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III ENCONTRO NACIONAL SOBRE HIPERTEXTO
Belo Horizonte, MG – 29 a 31 de outubro de 2009
1
LETRAMETOS DIGITAIS, APROPRIAÇÃO TECOLÓGICA E IOVAÇÃO
∗
∗∗
∗1
Marcelo El Khouri BUZATO (IEL/UNICAMP)
2
Resumo
Esta pesquisa, de cunho teórico, toma como pressupostos (i) que toda prática social que
envolve uma (nova) tecnologia reflete uma tensão contínua entre design/configuração e
uso/apropriação, e (ii) que essa tensão pode constituir um campo fértil para a inovação
(pedagógica, lingüística, tecnológica, institucional etc.). Duas macro-estratégias de inovação
tecnológica que caracterizam a assim chamada cultura digital, entendida como um novo ethos,
são examinadas, a saber, ‘de cima para baixo’ e ‘de baixo para cima’. Tais estratégias são
postas em relação e em contraste com uma concepção relacional e interativa, ainda em
elaboração, de novos letramentos/letramentos digitais. As implicações desta concepção para a
educação e para o desenvolvimento da minha pesquisa são apontadas à guisa de conclusão.
Palavras-chave: Apropriação tecnológica; Novos letramentos; Letramentos digitais.
Introdução: letramentos digitais e o conceito de apropriação tecnológica
Apropriação é um conceito aplicável a diferentes escalas ou níveis de análise (tecnologia-
indivíduo, tecnologia-grupo, tecnologia-instituição, tecnologia-cultura nacional etc.),
produzido em diversos campos disciplinares (Antropologia, Sociologia, Psicologia, etc), e
disputado por diferentes teorias ou correntes nesses campos (o marxismo, a teoria da
estruturação, os estudos culturais, o sócio-interacionismo etc). Trago para esta reflexão apenas
algumas dessas perspectivas, justamente as que se harmonizam com a concepção de novos
letramentos/letramentos digitais que tem norteado minhas pesquisas.
Posso resumir essa concepção da seguinte maneira: ser letrado (adquirir um certo letramento)
é participar de um conjunto de práticas sociais nas quais significados e os sentidos de certos
conteúdos codificados culturalmente (tradicionalmente, mas não exclusivamente, textos
escritos) são gerados, disputados, negociados e transformados. Letramentos são diversos, de
modo que as atividades interativas/interpretativas que os constituem envolvem propósitos,
∗
Pesquisa financiada pela FAPESP sob o número do processo 2009/00671-7.
1
Trabalho apresentado no Grupo de Discussão
LETRAMENTOS DIGITAIS, APROPRIAÇÃO
TECNOLÓGICA E INOVAÇÃO
, no III Encontro Nacional sobre Hipertexto, Centro Federal de
Educação Tecnológica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2009.
2
Doutor em Lingüística Aplicada, mbuzato@iel.unicamp.br.
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valores, atitudes, códigos e dispositivos tecnológicos variados. Os efeitos cognitivos e sociais
desses letramentos variam em função dos fatores citados, entre outros, não sendo totalmente
previsíveis, embora se possa investir institucionalmente em certos tipos de letramento, em
certos contextos, visando certos efeitos.
Pode-se dizer que letramentos são sempre situados, mas, para tanto, é preciso esclarecer o
sentido de “situado”. Não se trata apenas de que os letramentos existem e circulam em
domínios e contextos geográficos, culturais, institucionais, e históricos específicos, mas
também de que esses contextos (domínios, instituições etc.) são também produzidos por
letramentos específicos. Trata-se, em outras palavras, de assumir que, entre letramento e
contexto, há sempre uma relação de co-produção e de recursividade.
Os novos letramentos/letramentos digitais são particularmente importantes para pensarmos
em apropriação tecnológica com vistas a transformações sociais, porque eles habilitam
contingencialmente aquilo que autores como Lankshear e Knobel (2007) qualificam como um
novo ethos, uma nova mentalidade que enfatiza a participação, em detrimento da publicação
editorial, o conhecimento (técnico) distribuído em lugar do conhecimento (técnico)
centralizado, a partilha de conteúdos em vez da propriedade intelectual privada, a
experimentação em oposição à normatização, enfim, a troca colaborativa , a quebra de regras
criativa e o hibridismo em lugar da difusão de conteúdos, do policiamento e da pureza .
