da busca do bem para a pólis, com o mero
intuito de persuadir. Por isso, a retórica é chamada de kolakeía, uma adulação ou
lisonja, já que está entrelaçada com as necessidades das circunstâncias e não desvia para
a busca de um bem maior e perene, objeto de conhecimento, que possa causar dor aos
ouvintes por ser desagradável em seu o processo de busca, mas necessário tal qual a
intervenção cirúrgica de um médico almejando a cura. (PLATÃO, Górgias, 454c-466a).
É difícil sabermos o quanto da retórica de Górgias há na perí tḗn tṓn lógōn paideían de
Isócrates. No entanto, me parece que aquilo que desagrada Platão sobre a relação entre
linguagem e verdade — a contingência, as circunstâncias e a mutabilidade — é a
prerrogativa para Isócrates de um lógos válido e coerente, estabelecendo, entre ambos
os textos, uma profunda tensão, riquíssima para a nossa tradição filosófica. Se a política,
em Platão, deve visar o bem da pólis, em Isócrates, a ideia de um bem atemporal e
cognoscível é inexistente, pois tudo é circunstancial, questionável, disputável e fluido.
●
Peço a permissão para realizar uma breve digressão que, todavia, será útil para
os nossos propósitos. Ao delinear essa tensão que emerge da leitura comparativa dos
textos platônicos e isocráticos, que contrapõe, de um lado, ambições de estabilidade e
perenidade no conhecimento e na linguagem e, de outro, expectativas de adequação com
as circunstâncias e com a contingência, recordei-me de um trecho do texto Dissoí lógoi,
de autoria desconhecida, mas que reproduz em suas linhas muito acerca dessas
contradições presentes no pensamento filosófico grego do período.
O texto afirma que existem dois discursos sobre o justo e o injusto, sobre o bom
e o ruim e o belo e o feio. Um deles defende que o belo é uma coisa e o feio é outra, e
assim por diante nas outras categorias. O outro, por sua vez, afirma que o belo e o feio
são a mesma coisa, ou a mesma coisa é ambos, ora bela, ora feia, ou bela para algumas
pessoas e feia para outras. O autor afirma defender esse segundo argumento, e passa a
elencar uma série de exemplos de costumes do período, dos quais aponto alguns: para as
mulheres, é belo banhar-se dentro de casa e feio fazê-lo na palestra, por outro lado, para
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os homens, tanto na palestra quanto no ginásio é bonito; ter relações sexuais com o
marido em lugar tranquilo, protegido de paredes, é belo, mas é feio fazê-lo ao ar livre e
aos olhos dos outros; para os lacedemônios, é belo que as meninas se exercitem com os
braços nus e andem sem túnicas, mas para os jônios isso é feio; para os macedônios, é
belo que as meninas, antes do casamento, se apaixonem e tenham relações sexuais com
outro homem, contudo, após o casamento, isso é feio; para os citas, é belo que o
homem, ao assassinar alguém, arranque seu couro cabeludo e leve o escalpo diante de
seu cavalo e beba e faça libações no crânio da vítima recoberto de ouro e prata, todavia,
entre os gregos, isso seria inconcebível. Prosseguem muitos exemplos que ressaltam o
caráter circunstancial das noções de belo e feio. Ainda, o autor afirma pensar que, caso
alguém mande todos os homens reunirem em um só lugar as coisas que cada um
considera feias e, dessas coisas juntadas, pegarem as que consideram bonitas, nada seria
deixado para trás, pois nem todos têm os mesmos pensamentos sobre as coisas. Por fim,
apresenta um poema, que diz: “encontrarás outra lei (nómon) entre os mortais, se
distinguires dessa maneira: nada é definitivamente bonito nem feio, mas é o momento
(kairós) que torna as mesmas coisas feias e bonitas, transformando-as”. Ainda,
prossegue: “diz-se, em geral, que as coisas são bonitas no momento certo (kairṓi), e
feias no momento errado (akairíai)”. (Dissoí lógoi, 2, 1-20).
