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Considerações sobre o Termo de Transação e de Ajustamento de Conduta firmado
entre Governo Federal, Governo do Estado de Minas Gerais, Governo do Estado do
Espírito Santo, Samarco Mineração S.A., Vale S. A. e BHP Billiton Brasil LTDA.
Bruno Milanez
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Raquel Giffoni Pinto
2
Abril, 2016
1 Considerações iniciais
Este texto tem como principal objetivo avaliar o “Termo de transação e de ajustamento
de conduta” (Acordo) firmado entre representantes do governo federal e dos governos
dos estados de Minas Gerais e Espírito Santo com a empresa Samarco e suas acionistas
Vale e BHP Billiton referente à recuperação, mitigação e compensação dos impactos
socioeconômicos e socioambientais do rompimento da barragem do Fundão, em Mariana,
Minas Gerais (União et al., 2016). Esta avaliação indica que o Acordo possui falhas em
sua elaboração e concepção, e que será incapaz de produzir a real remediação e
compensação dos impactos decorrentes do desastre. A partir desse entendimento,
defende-se a impugnação do atual Acordo e a retomada de um processo de negociação
que envolva de forma efetiva a participação da população atingida e preveja o
envolvimento do Ministério Público.
O Acordo, consiste em um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) que, de forma geral, pode
ser considerado um instrumento extrajudicial ou, como afirmam alguns juristas, uma
solução extrajudicial de conflitos (Rodrigues, 2004) proposta por órgãos públicos com
um violador ou potencial violador de um direito transindividual. Este TAC deverá conter
diversas exigências a serem cumpridas pelo compromissado, como: reparação de dano a
direitos transindividuais; adequação da conduta às exigências legais ou normativas e
compensação e/ou indenização por danos que não possam ser recuperados. A justificativa
usualmente evocada para a propositura de um TAC na área ambiental é o caráter de
urgência ante um desastre ecológico, uma vez que a morosidade dos processos judiciais
pode causar o agravamento das consequências do dano ambiental, dificultando sua
reparação. Daí explica-se o porquê dos órgãos legitimados a celebração do TAC
1
Professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, Doutor em Política Ambiental.
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Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro, Doutora em
Planejamento Urbano e Regional.
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priorizarem a busca pela proteção do bem ambiental do que a culpabilidade do causador
do dano (Viégas, Pinto, & Garzon, 2014).
No terceiro CONSIDERANDO, o Acordo em questão coloca-se em consonância com
esta perspectiva, ao afirmar “que a celebração deste acordo judicial visa pôr fim ao litígio
por ato voluntário das partes, reconhecendo que a autocomposição é a forma mais célere
e efetiva para a resolução da controvérsia”. Todavia, celeridade e efetividade não são
naturalmente obtidas a partir da assinatura destes acordos. Dependem fundamentalmente
da participação social dos grupos atingidos, principais interessados na recuperação dos
danos, grupos estes quase sempre pertencentes aos de menor renda, minorias étnicas e
com menos poder de se fazerem ouvir na esfera pública. Dependem também de
fiscalização rigorosa do poder público e controle social de seus desdobramentos, sob risco
de seus prazos serem adiado por anos e anos por meio de termos aditivos, prejudicando
seriamente a proposta de celeridade.
Neste caso específico, a eventual busca pela “forma mais célere” pode, inclusive,
inviabilizar a obtenção dos objetivos propostos, devido à falta de conhecimento para
firmar os termos do Acordo. Conforme colocado pelo procurador República Eduardo
Henrique de Almeida Aguiar “[o] acordo avança no tempo na questão da recuperação,
sem que haja estudos técnicos que determinem que todo esse tempo é necessário [...]
ainda não há laudo técnico que faça uma estimativa desse tempo” (Carolina, 2016).
A literatura sobre políticas ambientais já possui uma base consolidada de avalição sobre
acordos entre empresas e governos. Apesar de grande parte dessa literatura ser voltada
para acordos que envolvem diferentes empresas de um mesmo setor, alguns de seus
elementos são válidos para analisar o Acordo feito com a Samarco. Estes elementos se
referem, principalmente, à questão de participação e controle social, definição de
objetivos e metas, e sistemas de monitoramento e controle.