De fato, os novos letramentos são produtos e produtores de hibridizações, ou seja, no sentido
bakhtiniano (1988), de justaposições de vozes/consciências num mesmo ato enunciativo, e
essas hibridizações têm um potencial centrípeto, renovador. Entre elas, podemos citar as que
se dão entre (i) espaços-tempos, (ii) mídias (a imprensa, o vídeo, a fotografia, o rádio, o
cinema etc.), (iii) sistemas de representação (a escrita alfanumérica, as diversas linguagens
imagéticas, os diversos tipos de cartografia e infografia, a música, a matemática etc.), (iv)
gêneros vinculados a diferentes esferas de atividade social e diferentes tradições culturais e
lugares geográficos que podem ser atravessados por um mesmo percurso interpretativo, (v)
atitudes ou disposições frente ao conteúdo codificado – procurar informação, criticar, se
divertir, pedir ajuda, etc (BUZATO, 2009).
Ao mesmo tempo em que evidenciam uma certa instabilidade, e, portanto, a possibilidade de
mudança social (e educacional), essas hibridizações também são resultados de processos de
dominação e manipulação gerenciados à distância (globais, nesse sentido), processos que, no
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mais das vezes, são movidos adiante por nossa própria agentividade. Dito de outra forma,
conforme nós nos apropriamos das novas tecnologias para fazer caminhar um outro ethos, o
qual consideramos mais propício a uma educação voltada para a liberdade, a autonomia, a
democracia, a solidariedade etc., não podemos perder de vista o fato de que alguém está
fornecendo os templates, alguém também se apropria de nossa atividade e lhe confere
significados sobre os quais talvez não tenhamos consciência (LATOUR, 2000; 2005).
Os novos letramentos/letramentos digitais são, portanto, ao mesmo tempo, produtores e
resultados de apropriações culturais (mas também institucionais, sociais e pessoais) das
tecnologias digitais. Essas apropriações põem em evidência processos e conflitos
socioculturais que sempre existiram, e que não deixarão de existir, mas também abrem a
possibilidade de transformações (inovações, aberturas de sentido, instabilidades estruturais,
etc.) que ações e/ou políticas educacionais e/ou de inclusão social (digital) deveriam
aproveitar, ou, ao menos, não ignorar.
Apropriação tecnológica e inovação I: de cima para baixo
Rogoff (1995, apud DELANEY et al, 2008) explora três sentidos aplicáveis ao termo
apropriação. Em um deles, apropriação pode ser entendida como internalização, ou seja, as
tecnologias são elementos externos que carregam habilidades e conhecimentos passíveis de
serem transmitidos para dentro do indivíduo, produzindo mudanças internas nele. Em um
segundo sentido, apropriação pode ser vista como transformação, isto é, a tecnologia é algo
externo ao indivíduo que é importado e transformado para servir aos propósitos desse
indivíduo. Nesses dois sentidos, a apropriação está ligada a características do indivíduo e a
seus movimentos em direção ao objeto, de modo que indivíduo e objeto são tidos como
entidades discretas. Podemos postular, com base nos dados anedóticos que dispomos, que
essa seja, grosso modo, a visão de apropriação que norteia o pensamento “escolar” sobre as
novas tecnologias atualmente.
Em um terceiro sentido, que nos interessa mais diretamente, Rogoff (op. cit.) toma os
processos individuais, interpessoais e socioculturais como mutuamente constitutivos por meio
do conceito de apropriação participativa (participatory appropriation). Basicamente, nessa
visão, ao participarem de atividades em que a tecnologia é relevante, as pessoas adaptam e
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modificam o seu significado por meio da interação social (negociação de sentidos) em torno
dos usos da tecnologia. Apropriação, portanto, passa de uma precondição a um sinônimo de
transformação. Apropriar-se é igual a tornar-se (becoming).
Ao conectar apropriação, participação e transformação, sem separar sujeitos de objetos (e de
outros sujeitos), Rogoff (op. cit.) aponta para um caminho interessante de reflexão, porém
também convida o analista a revisitar a velha questão da precedência, ou não, do sujeito em
relação à estrutura social. Diversos autores ligados ao tema da apropriação tecnológica
recorrem, para essa revisita, à Teoria da Estruturação Social de Antony Giddens (1989).
