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ENTREVISTA COM
JOSÉ MADUREIRA PINTO
Da sociologia como prossão
à sociologia crítica
por Renato Miguel do Carmo
e Virgílio Borges Pereira
Análise Social, ,  (.º), 
  -
  
Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Av. Professor Aníbal de Bettencourt, 
- Lisboa Portugal analise.social@ics.ul.pt
ENTREVISTA I
Da sociologia como prossão
à sociologia crítica
Entrevista com José Madureira Pinto
por Renato Miguel do Carmo
e Virgílio Borges Pereira
T endo como ponto de partida o seu percurso cientíco no campo das ciências sociais
e, particularmente, da sociologia, que se desenvolve fundamentalmente a partir do
ingresso, em , no Gabinete de Investigações Sociológicas (), José Madureira
Pinto percorre ao longo desta entrevista um conjunto diversicado de temas. Desde logo é
realizada uma leitura sobre o processo de institucionalização e de crescimento da sociologia
ocorrido nestas últimas quatro décadas, sublinhando-se o modo como este se foi descentrali-
zando e ganhando relevância em diferentes universidades e centros de investigação situados em
diversas zonas do país. Foca-se particularmente a situação do curso de sociologia da Faculdade de
Letras da Universidade do Porto e a consolidação do Instituto de Sociologia da mesma instituição.
A este respeito abordam-se também as dinâmicas editoriais que levaram à criação de várias
revistas cientícas, com destaque para a Cadernos de Ciências Sociais, da qual foi fundador
e diretor. Numa outra linha de reexão, discutem-se criticamente diversas perspetivas teóri-
cas, salientando-se a importância de autores como Pierre Bourdieu e do seu contributo para a
construção de um programa de investigação que continua a ser muito pertinente para o estudo
dos mais variados fenómenos sociais. Paralelamente são inventariados os marcos fundamentais
das investigações que foi realizando ao longo deste período, designadamente o estudo iniciado
conjuntamente com João Ferreira de Almeida sobre a freguesia de Fonte Arcada, o concelho
de Penael e o Vale do Sousa. A um outro nível são sublinhadas pelo entrevistado as preocu-
pações quanto ao enquadramento da produção de conhecimento cientíco na conceção das
políticas públicas, sem que estas se sobreponham ao necessário aprofundamento analítico e
reexivo. Por m, na última parte da entrevista, uma análise sobre o futuro que se apresenta,
no atual contexto de crise, particularmente difícil para as ciências sociais e, sobretudo, para
as novas gerações de investigadores, mas que, ao mesmo tempo, compreende um conjunto de
potencialidades que advêm, em grande medida, da dinâmica intelectual e empenhada dessas
mesmas gerações.
 ENTREVISTA COM JOSÉ MADUREIRA PINTO
José Madureira Pinto é Professor Catedrático aposentado do Grupo de Ciências Sociais da
Faculdade de Economia da Universidade do Porto, onde se licenciou. Doutorou-se em socio-
logia pelo  em . É investigador do Instituto de Sociologia da Universidade do Porto e
membro da sua Comissão Executiva.
Publicou os seguintes livros: A Investigação nas Ciências Sociais (em colaboração com João
Ferreira de Almeida), Lisboa, Presença, ; Ideologias: Inventário Crítico dum Conceito,
Lisboa, Presença, ; Estruturas Sociais e Práticas Simbólico-culturais nos Campos, Porto, Edi-
ções Afrontamento, ; Metodologia das Ciências Sociais (org., em colaboração com Augusto
Santos Silva), Porto, Edições Afrontamento, ; Propostas para o Ensino das Ciências Sociais,
Porto, Edições Afrontamento, ; Pierre Bourdieu. A Teoria da Prática e a Construção da
Sociologia em Portugal (org., em colaboração com Virgílio Borges Pereira), Porto, Edições
Afrontamento, ; Indagação Cientíca, Aprendizagens Escolares, Reexividade Social, Porto,
Edições Afrontamento, ; Desigualdades, Desregulação e Riscos nas Sociedades Contemporâ-
neas (org., em colaboração com Virgílio Borges Pereira), Porto, Edições Afrontamento, ;
Ir e Voltar. Sociologia de uma Colectividade Local do Noroeste Português (-), vol.
(org., em colaboração com João Queirós), Porto, Edições Afrontamento, .
Dirigiu vários projetos nanciados pela Junta Nacional de Investigação Cientíca e Tecnoló-
gica () e pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (), o último dos quais envolveu
a revisitação sociológica de uma coletividade local do Noroeste português que já havia estu-
dado em nais dos anos . Colaborou recentemente numa prolongada pesquisa de terreno,
nanciada pela Agência de Desenvolvimento do Vale do Ave (), e dirigida por Virgílio
Borges Pereira, sobre a formação do quotidiano num contexto (des)industrializado do Vale do
Ave, bem como no volume a que a mesma pesquisa deu lugar: Ao Cair do Pano, organizado por
aquele investigador (/Edições Afrontamento, ).
É autor de algumas dezenas de artigos e capítulos de livros sobre teoria e metodologia das ciên-
cias sociais, sociologia rural, sociologia da educação e das práticas culturais, sociologia do tra-
balho e das classes sociais. Foi presidente da Associação Portuguesa de Sociologia entre  e
. Dirige a revista Cadernos de Ciências Sociais. Organizou, a convite da Comissão Nacional
das Comemorações do Centenário da República, o Colóquio Desigualdades Sociais: os Modelos
de Desenvolvimento e as Políticas Públicas em Questão, tendo coordenado a publicação das res-
petivas atas, em volume que recebeu o mesmo título (Caleidoscópio, ). Foi consultor do
presidente da República Jorge Sampaio para a área da economia, desenvolvimento e sociedade
entre  e .
    Para iniciar, gostaríamos que reetisse um pouco
sobre o processo de consolidação institucional das ciências sociais, em função da
sua experiência no Gabinete de Investigações Sociais e, mais tarde, na Univer-
sidade do Porto, quer na Faculdade de Economia, quer no âmbito do curso de
sociologia da Faculdade Letras, e, depois, no Instituto de Sociologia.
   Ingressei no Gabinete de Investigações Sociais
numa altura em que o  já tinha história feita. Comecei a trabalhar lá no
DA SOCIOLOGIA COMO PROFISSÃO À SOCIOLOGIA CRÍTICA 
ano de , depois de, em , ter concluído a licenciatura em economia
na Faculdade de Economia do Porto e de, nesta Escola, ter lecionado durante
o ano letivo de - (atividade que interrompi por ter sido chamado a
cumprir o serviço militar).
Iniciei o meu trabalho no  integrado numa equipa que viria a ter respon-
sabilidades no ensino de uma disciplina de Introdução às Ciências Sociais no
Instituto Superior de Economia (hoje, Instituto Superior de Economia e Ges-
tão). Como já foi dito por vários colegas entrevistados em anteriores números
da Análise Social, esse foi um período de formação coletiva extremamente rico,
que, no meu caso, permitiu, em tempo relativamente curto, uma aquisição
e estruturação de conhecimentos na área das ciências sociais que antes não
tinham estado ao meu alcance, tanto mais quanto, por razões circunstanciais,
começara a vida académica lecionando no âmbito das disciplinas de gestão.
Graças a esta rutura intelectual, que foi também uma rutura no plano pessoal
(chamada ao serviço militar e alguma radicalização política), pude beneciar,
durante alguns anos, dos resultados do processo coletivo de acumulação de
conhecimentos que marcou a primeira geração dos sociólogos portugueses.
Num contexto político-institucional particularmente adverso ao desenvolvi-
mento dos estudos sociais, o papel de Adérito Sedas Nunes foi, como é con-
sensual, importantíssimo. Além de muito conhecedor em vastos domínios das
ciências sociais (sociologia, certamente, mas também economia, ciência polí-
tica, etc.), fazia questão de integrar sistematicamente na sua abordagem sobre
a realidade social uma reexão epistemológica muito aberta e acutilante – o
que ampliava signicativamente o alcance das suas intervenções. Além disso,
era um organizador de trabalho particularmente competente e perspicaz: per-
cebia muito bem aquilo de que cada um dos seus colaboradores era capaz e
quais as áreas em que seria mais útil investirem. Creio que todos os membros
do  desta fase beneciaram muito com a liderança de Adérito Sedas Nunes
– eu beneciei muitíssimo.
Pode concretizar o modo como se deu a sua integração no ? Qual foi a porta
de entrada?
Iniciei muito jovem o meu percurso académico, ensinando, como já disse, na
área da gestão (concretamente, comecei por lecionar na Faculdade de Econo-
mia do Porto, contabilidade de custos). Mas, não obstante o relativo sucesso,
em termos pedagógicos, dessa experiência, a que se somava algum incentivo
tácito de ordem familiar para prosseguir neste caminho, cedo percebi que não
era por aí que iria passar o meu futuro prossional. Para esta viragem – a que
não foi indiferente, como já sugeri, uma crescente politização – contribuiu
de forma signicativa o contacto que tive, no nal da licenciatura, com uma
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
 ENTREVISTA COM JOSÉ MADUREIRA PINTO
disciplina lecionada pelo professor Mário Pinto, de quem já tinha sido aluno
noutra cadeira. Versava a referida disciplina direito corporativo, mas, numa
atitude de grande coragem, que nunca deixo de realçar, fazia o professor Mário
Pinto questão de não ensinar rigorosamente nada do que se esperaria, na
época, de um curso sobre direito corporativo. O que ele fez foi pôr os alunos a
estudar e a discutir nas aulas um texto de Iniciação às ciências sociais de auto-
ria de Adérito Sedas Nunes, que este lecionava no Instituto de Estudos Sociais,
instituição que precedeu e de algum modo veio a dar origem ao Instituto de
Ciências do Trabalho e da Empresa. No ano em que terminava a minha licen-
ciatura em economia (faltavam ainda seis anos para o  de abril), o curso de
Direito Corporativo na Faculdade de Economia do Porto foi, de facto, graças
à clarividência de um jurista rebelde, um curso semiclandestino de introdução
às ciências sociais. Acontece que muitos elementos que vão surgir mais tarde
em Questões Preliminares sobre as Ciências Sociais já eram abordados no dis-
creto texto policopiado a que tive o privilégio de aceder pela mão de Mário
Pinto. E o que ele me revelou foi sucientemente estimulante para me tornar
um aluno particularmente empenhado e participativo nas aulas (onde, com
grande entusiasmo, se discutiam quer o texto-base, quer trabalhos realizados
pelos alunos nele direta ou indiretamente inspirados). Daí, talvez, algum des-
contentamento que o professor Mário Pinto me transmitiu quando soube que,
tendo sido recrutado como assistente, ia lecionar na área de gestão. A verdade
é que quando, poucos anos mais tarde, ele soube que, apesar de eu estar a cum-
prir o serviço militar, tinha decidido investir mais sistematicamente no estudo
da sociologia e tinha algum tempo livre para outras atividades, indicou o meu
nome ao professor Sedas Nunes. Este, para minha grande surpresa, contactou-
me, entrevistou-me, e convidou-me para integrar a equipa docente de intro-
dução às ciências sociais, que, como já disse, iria ser lecionada no Instituto
Superior de Economia sob sua orientação.
Até aí, não conhecia nenhuma das pessoas com quem veio a trabalhar
Não conhecia ninguém, embora estivesse informado da existência de um
movimento de renovação das ciências sociais dirigido pelo professor Sedas
Nunes, de que a revista Análise Social se fazia eco. Lia regularmente a Análise
Social, que, embora com poucos anos de existência, era já, nessa altura, uma
instituição respeitada e com alguma inuência no meio universitário do Porto
(lembro-me de que, quando saía um número da revista, gerava-se sempre
grande entusiasmo nos círculos a que eu pertencia), e esse contacto constituiu
componente importante de uma formação não estruturada que fui fazendo na
área da sociologia, permitindo-me simultaneamente alargar a reexão sobre
a relação entre a economia e as outras ciências sociais, tópico frequentemente
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DA SOCIOLOGIA COMO PROFISSÃO À SOCIOLOGIA CRÍTICA 
abordado nas páginas da revista. Neste aspeto, os trabalhos de Mário Murteira
foram particularmente relevantes, já que me revelaram áreas de fronteira entre
a sociologia e a economia que até então me escapavam, bem como a obra de
autores como François Perroux, por exemplo, que as exploravam sistematica-
mente de forma muito inspiradora. O facto de o já invocado professor Mário
Pinto ter publicado na revista vários artigos sobre questões do trabalho e do
sindicalismo reforçava o meu interesse em acompanhar à distância o trabalho
que se fazia no  nos anos  – mas estava longe de pensar que viria a
integrá-lo.
Se, até ingressar no Gabinete de Investigações Sociais, a minha relação com
a sociologia era feita de leituras interessadas mas eminentemente dispersas,
o trabalho que aí passei a desenvolver caracterizou-se, bem pelo contrário, por
grande intensidade e elevado grau de estruturação, privilegiando áreas-base de
formação, especialmente a metodologia e epistemologia das ciências sociais.