Com relação à participação social, a EEA (1997) argumenta que a implementação dos
acordos é mais efetiva quando partes independentes estão envolvidas no desenho e
implementação dos acordos. De forma semelhante, Bizer e Jülich (1999) mencionam a
necessidade do envolvimento das partes legítimas e relevantes tanto durante a negociação,
quanto na implementação dos acordos. Os autores ainda propõem a necessidade do acesso
público aos resultados de monitoramento e verificação dos resultados. Cunningham e
Clinch (2004) defendem que o envolvimento público é um dos aspectos centrais na
definição de acordos, mencionando explicitamente a necessidade de mecanismos de
supervisão participativa, que envolvam tanto a mídia quanto as Organizações Não-
governamentais (ONGs). Da mesma forma, um relatório elaborado pela OECD (2003)
menciona que o envolvimento das ONGs aumenta a chance de que as metas propostas
sejam alcançadas na prática.
Com relação ao escopo dos acordos, objetivos e metas claros, transparentes,
democraticamente aceitos e, preferencialmente, quantitativos, são considerados centrais
para a efetividade dos acordos (Bizer & Jülich, 1999; Cunningham & Clinch, 2004). Além
disso, sugere-se que os acordos ainda definam linhas de base que sirvam como referencial
para avaliar a efetividade dos acordos (EEA, 1997).
Um terceiro elemento comumente mencionado na literatura diz respeito aos sistemas de
monitoramento, controle e divulgação de resultados. De forma geral, os sistemas
estabelecidos devem ser claros e confiáveis (EEA, 1997). Além disso, a evolução dos
resultados dos acordos deve ser divulgada periodicamente de forma detalhada (Bizer &
Jülich, 1999; Cunningham & Clinch, 2004).
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Além dessas questões, a literatura ainda menciona a capacidade institucional das agências
reguladoras como um fator importante (Cunningham & Clinch, 2004). Ademais, existem
críticas a acordos onde as empresas assumem todas as responsabilidades, uma vez que
tais acordos tendem a ser menos eficazes (Bizer & Jülich, 1999).
Como será analisado ao longo desse texto, o Acordo apresenta limitações em muitos
desses aspectos. Tais características sugerem um elevado risco de que, se for mantida tal
condição, dificilmente ele alcançará os objetivos propostos, gerará uma recuperação
efetiva ou promoverá uma compensação justa.
2 Sobre os grupos envolvidos na assinatura do Acordo
O Acordo foi assinado entre duas partes. De um lado, a União (representada pelo IBAMA,
ICMBio, ANA, DNPM, FUNAI), juntamente com os governos estaduais de Minas Gerais
(governo, IEF. IGAM, FEAM) e do Espírito Santo (governo, IEMA, IDAF, AGERH).
Do outro lado, a Samarco, a Vale e a BHP Billiton.
O primeiro aspecto que chama a atenção é a ausência de representantes das populações
atingidas, que não tiveram oportunidade de participar na discussão do Acordo, muito
menos influenciar na definição dos termos em que ele se daria (Medeiros, 2016). De fato,
não existem garantias legais de participação social na propositura de um TAC. A
legislação restringe aos órgãos públicos a sua propositura, mas não diz nada sobre a
integração dos grupos diretamente atingidos pelos danos ambientais. Assim, qualquer
envolvimento da sociedade civil no processo de celebração dos TAC dependerá da
iniciativa dos órgãos públicos que o propõem, seja por meio da inclusão, como partícipes
do Acordo, de representantes dos grupos sociais cujos interesses coletivos estejam
envolvidos no TAC, seja oferecendo condições para um envolvimento indireto, através
da realização de audiências públicas, por exemplo (Viégas et al., 2014).
Rodrigues (2004, p. 343) afirma que: “o processo de tomada de decisões na celebração
do termo de ajustamento de conduta deve ser um processo o mais participativo possível.