Resumindo drasticamente essa teoria, podemos dizer que ela tenta explicar como os atores
sociais, ao participarem de práticas ordenadas no tempo e no espaço, ao mesmo tempo
produzem e conservam uma certa estrutura social, justamente porque se apóiam em regras e
recursos que existem como propriedades estruturais. Tais propriedades são vistas como o
meio e o produto das práticas que constituem os sistemas sociais, os quais são, por sua vez,
emergentes e dotados de recursividade: os atores sociais servem-se de normas e recursos do
sistema para mantê-lo e mudá-lo, “refazendo o que já está feito na continuidade da práxis” (p.
140).
Com base na Teoria da Estruturação de Giddens, Orlikowski (1992, apud DELANEY et al
2008) propõe uma teoria de apropriação em que as tecnologias são vistas como recursividade
entre estrutura e ação, isto é, como uma dualidade tecnologia enquanto design e tecnologia
em uso. Enquanto design, a tecnologia fornece aos atores sociais certos sistemas de normas e
recursos de que esses se servem para estruturar sua prática, as condições institucionais e os
estilos de vida, sendo que as percepções do sujeito sobre o contexto influenciam sua interação
com a tecnologia (tecnologia em uso). Esses usos trazem sempre conseqüências para as
instituições que os abrigam, ou seja, a tecnologia em uso reforça e/ou transforma estruturas de
significação, dominação e legitimação, institucionalizadas.
O problema com o modelo de Orlikowski (op. cit.) é que a autora enfatiza uma visão segundo
a qual quaisquer restrições estruturais são institucionais e não internas às próprias tecnologias.
Parece escapar-lhe, portanto, a percepção de que, também para o construtor, a tecnologia é
uma dualidade (não é só design, mas também, uso). Logo, entre os usos dos usuários (que o
construtor pode apenas projetar) e os usos do construtor, de que os usuários, por vezes, não
têm consciência, ou não estão em posição de direcionar, existe um espaço de conflito e de
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disputa de poder (e de sentidos). Como em todo espaço desse tipo, há aí lugar para privação e
criatividade.
BAR et al (2007, s.p.) identificam esse espaço ao definirem apropriação tecnológica como
“uma renegociação criativa do poder implicado na configuração das tecnologias, seus usos, e
a distribuição dos seus benefícios”. Os autores não recorrem a propriedades estruturais, mas a
dinâmicas culturais como motores dos processos de apropriação. Particularmente, baseiam-se
em dinâmicas culturais constituídas historicamente em situações de assimetria de poder: a
infiltração barroca, a creolização e a antropofagia. Argumentam os autores que, assim como
essas dinâmicas produziram literaturas, arquiteturas, práticas religiosas etc., consideradas
excepcionalmente criativas, elas produziriam agora, no campo da telefonia celular no terceiro
mundo, apropriações tecnológicas excepcionalmente inovadoras.
Para os autores, a inovação é produzida em um ciclo que começa com a adoção da tecnologia,
tal como projetada alhures, pelos usuários, seguida da apropriação propriamente dita (i.e.,
transformação dessa tecnologia, em sua aparência, função e configuração, pelas práticas,
códigos e necessidades locais) e finalmente pela reapropriação dessas transformações por
parte do fabricante, que reprojeta ou reconfigura o produto (na versão seguinte) para
incorporar ou reprimir tais transformações.
Assim, podemos pensar em dois tipos de apropriações tecnológicas, pelo menos, constituídas
na relação entre fabricante/tecnologia enquanto design e usuário/tecnologia em uso.
Inovações seriam, basicamente, apropriações legitimáveis, isto é, não ofensivas ao plano de
negócios do fabricante. As não legitimáveis e francamente resistentes ao plano de negócio
seriam, mais propriamente, transgressões. Versões sucessivas do produto serão então,
basicamente, (i) tentativas do fabricante de lucrar por meio de inovações locais que ele torna
globais e faz circular, e/ou (ii) tentativas de reprimir transgressões que minam seu plano de
negócios. Obviamente, nem todas as apropriações inofensivas serão reapropriadas como
inovações (apenas as que se reverterem em lucro) e nem todas as transgressões reprimidas
(apenas as que se reverterem em prejuízo ou em responsabilidade legal do fabricante). Na há
aí, portanto, criatividade ou dialogismo. Há circulação do poder e trabalho de Sísifo de
ambos os lados.
