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A (DES)IGUALDADE SOCIAL E A PSICOLOGIA: UMA PERSPECTIVA PARA O
DEBATE SOBRE A POBREZA1
Raquel S. L. Guzzo
PUC-Campinas
Resumo
A pobreza faz parte do cotidiano de vida no Brasil e por muitos anos passou negligenciada
pela Psicologia como um tema central para a formação e a prática na área. Foi com o ingresso
de psicólogos e psicólogas no sistema público de saúde e assistência que essa questão tornou-
se penosa para o exercício profissional. Sem entender como lidar com a pobreza, profissionais
passaram a questionar a relação da Psicologia com as desigualdades sociais, além da forma de
lidar com essa condição social de vida. O objetivo desse capítulo é refletir sobre a pobreza e a
desigualdade social, a partir de uma leitura crítica da vida no capitalismo discutindo pela
perspectiva brasileira, a tese de R. Wilkinson e K. Pickett de que as sociedades igualitárias
são melhores para todas as pessoas, a partir de um estudo com países ricos. Com essa
reflexão, apontar caminhos para uma posição política clara da Psicologia como um corpo de
conhecimento e uma profissão que responda às demandas subjetivas da pobreza.
Palavras Chave: Pobreza, (Des) igualdade social e Psicologia
INTRODUÇAO
Esse ensaio quer refletir sobre a pobreza, a partir da perspectiva psicossocial, levando-
se em conta uma leitura crítica da vida no capitalismo, a qual pode fornecer um referencial
para o enfrentamento de uma condição de vida desumanizada e estrutural no sistema social e
econômico que vivemos. Para isso é preciso clarificar o conceito de pobreza, não apenas por
condições objetivas de poucos recursos financeiros que impactam o cotidiano de vida, mas,
principalmente, pelas condições subjetivas forjadas em situações econômicas desfavoráveis.
Esse capítulo foi estruturado em quatro partes: a primeira define as circunstancias da pobreza,
a segunda suas consequências, a terceira reflete a psicologia e a temática da pobreza e a
última aponta caminhos.
POBREZA: CONDIÇÃO HISTÓRICA OU DESTINO
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1!!Capítulo!do!livro!Psicologia e Pobreza: contribuições para uma análise psicossocial. Editado
por V. Ximenes e colaboradores. UFC, 2016.!
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A pobreza é a evidência concreta das desigualdades sociais (condição de extrema
diferença entre aqueles que tem acesso aos bens e serviços e os que vivem às margens do
sistema ). Por isso, é preciso entender que pobreza não é alguma condição histórica sobre a
qual não temos nenhuma possibilidade de enfrentamento. A pobreza é consequência de uma
política econômica que combina a produção de riqueza pelos trabalhadores e concentração de
renda pelos proprietários dos meios de produção. Se essa política sistêmica for combatida, a
pobreza é enfrentada estruturalmente, não por programas de transferência de renda apenas,
mas por uma sistemática redução da desigualdade por meio da socialização da riqueza
produzida coletivamente – a construção de uma sociedade socialista. Se essa proposta fosse
implementada, seria possível o combate à pobreza , pelo menos na proporção que existe hoje.
De acordo com Valsiner (2009), pobreza é uma palavra perigosa, pois ela contém
avaliação implícita de um poder não muito claro, mas bastante persuasivo. Pobreza pode ser
material, mas pode ser também de sentimentos, pensamentos ou ideias. Ainda, não temos,
como psicólogos, nenhuma dificuldade em assumir que pobreza está relacionada a
sofrimento, sobretudo em nossa sociedade do consumo e de uma ideologia que valoriza a
posse de bens e riqueza. Quando falamos em pobreza, de imediato pensamos na acumulação
de riqueza. Trata-se, portanto de um conceito que deve ser compreendido em uma relação
dialética – só existe pobreza porque existe riqueza. E o contrário é também verdadeiro – a
pobreza é um conceito relativo e dialético, por isso, para discutir a pobreza e como a
psicologia pode lidar com essa face da questão social, é preciso um acerto de contas com a
vida cotidiana no capitalismo (COMBLIN, 2003).