Portanto, o ideal é propiciar mecanismos de participação na decisão do órgão legitimado
na celebração do compromisso”.
Todavia, na prática, os TACs tendem a ser instrumentos de tratamento de conflitos
ambientais pouco ou nada participativos, uma vez que envolvem somente alguns atores
específicos (Viégas et al., 2014). No caso deste Acordo, os órgãos públicos parecem
compartilhar a ideia de que a busca pela garantia e defesa dos direitos e interesses
transindividuais é uma questão somente técnica, destinando o poder de decisão à
Fundação criada pelas empresas, aos órgãos ambientais, aos especialistas a serem
contratados e à burocracia estatal.
Ao assumir estratégias e metodologias pouco participativas que limitam ou impedem a
participação dos atores sociais no processo de tomada de decisões na celebração do
Acordo, bem como não havendo garantias de transparência sobre a elaboração das
cláusulas, impossibilita-se qualquer esforço no sentido de se exercer um controle social
sobre seus resultados, de forma a fazer com que adotem medidas que realmente atendam
aos interesses e direitos transindividuais (Viégas et al., 2014).
Embora algumas cláusulas mencionem a “transparência das ações e o envolvimento das
comunidades nas discussões”, como o item XIV da cláusula 6, não são definidos
quaisquer parâmetros desta participação. Todavia, a forma e o conteúdo da participação
social podem ser definidoras das medidas democráticas que realmente pretendem reparar
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os danos socioambientais ou somente uma vaga expressão que visa legitimar socialmente
o Acordo.
Assim, um TAC que tem como objeto o maior desastre ambiental do Brasil deveria ter
suplantado uma visão representativista e tecnicista e contado com a participação efetiva
dos grupos atingidos entre eles: trabalhadores rurais, moradores, sindicatos do setor de
mineração, povos indígenas etc. na negociação das condições de modo, tempo e lugar
para as adequações de conduta ambiental.
Da mesma forma, estiveram ausentes da assinatura do Acordo o Ministério Público
Federal (MPF) e os Ministérios Públicos dos estados de Minas Gerais (MPMG) e do
Espírito Santo (MPES). Por considerar que o Acordo “prioriza a proteção do patrimônio
das empresas em detrimento da proteção das populações afetadas e do meio ambiente” o
Ministério Público Federal não apenas questionou o Acordo como também decidiu buscar
sua impugnação na justiça (G1 MG, 2016). Embora a ausência do Ministério Público
diminua ainda mais o controle público sobre o cumprimento dos TACs, não é incomum
que eles sejam celebrados sem a sua interveniência. Isso pode ocorrer, por diferentes
razões, entre elas por discordância dos termos propostos, como o caso em tela, ou mesmo
por não terem sido sequer consultados acerca da assinatura dos mesmos. Entretanto,
A obrigatoriedade da participação do Ministério Público na celebração de TACs não é
consenso na literatura jurídica. Alguns autores afirmam que o Ministério Público deve
sempre integrar os TACs porque este órgão é o responsável por defender os interesses
sociais indisponíveis. Outro fundamento para a interveniência do Ministério Público
refere-se aos TAC que vêm substituir uma Ação Civil Pública. Segundo Carvalho Filho
(2009) a participação do Ministério Público em um TAC seria obrigatória quando se tratar
de TAC celebrado no curso da Ação Civil Pública (Walcacer et. al., 2002, apud Viégas
et al., 2014), como é o caso presentemente analisado. Entretanto, autores como Pereira
(1995), entendem ser dispensável a interveniência deste órgão, uma vez que ele pode
intervir a qualquer momento, firmando um novo TAC ou ajuizando uma Ação Civil
Pública (Walcacer et. al., 2002, apud Viégas et al., 2014).