Algumas obras de grande fôlego, e na época altamente inovadoras, como
Le métier de sociologue, de Bourdieu, Passeron e Chamboredon (cuja impor-
tância era entusiasticamente assinalada por Maria Eduarda Cruzeiro), foram
objeto de leitura e discussão coletivas. Creio poder dizer que, em relativamente
pouco tempo, consegui colmatar evidentes carências e lacunas nestes domí-
nios fundamentais, graças ao estimulante clima institucional que, sob a égide
de Adérito Sedas Nunes, se criou no . E o essencial da crítica dos modelos
empirista e formalista do conhecimento sociológico, que fui aprofundando em
muitas publicações ao longo da minha carreira académica, cou seguramente
moldado pela consistente e fundamentada defesa do “racionalismo aplicado
que, em torno do tier de sociologue, conseguimos anar e partilhar nessa
altura. Noutras áreas em que a minha formação de base conferia algumas
“vantagens relativas” – como as da matemática e estatística –, fui, eu próprio,
animador de uma espécie de cursos livres que, em “regime noturno, fomen-
tavam a aprendizagem destas matérias junto de colegas que tinham outro tipo
de formações de base. Foi, creio eu, um período inesquecível para quem teve
o privilégio de o viver.
Paralelamente à participação neste trabalho coletivo, procurei desde muito
cedo delimitar um território de investimento teórico próprio, e, nessa pers-
petiva, fui-me concentrando no estudo das dimensões simbólico-ideológi-
cas do social. A crença nas virtualidades do cruzamento interdisciplinar de
saberes acabou então por me aproximar do terreno das ciências da linguagem,
uma área que, no campo intelectual português de então, a pretexto do intenso
debate “francês” em torno do estruturalismo, revelava grande dinamismo.
O livro Ideologias: Inventário Crítico de um Conceito, que reúne artigos publi-
cados previamente na Análise Social, acabará por reetir essa aproximação,
 ENTREVISTA COM JOSÉ MADUREIRA PINTO
mas inclui também uma discussão sobre velhas questões sociológicas relativas
à natureza, funções e determinantes sociais dos quadros ideológico-culturais,
ou, como aí acabará por se dizer, da produção, circulação e apropriação sociais
de sentido.
Ora, a este respeito, será interessante sublinhar a circunstância de, ainda na
fase inicial de reconversão da minha formação académica original, ter sido
confrontado com a publicação em  do Esquisse d’une théorie de la prati-
que, de Pierre Bourdieu, um livro que, mau grado todos os meus esforços, fui
incapaz de compreender numa primeira abordagem. Acontece que, à medida
que fui assimilando o essencial das propostas teóricas e meta-teóricas do
Esquisse, percebi que alguns pressupostos e conceitos em que até aí me apoiava
para pensar a dimensão simbólico-ideológica dos processos sociais precisa-
vam de ser revistos. Tal facto teve consequências sensíveis em toda a lógica
da argumentação teórica que estava a desenvolver no âmbito da elaboração
do Ideologias: Inventário Crítico de um Conceito, levando-me além do mais a
sublinhar nas suas páginas, sem que tal tivesse sido inicialmente previsto, toda
a importância de um domínio que, até hoje, considero dever merecer uma
atenção muito particular por parte da sociologia: o processo de socialização,
esse movimento, tantas vezes invisível, de incorporação da objetividade estru-
tural do mundo na subjetividade singular dos seus agentes, sem o qual não há
prática social.
Quando levava um pouco mais de três anos de formação sociológica acelerada
no âmbito do , aconteceu o  de abril de  e, com ele, uma altera-
ção radical da estrutura de oportunidades académicas ao alcance dos jovens
sociólogos portugueses. Fui então convidado pelos novos corpos diretivos da
Faculdade de Economia a regressar ao Porto, o que z com entusiasmo, por
me parecer que este regresso, para além de conter aliciantes de ordem pessoal e
familiar, colocava desaos intelectuais interessantes, em particular o de tentar
incutir nas novas gerações de estudantes de Economia o gosto e o interesse
genuíno pela sociologia e outras ciências sociais, contribuindo para aperfei-
çoar a sua formação.
Na sequência deste regresso, que não me impediu de manter durante alguns
anos o estatuto de membro do , agora como seu “colaborador externo”,
iniciou-se uma fase da minha vida académica que iria durar cerca de três
décadas e meia, durante a qual, com vários colegas muito preparados e moti-
vados, participei na tentativa de adequação do património de conhecimen-
tos e experiências de pesquisa na área da sociologia que partilhávamos às
mutáveis exigências dos planos curriculares das licenciaturas em Economia
e, mais tarde, em Gestão, da . Procurei sistematizar, no âmbito das provas
de Agregação em Ciências Sociais realizadas em , os resultados de âmbito
DA SOCIOLOGIA COMO PROFISSÃO À SOCIOLOGIA CRÍTICA 
pedagógico, epistemológico e metodológico alcançados até então. Será a partir
desses materiais que surge o livro Propostas para o Ensino das Ciências Sociais.
Mas, já antes, com a organização (em colaboração com Augusto Santos Silva)
do volume Metodologia das Ciências Sociais, havia sido feita uma tentativa de
associar à nossa experiência de ensino e sistematização das questões de meto-
dologia os contributos de alguns importantes especialistas nacionais de várias
áreas cientícas.
   Esse período é marcado por uma outra gura
cimeira das Ciências Sociais – o Professor Armando Castro
Sem dúvida. O professor Armando Castro era o coordenador do Grupo de
Ciências Sociais da Faculdade e foi, desde o meu regresso à  em ,
alguém que sempre me apoiou incondicionalmente (como aliás a todos os seus
colaboradores), e com quem era impossível não aprender alguma coisa todos
os dias. Com uma vastíssima obra no domínio da história económica, que fora
realizando sem quaisquer apoios nanceiros e quase clandestinamente desde
muito antes do  de abril de , ele dominava, além disso, um leque verda-
deiramente enciclopédico de domínios das ciências sociais. Era capaz, como
ninguém, de quase instantaneamente localizar qualquer problema com que os
colegas se debatiam nas suas atividades letivas no espectro das grandes ques-
tões epistemológicas da ciência contemporânea – e isso permitiu a muitos de
nós percorrer caminhos de pesquisa “improváveis”, mas que, muitas vezes, se
revelaram altamente inspiradores.
O professor Armando Castro era, além disso, do ponto de vista do relaciona-
mento pessoal, um companheiro excecional. Com uma modéstia inigualável,
conseguia fazer das relações prossionais uma teia discreta, mas muito estimu-
lante, de fortes amizades. Com ele aprendi denitivamente que é possível, no
contexto institucional da Universidade, tantas vezes dobrado ao peso e inércia
das hierarquias e limitado por dependências e desigualdades arbitrárias, criar
espaços de fraterna convivialidade, sem com isso afetar, bem pelo contrário, a
criação de ambientes intelectualmente criativos e uma cultura partilhada de
rigor. Penso que as ciências sociais devem muito a Armando Castro, pelo que
fez antes e depois do  de abril. Quer na Faculdade de Economia, quer na
Faculdade de Letras da Universidade do Porto há personalidades e grupos que
têm reconhecido a importância da sua obra. Mas talvez seja chegada a altura
de a reavaliar e homenagear de forma mais extensa e expressiva.
Retomando o o da meada suscitado pela questão que inicialmente me coloca-
ram, devo referenciar uma outra fase do meu percurso – a que surge associada
à criação, no âmbito da Universidade do Porto, da licenciatura em sociolo-
gia na Faculdade de Letras, o que acontece em -. Foi por essa altura

 ENTREVISTA COM JOSÉ MADUREIRA PINTO
que tive oportunidade de conhecer o professor António Teixeira Fernandes,
outra personalidade marcante na minha carreira, a quem se deve a criação
do referido curso. Embora, no contexto de elaboração da minha tese de dou-
toramento, já tivesse tido a oportunidade de ler os textos que publicara sobre
temas do âmbito da epistemologia e metodologias sociológicas e da sociologia
da religião, só conheci pessoalmente o professor Teixeira Fernandes no dia em
que foi lançada a revista Cadernos de Ciências Sociais, que, em , a convite
de Edições Afrontamento, passei a dirigir. Foi o início de uma amizade e de
uma colaboração institucional que se foi aprofundando na base de uma leal-
dade recíproca sem falhas, de que continuo a beneciar muitíssimo.
Mas, antes de abordar essa fase de institucionalização do ensino da sociologia
na Universidade do Porto, será interessante focar o processo de elaboração da
tese com que se apresentou a doutoramento nesta área, a primeira realizada
em Portugal, até porque, nesse âmbito, estabelece uma relação de colaboração
estreita com outro sociólogo, João Ferreira de Almeida, que vem, julgo, desde o
tempo em que trabalhou no .
A nossa amizade vem, de facto, do tempo (-) em que, no , ocu-
pávamos o mesmo gabinete de trabalho. À medida que íamos fazendo a nossa
formação em sociologia (eu, com o background da economia, e ele, com o de
direito e ciência política), fomos criando fortes anidades quer no plano pes-
soal, quer no das preocupações intelectuais. Passámos muitas e estimulantes
horas discutindo entre as quatro paredes da nossa pequena sala de trabalho,
as mais “duras” questões da epistemologia sociológica (em que, à partida, ele
estava mais preparado do que eu…). Pouco a pouco, fomos ensaiando peque-
nos textos (tendo quase sempre como pano de fundo o trabalho de preparação
das aulas de Introdução às Ciências Sociais), que, depois de repetidamente dis-
cutidos e transformados em documentos policopiados com circulação restrita,
deram lugar a dois artigos publicados nos números - e - da Análise
Social. São eles que, por sua vez, estão na base do volume intitulado A Investi-
gação nas Ciências Sociais, publicado em , o qual, a avaliar pelo número
de reedições que veio a ter, terá marcado signicativamente (no bom sentido,
espero) a formação básica de muitos estudantes de sociologia, presumivel-
mente até ao início da década de .
Com o meu regresso ao Porto, alteraram-se os termos desta ligação, mas, dado
que, como já disse, a relação com o  se manteve, cedo surgiu a possibili-
dade de reatarmos formas de colaboração cientíca regulares. Foi o que veio
a acontecer no âmbito de um projeto de pesquisa na área dos estudos rurais,
para o qual havia sido obtido, através do , nanciamento da Junta Nacional
de Investigação Cientíca e Tecnológica, circunstância que, ao m de algum
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
DA SOCIOLOGIA COMO PROFISSÃO À SOCIOLOGIA CRÍTICA 
tempo, passámos a encarar como uma oportunidade para preparamos os nos-
sos doutoramentos em sociologia.
Devo dizer que, a este último respeito, me inclinava inicialmente no sentido de
vir a explorar um objeto no domínio especíco da “questão urbana”… A ideia
era cruzar algumas dimensões problemáticas entreabertas pelos inovadores
trabalhos que Manuel Castells publicara sobre o tema (Castells era, aliás, um
autor cujas propostas nos domínios da epistemologia e metodologia sociológi-
cas de igual modo conhecia bem) com o conjunto de conhecimentos sobre as
dinâmicas sociais de produção, circulação e apropriação de sentido que entre-
tanto conseguira adquirir, convivendo com inusitado gosto com a semiologia
e as ciências da linguagem. Para esta aproximação entre as dimensões espacial
e simbólica dos processos de urbanização muito havia contribuído, aliás, a lei-
tura atenta que, ao longo da minha passagem da economia para a sociologia,
fui fazendo da vastíssima e muito original obra de Henri Lefebvre.
A verdade é que, perante a força das circunstâncias (de ordem nanceira, sem
dúvida, mas também afetiva), o convite, transmitido pelo João Ferreira de
Almeida, para realizarmos um estudo no âmbito da sociologia rural foi pron-
tamente aceite. E aí vou eu, fazendo da necessidade virtude e prazer, e com o
apoio de Boaventura Sousa Santos (supervisor do doutoramento), à procura
das pistas certas para penetrar em termos sociologicamente adequados no
domínio da economia e sociedade camponesas, com o objetivo mais especíco
de perceber a persistência do arrendamento rural no quadro de transforma-
ções sociais dos campos em Portugal.
Tal persistência era, de facto, um traço que distinguia a sociedade portuguesa da
generalidade das formações sociais europeias, mesmo aquelas onde a economia
e as relações sociais camponesas ainda mantinham alguma expressão. Dado
que também se sabia ser no Noroeste que, em Portugal, mais fortemente se fazia
sentir a incidência do arrendamento na pequena agricultura, optou-se por cen-
trar o estudo numa coletividade local dessa região, com o objetivo de analisar
em profundidade os processos sociais aí em curso. Uma vez que os indicado-
res estatísticos relevantes então disponíveis apontavam o concelho de Penael
como sendo um dos que apresentavam taxas de incidência do arrendamento
rural mais elevadas, optou-se por eleger uma das suas freguesias como espaço
privilegiado de observação. A escolha acabou por recair em Fonte Arcada.