A pobreza existe em muitos dos países industrializados e caracteriza regiões inteiras
do mundo que são consideradas “em desenvolvimento”. Entendendo-se que desenvolvimento,
nesse caso, é o resultado de processos econômicos na produção de riqueza. O Produto Interno
Bruto (PIB) tem sido o indicador mais importante para avaliar o estado de desenvolvimento
de um país, enquanto outros indicadores, como o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)
classifica os países pelo grau de desenvolvimento humano com as condições sociais que tem
grande impacto na vida cotidiana das pessoas. Considerar um país desenvolvido ou em
desenvolvimento, levando-se em conta apenas a riqueza produzida (PIB) não revela, de modo
real, as condições cotidianas de vida da população. Um país, onde a pobreza é conjuntural,
mas mantém a condição do PIB alto, revela muito sobre a política econômica assumida e é
elemento importante para a crítica às políticas de erradicação da pobreza. O IDH, por
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exemplo, desenvolvido pelos economistas Mahbudul Had, paquistanês, e Amartya Sen,2
indiano, em 1990 e utilizado, desde então, pelo Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD), na tentativa de eliminação da pobreza em substituição ao PIB per
capita, indica como o capitalismo, em sua face mais perversa, mantém a condição econômica
da riqueza com o sacrifício e as péssimas condições de vida da população. Uma mudança
nessa avaliação da pobreza e riqueza no mundo demanda, ainda, muito debate e
enfrentamento político. E, também, construções teóricas e práticas oriundas da Psicologia,
capazes de uma leitura crítica do que significa viver na pobreza (BASTOS & RABINOVICH,
2009).
DESIGUALDADE SOCIAL E VIDA COTIDIANA – SUBJETIVIDADES EM RISCO
Uma análise da sociedade capitalista, desde seus primórdios, demonstra, sem chances
de dúvidas, que a produção de riqueza em abundância não é dividida a todos de maneira igual.
Os mais ricos, são os que detém os meios de produção da riqueza. Acumulam e buscam,
constante e intensamente, o lucro pela exploração da força de trabalho de mais pobres. A
maioria da população na América Latina, entende que o recente crescimento de seus países é
frágil, exatamente porque a pobreza não é erradicada com o desenvolvimento econômico do
país no capitalismo - ela é parte essencial desse sistema (TAAFFE, 2007).
Em um último relatório, a ONU – Organização das Nações Unidas – reconheceu a
evidência de que a situação da pobreza no mundo piora, enquanto as instituições capitalistas
se impõem aumentando a diferença entre ricos e pobres. De acordo com o documento
(PNUD, 2013), mais do que duplicou, nos últimos 30 anos, o número de pessoas que vivem
com menos que um dólar ao dia nos 49 países mais pobres do mundo, em especial na África.
Essa situação pode ser até pior do que as estatísticas apontam, pois as pesquisas são realizadas
por organismos dependentes dos países ricos. Enquanto nos Estados Unidos, o consumo per
capita é de 41 dólares por dia, nos países africanos esse resultado é para menos de dois
dólares ao dia. Segundo esse relatório, enquanto a globalização diminui barreiras
internacionais para o comércio e o investimento, a pobreza se agrava em nível internacional,
sendo um dos impactos mais cruéis desse sistema.
Em 2013, embora a situação mundial não tenha se alterado, o Brasil foi considerado
pela ONU, como o 13o. país no mundo com maior investimento no combate à pobreza em
uma lista de 126 países em desenvolvimento. Isso não significa que a pobreza foi
erradicada.Para Schwartzman (2004,2005), uma análise da causa da pobreza passa,
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2Sen, A. (2008). The Idea of Justice. Journal of Human Development, 9(3). November.!
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necessariamente, pela constatação dos conflitos de classe. É preciso uma retomada das
noções, aparentemente ingênuas, sobre o que gera a pobreza, atribuindo às pessoas a
incapacidade de trabalhar, ou de explicando as dificuldades de trabalho em termos de
questões sociais como dificuldade pessoais com a formação. A luta contra a pobreza e em
favor do desenvolvimento social, seria a luta contra interesses de uma oligarquia industrial
nacional e internacional, que desde os anos 1970 foram se alternando no poder.
As distintas fases de desenvolvimento econômico e social em que o Brasil passou,
mantiveram a condição da pobreza, embora as políticas públicas tivessem como foco a
erradicação da miséria. O programa Bolsa Família, implementado em 2003, política
assistencialista de transferência de renda em que o governo oferece subsídios para famílias em
condição de pobreza ou miséria acentuada, embora muito criticado por não favorecer a
emancipação, recebeu elogios porque, mesmo se utilizando de meio por cento do Produto
Interno Bruto (PIB), contribuiu para a melhoria da qualidade de vida de milhares de famílias.