Todavia o Acordo parece tomar medidas para minar qualquer atuação futura do
Ministério Público. Em seu CONSIDERANDO 20, o Acordo define que “as partes [...]
pretendem colocar fim a esta ACP [nº 0069758-61.2015.4.01.3400] e a outras ações, com
objeto contido ou conexo a esta ACP, em curso, ou que venham a ser propostas por
quaisquer agentes legitimados”. Ainda, no CONSIDERANDO 22, estabelece-se que “os
COMPROMETIMENTES [ou seja, as instituições públicas signatárias do Acordo]
manifestar-se-ão nos autos das ações judiciais listadas no ANEXO e demais ações
coletivas que venham a ser propostas relativas ao EVENTO [...] para fazer prevalecer as
cláusulas e obrigações presentes neste ACORDO”. Assim, não apenas os órgãos de
governo se propõe a “colocar fim” a ações contra a empresa, como ainda se prontificam
a se manifestar em ações judiciais, defendendo o Acordo frente a qualquer nova
reivindicação, seja de populações atingidas, seja do Ministério Público. Essas definições
explicitam a posição dos órgãos públicos signatários, uma vez os colocam contrários ao
interesse difuso e coletivo e em defesa dos interesses e decisões dos agentes privados.
Uma terceira ausência na definição do Acordo diz respeito a agências ou instituições
públicas da área social, seja do governo federal, seja dos governos estaduais. Embora o
Acordo organize os programas em socioeconômicos e socioambientais, com exceção da
Funai, não estão presentes instituições com conhecimento e habilidade para definir
questões associadas, por exemplo, a comunidades ribeirinhas, pescadores artesanais, ou
mesmo promoção social. Embora órgãos como Ministério do Desenvolvimento Agrário,
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Ministério do Desenvolvimento Social, Ministério da Saúde, bem como seus equivalentes
estaduais, pudessem ter participado das discussões, houve a decisão de não os envolver
na elaboração do Acordo, nem em sua implementação.
3 Sobre a criação da Fundação e a definição de agentes de
monitoramento e controle
Em sua Cláusula 01, o Acordo define uma “fundação de direito privado, sem fins
lucrativos, atendidos os requisitos da lei, a ser instituída pela SAMARCO e pelas
ACIONISTAS com o objetivo de elaborar e executar todas as medidas previstas pelos
PROGRAMAS SOCIOAMBIENTAIS e PROGRAMAS SOCIOECONÔMICOS”. Esta
Fundação será a responsável por todas as ações de recuperação, remediação e
compensação associadas ao rompimento da barragem.
O Acordo ainda estabelece a criação de um Comitê Interfederativo, formado por
representantes do poder público e responsável pelo acompanhamento, monitoramento e
fiscalização dos programas desempenhados pela Fundação. O Comitê será formado por
dois representantes do Ministério do Meio Ambiente, outros dois representantes do
Governo Federal (relacionados aos programas socioeconômicos), dois representantes do
estado de Minas Gerais, dois representantes do estado do Espírito Santo, dois
representantes dos municípios mineiros afetados, um representante dos municípios
capixabas afetados e um representante do Comitê da Bacia do Rio Doce, vinculado ao
poder público (Cláusulas 242, 244).
A exclusividade de órgãos do executivo representa um grande risco para as atividades de
monitoramento. Empresas do grupo Vale foram importantes financiadores de campanha
tanto da presidente, quanto dos governadores de Minas Gerais e Espírito Santo (PoEMAS,
2015), o que coloca representantes desses governantes em uma clara situação de conflito
de interesses.
Mesmo os órgãos ambientais não parecem capazes de garantir uma avaliação
independente dos interesses dos governantes eleitos. No caso do governo federal,
Hochstetler (2002) identifica que esses órgãos se caracterizam por uma crônica falta de
recursos financeiros; ela ainda argumenta que eles sofrem grande pressão política, de
forma que, nas decisões, o crescimento econômico é sempre considerado como prioridade
sobre a proteção ambiental. No nível estadual, no caso de Minas Gerais, Milanez e
Oliveira (2015) mencionam uma apropriação dos órgãos participativos por representantes
do governo e das empresas, limitando o envolvimento e atividade dos movimentos sociais
e organizações não governamentais.