Se Isócrates conheceu o texto Dissoí lógoi, jamais saberemos — até porque
muitas dúvidas pairam em torno do próprio texto. É bastante provável que não. No
entanto, as suas ideias parecem vastamente correntes no período, representando um
importante resquício para nós do pensamento sofístico. Eu, talvez, não traduziria, aqui,
kairós por momento, visto que a escolha reduz o significado ao campo da
temporalidade, e kairós no texto me soa como algo mais amplo, envolvendo as
circunstâncias como um todo e a singularidade não repetível de um agora em um local
particular no tempo e no espaço. Ressalto, então, o caráter transformador do kairós, que,
como uma espécie de força gravitacional da contingência, deforma o tecido da
perenidade das noções, das verdades, dos julgamentos e dos conceitos. As coisas não
são boas e belas em absoluto e universalmente; o são fluindo e sendo deformadas pelo
imperceptível peso do kairós. Nossa interpretação presente, repousando nos textos
gregos, é estimulada para percebermos um surgimento ou um recrudescimento do
embate entre um absolutismo e um relativismo filosóficos, de onde Isócrates
despontaria, talvez, como um dos expoentes de um relativismo complexo e responsável,
12
ancorado no kairós e na contingência como elemento de validação do lógos. E, diante
desse pensamento, certamente houve reações vigorosas — nos dias de hoje, relativismo
e sofista permanecem verdadeiros palavrões. Ao ser acusado de promover uma
educação que corrompia a juventude e ensinar o argumento mais fraco a se tornar mais
forte, subvertendo o justo pelo injusto pelo próprio exercício da persuasão e da retórica,
Isócrates reage com a Antídosis, buscando esclarecer publicamente e para a posteridade
as minúcias de seu pensamento e de sua educação.
●
Rumando para o encerramento dessa explanação, retomo uma tensão inicial
apresentada pela educação isocrática e sua concepção de política: por um lado, temos
uma intensa atenção dirigida por Isócrates para a formação dos jovens, almejando que
eles estejam aptos a tomar importantes decisões acerca do futuro de suas próprias
comunidades; por outro, essa dimensão temporal do futuro se dispõe como um nebuloso
espaço de imprevisibilidades, do qual só se podem realizar conjecturas e traçar opiniões
muito vacilantes e móveis. A paideía de Isócrates se propõe, então, a ser a melhor
preparação possível dos cidadãos para o imprevisível e para o exercício da tomada de
decisões em condições incertas.
O conhecimento, em Isócrates, está aquém das certezas seguras da epistḗmē.
Entretanto, isso não significa que nada se possa dizer de verdadeiro. O discurso válido
isocrático, estabelecido na adequação das crenças e opiniões (dóxai) às circunstâncias
(kairoí) não é relativista no sentido de que só resta a persuasão e de que todo o dito é
legítimo, mas se constitui em relação e oposição a um discurso absolutista e
imperecível. Há uma inseparabilidade, aqui, entre linguagem/pensamento/verdade e a
contingência. Os lógoi envelhecem, e o que ora pode ser apropriado, em outro momento
já não o é mais. Como conta o texto de Contra os sofistas, aquilo que um homem disse
já não tem a mesma utilidade para alguém que fale depois dele (12). Como no Elogio de
Helena, de Górgias, os lógoi seriam sempre os mesmos se tivéssemos um conhecimento
completo e estável sobre as coisas, mas tudo que sabemos é incompleto, parcial e
mutável.
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Aos seus alunos, propõe Isócrates um ensino que seja para a mente o que a
ginástica é para o corpo; assim como a ginástica torna o corpo saudável, a philosophía
torna a alma inteligente. Todavia, apesar de constituir uma educação fortemente mental,
é preciso apontar, também, que Isócrates caracteriza o seu ensino como perí tḗn tṓn
lógōn paideían, como a educação sobre os lógoi. Deste modo, não há uma clara
separação entre linguagem e pensamento, e a paideía isocrática afirma não tratar dos
discursos como o faziam os manuais de retórica, que ensinavam procedimentos fixos,
ou apenas dispunham como finalidade a persuasão, tornando o argumento fraco um
argumento forte, ou invertendo os conceitos do justo e do injusto e do belo e do feio. Há
uma atenção no texto da Antídosis e em outras partes da obra de Isócrates com o lógos
verdadeiro. Este lógos, contudo, não pode ser verdadeiro em um sentido objetivista e
absolutista, mas somente afirma-se como legitimo de modo fugaz e sempre novo, sendo
contingente, participando dos kairoí. Aos seus alunos, Isócrates propõe uma “ginástica
da mente” para que se tornem cidadãos capazes de atuar na politica do presente, este
que, entretanto, apresenta sempre insegurança e exige deliberações imediatas,
conduzindo a embarcação da pólis num mar eterno, turbulento, e sem porto de chegada.
Referências
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Farmhouse Alberto e Abel do Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional ― Casa da
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14
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Nícocles, Nícocles e Evágoras de Isócrates, tradução, introdução e notas. Dissertação de
mestrado apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo. São Paulo: USP, 2010.