Para levar a cabo o estudo, dispusemo-nos então a recorrer a técnicas de reco-
lha e tratamento de informação que de algum modo recuperassem a tradição
etno-historiográca da monograa rural, adaptando-a embora aos objetivos de
análise propriamente sociológica dos processos de reprodução/transformação
social em curso nos intensos anos de construção e institucionalização da vida
democrática que se seguiram à rutura revolucionária de . Um inquérito
 ENTREVISTA COM JOSÉ MADUREIRA PINTO
realizado junto de todos os grupos domésticos da freguesia, juntamente com a
realização de entrevistas com diferentes graus de profundidade e, bem assim,
prolongados exercícios de observação direta de interações correntes, processos
de trabalho, momentos fortes das sociabilidades de vizinhança, circuitos de
mobilidade quotidiana, rituais religiosos e festivos, etc. permitiram-nos car-
rear ao longo de mais de três anos os elementos suscetíveis de pôr à prova as
hipóteses teóricas que antes, e ao longo do trabalho de terreno propriamente
dito, fomos construindo. O João Ferreira de Almeida ocupou-se sobretudo
da problematização e aprofundamento analítico das dinâmicas de recompo-
sição classista em curso nesta coletividade que, como vericámos ao longo da
pesquisa, exportava diariamente, sobretudo para o grande Porto, um número
signicativo e crescente de indivíduos que aí exerciam atividades assalariadas
(migrantes pendulares). Pela minha parte, aprofundei sobretudo as dimensões
simbólico-culturais e ideológicas dos mesmos processos sociais, elegendo para
tanto alguns domínios de aplicação que me pareceram especialmente revela-
dores da mudança social na freguesia: processos de trabalho, relação com a
escola, religiosidade e práticas político-eleitorais. O estudo completava-se com
a análise do principal ciclo de festejos local, na tentativa de recolocação de
algumas questões clássicas de sociologia da cultura à luz de uma interpretação
(que me atrevo a considerar inovadora) acerca do efeito das transformações
classistas em curso na coletividade sobre as formas de apropriação de sentido
envolvidas nos modos socialmente diferenciados de conviver com os princi-
pais momentos do ciclo festivo. Os modos de festejar acabaram por me inte-
ressar tanto ou mais do que as componentes semiótico-expressivas dos rituais
festivos – o que só pôde acontecer graças ao caráter intensivo, e teoricamente
informado, dos registos observacionais realizados.
Não deixarei de notar o facto de, quer na fase de planeamento geral da pes-
quisa, quer na da problematização teórica que a estruturou, quer ainda no
decurso das operações de observação de terreno, não me ter afastado do uni-
verso de preocupações com as componentes simbólico-ideológicas que a certa
altura julguei ter de abandonar quando, por circunstâncias algo fortuitas a que
já me referi, desisti da “questão urbana, para me dedicar à “questão rural”. Um
bom indício da relativa irrelevância de algumas fronteiras nominais que, no
momento em que se selecionam objetos de pesquisa, tanto inibem, por vezes,
os analistas.
Este estudo sobre Fonte Arcada acabou por ser precursor, em vários sentidos, na
sociologia portuguesa. Desde logo, por inaugurar uma forma de trabalhar em
equipa, na altura pouco habitual. Mas também por se ter transformado num
laboratório de reexão sobre metodologias de abordagem sociológica de terreno.

DA SOCIOLOGIA COMO PROFISSÃO À SOCIOLOGIA CRÍTICA 
Sim. Pelo menos para mim, constituiu uma experiência bem reveladora de que
o que havia de mais interessante no trabalho sociológico era a possibilidade
de observar metodicamente objetos sociais concretos e bem delimitados – de
forma teoricamente informada, certamente, mas correndo o risco de, no pró-
prio momento de pôr à prova as hipóteses de partida, ter de as reformular em
função de uma ponderada avaliação da evidência empírica. Mas, além disso,
pude perceber, no decurso da pesquisa, que o aprofundamento da observação
sobre um objeto bem delimitado implicava não nos deixarmos cair na armadi-
lha do isolamento analítico do mesmo objeto, já que fazê-lo signicaria omitir
um conjunto crucial de fundamentos reais (exógenos) das suas especicida-
des. Foi esta convicção que nos levou a uma tentativa de avaliação crítica da
maneira convencional de aplicar a monograa rural. O resultado dessa ree-
xão deu lugar a dois artigos que o João Ferreira de Almeida e eu próprio publi-
cámos no n.º  da Análise Social (“Sobre a monograa rural” e “A etnologia e
a sociologia na análise de coletividades rurais”, respetivamente).
Mas, voltando ao “efeito de revelação” decorrente da inércia da pesquisa obser-
vacional, gostaria de sublinhar até que ponto ele se sentiu na pesquisa que
estávamos a desenvolver. Assim, em matéria de teoria das classes sociais, julgo
ser indiscutível que as exigências da aproximação ao terreno e os resultados
a que ela ia sucessivamente chegando obrigaram a rever não só alguns qua-
dros de referência teórica a que inicialmente nos ativéramos, nomeadamente
os que na literatura estabelecida procuravam uma caracterização da especi-
cidade e funções do espaço social camponês, como sobretudo algumas tipolo-
gias visando operacionalizar a estrutura classista das coletividades em causa.
Já no âmbito das questões de natureza simbólico-ideológica, foi patente, por
exemplo, que algumas conceções socio-antropológicas estabelecidas sobre a
festa, que inicialmente inspiraram a minha abordagem, revelaram, no decurso
do trabalho de terreno, potenciais heurísticos relativamente limitados na pers-
petiva de uma análise sociológica sobre as festas populares concretas.
As particularidades do espaço social com que nos deparávamos – uma coleti-
vidade em que os traços de uma economia camponesa voltada sobre si mesma
se cruzavam de forma complexa com dinâmicas socioculturais protagonizadas
essencialmente por um grupo de migrantes pendulares que, frequentemente
ligados ainda à economia familiar local, exerciam como assalariados a sua ati-
vidade prossional principal na região metropolitana adjacente – estimula-
vam, e acabaram por impor, principalmente no domínio da análise classista,
soluções arrojadas. Perante a sobreposição de planos e temporalidades sociais
com que nos deparávamos, alguns critérios consagrados nos quadros classi-
catórios existentes aguravam-se-nos limitados ou mesmo inadequados.
Era preciso inovar, por forma a encontrar grelhas analíticas que integrassem

 ENTREVISTA COM JOSÉ MADUREIRA PINTO
exaustivamente os casos que tínhamos registado e codicado através de inqué-
rito junto de todos os agregados domésticos da coletividade.
Lembro-me bem do dia em que, ndas algumas tarefas de recolha de informa-
ção, nos sentámos num café local com o objetivo de elaborar a grelha de análise
classista que depois nos permitiu chegar à estrutura de classes e de famílias de
classe da freguesia. O património de conhecimentos teóricos de que dispúnha-
mos a este respeito foi, nesse dia, sujeito a um duríssimo confronto sistemático
com os particularismos locais, vistos caso a caso, sem quaisquer contempla-
ções, para dar lugar ao que entendemos ser o retrato sociológico matricial do
espaço que analisávamos.
As surpresas impostas pela dinâmica da pesquisa observacional, desde que
teoricamente fundamentada, são, de facto, uma constante do trabalho socio-
lógico de terreno. Recordo ainda, a este respeito, o que a leitura de informação
disponibilizada pelo recenseamento eleitoral da freguesia – um documento
que passa por irrelevante do ponto de vista sociológico – me permitiu saber
sobre algumas dinâmicas sociais locais (estratégias matrimoniais, migrações
de substituição, sociabilidades locais). Jogando com elementos informativos
tão singelos como são os relativos ao local de nascimento e ao local de residên-
cia, tornou-se possível desvendar aspetos essenciais da vida das populações
da região que a observação feita através de outros procedimentos (entrevista,
observação direta, etc.) nunca deixara entrever.
Através desta primeira grande experiência de trabalho sociológico de terreno,
passei a acreditar, com redobrada convicção, nas virtualidades do cruzamento
sistemático entre problematização teórica e pesquisa observacional, e a descrer
cada vez mais quer da retórica teoricista que a si própria se alimenta, quer
do empirismo mais ou menos populista que, julgando ver melhor por ver de
perto, ignora as exigências e potencialidades da razão teórica. E também quei
convencido de que o uso conjugado de técnicas de observação sociológica com
características diversas tem de ser muito mais do que um circunstancial aceno
à ideia, sempre simpática, do pluralismo metodológico. Essa conjugação,
imposta simultaneamente pela complexidade do real e pela ambição fundada
da problematização teórica, é anal um dos nós górdios da prática da razão
sociológica.
O estudo sobre Fonte Arcada foi inuenciado e acabou por ter um impacto con-
siderável no trabalho de outras ciências sociais, nomeadamente a antropologia.
Como vê, no caso português, a relação entre as várias ciências sociais?
Como já disse, a reexão sobre as virtualidades e diculdades da interdiscipli-
naridade acompanhou o processo de formação da geração de sociólogos a que
me referi. Era um tema presente com regularidade nas inúmeras discussões
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
DA SOCIOLOGIA COMO PROFISSÃO À SOCIOLOGIA CRÍTICA 
promovidas no âmbito do , em parte por força das necessidades de diá-
logo colocadas a pessoas com formações de base muito diversas, mas também
como resposta a desaos que a lecionação de uma disciplina de Introdução às
Ciências Sociais em cursos de Economia nos colocava.
Ao iniciar o estudo sobre Fonte Arcada, estava, pois, em termos abstratos,
inteiramente aberto aos princípios da interdisciplinaridade. Faltava pô-los em
prática. Quando partimos para o terreno, começámos por querer conhecer
bem as técnicas e métodos que, em Portugal, tinham feito o seu caminho quer
nos trabalhos clássicos de etnologia/antropologia, mais próximos do enfoque
teórico-observacional que pretendíamos privilegiar, quer nos da geograa, da
demograa e da própria economia agrária. São visíveis no estudo sobre Fonte
Arcada as marcas dessa herança.
Menos presente está, no que ao meu caso diz respeito, o legado historiográco.
A utilização da abordagem histórica foi, no essencial, induzida pela inércia da
pesquisa, concretizando-se à medida que era obrigado a consultar documentos
que me permitissem reconstituir alguns marcos temporais que se iam impondo
como decisivos na vida da coletividade. Não tenho a noção de ter assumido,
na altura, de forma coerente e fundamentada, a importância do cruzamento
da perspetiva sociológica com a análise histórica. O recurso à história foi mais
instrumental do que genuinamente analítico. Hoje tenho uma visão diferente
das coisas. Reconheço que deveria ter investido mais na restituição dos proces-
sos de construção social da realidade observada, embora, recordando algumas
considerações sobre a formação da paisagem agrária local, seja levado a pensar
que não estava inteiramente desprevenido sobre a importância daquele inves-
timento. Mas devia ter ido mais longe. Não será por acaso que, já no quadro da
revisitação sociológica a Fonte Arcada, realizada em anos recentes com outros
sociólogos (de que destaco Virgílio Borges Pereira, João Queirós e, de novo,
João Ferreira de Almeida), e a propósito de um tópico antes apenas aorado
– o do conito que em nal dos anos  opusera os grandes proprietários
fundiários locais ao grupo dos assalariados da freguesia que procuravam, sem
sucesso, terreno para construir casa própria –, terei sentido a necessidade de
aprofundar retrospetivamente a análise realizada no âmbito da primeira pes-
quisa. Percebi, à distância de trinta anos, que algo de essencial sobre a crise da
habitação local nos anos  cara por explicar, precisamente por na altura não
ter levado sucientemente longe o estudo da dimensão histórica da construção
das hierarquizações sociais baseadas na posse e uso da terra. Tento, de algum
modo, redimir-me desta insuciência quer no volume do livro Ir e Voltar,
que reúne parte importante dos resultados da referida revisitação, quer em
dois textos recentes: “Instituições, disposições e práticas. O caso da produção
de habitação, publicado num volume, organizado por Luísa Veloso e Renato
 ENTREVISTA COM JOSÉ MADUREIRA PINTO
Miguel do Carmo, sobre A Constituição da Economia; e “Sociologia e História:
um encontro inevitável”, preparado para as Atas do Encontro Norte Industrial
realizado em dezembro de .
Imagino que no momento em que foi realizado o trabalho sobre Fonte Arcada
tenham surgido algumas tensões entre as exigências de consolidação disciplinar
e de cruzamento interdisciplinar. Era um período em que disciplinas que se esta-
vam a formar eram, ao mesmo tempo, obrigadas a dialogar.