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Apropriação tecnológica e inovação II: de baixo para cima
Todos os apontamentos sobre apropriação tecnológica recolhidos até este ponto contam uma
estória muito binária da relação entre design/configuração, uso/apropriação e
inovação/transgressão. Isto porque, aparentemente, excluem posições/subjetividades híbridas
ou fronteiriças tais como a do “utilizador” (CARDON, 2005), isto é, o fabricante não
industrial, não institucionalizado, não cumpridor de um plano de negócios, mas (i)
suficientemente envolvido com o funcionamento interno do artefato para compreender melhor
do que o fabricante o potencial da tecnologia para resolver seus problemas locais, e (ii)
suficientemente entusiasmado, indignado ou indisciplinado (no “bom sentido” que o termo
pode ter ao designar algo produtivo e voltado para a solidariedade e a dignidade, como em
MOITA LOPES, 2006) para iniciar um processo coletivo e aberto de inovação em rede. É
dessa maneira, justamente, que foram produzidas inovações tais como o Linux, a Wikipedia e
a própria Web, isto é, inovações produzidas por dinâmicas de conexão e colaboração e
voltadas, recursivamente, para a diversidade, a abertura, e o compartilhamento.
Modelos como os de Orlikowsky (op. cit) e Bar et al (op. cit.) dão conta apenas de inovações
pelo uso que Cardon (op. cit., s.p.) denomina descendentes (top-down). Nesse caso os
fabricantes, ao observarem certas possibilidades criadas pelos usos locais “são impelidos a
desenvolver uma solução a partir de seu controle dos procedimentos genéricos, a fim de
reduzir os custos de transferência da necessidade específica dos clientes”. Inovações de baixo
para cima (bottom-up) como o Linux ou a Wikipedia são de outro tipo. Basicamente, em lugar
de uma solução genérica produzida visando um padrão médio de necessidades (tais como
interpretadas pelo fabricante), elas “são produzidas (...) pela convergência entre as
especificidades” o que permite “uma outra forma de generalização, construída com o
ajuste progressivo da multiplicidade de soluções trazidas pelos utilizadores”
(CARDON, op. cit, s.p.). Trata-se, portanto, de compatibilizar heterogeneidade e ação
coordenada sem o recurso à imposição de uma interpretação global e blindada do problema,
produzida a partir dos recursos e modos de operar do fabricante.
Mais do que uma opção ética e política (que não deixa de existir, seja qual for o tipo de
inovação), inovações ascendentes são uma opção utilitária, em muitos casos, porque adotam a
chamada “lei da eficiência da cooperação aberta”, expressa pela famosa frase given enough
eyeballs, all bugs are shallow. Dito de outra forma, as diferenças de capacidade, necessidade
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e interpretação entre os atores conectados em torno da inovação não constituem o problema,
mas a própria uma solução.
Além de tirar proveito da heterogeneidade de visões, competências e interesses daqueles que
dela participam, as inovações ascendentes têm características que as colocam em uma direção
particularmente interessante para uma Educação comprometida com a liberdade e a
transformação social. Justamente porque sua força está nos ajustes sucessivos que vão sendo
feitos pelos que não a criaram originalmente, tentar protegê-la ou disciplinar excessivamente
os seus usos a enfraquece (exatamente como uma ação escolar mal conduzida, porque
excessivamente prescritiva e direcionada, pode enfraquecer o potencial de recursos como um
Blog, uma wiki ou um editor de apresentações). De alguma forma, nessas inovações, a
igualdade emerge dinamicamente da diversidade, em processos de convergência, e não de
imposição.
Isto não significa dizer, fique bem claro, que a prolixidade ou a eficácia desse tipo de
inovação/apropriação tecnológica determinará, por si só, mudanças radicais nas configurações
da relação entre desigualdade e diferença nos espaços culturais e institucionais em que elas se
desenrolam. Isto porque, assim como nas inovações de cima para baixo, há também aqui uma
série de conflitos, dilemas e disputas a serem considerados. Para entendê-los, é útil recorrer ao
modelo da inovação pelo uso proposto por Cardon (op. cit, s.p.), reproduzido na figura 1.
Figura 1 - Os três círculos da inovação pelo uso, segundo Cardon (2005).