Recentemente, o Banco Mundial (2014) expressou que o Brasil serve de modelo e exemplo,
no que diz respeito ao combate à pobreza do mundo com a redução da miséria. Esses elogios
advêm, sobretudo, porque essa política mantém intocadas as estruturas do poder econômico.
Mesmo com essas políticas, há ainda uma grande quantidade de pessoas vivendo às margens
da sociedade no Brasil e esse problema, dificilmente, será resolvido com medidas
assistencialistas, embora elas reduzam danos à condição cotidiana de vida pobre para uma
grande parte da população.
Sem chances de mudanças estruturais, as pessoas que vivem, cotidianamente,
enfrentando as dificuldades de moradia, transporte, alimentação, educação e acesso à saúde e
assistência, não tem no horizonte as possibilidades de uma existência longa, saudável, criativa
aproveitando um nível de vida digno e respeitoso. As pessoas que vivem na miséria, em
bairros degradados, comunidades clandestinas, muitas vezes fruto da luta por moradia, que
não tem emprego fixo, ou a renda familiar é baixa, não tem alternativas. Elas não estão assim
porque querem. São marcadas por esse cotidiano de sofrimento, desânimo, doenças e falta de
perspectivas. Por isso, a pobreza tem múltiplas dimensões que estão interrelacionadas e
causam grande impacto na vida e afetando o processo de desenvolvimento da subjetividade.
Para Bastos e Rabinovich (2009) viver na pobreza é algo que faz parte da condição
humana, especialmente da maioria da população de países, como o Brasil, resultado de um
processo de colonização e exploração ao longo de séculos. Para essas autoras, diante do
cotidiano da pobreza, a Psicologia manteve-se cega e, assim, esteve incapaz, por muito tempo,
de abordar a experiência de desenvolvimento de pessoas nessas condições e contextos,
respondendo a essa condição sem uma adequada epistemologia e metodologia para sua
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compreensão e propostas de ação. Os pobres não podem ser invisibilizados, já que são a
maioria da população de grande parte dos países do mundo, tais como os países da América
Latina, Ásia, África, em comparação com a Europa e América do Norte. Mais do que ser
pobre por ausência das condições materiais necessárias para uma vida digna, o fato de “sentir-
se pobre” ou avaliar a situação como um pobre, é a materialização do mundo em um processo
de expansão de um imaginário geopolítico – ser sempre pobre quando se tem como referencia
um país dominante rico. Dai decorre a importância da Psicologia no estudo e
aprofundamento das questões sociais e psicossociais para o enfrentamento das desigualdades
sociais.
A PSICOLOGIA DA POBREZA E A POBREZA DA PSICOLOGIA
Carr e Sloan (2003) apresentaram um livro sobre a Pobreza e Psicologia. Nessa obra,
os autores introduzem o debate, afirmando que a pobreza é hoje o principal flagelo do planeta,
com estatísticas contundentes que nos remetem à compreensão de que, de fato, a pobreza é
um fenômeno inerentemente social e econômico. Só que afirmar isso não nos ajuda muito na
compreensão da relação entre Psicologia e esse fenômeno social e econômico que flagela o
mundo. É preciso mais. E o livro discute alguns elementos importantes, no meu ponto de
vista, como por exemplo, os processos envolvidos na condição de pobreza, tais como, poder,
prejuízo, fortalecimento, desenvolvimento e aquisição de habilidades para o enfrentamento da
pobreza.
Em primeiro lugar, os autores chamam a atenção para o fato de que, a pobreza pode
ser entendida a partir de uma variedade de perspectivas analíticas – das estruturais às sociais,
das macro às micro perspectivas e análises. Tomar consciência sobre as dinâmicas
comportamentais da pobreza é uma alternativa psicossocial que nos coloca diante dos desafios
impostos à psicologia para lidar com esse fenômeno sem patologizar ou psicologizar3. A
cultura da pobreza, historicamente, tem assegurado o comprometimento no desenvolvimento
das pessoa, e é considerada como principal fator nesse processo. Decorrente disso, o
preconceito tem se mantido como um estigma e a psicologização como atributo para a
perpetuação da condição de ser e continuar sendo pobre.
Durante a segunda metade do século 20, a Psicologia buscou um modo de contribuir
com o entendimento e redução da pobreza, mas por um outro caminho: focando no
comportamento negativo das pessoas e das dimensões individuais e problemática das
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3Gordo-López (2000), discute como mudar o uso opressivo e abusivo da Psicologia, denominado processo de
psicologização das questões sociais.