Arrisco dizer que o facto de termos formações universitárias de base exteriores
à sociologia e de não estarmos, na altura em que realizámos a pesquisa, condi-
cionados por dinâmicas institucionais pesadas, contribuía, por si só, para uma
abertura “natural” à interdisciplinaridade. A sociologia não existia ainda como
espaço de produção e difusão de saber autonomizado e com rotinas estabiliza-
das de desenvolvimento, o que facilitava a abertura e o intercâmbio com outras
áreas do conhecimento. Acresce, como já disse, que a interdisciplinaridade era
objeto de forte investimento reexivo no âmbito do . Não surpreenderá
assim que tenhamos utilizado abundantemente na nossa pesquisa os traba-
lhos, já então consagrados, de economia agrária, geograa ou antropologia.
Sem preconceitos e com grande boa vontade intelectual, fomos buscar pre-
ciosos ensinamentos à obra de autores como Henrique de Barros, Eugénio de
Castro Caldas, Orlando Ribeiro, Jorge Dias, Ernesto Veiga de Oliveira, entre
outros. Tinham, todos eles, dito coisas muito importantes sobre a sociedade
portuguesa. Para quê fugir-lhes?
Quer dizer que, se estivessem mais condicionados por lógicas institucionais esta-
bilizadas, o trajeto teria sido diferente?
Admito que sim. À medida que as lógicas propriamente disciplinares se conso-
lidam e normalizam, é de prever que, nas práticas concretas de pesquisa, algum
ensimesmamento teórico-metodológico se sobreponha à busca sistemática de
pontes com outras abordagens. Na altura, não tínhamos um território intelec-
tual de pertença a preservar, estávamos, sim, interessados em estudar o objeto
com que nos confrontávamos, utilizando para tanto todos os instrumentos de
problematização teórica e de observação empírica que, independentemente da
sua matriz disciplinar original, nos ajudassem a construir uma interpretação
plausível e testável sobre a realidade regional e local em causa.
Esta atitude de grande abertura justicava-se ainda pelo facto de nos debater-
mos com uma diculdade importante: a da reduzida amplitude de informa-
ção empírica ável sobre a sociedade portuguesa. Alguns passos necessários à
contextualização preliminar dos objetos de pesquisa, que hoje se resolvem de
forma relativamente fácil, exigiam muito trabalho e, sobretudo, muito tempo.
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DA SOCIOLOGIA COMO PROFISSÃO À SOCIOLOGIA CRÍTICA 
Operações tão elementares como as que se nos impunham para dar conta dos
movimentos migratórios com incidência nacional, regional e local, coloca-
vam-nos grandes diculdades. Não dispúnhamos de fontes estatísticas nem,
muito menos, de técnicas de tratamento de informação com a sosticação
que hoje está ao alcance de qualquer praticante das ciências sociais. Estáva-
mos ainda numa fase de “acumulação primitiva” de conhecimento empírico
testado sobre a sociedade portuguesa – tínhamos, por isso, de avançar len-
tamente e com grandes precauções. Alguns resultados obtidos no âmbito da
nossa pesquisa, que hoje podem parecer relativamente óbvios, não o eram de
todo naquela altura.
Para mostrar até que ponto se modicaram desde então as condições de pro-
dução cientíca nestes domínios do conhecimento, vale a pena dizer que,
quando partimos para a revisitação sociológica a Fonte Arcada, cerca de trinta
anos após a primeira pesquisa, não só pudemos dispor de muito mais infor-
mação sobre a sociedade portuguesa e a região do Noroeste do início do século
, como tivemos oportunidade de recuperar e aperfeiçoar informação rela-
tiva aos anos , graças ao facto de, entretanto, terem sido disponibiliza-
das, nomeadamente pelo , séries estatísticas longas de qualidade. É uma
mudança muito signicativa, que espero atraia cada vez mais os investigado-
res portugueses para a realização de ambiciosas pesquisas empíricas sobre a
sociedade portuguesa. Com a simplicação das operações de contextualização
extensiva preliminar dos objetos de pesquisa, há agora boas condições para
uma densicação da análise através de arrojadas combinatórias de técnicas de
observação intensiva.
Voltemos ao seu percurso académico. Após a conclusão do doutoramento, ele vai
desenrolar-se num contexto institucional em mutação
O processo de institucionalização da sociologia, que começa basicamente em
Lisboa (primeiro no  – depois  – e no , onde, aliás, me submeti a
provas de doutoramento no início de ), vai estender-se às Universidades
de Coimbra, Porto e Minho, o que mudou signicativamente o panorama do
ensino e investigação das ciências sociais no nosso país.
No caso concreto da Universidade do Porto, a alteração mais importante
decorre da criação em - da licenciatura em sociologia na Faculdade
de Letras. Até então, havia pequenos grupos de investigadores em ciências
sociais dispersos pelas várias Escolas da Universidade (era o caso da Facul-
dade de Economia, onde, como disse, existia um grupo, ainda que connado,
de docentes e investigadores em áreas da sociologia e da história, dirigido
pelo professor Armando Castro, de que eu próprio fazia parte). Mas foi com
a criação da licenciatura em sociologia na Faculdade de Letras, pela mão do
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 ENTREVISTA COM JOSÉ MADUREIRA PINTO
professor António Teixeira Fernandes, que, na Universidade do Porto, se deu o
salto decisivo em termos de estruturação do ensino e investigação nesta área.
Por vontade do seu fundador e coordenador, participaram, desde o início, nas
atividades letivas do curso, docentes e investigadores que, noutras escolas,
estavam ligados às ciências sociais. Foi nessa qualidade que passei a colaborar
regularmente com o curso de sociologia da , o que também aconteceu,
entre outros, com António Esteves, meu colega na Faculdade de Economia e
profundo conhecedor de teoria sociológica. Ambos lecionámos durante bas-
tantes anos na nova licenciatura, acompanhando a formação dos alunos dos
primeiros cursos em várias disciplinas. Esta foi para mim uma experiência
particularmente feliz, não só pela qualidade de muitos estudantes com que
contactei nestes anos, mas também por ela me ter proporcionado a oportu-
nidade de, com inteira liberdade, conceber e pôr em prática programas de
ensino da sociologia dirigidos a estudantes desta área especíca e não, como
até ali, a estudantes de economia e gestão. O esforço de inventar, ano após ano,
expedientes didáticos adequados a conquistar para a sociologia a atenção e o
genuíno interesse dos estudantes da Faculdade de Economia – tarefa estimu-
lante, a seu modo, mas que, com o tempo, se tornou um tanto desgastante –
podia aqui ser canalizado para o constante enriquecimento de estratégias de
ensino dirigidas a estudantes já largamente convertidos.
Guardo excelentes recordações da minha participação nesta primeira fase de
consolidação do ensino da sociologia na Universidade do Porto. Ela vai apro-
fundar-se com a criação, em , do Instituto de Sociologia, por iniciativa e
ação, uma vez mais, de António Teixeira Fernandes.
Mas o processo de institucionalização da Sociologia inclui a publicação de várias
revistas, incluindo, no Porto, uma por si dirigida.
Dirigi, de facto, desde a sua criação em , a revista Cadernos de Ciência
Sociais. Mas, por se tratar de um aspeto pouco conhecido, convém sublinhar o
facto de a iniciativa da referida publicação ter pertencido a uma editora exte-
rior aos circuitos académicos formais, as Edições Afrontamento.
É, de facto, um aspeto pouco habitual. O que terá estado na base desta iniciativa?
A Afrontamento tinha uma tradição, iniciada bastantes anos antes do  de
abril, de publicação de trabalhos de investigadores nacionais e estrangeiros
da área das ciências sociais, e essa orientação foi reforçada, naturalmente, em
democracia (uma leitura sistemática do catálogo da editora permitirá, aliás,
creio eu, desvendar elementos muito interessantes e úteis para uma histó-
ria das ciências sociais em Portugal). Acontece que José Sousa Ribeiro, que,
ainda hoje, dirige as Edições Afrontamento, é um economista com sólidos
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DA SOCIOLOGIA COMO PROFISSÃO À SOCIOLOGIA CRÍTICA 
conhecimentos e grande interesse por domínios que ultrapassam a economia,
tendo, aliás, lecionado história económica na Faculdade de Economia. Quis
que a editora tivesse a sua própria revista e fez questão de associar ao projeto
pessoas com quem mantinha um contacto regular. Entre elas estava Arnaldo
Fleming, elemento do Grupo de Ciências Sociais a que eu próprio pertencia,
mas que simultaneamente estava muito ligado à direção da Afrontamento.
Com o empenhamento cívico, inteligência e abertura intelectual que o caracte-
rizavam, foi ele um dos grandes dinamizadores do projeto. E só a sua modéstia
conduziu a que fosse eu a emergir como diretor da revista.
Surgiram assim os Cadernos de Ciências Sociais, uma publicação que, desde o
início, assumiu grande abertura temática e disciplinar, nunca reivindicando o
estatuto de revista de sociologia. Aí se foram acolhendo contributos referen-
ciados a esta disciplina, mas também à história, à economia, à antropologia e
às próprias ciências da linguagem. Por insuciências várias, que em boa parte
me devem ser assacadas, mas também porque o prematuro desaparecimento
do Arnaldo Fleming retirou ao projeto algum entusiasmo, a revista acabou
por perder o desejável ritmo de publicação. Dado que, apesar de tudo, parece
ter conquistado um espaço próprio no campo da difusão do trabalho que se
faz nas ciências sociais em Portugal, pondera-se nesta altura a possibilidade
de retomar a edição, em moldes tanto quanto possível ajustados às novas con-
dições da circulação internacionalizada do conhecimento, procurando, no
entanto, acima de tudo, que ela contribua para renovar criativamente o conhe-
cimento sobre a realidade social.
O processo que descreveu é contemporâneo de uma entrada progressiva em
domínios que, embora já presentes na dissertação de doutoramento, foram
ganhando alguma autonomia. Rero-me, nomeadamente, ao interesse que foi
manifestando pela análise das práticas e políticas culturais, que se revela a partir
dos anos . Seria interessante saber como emergiu este tipo de preocupações.
A preocupação com a análise das práticas culturais surge, de facto, no âmbito
do estudo sobre Fonte Arcada em que se apoiou a minha tese de doutoramento.
Dentro do horizonte de problematização teórica e observacional que me pro-
pus aprofundar nesse contexto – o qual, como disse, se estruturava em torno
dos processos sociais de produção, circulação e reconhecimento de sentido –,
dediquei especial atenção ao ciclo de festividades local, e em particular a um
dos seus momentos mais ostensivos e intrigantes (a “festa do mastro”). Come-
cei por explorar a este respeito um conjunto de sugestões teóricas e metodoló-
gicas inspiradas na sociologia das religiões e na análise socio-antropológica da
cultura popular, em geral, e das suas componentes rituais, em particular, mas
acabei por orientar a pesquisa não tanto para a especicação das componentes

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 ENTREVISTA COM JOSÉ MADUREIRA PINTO
semiótico-expressivas dos fenómenos sob observação – que a referida litera-
tura diretamente sugeria –, mas para os processos, menos óbvios, de apropria-
ção socialmente diferenciada dos vários momentos do ciclo festivo. Procurei
demonstrar que a relação dos membros da coletividade com os rituais festivos
locais era muito sensível às trajetórias modais dos seus grupos de pertença,
portanto também aos percursos de socialização e pers de aspirações a elas
associados; e que as formas implícitas e explícitas de relação com a festa, e com
cada um dos seus momentos notáveis, participavam ativamente nos processos
cruzados de construção identitária que atravessavam a coletividade campo-
nesa em mutação acelerada que estava a analisar.
A reexão desenvolvida a este propósito acabou por suscitar alguns corolários
interessantes a partir do momento em que, num quadro de militância cívica,
passei a colaborar informalmente com o departamento de animação cultural
do município do Porto, dirigido com grande dinamismo e criatividade por
Manuela Melo a partir de . No fundo, o acompanhamento de políticas de
democratização cultural obrigava-me a recolocar, com as necessárias adap-
tações e especicações, o problema da apropriação socialmente diferenciada
dos objetos culturais, o que, simetricamente, também me conduzia a pensar
globalmente as lógicas de produção, difusão e receção das obras culturais,
nomeadamente as do seu polo erudito (para o que muito contribuiu o con-
tacto com o estimulante trabalho entretanto desenvolvido, nesta área, por
Maria de Lourdes Lima dos Santos). Achei por bem apresentar uma sistemati-
zação provisória desta “reexão-participante” num Encontro sobre Dinâmicas
Culturais, Cidadania e Desenvolvimento Local organizado em Vila do Conde
pela Associação Portuguesa de Sociologia, a que então presidia; e a verdade é
que, talvez por ter conseguido chegar neste caso a um texto que equilibrava
bem as exigências teóricas de análise das práticas culturais com as exigências
prático-políticas da intervenção no domínio cultural, essa comunicação, que
intitulei “Uma reexão sobre políticas culturais, veio a tornar-se um dos meus
textos mais comentados e inuentes no seio dos prossionais que trabalhavam
no terreno sobre estas questões. Ainda hoje sou solicitado com frequência a
pronunciar-me sobre as ideias então expostas, havendo quem vá mais longe
e me peça uma atualização da análise então efetuada, que tenha em conta as
mudanças entretanto ocorridas na sociedade portuguesa e os novos constran-
gimentos a que estão sujeitas hoje as políticas culturais. Uma parte do que
poderia ser a referida atualização está já apontada num texto que elaborei
algum tempo depois da apresentação do anteriormente referido. Procuro, aí,
reetir sobre o modo de inserir a intervenção cultural em espaços públicos
numa lógica integrada de combate às desigualdades socioculturais e à exclu-
são social.