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Em geral, os processos de inovação ascendente começam com um problema prático que um
utilizador, ou grupo pequeno de utilizadores, encontra em sua vida. Esses indivíduos e/ou
pequenos grupos utilizam sua reflexividade e competências pessoais que adquiriram em um
contexto profissional ou acadêmico, misturadas às suas atividades pessoais ou de lazer (isto é,
em espaços e letramentos caracterizados por maior liberdade, mais simetria de poder, menos
prescrição, etc.), para dar início a um esforço no qual vão conquistando aliados (no sentido de
LATOUR, 2000), os quais se articulam em torno do problema, atribuindo-lhe significados
locais.
Ao mobilizarem suas relações pessoais/profissionais, e não apenas conteúdos técnicos que
dominam, os iniciadores fortalecem sua iniciativa. Em um primeiro momento, essas redes
colaborativas, além de eyeballs trazem prestígio e notoriedade para a inovação, o que, em um
segundo momento, atrai para si uma “nebulosa de contribuintes”. Embora intervenha pouco
tecnicamente no artefato, essa nebulosa de contribuintes revigora a inovação. Primeiro, por
seu volume, a nebulosa ‘estressa’ o sistema e expõe suas fragilidades, as quais, então, tornam-
se objeto de atenção do núcleo de inovadores. Segundo, por sua diversidade, a nebulosa
sugere/demanda novos usos que um segundo grupo de utilizadores tecnicamente habilitados,
o “círculo de reformadores” na figura 1, utiliza para ampliar o leque de funcionalidades do
sistema. A inovação, porém, não termina aí. Dado que tudo foi feito, desde o início,
privilegiando a abertura e a conexão, explica Cardon (op. cit.), formam-se paulatinamente
“ecossistemas” de inovações conectados entre si, o que permite a cada uma das inovações (e
grupos de inovadores) beneficiar-se dos efeitos externos que elas (eles) produzem.
Para que não se caia na ilusão de achar que, por conta de sua base aberta e cooperativa, as
apropriações de baixo para cima são isentas dos problemas afetos à desigualdade e à diferença
que caracterizam qualquer outro tipo de prática social, vale notar que nesses processos
inovativos não se prescinde – nem se pode prescindir – de especializações nos papéis dos
contribuintes dentro da comunidade formada em torno da prática inovadora e, portanto, de
assimetrias de poder expressas nas diferentes formas de participação e reificação que ali se
produzem (WENGER, 1998). A mais evidente delas, explica Cardon (op. cit., s.p.), está no
desenvolvimento técnico mais pesado, que “raramente é uma produção coletiva ampliada”.
Ligado a essa assimetria de capacidade/conhecimento que caracteriza a própria prática, está
também o fato de que o círculo inicial dos inovadores freqüentemente exerce “um controle
vigilante sobre o destino de sua iniciativa”, de modo que vão se estabelecendo aí fronteiras
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ideológicas, ligadas a políticas de participação específicas e marcadas por reificações
específicas (por exemplo, licenças que garantem o prolongamento do caráter aberto da
inovação aos produtos e desenvolvimentos posteriores gerados a partir dela).
Vale a pena notar também que, como em qualquer processo social, existem aí tensões e lutas.
Por vezes, a relação entre o núcleo dos inovadores e os demais contribuintes – que podemos
aqui entender como uma relação intercultural, isto é entre a cultura técnica específica onde
nasce uma certa inovação e os outros lifewords de onde vem contribuintes e onde a inovação
circula – demanda dos inovadores a tolerância para certas simplificações (por exemplo, de
design de interfaces) desejadas pelos contribuintes, ou para certos usos “profanos” sem os
quais estes não poderiam/desejariam participar da inovação. Dos contribuintes periféricos é
demandado também um certo esforço cognitivo e crítico sem o qual o valor da inovação não
seria percebido.
Mesmo sabendo tolerar e viabilizar essa diversidade de formas de envolvimento, ou
justamente porque essa tolerância existe, o núcleo de inovadores enfrenta também o problema
da colonização da sua inovação por usos “mais próximos do consumo de serviços gratuitos
que do envolvimento com uma informática ‘cidadã’“ (CARDON, op. cit., s. p.), como, por
exemplo, a adoção do sistema por agentes comerciais. Surgem aí tensões normativas e
oposições entre “puro” e “impuro” que, contrariamente ao que ocorre nas inovações
descendentes, já não poderiam, mesmo que assim se desejasse, ser resolvidas à base de
imposições imperialistas inscritas na tecnologia enquanto design. Na maioria dos casos,
essas tensões levam à instauração de uma governança pluralista para a inovação, vigilante,
porém “tolerante para com a diversidade de razões que os agentes têm para nelas se
envolverem” (ibidem). Trata-se, portanto, de uma outra maneira, quando comparada com
instituições tradicionais como a escola, de lidar com as forças centrípetas e centrífugas que
caracterizam a produção simbólica em qualquer esfera.