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características de personalidade. Hoje, elementos críticos que se dirigem às necessidades das
pessoas pobres são elementos importantes da relação psicologia e pobreza, tais como:
segurança, fortalecimento e oportunidades. As questões de segurança são complexas,
envolvem principalmente as condições de justiça social, emprego e moradia. O fortalecimento
pressupõe a organização da comunidade e participação coletiva. Movimentos sociais
claramente organizados e dinâmicos asseguram melhores condições de vida àqueles mais
pobres. As oportunidades na construção do futuro dependem também da participação de
todos. Essas direções apresentam um grande leque de questões para a Psicologia como ciência
e profissão.
Para a Psicologia, distante de uma análise crítica do cotidiano de vida das populações
pobres, é difícil agir de modo a prevenir problemas uma vez que pode ser considerada uma
ferramenta ideológica importante na manutenção da sociedade tal como está
(PARKER,2009). Apesar das dificuldades na formação de estudantes e dos esforços que vem
sendo feitos para melhorar a qualidade do exercício profissional, os programas sociais em que
a Psicologia está presente, como é o caso dos programas de transferência de renda e outras
políticas de assistência e saúde, ainda mantem muito incipiente a iniciativa de psicólogos e
psicólogas para entender as demandas da população pobre, principalmente porque, além de
não preparados tecnicamente, os e as profissionais não conseguem compreender e refletir com
as pessoas sobre as condições históricas e sociais que geram a pobreza (EUZÉBIOS &
GUZZO, 2009). Falta uma leitura da conjuntura política para o entendimento do que significa
a pobreza em um mundo de tanta riqueza.
A pobreza está em todo lugar, sem distinção geográfica ou localização em setores
urbanos ou rurais dos agrupamentos sociais e a discussão deve levar em conta os processos de
desenvolvimento individuais, relacionais e comunitários que permitam seu enfrentamento. É
preciso que sejam parte da formação profissional e da ação nos espaços de trabalho, dos
processos psicossociais de poder, de fortalecimento, de organização e de tomada de
consciência da realidade. Uma análise da história sobre a pobreza relacionando a importância
da psicologia no cenário da ação política junto à essa população que é afetada pelo risco de
viverem na pobreza. Mesmo desse modo, a Psicologia ainda não devotou uma atenção
importante aos impactos da pobreza na constituição das subjetividades.
Martin- Baró (1996) ao apresentar um projeto ético-político para a Psicologia, tendo
como horizonte a libertação dos povos explorados e oprimidos, defende que a pobreza é
determinante na constituição de sujeitos históricos capazes de organizarem seus próprios
destinos, pelo menos em condições melhores de vida. Para ele, viver na pobreza em um
mundo de riqueza é estar escravizado em sua condição humana. Assim, propõe a construção
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de um conjunto de teorias e práticas capazes de entender e atender a esse processo de
libertação das opressões presente nas desigualdades que se perpetuam.
A Psicologia da Libertação tem o foco nas raízes das desigualdades estruturais,
apontando o histórico compromisso da psicologia com a saúde individual e a sua ausência no
debate da conjuntura política, que impacta o cotidiano e adoece as pessoas. Na Psicologia
tradicional é predominante o atendimento individual, mesmo em contextos de violência,
opressão e injustiças estruturais. Essa forma de atuar não tem sido suficiente para que as
condições objetivas mudem. Para Martín-Baró (1996), a principal tarefa da Psicologia deve
ser conduzir pessoas e grupos a um processo de tomada de consciência sobre a realidade –
desideologizar – para o entendimento sobre quem são dentro da conjuntura. Ele não
abandona a terapia individual, mas considera que esse processo deve focar na identidade
social entendida por meio do protótipo opressor e oprimido, e da compreensão sobre as
comunidades e as identidades humanas ao longo da história. A psicologia da Libertação tem
muito a contribuir com substrato científico da psicologia tradicional e pode reduzir as
desigualdades e para a práxis que tem como objetivo ser elemento de organização e
transformação das comunidades.
Uma análise sobre a dinâmica estrutural de poder torna-se necessária antes que
qualquer mudança possa acontecer nas comunidades e utilizando os próprios membros da
comunidade, priorizando seus sistemas locais de conhecimento, é possível o fortalecimento
do grupo para o enfrentamento das condições adversas (MOANE, 2003 ; LYKES & SIBLEY,
2014).