DA SOCIOLOGIA COMO PROFISSÃO À SOCIOLOGIA CRÍTICA 
Quase sem dar por isso, a reexão sobre políticas culturais aproximava-me
cada vez mais de questões relacionadas com as políticas públicas em geral, um
movimento que se acelerará por força do trabalho que desenvolvi na Presidên-
cia da República, nos dois mandatos de Jorge Sampaio (-), na quali-
dade de consultor para a área da economia, desenvolvimento e sociedade, no
quadro da Assessoria Económica e Social da Casa Civil da Presidência. Nesta
atividade, que desenvolvi sem abandonar o trabalho de pesquisa que tinha em
mãos e as funções letivas correntes a que continuava ligado na Faculdade de
Economia do Porto, fui obrigado, em colaboração com uma equipa de consul-
tores muito competentes e sob a direção, muito exigente, mas também deveras
estimulante, do próprio presidente, a aprofundar e sistematizar um conjunto
de conhecimentos necessários a uma caracterização rigorosa da “questão
social” e do modelo de desenvolvimento português, tal como se conguravam
na segunda metade dos anos .
Foi um trabalho duro, desde logo pela ansiedade criada pelas exigências de
conciliação entre o tempo lento e distendido da reexão académica e o tempo
curto e tenso da ação política. Mas foi, também por isso, um trabalho de des-
coberta pessoal de novos temas e lões teóricos… e de teste às minhas pró-
prias capacidades de trabalho. Regozijo-me, ainda hoje, com a qualidade e
oportunidade da reexão que nessa altura fomos capazes de realizar, tanto
mais quanto ela incluía, muito antes da emergência da atual crise económico-
-nanceira, uma crítica sistemática dos fundamentos teórico-ideológicos e
das propostas políticas do neoliberalismo, também designado na altura por
“pensamento único, não sem apresentar alternativas reformistas consistentes
e realistas. Para a formulação destas últimas, muito contribuíram, aliás, as dis-
cussões realizadas em múltiplos encontros que, por iniciativa do presidente
da República, juntaram especialistas nacionais e internacionais de diferen-
tes áreas das ciências sociais. Fico feliz por saber que os volumes editados a
este propósito – A Reforma do Pacto Social; Educação, Formação e Trabalho;
Perspectivas de Desenvolvimento do Interior; Sociedade, Tecnologia e Inovação
Empresarial; Pobreza e Exclusão: Horizontes de Intervenção; A Cooperação nas
Políticas sobre as Drogas e a Toxicodependência; Os Cidadãos e a Sociedade de
Informação, entre outros – continuam, ainda hoje, a gurar na bibliograa de
trabalhos de investigação que se vão realizando sobre estas temáticas. Resta
saber qual a repercussão que terão tido em matéria de formulação e aplicação
de políticas sectoriais concretas.
Como vê a relação que, no seu trabalho, se foi estabelecendo entre o estudo
das questões teóricas, epistemológicas e metodológicas, a pesquisa empírica de
terreno e, depois, a aproximação à problemáticas das políticas públicas. Fa

 ENTREVISTA COM JOSÉ MADUREIRA PINTO
sentido, na sua perspetiva, distinguir entre investigação fundamental e investi-
gação aplicada?
Talvez devamos distinguir a este respeito dois tipos de problemas, embora na
prática eles surjam interligados: os que remetem para as relações entre a ree-
xão teórica, a pesquisa empírica e a prática prossional cienticamente infor-
mada; e, a uma outra escala, os que se prendem com a relação entre o campo
académico, o movimento social e o campo das políticas públicas.
A experiência tem-me mostrado que as pontes entre o trabalho de teorização, a
pesquisa observacional e a intervenção prossional são não só possíveis, como
desejáveis, embora naturalmente também contenham alguns riscos. Procurei
identicar umas e outros em várias passagens que dediquei aos processos de
enunciação de problemas sociais e da sua transposição para as agendas cien-
tícas no livro Indagação Cientíca, Aprendizagens Escolares, Reexividade
Social. Não deixei de assinalar a tal propósito que me parece haver hoje di-
culdades sérias em manter vivo o triângulo virtuoso teoria-pesquisa empírica-
-prática prossional. Parte dessa diculdade resulta, quanto a mim, de algum
desequilíbrio nas formações académicas de base, que se terá acelerado com a
consolidação do Processo de Bolonha. A conrmar-se, tal desequilíbrio afe-
tará a prazo todos os vértices do triângulo e, portanto, a qualidade das rela-
ções que entre eles se estabeleçam. Mas não menos importante será também o
acréscimo de pressão que, no domínio da aplicação dos conhecimentos socio-
lógicos, hoje se coloca aos prossionais que no terreno lidam quotidianamente
com os problemas e as vítimas da “questão social”. Tudo indica que, sob a pres-
são da urgência, e com constrangimentos nanceiros, administrativos e logís-
ticos cada vez mais agudos, a prática prossional nestas áreas tenda a recuar
em matéria de exigência e fundamentação teórica.
Aliás, não está excluído que essa mesma desestabilização possa ser assumida
como problema social especíco que cabe à sociologia aprofundar no plano
interpretativo. Na verdade, a análise deste último elo das políticas sociais do
Estado já faz parte da agenda cientíca da disciplina, nada impedindo, em
abstrato, que os resultados a que vai chegando acabem por se integrar virtuo-
samente nos dispositivos de autorreexividade e na intervenção dos próprios
prossionais.
Passando agora ao plano mais geral das relações entre o campo académico-
-cientíco e o campo político na formulação de políticas públicas, a experiên-
cia mostra-me que os riscos de cedência do primeiro às pressões do segundo
existem, embora não sejam uma fatalidade. Rero-me à pressão da “urgência,
mas também à que resulta do desfasamento entre as exigências do ciclo políti-
co-eleitoral e as do ciclo de produção de conhecimentos cientícos. A autono-
mia relativa do campo cientíco (propriedade que em abstrato reivindicamos)

DA SOCIOLOGIA COMO PROFISSÃO À SOCIOLOGIA CRÍTICA 
pode e deve ser assumida, desde logo nas suas incidências organizativas con-
cretas, como instrumento de defesa contra pretensões cienticamente infunda-
das ou ilegítimas dos promotores das políticas públicas. E os primeiros passos
dessa resistência estarão na reivindicação do direito à reformulação prévia da
procura em função de critérios de autenticidade cientíca e na frontal recusa
em simplicar questões que, à luz do conhecimento estabilizado no campo das
ciências sociais, são eminentemente complexas.
Há, além disso, quanto a mim, um espaço de possibilidades de formulação
de problemas a estudar e de conceção autónoma e pró-ativa de programas
de investigação que está por explorar. Acredito, que, a este respeito, a mar-
gem de iniciativa ao alcance das Universidades, nomeadamente no âmbito do
que normalmente se designa por serviço à comunidade, é muito grande. Será
excessivo pedir às Universidades que, paralelamente à colaboração que têm
prestado à economia na perspetiva da inovação tecnológica, assumam as suas
responsabilidades em matéria de investigação e intervenção na área da inova-
ção social? Não serão, aliás, de natureza eminentemente social, os obstáculos,
tão amargamente reconhecidos pelos protagonistas da ligação academia-em-
presas, com que os processos de inovação tecnológica habitualmente se con-
frontam no terreno?
Comunga da ideia de que, em Portugal, há muitos diagnósticos, porém pouca
reexão capaz de inspirar a elaboração de visões estratégicas?
Respondo com um exemplo. O conhecimento que na comunidade cientíca
se foi obtendo sobre a natureza e a amplitude das desigualdades na socie-
dade portuguesa, conhecimento esse sistematizado e atualizado mais recente-
mente no âmbito do Observatório das Desigualdades (que o Renato tão bem
conhece,) é sucientemente conclusivo para desde há muito poder ter inspi-
rado uma convergência estratégica de políticas voltadas para a redução efetiva
dos níveis de desigualdade económico-social. A verdade é que essa convergên-
cia nunca se vericou de facto. O problema é tanto mais sério, quanto se sabe
terem sido muito intensas e transversais, desde o início da década de ,
as mudanças ocorridas em Portugal na economia e no emprego, na demo-
graa, nas dinâmicas migratórias e nos processos de urbanização, na relação
das populações com a escola, na estrutura de classes, nos sistemas de valo-
res, nas práticas culturais e de consumo, etc. Um movimento de transforma-
ção social tão acentuado e complexo dicilmente poderia concretizar-se sem
gerar “espontaneamente” um leque alargado de inconsistências institucionais,
que, em muitos casos, potenciaram a produção e reprodução de desigualda-
des sociais (e assimetrias territoriais) assinaláveis. Mas houve também, neste
processo, um conjunto de inconsistências que são politicamente induzidas
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 ENTREVISTA COM JOSÉ MADUREIRA PINTO
(ou, no mínimo, consentidas), já que resultam da incapacidade manifestada
pelos atores políticos mais inuentes para incorporarem, assumida e coe-
rentemente, nos seus programas políticos, uma visão estratégica baseada em
conhecimento sucientemente depurado sobre as características estruturais
e as dinâmicas de transformação da sociedade portuguesa. São conhecidas
algumas das principais consequências deste divórcio: produção legislativa em
revolução permanente, sobreposição não controlada e desarticulação setorial
nas iniciativas políticas, incumprimento sistemático de promessas eleitorais,
desfasamento notável entre as esferas da produção e da aplicação efetiva de leis
e decisões políticas, etc.
Pois bem: há razões para acreditar que se o conhecimento proporcionado
pelas ciências sociais a respeito das desigualdades tivesse sido integrado, de
forma sistemática, ao longo do tempo, nas componentes de programas políti-
cos de médio e longo prazo relativas a distribuição do rendimento, criação de
emprego, provisão de habitação, administração da justiça, acesso à educação
e aos bens culturais, participação na vida política, desenvolvimento regional,
etc. aumentaria signicativamente a probabilidade de se conterem os poten-
ciais de reprodução de desigualdades, imputáveis, além do mais, ao referido
efeito de inconsistência institucional “espontânea. Menos desigual, a socie-
dade portuguesa revelaria ainda, possivelmente, níveis bem mais elevados de
conança nas instituições e formas de participação cívica mais expressivas.
Seria, pois, uma sociedade mais justa e com cidadãos mais envolvidos politica-
mente na defesa e promoção dos direitos dos mais frágeis. E o próprio modelo
de desenvolvimento revelaria por certo outra vitalidade económica.
Mas será diferente, noutros países, a ligação entre a produção de conhecimentos
na área das ciências sociais e a denição de visões estratégicas com incidência
política?
Admito que haja algumas diferenças imputáveis aos diferenciais de consistên-
cia e consolidação das respetivas instituições democráticas. A criação de redes
de cooperação e de transferência de conhecimentos entre o campo académico-
-cientíco, o campo político e as organizações da sociedade civil mais inter-
ventivas ainda é, em Portugal, relativamente recente. Por outro lado, a própria
natureza dos partidos que entre si têm repartido a governação e o poder do
Estado, algo distante do modelo de partido de massas relativamente consoli-
dado do ponto de vista doutrinário que predomina noutras democracias, tam-
bém não terá estimulado a criação de condições para a formulação de políticas
públicas alicerçadas no conhecimento das ciências sociais.
Há, contudo, uma diculdade, agravada nas últimas décadas, que me parece
ser comum à generalidade dos países. Rero-me ao estatuto hegemónico que
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DA SOCIOLOGIA COMO PROFISSÃO À SOCIOLOGIA CRÍTICA 
a economia e, no seu âmbito, as conceções e pressupostos neoclássicos (fun-
didos eventualmente num paradigma de síntese, onde também cabe uma ver-
são simplicada e empobrecedora do keynesianismo) tem vindo a assumir no
espaço social contemporâneo. Trata-se de uma espécie de guião pronto a usar,
com inuência marcante quer nos circuitos da reexividade académica, quer
nos media, quer no espaço de enunciação política dominante, caracterizado
por um grosseiro recalcamento das dimensões histórico-institucionais e polí-
ticas da economia e, portanto, por uma recusa mais ou menos ostensiva do
património de conhecimentos acumulados tanto na sociologia e outras ciên-
cias sociais, como em quadros teóricos alternativos da própria economia.
Admito que se tenha confrontado com os efeitos deste processo ao longo da sua
experiência como docente. Notou algum agravamento recente da sua incidência?
Como já disse, ensinar sociologia ou simplesmente tentar justicar as virtua-
lidades da pluridisciplinaridade em Faculdades de Economia nunca foi tarefa
fácil. Reconheço, ainda assim, que, grosso modo, nas primeiras duas décadas
de docência, os resultados alcançados eram genericamente bastante positivos.