O Acordo também define que as ações desenvolvidas pela Fundação serão “sujeitas à
auditoria externa independente”, a ser realizada por empresa contratada pela Fundação
(Cláusula 198) [Grifo nosso].
Com relação às empresas contratadas, o Acordo chega a definir que a auditoria deverá
“ser realizada por empresa de consultoria dentre as 4 (quatro) maiores empresas do ramo
em atuação no território nacional, a saber: Ernest & Young (EY); KPMG; Deloitte; ou
PricewaterhouseCoopers (PwC)” (Cláusula 198). Uma vez que a literatura especializada
já questiona a independência das empresas de auditoria, aceitar que empresas escolhidas
e remuneradas pela Fundação sejam efetivamente independentes, sugere considerável
ingenuidade dos órgãos públicos.
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Por exemplo, Bezerman, Morgan, e Loewenstein (1997, p. 90) argumentam que “sob os
arranjos institucionais correntes, é psicologicamente impossível para os auditores
manterem sua objetividade [uma vez que] são contratados, pagos e mesmo demitidos
pelas organizações que eles devem auditar ao invés das pessoas que eles efetivamente
representam”.
Em outro trabalho, Boyd (2004) analisa o processo de concentração global do setor de
auditoria que culminou com a formação das Big Four (Grande Quatro), exatamente as
empresas indicadas pelo Acordo. Segundo o autor, à medida que as empresas foram se
globalizando e se consolidando, os serviços de consultoria foram se tornando cada vez
mais importantes nas suas receitas, o que mudou consideravelmente a relação entre elas
e as suas contratantes. O autor cita como exemplo, um documento da
PricewaterhouseCoopers Canada, onde é posto que “[nós] seremos verdadeiramente uma
firma de ponta, quando nossos clientes pensarem em nós como uma firma de serviços e
não como uma firma de contabilidade. Nós queremos que eles pensem em nós como
sempre sendo capazes de oferecer ajuda em virtualmente qualquer questão do negócio ou
do setor que eles enfrentarem”(Boyd, 2004, p. 384). Dessa forma, o autor sugere que as
empresas de consultoria vêm se tornando cada vez mais parceiras de suas contratantes do
que efetivamente “cães de guarda”. Tal processo, de certa forma, reduziria o grau de
independência em suas atividades de auditoria e nas avaliações da atuação de suas
contratantes.
Ainda, um artigo recentemente publicado na The Economist (2014) foca no desempenho
das Big Four. Ele não apenas menciona casos de fraudes onde algumas dessas empresas
estiveram envolvidas, como ainda argumenta que “as empresas [contratantes] tendem a
selecionar auditores que vão oferecer uma opinião limpa o mais rápido e barato possível”.
Portanto, seguindo esse raciocínio, pode-se concluir que deixar que empresas escolham
seus auditores tende a gerar conflitos de interesse que poderiam ser minimizados se essa
escolha fosse feita de outra forma.
Ainda, os relatórios elaborados por tais empresas de auditoria tendem a ser normalmente
escritos em uma linguagem assaz técnica e disponibilizados por meios pouco acessíveis
aos atores impactados. Essa prática reduziria ainda mais a capacidade desses agentes
participarem ativamente e acompanharem o cumprimento das cláusulas do Acordo.
Por fim, o Acordo ainda estabelece a criação de um Painel Consultivo de Especialistas,
integrado por três pessoas, sendo a primeira indicada pela Fundação, a segundo pelo
Comitê Interfederativo e a terceira em acordo pelos dois. Esse painel deverá “fornecer
opiniões técnicas não-vinculantes para as partes, com o objetivo de auxiliar na busca de
soluções para divergências” (Cláusula 246). A definição de um papel “não-vinculante”
às opiniões já indica a fragilidade de tal Painel.