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Educar para o uso e educando pelo uso: educação e Web 2.0
A Web 2.0
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, tema dileto dos trabalhos mais recentes e mais instigantes sobre novos
letramentos/letramentos digitais, trás para o centro dos debates sobre novos
letramentos/letramentos digitais e educação a cultura da inovação pelo uso e, com ela, o
conflito entre o ethos que dá sustentação a uma educação conteudista, voltada para o acesso a
um conhecimento monológico, imposto de cima para baixo e direcionado para a produção de
trabalhadores capacitados conforme o mercado o demanda, e um outro ethos que, em
princípio, começa a caracterizar outras esferas de produção simbólica legitimada (o
jornalismo, as artes, a informática etc.). Entre essas esferas está, inclusive, a da pesquisa
acadêmica que se faz em torno dos novos letramentos/letramentos digitais (COIRO et al,
2008), na qual os “empreendedores” começam a perceber que a lei da eficiência da
cooperação aberta é a melhor maneira de lidar com um objeto de interesse (letramento) que,
de substantivo passou a dêitico (ibidem).
Contrariamente ao que poderiam supor os mais conservadores, o que os pesquisadores dos
novos letramentos têm em mente ao envolverem-se com o conceito e os discursos acerca da
Web 2.0 não é a criação de modelos prescritivos para a geração de materiais didáticos e ou
atividades que levem alunos e professores a fazer “coisas novas” que resultem na mesma
coisa. Ao contrário, a idéia é legitimar as maneiras locais pelas quais cada professor, com seus
alunos, possa se apropriar das novas tecnologias de modo a negociar criativamente os designs
e configurações curriculares, didáticos e espaciotemporais que lhes são impostos globalmente,
e, por meio dessa apropriação, participar de uma globalização contra-hegemônica, fundada na
noção de que é possível conciliar heterogeneidade e cidadania (cosmopolita) a partir da
inovação (de baixo para cima), tecnológica ou não.
Obviamente se pode argumentar que pensar uma educação centrada em inovações
ascendentes é tirar a chance dos alunos “excluídos” de compartilhar o acervo de bens e
práticas culturais da era do impresso que a escola tradicionalmente ficou encarregada de
3
Guardo em relação ao termo Web 2.0 ( e, portanto, à metáfora de uma Educação 2.0) a mesma distância crítica
que procuro guardar em relação à palavra “inclusão”. Em verdade, esse termo cunhado por Tim O´Reilly, dono
de uma conceituada empresa especializada em publicações técnicas em informática e promoção de seminários na
área, e entusiasta ligado ao movimento do Software Livre, está hoje claramente apropriado por discursos de
marketing, que travestem processos de “criação de valor” para novos e antigos negócios em promessas sobre
espaços de liberdade e autonomia e realização do potencial humano (JARRET, 2008, entre outros). O fato,
porém, é que há algo de novo, e não necessariamente bom ou ruim, mas certamente não-neutro, na maneira
como as pessoas se apropriam da Internet, e a Internet, das pessoas, no que chamamos de Web 2.0.
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difundir e ensinar a apreciar, de cima para baixo, algo que a Web 1.0 prometia, e ainda
promete, ajudá-la a fazer. Não pretendo ignorar esse argumento; contudo, suponho que ele
não pode nos paralisar enquanto um fosso ético, cultural e cognitivo se alarga e se aprofunda
quotidianamente em nossas salas de aula, principalmente nas que já estão dotadas de bons
computadores, boas conexões e professores tecnicamente capacitados (LEANDER, 2007).
Nem por isso, pretendo sucumbir ao mito da Internet livre, indisciplinada e cosmopolita, feita
para e pelo cidadão, que os produtores dos negócios 2.0 tentam propagar. Trata-se, em
verdade, de pesquisar maneiras de reterritorializar e reinventar a discussão em torno de
tecnologia, liberdade e transformação social que deve nortear uma educação crítica, da mesma
forma que o capitalismo (e o funcionamento do poder) se reinventam/reinventarão e se
reterritorializam/reterritorializarão nas Webs 1.0, 2.0, 3.0, 4.0 ...
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