Uma percentagem signicativa de estudantes de economia e gestão mostrava
genuíno interesse pelo nosso apelo à abertura disciplinar, sendo de presumir
ainda que alguns deles transportassem para a sua vida prossional a visão inte-
grada sobre o social que transmitíamos. A verdade é que, depois disso, se tor-
nou progressivamente mais difícil conseguir tais resultados. A resistência aos
exercícios de reexão interdisciplinar e, mais ainda, à tentativa de “sociologi-
zação” dos fenómenos “económicos” acentuou-se notoriamente.
Resistência dos alunos ou da instituição?
De ambos. Em sucessivos reajustamentos dos planos de estudo, que tiveram na
reformulação programática e pedagógica conhecida por Processo de Bolonha
o seu episódio culminante, o jogo de forças interno foi reduzindo progressi-
vamente o espaço de armação do grupo de ciências sociais. Noutras escolas
de economia e gestão do país este movimento teve, aliás, consequências igual-
mente duras. Confesso que nunca me senti pessoalmente magoado por esta
inexão institucional. Tive sempre consciência de que ela era o resultado de
mudanças estruturais que entretanto estavam a ocorrer no campo do ensino e
investigação em economia, nomeadamente em termos de denição dos crité-
rios de consagração cientíca reguladores das carreiras académicas. Sentia-me
por vezes frustrado com o desinteresse pelo debate teórico-epistemológico que
se ia instalando nas rotinas prossionais dos colegas, mas nunca me insurgi
contra os seus protagonistas: sabia que, sobretudo para os mais jovens, essa era
a resposta realista ao seu alcance.
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 ENTREVISTA COM JOSÉ MADUREIRA PINTO
Um pouco mais doloroso foi sentir, no quotidiano das aulas, o alheamento,
quando não a rejeição explícita, dos conteúdos que ensinávamos. Mas também
aqui a reação era compreensível. Dicilmente se poderia exigir dos alunos que,
num contexto de aprendizagem escolar estruturado em torno de pressupostos
ideológicos e referências teóricas globalmente sintonizadas com as correntes
dominantes da economia, manifestassem disponibilidade para abordar criti-
camente os fenómenos económicos a partir de premissas que os encaravam
como fenómenos sociais “totais” e dotados de historicidade própria. Uma
simples interrogação sobre a adequação de princípios estruturantes de análise
como os que se condensam na consagrada gura do homo economicus ou no
mito da “soberania do consumidor” arriscava-se a ser entendida como per-
turbadora desestabilização de instrumentos tidos como essenciais, e por isso
emblemáticos, da reexão em economia. E isso tanto mais quanto o referido
exercício crítico, associado, na perspetiva dos recetores, à futilidade da ree-
xão losóca, a que, além disso, faltava o grau de formalização que ritualmente
se exige, em economia, aos modelos cienticamente “credíveis”, acabava por
colidir com aprendizagens do ofício de economista estabilizadas e securizantes
– não sem simultaneamente se colocar em confronto com operadores de tipo
naturalista e individualista que o neoliberalismo, enquanto ideologia prática
dominante, tende a inculcar nos atores sociais em geral.
Nos últimos anos de lecionação, vivi esta dissonância com algum desconforto.
Mas também com genuíno inconformismo – o que me tem levado a “regres-
sar” lentamente ao estudo da economia política. Não demorei muito a perce-
ber, nesta nova digressão, até que ponto seria diferente a formação dos atuais
economistas se, nos seus programas escolares, o contacto com a “tradição
central” da disciplina fosse acompanhado de uma aproximação séria a outros
quadros teóricos forjados na disciplina, nomeadamente os que se reclamam
genericamente do novo e velho institucionalismo, do marxismo, da teoria
da regulação ou, no caso da análise da empresa, de conceções que procuram
repensá-la enquanto projeto solidário de criação coletiva. Nesta revisitação
da economia, acabei por me concentrar na obra de John Kenneth Galbraith,
que já me impressionara quando ainda era aprendiz de economia, mas que,
lida agora, me revelou um mundo de bons pretextos e pontos de partida para
uma análise integrada dos factos económicos. Seja quando, desmontando a
ingenuidade dos mitos da soberania do consumidor e da livre-concorrência,
se ocupa dos fenómenos de construção social das necessidades, avançando
com o conceito de “dependence eect”; seja quando, a propósito da análise das
grandes corporações, problematiza a distinção entre propriedade económica
e propriedade jurídica dos meios de produção e as relações entre poder eco-
nómico e poder político; seja quando disseca os fundamentos e consequências
DA SOCIOLOGIA COMO PROFISSÃO À SOCIOLOGIA CRÍTICA 
sociais das recorrentes crises nanceiras do capitalismo; seja ainda quando se
ocupa dos processos de dualização/segmentação das estruturas produtivas e
dos sistemas de emprego ou da reprodução estrutural da pobreza em “socie-
dades de abundância” – em todos essas incursões, J. K. Galbraith como que
oferece de bandeja a economistas e sociólogos uma innidade de razões para
quererem estar juntos na análise da realidade social. Custa a aceitar que as
lógicas de produção de conhecimentos neste domínio tenham recalcado tão
drasticamente semelhante lão (até porque, como no caso da análise das crises
nanceiras ou das restrições, ideologicamente determinadas, na provisão de
bens públicos, são de extrema atualidade os elementos interpretativos que nos
propõe). Mas o próprio Galbraith, arguto analista das condições intelectuais,
institucionais e sociais da produção cientíca na economia, deu indicações
bem sugestivas sobre as componentes e fatores de tal recalcamento: resistência
da comunidade cientíca em ajustar as suas rotinas intelectuais às mutações
da própria realidade; elisão das questões do poder em nome da necessidade
de preservar a “neutralidade” do saber cientíco sobre o social; sacralização,
por mimetismo com os protocolos de cienticidade consagrados nas “ciências
duras”, dos procedimentos de formalização matemática, independentemente
de qualquer exame sério sobre a compatibilidade dos mesmos com a estrutura
“substantiva” dos fenómenos estudados, etc.
Perante o panorama que traçou sobre o atual estatuto da economia, pensa que
o conjunto das cências sociais e, em particular, a sociologia estão, em termos de
armação no espaço público, cada vez mais acantonadas?
Tomando em consideração o atual quadro de relações de força simbólico-
-culturais que, sob o comando das lógicas do campo mediático, conduzem o
processo de tematização dos problemas sociais, particularmente em tempo de
crise, tenho defendido que os sociólogos devem resistir à pressão para respon-
derem, em registo de urgência, às questões urgentes que lhes são colocadas.
Parece-me claro que o modelo ash interview, incontornável numa perspe-
tiva de conquista de audiências, não é adequada ao exercício da reexividade
sociológica. Assumir a complexidade dos fenómenos sociais, o que defende-
mos sem hesitações enquanto formadores, deve levar os sociólogos a imporem
condições de enunciação (duração e número de caracteres dos depoimentos,
por exemplo) minimamente adequadas à especicidade dos contributos ana-
líticos ao seu alcance.
Não se trata de fugir, antes de levar a sério, as potencialidades do que Michael
Burawoy designa por “public sociology. Só haverá sociologia pública de qua-
lidade enquanto as modalidades concretas do seu exercício estiverem solida-
mente ancoradas quer na “professional sociology, entendida como trabalho de
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 ENTREVISTA COM JOSÉ MADUREIRA PINTO
análise sociológica teórica e empiricamente fundado que se realiza indepen-
dentemente de exigências pontuais da intervenção mediática ou política, quer
na “critical sociology, instância de interrogação crítica e autocrítica perma-
nente sobre a validade dos fundamentos, pressupostos e opções teórico-meto-
dológicas correntemente assumidas no núcleo duro da produção sociológica.
Proponho, por outras palavras que, ao encarar o quadro de interdependências
que é possível e vantajoso estabelecer entre os polos de desenvolvimento da
atividade sociológica, não deixe de se atribuir alguma proeminência à ativi-
dade de investigação sociológica baseada em problematização teórica, pes-
quisa observacional e autorreexividade, a qual por sua vez exige a criação,
nem sempre fácil, de condições de independência e autonomia face a condi-
cionalismos exógenos.
Em qualquer caso, parece haver necessidade de o conhecimento sociológico ter
tradução no espaço público ‒ ser mais uma voz, entre outros registos relevantes.
Reconheço que o retraimento da sociologia na esfera mediática tem inconve-
nientes: anal, uma qualquer “sociologia” acabará por ocupar o espaço deixado
vazio, e os sociólogos, acusados genericamente de elitismo e hipercriticismo,
verão progressivamente diminuídas as possibilidades de intervenção pública
fundamentada. Trata-se de um movimento homólogo do que foi já invocado
a propósito das relações entre a produção de conhecimentos sociológicos e a
formulação de políticas públicas (“policy sociology”).
Aliás, na perspetiva do avanço do conhecimento sociológico, tão ou mais
preocupante do que este recalcamento tácito da complexidade do social que
se opera na esfera mediática será, sem dúvida, a tendência para, no interior
do próprio campo cientíco, se criticar alguma sociologia com base no argu-
mento de, com o seu “hipercriticismo, ela contribuir anal para inviabilizar
ações reformistas bem-intencionadas.
A história do desenvolvimento da sociologia da educação nas últimas décadas
pode ajudar a ilustrar o alcance do problema a que me rero. São conheci-
das as controvérsias e enormes resistências geradas, em nais dos anos ,
pelas teses de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron sobre a reprodução de
desigualdades sociais através do sistema educativo. Conceitos como capital
cultural, arbitrário cultural ou violência simbólica, bem como as propos-
tas interpretativas sobre as relações entre a ação pedagógica e a conservação
da ordem estabelecida que a eles recorriam, soaram então, a muitos ouvi-
dos, como deslocadas e inconsequentes provocações intelectuais e políticas,
que o tempo se encarregaria de votar ao esquecimento. A verdade é que o
melhor da intervenção reformista do sistema escolar levada a cabo desde então
(ao nível da ação pedagógica propriamente dita, do desenho curricular, da
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DA SOCIOLOGIA COMO PROFISSÃO À SOCIOLOGIA CRÍTICA 
elaboração de manuais, de renovação da ação pedagógica, da atenção aos
efeitos do currículo oculto, da abordagem dos contextos familiares dos estu-
dantes, etc.) passou frequentemente pela adoção, mais ou menos assumida, da
mensagem (originalmente encarada como um estouvado “hipercriticismo”)
contida no citado livro; e o próprio trabalho de teorização sobre a matéria,
mesmo quando, ainda hoje, explicitamente se demarca da herança bourdieu-
siana, surge estranhamente colada, ainda que por ínvios caminhos e estranhos
contrapontos, ao seu núcleo essencial. E aqui está por que razão me parece
no mínimo estranha a acusação de hipercriticismo que hoje volta a dirigir-
-se a alguma sociologia da educação, aparentemente pelo facto de ela não se
conformar com as novas limitações impostas à democratização social pelas
contradições do sistema educativo. Haverá excesso de criticismo ou alguma
intenção sociológica malévola por detrás da armação, baseada em pesquisa
observacional, de que soluções aparentemente voltadas para a emancipação
de grupos sociais desfavorecidos (s, cursos prossionais, certicação
de competências…) podem participar em formas renovadas de produção e
reprodução de desigualdades? E, para pegar noutro desconfortável exemplo,
fará algum sentido pugnar por discrição máxima na difusão do conhecimento
sociológico sobre o desemprego ou subemprego dos “diplomados, utilizando
o argumento de que uma tal constatação atua como inibidor do investimento
escolar nas novas gerações? Não será mais inteligente partir dos resultados da
análise desenvolvida pelas ciências sociais a tal respeito para, isso sim, denun-
ciar as debilidades dos modelos organizativos das empresas e do Estado, que
bloqueiam as saídas prossionais de jovens qualicados?
Voltou a referir-se à obra de Pierre Bourdieu. Conrma que ela é, para si, uma
referência particularmente inspiradora?