Dessa forma, o Acordo exclui das atividades de monitoramento e controle tanto o
Ministério Público, quanto os atingidos. De forma geral, pode-se afirmar que, ao
centralizar essa atividade em agências ambientais governamentais e empresas de
auditoria, o Acordo reproduz o modelo de política ambiental que permitiu o rompimento
da barragem. Assim, ele não supera diferentes problemas estruturais de tal sistema, tais
como, baixa capacidade institucional, ingerência política e conflitos de interesse.
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4 Sobre a definição de impactados e o Programa de Negociação
Coordenada
O Acordo separa as pessoas impactadas em dois grupos. Os impactados seriam “as
pessoas físicas ou jurídicas, e respectivas comunidades, que tenham sido diretamente
afetadas pelo EVENTO nos termos das alíneas abaixo e deste ACORDO”, enquanto que
as indiretamente impactadas seriam “as pessoas físicas e jurídicas, presentes ou futuras,
que não se enquadrem nos incisos anteriores, que residam ou venham a residir na ÁREA
DE ABRANGÊNCIA e que sofram limitação no exercício dos seus direitos fundamentais
em decorrência das consequências ambientais ou econômicas, diretas ou indiretas,
presentes ou futuras, do EVENTO” (Cláusula 01).
Apesar dessa definição ampla, o Acordo apresenta uma série de restrições e exigências
para que as pessoas sejam efetivamente reconhecidas como atingidas e,
consequentemente, indenizadas.
Em primeiro lugar, o Acordo transfere à Fundação o poder de estabelecer quais pessoas
serão consideradas impactadas, uma vez que lhe caberá definir a elegibilidade e os
parâmetros de indenização aos atingidos.
[CLÁUSULA 21] PARÁGRAFO SEXTO: A elegibilidade para o PROGRAMA DE
NEGOCIAÇÃO COORDENADA será determinada na forma da CLÁUSULA 34,
de modo que a inclusão no cadastro não implica o reconhecimento automático da
elegibilidade e da extensão dos danos alegados.
[...]
CLÁUSULA 34: A FUNDAÇÃO elaborará os parâmetros de indenização
considerando as condições socioeconômicas dos IMPACTADOS na SITUAÇÃO
ANTERIOR, bem como os princípios gerais da lei brasileira e os parâmetros
existentes na jurisprudência brasileira.
[...]
PARÁGRAFO SEGUNDO. A determinação da elegibilidade dos IMPACTADOS
para o PROGRAMA DE NEGOCIAÇÃO COORDENADA e dos parâmetros de
indenização a serem estabelecidos no âmbito do mesmo, será proposta pela
FUNDACÃO e submetida à validação do COMITÊ INTERFEDERATIVO.
Em segundo lugar, o Acordo faz uma série de exigências burocráticas que dificilmente
serão atendidas por pessoas que tiveram sua moradia destruída e consequentemente,
perderam todos os documentos que possuíam. Embora seja feita uma ressalva para “casos
excepcionais”, o acordo transfere à Fundação o poder de decidir se outras formas de
comprovação serão aceitas ou não.
CLÁUSULA 21: O cadastro se refere às pessoas físicas [...] famílias e comunidades,
devendo conter o levantamento das perdas materiais e das atividades econômicas
impactadas.
PARÁGRAFO PRIMEIRO: Para cadastro, o IMPACTADO deverá apresentar, por
meio de documentos públicos ou privados, ou outros meios de prova, comprovação
de dados pessoais, idade, gênero, composição do núcleo familiar, local de residência
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original, ocupação, grau de escolaridade, renda familiar antes do EVENTO, número
de documento de identidade e CPF, se houver, fundamento do enquadramento como
IMPACTADO, comprovação dos prejuízos sofridos, por meio de documentos
públicos ou privados, ou outros meios de prova, e outros dados que venham a se
mostrar necessários.
PARÁGRAFO SEGUNDO: Em casos excepcionais, a FUNDAÇÃO poderá aceitar
que os IMPACTADOS que não possuam os documentos mencionados no parágrafo
anterior poderão comprovar as informações requeridas mediante declaração escrita
a ser feita, sob as penas da lei, conforme PRIMEIRO TERMO ADITIVO AO
TERMO DE COMPROMISSO SOCIOAMBIENTAL PRELIMINAR celebrado
com o Ministério Público Federal, do Trabalho e do Estado do Espírito Santo em 4
de dezembro de 2015 [Grifo nosso].