TOMANDO A DIREÇÃO CERTA – POR ONDE DEVE PASSAR A PSICOLOGIA?
Dois epidemiologistas ingleses – Richard Wilkinson e Kate Pickett – publicaram em
março de 2009 o livro “Why more equal societies almost always do better: The Spirit Level”.
A última parte foi dedicada a responder à questão “por que a igualdade social é melhor para
todas as pessoas? Esse livro apresentou uma tese, no mínimo surpreendente, de que nos países
ricos, o crescimento econômico não sustentava mais a saúde e a qualidade de vida da
população, ao contrário, em alguns países economicamente desenvolvidos, problemas sociais
estavam aumentando. Os autores relacionaram as questões de saúde pública e problemas
sociais aos níveis desiguais de renda por meio de análise proveniente dos dados obtidos pelos
50 países mais ricos do mundo: pessoas vivendo em sociedade desiguais apresentavam-se
mais doentes, mais obesas; a sociedade apresentava altos índices de assassinato e mortalidade
infantil, apenas para mencionar alguns elementos. A partir dessas análises, os autores afirmam
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que a redistribuição de renda é a solução para o combate à desigualdade social, que foi
medida pela distância entre as médias de renda dos 20% mais ricos e mais pobres da
população.
Sem qualquer sombra de dúvida, do meu ponto de vista e com evidências suficientes
nos muitos relatórios produzidos do desenvolvimento social e econômico no mundo, a
igualdade social é melhor para todos, porque somos seres humanos e não há diferenças
(culturais, históricas e individuais) que justifiquem viver a vida sem o igual direito à
alimentação, à educação, habitação, trabalho, saúde, respeito e amor. Nós somos capazes de
pensar, sentir e agir para transformar a natureza. Nós criamos regras sociais de convivência,
encontramos a cura de doenças, fazemos alimentos e outros tipos bens e serviços, que
precisamos para viver sob condições diferentes. Não há uns melhores que outros, com mais
direitos à vida digna.
O debate em torno da ideia de que "a igualdade é melhor para todos" pode ser ainda
analisada a partir de diferentes perspectivas da realidade. O livro apresentou a situação de
alguns países, segundo seus indicadores econômicos. Mas, desde então, a função principal da
análise de conjuntura é proporcionar uma leitura realista, sistemática e articulada de uma
situação específica, portanto, diferentes elementos neste processo podem produzir resultados
diferentes da análise e diferentes propostas de ação. A discussão das ideias dos autores é
importante e deve ser aprofundada especialmente na direção de ação - se vivemos em um
mundo desigual quais são as evidências de que a igualdade seria melhor para a sobrevivência
de todos? Qual seria a melhor direção a tomar? O que constitui o elemento principal para a
igualdade? E, em que sentido ser igual?
A discussão proposta pelos autores levanta, imediatamente, uma pergunta sobre os
elementos apresentados para a análise realizada: a polarização entre riqueza e pobreza, na
dependência de um elemento econômico. Há, no entanto outros elementos importantes nessa
discussão que não são captados em uma análise quantitativa.O que, realmente, significa ser
rico ou pobre? O que, realmente, significa ser feliz ou estar satisfeito com a vida? Sentir-se
feliz diante de uma condição objetiva de vida tem um amplo espectro de elementos em cada
cultura e sociedade. Os critérios para se estabelecer níveis de riqueza e pobreza são objetivos
em sociedades desiguais: mais posses, mais dinheiro, mais propriedades podem ser
considerados critérios para a definição de pessoas ricas e, o contrário, para definir os pobres,
aqueles que têm menos, tendo como referência o rico. No entanto, associar felicidade e
dignidade de vida à posse de mais dinheiro ou posse, torna este debate vulnerável, porque, se
tivermos como horizonte o estado de bem-estar social para todos em igualdade de condição,
isso não é possível na sociedade desigual. Isso significa que, dentro de uma política universal
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variável e arbitrária, temos que encontrar fatos e condições que qualifiquem a vida de todos os
seres humanos , independentemente de quando, como ou onde eles vivem.
Outro ponto de debate é relacionado às questões do valor das coisas, da qual depende
uma vida decente: alimentação, habitação, educação e todas as coisas necessárias que
precisamos para viver. Coisas necessárias não são aquelas cuja necessidade foi criada pela
ideologia dominante. Os preços ou valores de commodities e de salários estão, totalmente,
relacionados - quanto mais dinheiro, mais poder de compra. E, quanto mais você compra,
mais você tem acesso à qualidade de vida - esta é a fórmula para a sociedade desenvolvida e
capitalista.