Sim. Já z referência à inuência que as orientações de carácter metodológico
contidas no Métier de sociologue, bem como os princípios de ordem meta-teó-
rica consagrados no Esquisse d’une théorie de la pratique tiveram na minha for-
mação. A distinção entre modos de conhecimento objetivista, fenomenológico
e praxeológico sobre a qual Pierre Bourdieu longamente disserta no Esquisse
haveria de tornar-se, aliás, até hoje, uma chave particularmente útil para me
situar em relação ao conjunto de desaos teóricos e modelos de pesquisa obser-
vacional privilegiados nos quadros paradigmáticos mais inuentes do campo
da Sociologia. Foi o que desde logo aconteceu quando comecei a interessar-me
pela dimensão simbólica das práticas sociais, domínio que, enquanto econo-
mista, me havia escapado no essencial. A tentativa de leitura crítica dos prin-
cipais quadros teóricos em confronto nas ciências da linguagem, que realizei a
pretexto da problematização sociológica da produção ideológica de sentido e
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 ENTREVISTA COM JOSÉ MADUREIRA PINTO
me levou a querer perceber as condições sociais da discursividade, acabou por
me colocar perante uma manifestação particularmente expressiva das limita-
ções e vantagens relativas dos diferentes modos de conhecimento. O que os
falantes realmente fazem quando falam, percebi então, não pode ser enten-
dido, como no essencial acontece quando se faz uma leitura objetivista dos
fenómenos da linguagem, como uma atualização mais ou menos deliberada
daquilo que os linguistas, à maneira de Saussure, consideram ser o sistema
(objetivamente codicado) da língua; mas, diferentemente do que é sugerido
nas deambulações da fenomenologia da linguagem, também não coincide com
o que observadores e interlocutores subjetivamente intuem como sendo a sua
materialidade imanente. Já a orientação analítica proposta em diversas corren-
tes da pragmática linguística e da análise do discurso, ao privilegiar uma espé-
cie de mergulho ao interior do ato da enunciação com o objetivo de restituir o
conjunto de condições sociais globais, conjunturais e situacionais que enqua-
dram as interações discursivas, bem como os instrumentos e inércias disposi-
cionais incorporadas pelos falantes/interactantes, já essa orientação, dizia eu,
revelou-se-me capaz de, superando as limitações dos modos de conhecimento
objetivista e fenomenológico, desvendar, sem mediações ctícias, os particula-
rismos da prática discursiva “enquanto tal.
Acredito que o facto de o edifício intelectual construído por Pierre Bourdieu
se apoiar explicitamente no património teórico legado pelos clássicos, que ele
não deixa de submeter a um depurado trabalho de confrontação crítica e de
síntese, explica, em boa parte, toda a fecundidade e consistência que a sua
obra vai revelar. Mas tais qualidades também se devem à circunstância de as
propostas do Esquisse terem sido transformadas, desde cedo, num programa
de investigação gerador de um uxo avassalador de hipóteses que o próprio
Bourdieu e as equipas de que se rodeou zeram questão de ir pondo à prova
de forma sistemática. Sabe-se até que ponto a elaboração e progressiva depu-
ração do conceito de campo contribuiu para dar consistência e fecundidade
ao trabalho de pesquisa empírica conduzido neste âmbito. De um conjunto
de grandes orientações teórico-epistemológicas e de conceitos com elevado
grau de abstração desenvolvidos no Esquisse foi então possível passar, com
surpreendente coerência e heuristicidade, ao estudo de vastos domínios da
realidade social, muitos dos quais se haviam revelado francamente refratários
a quaisquer veleidades de objetivação sociológica: práticas culturais, gostos e
estilos de vida, instituições, crenças e práticas religiosas, relações de poder,
disposições e tomadas de posição no campo académico-cientíco, dinâmicas
da criação literária, estruturas sociais da economia. Acontece que a aplicação
sistemática do programa de investigação inspirado na teoria da prática nunca
deixou de ser acompanhada, na obra de Pierre Bourdieu, por um incansável
DA SOCIOLOGIA COMO PROFISSÃO À SOCIOLOGIA CRÍTICA 
trabalho de reexão epistemológica. Com um conhecimento profundo e atua-
lizado das dinâmicas internacionais da produção sociológica, ele foi capaz de
usar com dureza as armas da crítica teórica, sem contudo desrespeitar ou omi-
tir (como militantemente se faz, tantas vezes, na “comunidade sociológica”)
contributos formulados em quadrantes diversos, inclusive do ponto de vista da
sua inserção disciplinar, daquele em que regularmente se movimentava. Talvez
seja por isso que a sua obra constitui útil porta de entrada para múltiplos cami-
nhos teóricos, bem como ponte francamente inspiradora para especialistas de
áreas tradicionalmente afastadas do debate com a sociologia.
Parece defender a ideia de que a criação de patamares que induzam os cientistas
sociais a falarem mais uns com os outros será, em princípio, positiva, do ponto
de vista da progressão do conhecimento. Como deverá concretizar-se tal ideia no
plano da organização concreta do trabalho de investigação?
Pondo de lado o conjunto de diculdades institucionais que se prendem com
a denição de prioridades em matéria de políticas cientícas e, portanto, com
o nanciamento da pesquisa, outras há, mais diretamente dependentes de
opções organizativas imputáveis aos próprios investigadores que, a esse pro-
pósito, vale a pena invocar. Rero-me concretamente à tendência, que a meu
ver se foi instalando na atividade corrente das unidades de investigação, para
recuar tanto no plano do debate sobre grandes questões teórico-epistemoló-
gicas da sociologia, como no da mobilização para a prática, não meramente
ritual, da interdisciplinaridade.
Julgo que devia ser preocupação permanente de cada linha de investigação
fazer acompanhar as pesquisas centradas em objetos empíricos (mesmo
quando o desenho global das mesmas seja sobredeterminado pela urgência
de solicitações externas) por um debate exigente sobre os respetivos enjeux
teórico-epistemológicos. Criar condições para que uma espécie de pulsão
reexiva coletiva acompanhe a realização do conjunto das operações de pes-
quisa, mesmo quando estas visam, em primeira linha, responder a procuras de
conhecimentos precisos e empiricamente bem delimitados, parece-me dever
ser um desígnio incontornável de qualquer projeto de investigação. Aceito
que, entre os outputs do trabalho de um centro de investigação, tenham de
gurar relatórios que nem sempre se afastem claramente do enunciado de
umas tantas regularidades objetivas sugeridas diretamente por fontes estatísti-
cas convencionais ou então da devolução mais ou menos el de um conjunto
de depoimentos de atores implicados de uma ou de outra forma nos processos
sociais sob análise. Mas também penso que devem ser criadas condições orga-
nizacionais para que se discutam os limites desse tipo de trabalhos e se tentem
criar, a seu propósito e pretexto, oportunidades e espaço para a produção de
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 ENTREVISTA COM JOSÉ MADUREIRA PINTO
subprodutos “teórico-intensivos”‒ sem o que se debilitarão progressivamente,
nas rotinas da pesquisa, as defesas (intelectuais e institucionais) contra o empi-
rismo e as formas mais ou menos elaboradas do senso comum. Igualmente
importante será, por outro lado, criar condições, no plano organizacional, para
uma efetiva abertura à multidisciplinaridade.
Procurei mostrar anteriormente, através de alguns exemplos, as potencialida-
des analíticas decorrentes de uma aproximação da sociologia a problemáti-
cas teóricas e enfoques metodológicos referenciados à história e às ciências
da linguagem. Voltando a estas últimas, e continuando a situar-me em plano
ilustrativo, parece difícil não aceitar que qualquer estudo sobre a interação
social, domínio que a sociologia tem de explorar a múltiplos pretextos (aná-
lise das sociabilidades, em geral, e das sociabilidades familiares, juvenis, de
vizinhança, etc., em particular) tem de incorporar conhecimento sistemático
sobre rotinas e rituais linguísticos ou para-linguísticos que percorrem os múl-
tiplos “encontros sociais. Ora, nos trabalhos de pragmática linguística e de
análise do discurso (e estou a restringir-me a um segmento limitado das áreas
de conhecimento em causa), há elementos preciosos para aprofundar o conhe-
cimento quer dos sistemas disposicionais interiorizados pelos interactantes,
quer das estruturas de oportunidade que, em situações interativas concretas,
condicionam as práticas. Poderá a sociologia alhear-se deste manancial de
conhecimentos? A minha ideia é que se o zer, alegando eventualmente que
os fechamentos analíticos disciplinares são um mal necessário, impedir-se-á
de captar o essencial das dinâmicas da interação social, nomeadamente o que
nelas há de exercício implícito de manutenção/transgressão da ordem sim-
bólica e, por esse intermédio, de reprodução/transformação da ordem social.
E a própria capacidade para analisar e regular as relações sociais desencadea-
das pelo processo de observação sociológica – fenómeno a que dei grande
relevo em múltiplos textos sobre questões metodológicas – sairá francamente
diminuída se forem desprezadas as possibilidades abertas pelo diálogo multi-
disciplinar a que me referi.
Mas é possível alinhar muitos outros exemplos que demonstram a fecundi-
dade de estratégias multidisciplinares de análise do social. Lembro-me da
surpresa que para mim constituiu uma digressão pelas teorias psicológicas da
perceção, quando, no âmbito de uma pesquisa sobre trabalho e trabalhadores
da construção civil (realizada em colaboração com Maria Cidália Queiroz),
quis aprofundar o estudo dos acidentes de trabalho nesse ramo de atividade
económica. Não sendo um tema isento de controvérsia no interior da psicolo-
gia, a verdade é que os termos em que a análise da perceção é colocada nessa
disciplina são excecionalmente esclarecedores dos elementos e processos que,
na perspetiva sociológica, estão em jogo no momento em que os acidentes
DA SOCIOLOGIA COMO PROFISSÃO À SOCIOLOGIA CRÍTICA 
ocorrem. Há que atender, por um lado, a um conjunto de constrangimentos
decorrentes das condições materiais em que se desenvolve o trabalho da cons-
trução (características dos locais e processos de trabalho predominantes, uns
e outros promotores de riscos de acidentes). Ora, as conceções neobehaviou-
ristas sobre a perceção, avançadas por exemplo por James Gibson, dão argu-
mentos, no âmbito da psicologia, para levar a sério a inuência incontornável
daquelas condições quando o que está em causa é analisar sociologicamente
(e, além disso, prevenir) acidentes de trabalho. Mas há, por outro lado, sis-
temas disposicionais e culturais interiorizados pelos agentes que também
contam no desencadear dos momentos críticos das práticas de trabalho que
conduzem ao acidente. E, quanto a esses (que são os que mais concentram o
interesse dos sociólogos), há muito para conhecer no âmbito das conceções
psicológicas (construtivistas) que colocam no centro dos processos de perce-
ção os quadros culturais interiorizados pelos sujeitos. Quererá isto dizer que
a sociologia perde protagonismo, ao querer cruzar a sua visão especíca com
a da psicologia? De modo nenhum: resta-lhe muito espaço para, por exem-
plo, demonstrar que, associado às especicidades técnico-materiais dos locais
de trabalho (estímulo distal, para a psicologia), há um mundo de constrangi-
mentos que decorrem de opções organizacionais, de políticas de prevenção
mais ou menos conseguidas, de jogos de interesses envolvendo a indústria da
construção, as seguradoras e o próprio Estado, etc.; que, por outro lado, para
perceber a inuência própria dos sistemas disposicionais e culturais no desen-
cadear dos sinistros, há que compreender até que ponto as trajetórias modais
dos trabalhadores da construção os levam a processos de naturalização de ris-
cos, de que modo as redes de recrutamento de mão-de obra e o recurso à sub-
contratação contribuem para a instabilização da relação (contratual, afetiva,
percetiva) dos trabalhadores com os seus locais de trabalho, em que termos a
precarização do emprego se repercute aqui numa mórbida intensicação dos
ritmos de trabalho, etc.
Mas as virtualidades de uma abordagem sociopsicológica da perceção nos ter-
mos indicados podem ser invocadas a outros propósitos. Por exemplo, no caso
da pesquisa sobre os públicos da cultura, onde, do lado da sociologia, parece
denitivamente necessário ir além do mero registo de correspondências entre
posições na estrutura social e preferências tipicadas de obras culturais, para
investigar o lugar especíco que a materialidade da obra, enquanto tal, ocupa
na formação do juízo estético. Tal inexão de perspetiva, que se impõe por
razões teóricas, não deixa, aliás, de ter implicações igualmente importantes
no plano da intervenção para a democratização cultural (sugerindo, nas estra-
tégias de familiarização com as obras de arte, mais e melhor investimento na
seleção, contextualização e apresentação pública destas últimas, e não tanto, ou
 ENTREVISTA COM JOSÉ MADUREIRA PINTO
não somente, na reformulação dos quadros culturais de receção/apropriação)
– o que remete uma vez mais para a possibilidade de estabelecer conivências
virtuosas entre a “sociologia académica” e a conceção de políticas públicas e a
intervenção sociocultural.
Será ainda da necessidade de aprofundar o estudo multidisciplinar dos meca-
nismos da perceção que se trata, quando, ao estudar as dinâmicas sociais e pro-
cessos de socialização em espaços físicos bem delimitados (o bairro popular
urbano, a coletividade rural, a instituição totalitária…), esteja em causa pon-
derar o peso relativo que no plano analítico deve ser atribuído às dimensões
ditas “ecológicas” e “sociais” de tais dinâmicas. Na construção das congura-
ções de sentido, especialmente as de natureza identitária, através das quais os
agentes criam pertenças, solidariedades e oposições, é frequentemente muito
relevante a presença de operadores simbólico-ideológicos com forte liação
espacial. A conguração física dos lugares transmuta-se, assim, sob a forma de
classicações mais ou menos inclusivas ou excludentes, num sistema natura-
lizado de marcadores de pertença ou distinção classista, quando não de dife-
renciação quase-instintiva entre insiders e outsiders. Custa a aceitar que, para
decifrar a complexidade destes processos, não se apele ao aprofundamento do
intercâmbio entre a sociologia e a psicologia na análise da perceção do espaço
físico (paisagem, morfologia urbana e habitacional, qualidade e densidade
arquitetónicas, acessibilidades…).