Outro elemento que chama a atenção é o caráter de afastamento do Estado no atendimento
aos atingidos. Em sua Cláusula 10, o Acordo define que devem “ser previstos mecanismos
que assegurem uma negociação justa, rápida, simples e transparente, a qual poderá ser
acompanhada pelo PODER PÚBLICO” [Grifo nosso]. Portanto, o documento indica que
a negociação se dará diretamente entre a Fundação e a as pessoas atingidas, em esfera
individual, sem garantias da mediação de agentes públicos. Dada a diferença de poder
entre as pessoas atingida e os negociadores que representarão a Fundação, essas
negociações dificilmente atenderão plenamente às necessidades dos atingidos. Nesse
sentido, deve ser levada em consideração a sua situação de vulnerabilidade e dependência
conjuntural, muitos vivendo em casas alugadas pela Samarco e ainda sobrevivendo por
meio de ajuda financeira paga pela empresa.
Dentro desse contexto de isolamento dos atingidos, a negociação individualizada e a
diferença de poder em relação à empresa indicam que dificilmente serão atingidas
soluções justas. Como indicativo disso, já existem exemplos da postura da Samarco em
tais negociações.
Um caso emblemático é o de Teófila Siqueira Pereira Romualdo, moradora de Barra
Longa, de 69 anos, que teve sua máquina de lavar roupas danificada pela lama da
barragem. Quando Teófila solicitou a compra de uma máquina nova para repor a que foi
danificada, a assistente social contratada pelo programa “Escuta Social” da Samarco
exigiu um laudo médico que comprovasse que a senhora não teria condições de torcer a
roupa na mão. Depois do envolvimento do Movimento dos Atingidos por Barragens
(MAB) no caso, a lavadora foi comprada, porém com capacidade inferior à máquina
original (Cherem, 2015).
Mais dramático, porém, foi o caso de Priscila Barros, ex-moradora de Bento Rodrigues.
No dia do desastre, Priscila, que estava grávida, perdeu o bebê enquanto era arrastada
pela lama da barragem. Apesar de a Samarco ter aceitado indenizar as famílias que
perderam parentes em decorrência da tragédia, ela se recusou a indenizar Priscila, baseada
no argumento de que seu bebê ainda não havia nascido, portanto, não deveria ser
considerado como vítima (Knight, 2016).
Tais exemplos não podem ser considerados simples exceções, mas evidências que
revelam os mecanismos sócio-políticos das empresas, sob a anuência Estatal, que atuam
para desconsiderar as demandas e reivindicações dos atores atingidos.
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5 Sobre os programas e a definição de prazos e metas
O Acordo apresenta diversas inconsistências sobre a definição de metas e prazos. De
forma geral, existe um certo desequilíbrio entre o detalhamento relativo aos programas
socioeconômicos, mais genéricos e vagos, e os programas socioambientais, mais
específicos e detalhados.
Os programas socioeconômicos, em geral, não possuem metas específicas, sejam
qualitativas ou quantitativas. O Acordo prevê a criação de programas, mas não define
resultados concretos ou parâmetros de avaliação. Na forma como o Acordo se apresenta,
em muitos casos, bastará a Fundação criar o programa para cumprir as condições,
independentemente da eficácia de tais programas e da efetiva solução dos problemas
criados pelo rompimento da barragem.
Por outro lado, no caso dos programas socioambientais parece que houve um maior
cuidado na definição de metas. Nesse caso, muitos dos parâmetros foram definidos de
forma quantitativa, por exemplo “efetuar a revegetação inicial, emergencial e temporária,
por gramíneas e leguminosas [...] com extensão total de 800 ha (oitocentos hectares)”
(Cláusula 158).