No entanto, essa relação entre qualidade de vida e posse não é mecânica nem absoluta.
O capitalismo não fornece benefícios para todos, e, muito menos por meio de trabalho as
pessoas podem tornar-se ricas, considerando os padrões de riqueza estabelecidos a partir de
países ricos. Estes são mitos fomentados pela ideologia capitalista para manter o sistema –
alimentar a ilusão de que para ser rico é preciso esforço individual, é preciso perseguir um
ideal, dedicar-se. Há pessoas que se esforçam, são exploradas no trabalho, dedicam todas as
horas de sua vida no trabalho e não enriquecem. Isso porque acumulação e distribuição da
riqueza são impossíveis de serem resolvidas pelas contradições dentro deste sistema.
A tese defendida por esses dois autores -de que os padrões de vida devem ser
equalizados, de tal modo que melhore a qualidade de vida para todos – não se justifica apenas
como uma medida econômica. Deve levar em conta que, fatores psicossociais não estão
incluídos nessa fórmula e deveriam estar. A fim de refletir a totalidade, devemos incluir nesta
análise as dimensões individuais, públicas ou coletivas. Para Paulo Freire (1973), esforço dos
seres humanos para a construção de sua própria humanidade exige a mudança das estruturas
que desumanizam tanto os opressores quanto os oprimidos, e precisamos aprender a partir da
perspectiva oprimidos. Em outras palavras, para se ter a chance de uma boa vida deve-se
considerar a perspectiva dos povos oprimidos e pobres.
Que estruturas devem ser alteradas, de modo a assegurar a possibilidade de uma vida
digna? A estrutura econômica é, sem dúvida, a sustentação mais importante de tudo isso,
segundo a informação apresentada em Spirit Level. No entanto, há uma grande diferença entre
uma reforma e uma mudança radical dessa estrutura. Para que seja possível uma mudança, é
preciso que sejam agregadas às análises econômicas, as questões pertinentes à psicologia da
opressão, as razões históricas na construção e organização da nossa sociedade, incluindo
elementos subjetivos que afetam a desigualdade na vida. Se o Spirit Level incluísse o senso
de dignidade com base em experiências de vida de povos colonizados e oprimidos, o quadro
seria, certamente, bem diferentes.
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Para melhorar a distribuição de renda é preciso mudar o sistema econômico e os
padrões mais altos da sociedade moderna (BORON, 2010). Esta é a grande contradição - para
lidar com a desigualdade apresentada em todo o mundo, precisamos de ir às raízes do que tem
sido necessário para compreender as subjetividades forjadas para a manutenção desse sistema
social e econômico. Nesse sentido, a privação é relativa.Uma baixa posição socioeconômica
não significa, necessariamente, um estado de inferioridade. Saudável não é apenas resultado
de alto status socioeconômico, hierarquia social, ou alta renda. O dinheiro não é o principal
instrumento de poder para assegurar a vida. Precisamos manter em movimento um novo
horizonte social. O modo capitalista, historicamente, já provou que não é o melhor modo de
viver. E a Psicologia precisa deixar de ser uma ferramenta ideológica a serviço dessa
sociedade que exclui, oprime e necessita da pobreza para continuar existindo.
O caminho para a Psicologia no Brasil passa, necessariamente em uma revisão radical
dos programas e currículos de formação profissional. As universidades devem se incumbir de
uma leitura política da realidade e do planejamento de um perfil profissional que seja
preparado para assumir um projeto ético político desse porte. Estudar a pobreza, conhecer
como se desenvolvem as pessoas nesse estado de privação e desigualdade, desenvolver
formas de lidar com o sofrimento e adoecimento decorrente dessa condição escravizante e
impeditiva de um pleno desenvolvimento, são algumas das possibilidade para uma psicologia
que , de fato, se envolva e se comprometa com as pessoas oprimidas e pobres. A luta por uma
sociedade menos desigual é outra demanda para todas as áreas de conhecimento das Ciências
Humanas e Sociais. A realidade precisa ser entendida sob uma perspectiva histórico-crítica
consciente e mobilizadora de avanços. Assim, ampliar a formação de profissionais nessa
direção, porque analisa a conjuntura sob a lente da crítica, é um imenso desafio para a
Psicologia.
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