Quanto aos prazos, também existem diferenças entre os programas socioeconômicos e
socioambientais. No caso dos programas socioeconômicos, existem normalmente marcos
temporais para início das atividades, porém sem grande consistência. Alguns programas
devem se iniciar após assinatura do Acordo, outros a partir da aprovação do orçamento
da Fundação, ou ainda a partir da entrega de um termo de referência a ser preparado por
órgãos públicos. Essa variação nos prazos torna o acompanhamento dos diferentes
programas mais complexo, dificultando o monitoramento pela sociedade. Ainda, muitos
desses programas têm uma duração temporal definida no próprio Acordo, sem vinculação
a resultados definidos. Da forma posta, programas poderão ser encerrados quando o prazo
se encerrar, mesmo que os impactos não sejam efetivamente resolvidos.
Ainda sobre os prazos, os programas socioambientais, novamente, apresentam maior
detalhamento e precisão. Em alguns dos programas, os limites são fixados em uma data
específica. Essa é uma forma muito mais simples de arbitrar prazos e de monitorar o
desempenho. Entretanto, essa não chega a ser uma regra nesse grupo de programas, e há
também o encerramento de programas sem vínculos a um resultado específico.
6 Considerações finais
Este texto teve como principal objetivo avaliar elementos do Acordo firmado entre
representes do governo federal e dos governos dos estados de Minas Gerais e Espírito
Santo, com a Samarco e suas acionistas. Nesta análise foram considerados elementos
referentes aos grupos envolvidos na assinatura do Acordo, à estrutura de monitoramento
e controle, ao programa de negociação coordenada e à definição de prazos e metas.
De forma geral, esta avaliação indica que o Acordo cede uma quantidade desproporcional
de poder à Fundação e, consequentemente, às empresas responsáveis pelo rompimento da
barragem.
Pelos termos do Acordo, a Fundação tem o poder de definir os parâmetros de elegibilidade
dos atingidos, ou seja, escolher quem deverá ser considerado atingido ou não. Mais ainda,
a ela é permitido rejeitar as demandas dos atingidos com relação aos pedidos de
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indenização e compensação. Além disso, o sistema de monitoramento de fiscalização cria
procedimentos com elementos estruturais de conflitos de interesse. Permitir que as
empresas de auditoria sejam escolhidas e remuneradas pela Fundação reproduz um
sistema de monitoramento que, em diferentes situações, já se mostrou incapaz em garantir
uma fiscalização independente.
Ainda, a limitação da participação do Estado a representantes do poder executivo e às
suas autarquias, também apresenta grande limitações. Isso se deve, principalmente, ao
papel de empresas mineradoras no financiamento de campanha dos governantes eleitos.
Por fim, o sistema de definição de prazos e metas do Acordo apresenta fragilidades
importantes. Nesse sentido, a não definição de metas claras, principalmente no caso dos
programas socioeconômicos, cria o risco de os programas serem criados sem um real
compromisso com a solução dos problemas. Ainda, existe a possibilidade de os
programas serem encerrados antes de que a situação ao longo do vale do Rio Doce seja
compatível com aquela anterior ao rompimento da barragem.
Dessa forma, o Acordo nos presentes termos, principalmente pela exclusão de
representantes dos atingidos e de órgãos do judiciário, reproduz o modelo de política
ambiental atualmente em voga no país. Este modelo possui várias falhas e limitações,
tendo sido um elemento estruturante no rompimento da barragem do Fundão. Como
existem fortes indícios de que o Acordo será ineficaz na busca de uma remediação efetiva
e de uma compensação justa dos impactos decorrentes desse desastre, defende-se a
impugnação do Acordo, como proposto pelo MPF e a retomada de um processo de
negociação que contemple a participação efetiva dos atingidos e a atuação do Ministério
Público.
Referências
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Boyd, C. (2004). The structural origins of conflicts of interest in the accounting
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Disponível em:
http://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2016/03/03/interna_gerais,739906/ate-
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Carvalho Filho, J. S. (2009). Ação civil pública: comentários por artigo (7 ed.). Rio de
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