Mas muitos outros tópicos consagrados pelos manuais de psicologia merece-
riam igualmente canalizar o interesse da sociologia. A atenção é um deles. Será
aceitável, por exemplo, querer estudar sociologicamente a sala de aula – esse
peculiar condensador dos efeitos da desigualdade social –, sem ter em conta o
que, nas suas complexas dinâmicas de integração e conito, decorre das condi-
ções sociais de estruturação da atenção nas gerações mais jovens?
Não lhe parece que no atual quadro de internacionalização da pesquisa, com
exigências de avaliação muito centradas na contabilização do número de artigos
cientícos publicados, mais do que na análise da qualidade de trabalhos com
outro fôlego (nomeadamente livros), as suas propostas de abertura disciplinar e
teórico-metodológica dicilmente poderão ser concretizadas? Não estaremos a
correr riscos de hiperespecialização e fragmentação do conhecimento?
Nada tenho a opor, no plano dos princípios, a que a atividade de produção de
conhecimentos que se reivindica da ciência seja objeto de avaliação. Bem pelo
contrário, acredito que a submissão dos resultados da pesquisa ao controlo
cruzado dos pares, com todas as limitações que, em termos práticos, ela possa
enfrentar, constitui, juntamente com a metódica submissão de hipóteses inter-
pretativas a processos de conrmação/inrmação “dos factos”, uma prática
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DA SOCIOLOGIA COMO PROFISSÃO À SOCIOLOGIA CRÍTICA 
que as comunidades cientícas a si próprias devem impor sem reservas. Neste
caso, pior do que uma avaliação deciente será, sem dúvida, a ausência de
qualquer avaliação. E também sou favorável a que, nas atuais condições de
internacionalização das ciências, essa avaliação recorra a pareceres de um con-
junto de pares exteriores às comunidades cientícas nacionais: o alargamento
do âmbito da discussão a experiências e histórias disciplinares diversicadas,
bem como algum acréscimo de distanciação relativamente a redes de interes-
ses “locais” (cientícos e outros) podem, de facto, trazer vantagens objetivas a
esse tipo de avaliação.
Mas a internacionalização da avaliação não garante, por si só, isenção e quali-
dade. A inuência de redes de interconhecimento e cooptação, que, no plano
das comunidades cientícas nacionais, podem pôr em risco a seriedade das
avaliações interpares, não deixa de existir pelo simples facto de se exercer numa
lógica transnacional. Na esfera da circulação internacional das ideias, a trans-
ferência de conhecimentos e a sua validação pelos pares, está frequentemente
associada à transferência de capital e poder simbólico “extra-cientícos”, cujas
lógicas de acumulação podem pôr em causa as virtualidades da autonomização
relativa do campo cientíco face a pressões sociais exógenas. Acresce que, no
domínio das ciências histórico-sociais, a concretização de processos de ava-
liação internacional nunca deveria perder de vista que os produtos de conhe-
cimento sob escrutínio não são independentes de exigências de especicação
espácio-temporal dos objetos de estudo, que só alguma familiaridade com a
história dos campos cientícos nacionais pode deixar entrever e ponderar.
Nestas condições, deixar a avaliação de resultados cientícos produzidos em
determinados contextos nacionais exclusivamente nas mãos de peritos inter-
nacionais que ignorem completamente a história e o estado da arte do campo
cientíco e disciplinar nacional é uma prática que, a meu ver, precisa de ser
contrariada. Destituídos frequentemente de efetiva competência e disponi-
bilidade para avaliar de forma global e integrada, contextualizada, os produ-
tos cientícos em causa, não surpreenderá que aos peritos envolvidos pouco
mais reste do que inventariar, contabilizar e ordenar conteúdos mais ou menos
padronizados. Daí a conhecida tendência para que, na avaliação do trabalho
cientíco, se privilegie o artigo cientíco redigido em inglês e publicado em
revista indexada, em detrimento quase absoluto de outras peças curriculares,
nomeadamente o livro. Nem será preciso ter lido omas Kuhn para perce-
ber até que ponto podem tais práticas de avaliação contribuir ativamente para
uma perversa “normalização” do trabalho cientíco. Apetece, aliás, perguntar
o que seria hoje a sociologia e as outras ciências sociais se, no seu desenvolvi-
mento, os grandes livros tivessem sido banidos, como agora tende a acontecer,
do exame reexivo dos pares.
 ENTREVISTA COM JOSÉ MADUREIRA PINTO
Importa notar ainda, a propósito do privilégio que é concedido nas avaliações
internacionais a textos escritos em língua inglesa, que uma tal prática tem con-
duzido, nos processos de avaliação internacionais, a subvalorizar, quando não
puramente ignorar, referências teóricas cruciais, pelo simples facto de terem
sido originalmente problematizadas em línguas e contextos intelectuais que
não os do limitado mundo anglo-saxónico, não sendo por isso conhecidas dos
peritos avaliadores senão através de precários, e frequentemente enviesados,
sistemas de ltragem instituídos nos subcampos cientícos a que pertencem.
Acredito, ainda assim, que é possível reformar o sistema de avaliação interna-
cional do trabalho cientíco por forma a ajustá-lo melhor às especicidades
dos saberes produzidos neste âmbito. Para se poder dar um salto decisivo nesta
matéria, bastaria começar por garantir que, no domínio das ciências sociais e
humanas, as equipas de avaliação passassem a incluir sempre elementos razoa-
velmente familiarizados com a língua, a realidade social e a literatura da espe-
cialidade nacionais. Entidades com responsabilidades consultivas no sistema
cientíco nacional já têm vindo, de resto, a fazer sugestões que apontam neste
sentido. É um bom sinal.
Como vê a posição das novas gerações de investigadores sociais perante essas e
outras pressões?
Se pusermos de parte as diculdades que resultam de restrições ao nancia-
mento público da investigação e de uma continuada resistência à estabiliza-
ção de carreiras com um mínimo de perspetivas – e essas diculdades são
reais –, o principal risco que os investigadores mais preparados hoje enfren-
tam será, creio eu, como já sugeri, o de terem de conviver com processos de
normalização paradigmática, que, como se sabe, alimentam (e se alimentam
de) demissões intelectuais várias: ao nível da seleção de objetos (por força da
imposição de critérios de elegibilidade frequentemente destituídos de funda-
mento epistemológico sério), ao nível da conceção geral dos projetos (por des-
valorização do momento de fundamentação teórica da pesquisa), ao nível das
estratégias de pesquisa observacional (por desconança de princípio em rela-
ção a metodologias menos convencionais) e até ao nível do modo de exposição
(conhecem-se as limitações estritamente formais a que cada vez mais é sujeita
a publicação de trabalhos cientícos).
Mas estou convencido – já o disse – que há espaço para aperfeiçoamentos. Tal
será o caso de todas as mudanças que, no plano organizacional, contribuam
para estimular o debate em torno das grandes opções teóricas e da heuristi-
cidade dos programas de investigação disponíveis, sem esquecer as boas roti-
nas da autorreexividade epistemológica. Acredito que cabe às gerações mais
velhas um papel ativo na defesa destas soluções. Trata-se anal de colocar nas
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DA SOCIOLOGIA COMO PROFISSÃO À SOCIOLOGIA CRÍTICA 
mãos dos que mais beneciaram das vantagens de uma autonomização rela-
tiva do campo cientíco a responsabilidade de a preservar ou reconquistar em
favor das gerações mais jovens.
Como enquadra e que balanço faz do processo de institucionalização da investi-
gação em sociologia no Porto?
Olhando a questão a partir do Instituto de Sociologia, verico que, embora
com diculdades especícas resultantes de se tratar de uma unidade com
uma vida relativamente curta, o  se confronta com problemas que são
comuns a outras instituições. Rero alguns deles: elevada proporção dos
investigadores com disponibilidade limitada para a pesquisa, dadas as pesa-
das responsabilidades de docência que têm nos diferentes ciclos de estudos
universitários; um número signicativo de investigadores envolvidos em
processos de doutoramento bastante exigentes; orçamentos muito reduzidos.
Não é fácil, nestas condições, acreditar que possam ser postos em prática
muitos dos princípios que, em abstrato, defendo. Assim, a participação em
debates regulares sobre questões teóricas de fundo ou visando a discussão
de resultados de pesquisa relevantes – para só falar numa das componen-
tes, para mim incontornável, da atividade de qualquer centro de investigação
– nem sempre consegue ter a expressão que se desejaria. Ainda assim, nas
várias linhas de pesquisa por que se vem repartindo a atividade do Instituto
(“Desigualdades, cultura e territórios”, “Família, envelhecimento e género”
e “Trabalho, emprego, prossões e organizações”), tem-se feito trabalho de
qualidade, que, além disso, foi ganhando reconhecimento crescente a nível
nacional e internacional.
Acontece ainda que um conjunto signicativo de jovens investigadores do Ins-
tituto (muito bem preparados academicamente) tem feito uma opção clara no
sentido de investir fortemente em abordagens interdisciplinares e em minu-
ciosos e bem fundamentados trabalhos de terreno. São boas indicações quanto
ao modelo de trabalho que, no futuro, poderá denir as “vantagens compa-
rativas” do Instituto. Poder acompanhar estes jovens, em discussões teóricas
abertas ou em contextos de trabalho de forte densidade observacional, tem
constituído para mim uma excelente oportunidade de “carregar baterias” e de
renovar a minha ligação afetiva à sociologia. Sinto que, sem o saudável atrito
que advém deste tipo de colaboração, talvez já tivesse cedido à tentação de
usar o tempo disponível para me refugiar na elaboração de algumas cómo-
das sínteses sociológicas de médio ou grande alcance. Conto com a militância
sociológica dos mais jovens para continuar a contrariar eventuais tendências
para me instalar em rotinas de trabalho “m-de-carreira”, mais contemplativas
do que pró-ativas.
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 ENTREVISTA COM JOSÉ MADUREIRA PINTO
Não ignoro, evidentemente, que são muito frágeis, nesta altura, as bases ins-
titucionais em que assenta o trabalho de investigação nas ciências sociais e,
em particular, na sociologia. Concretamente, é duvidoso que neste domínio
se venha a consolidar a prazo um núcleo forte de postos de trabalho mini-
mamente estáveis, sendo previsível, por outro lado, que os níveis de nancia-
mento ao alcance de muitas unidades e equipas de investigação de mérito se
reduzam para níveis incompatíveis com estratégias de desenvolvimento cien-
tíco sustentáveis. Alguma correção das assimetrias atualmente existentes na
distribuição das verbas para investigação poderia, ainda assim, atenuar alguns
dos efeitos das restrições orçamentais que se perspetivam. Mas, no quadro
de diculdades que tem vindo a desenhar-se, será muito elevado o risco de a
atividade cientíca regular passar a estar determinada pelas contingências da
docência universitária, com os efeitos de fragmentação, desprossionalização
e paroquialização que até há algumas décadas atrás condicionavam a investi-
gação em Portugal.
Admito que, para contrariar, neste campo, os efeitos da crise económico-nan-
ceira, se possam explorar modalidades de apoio à atividade de investigação
distintas das que, nas últimas décadas, foram instituídas no sistema cientíco
nacional. É nesse sentido que se orienta o que disse anteriormente a propósito
das relações entre investigação fundamental e serviço à comunidade, sociolo-
gia académica e “public sociology. Parece-me, contudo, que a reexão sobre o
modo de explorar estas possibilidades, sem pôr em causa condições de efetiva
autonomia cientíca para os investigadores, está ainda em fase algo embrioná-
ria – deixando-se enredar, não raramente, nas teias do wishful thinking.
José Madureira Pinto » jmp@fep.up.pt » Instituto de Sociologia, Faculdade de Letras, U. do Porto.
Renato Miguel do Carmo » renato.carmo@iscte.pt » , -.
Virgílio Borges Pereira » jpereira@letras.up.pt » Instituto de Sociologia, Faculdade de Letras, U. do Porto.
, R. M., , V. B. (), Entrevista com José Madureira Pinto “Da sociologia como prossão
à sociologia crítica”. Análise Social, ,  (.º), pp. -.
... Tal diversidade, para alguns, indiciadora da sua marginalidade no contexto de outras ciências sociais, para outros, tão-somente representativa da sua especificidade epistemológica, não encontrou até agora desfecho consensual. Comprovam-no incontáveis manuais que continuam a alimentar a exposição crítica de escolas, autores, períodos, mesmo aqueles onde se defende como tarefa primacial da sociologia contemporânea a convergência de esforços para a construção de uma grande síntese teórica (Turner, 1987;2013). ...
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Em que edifício teórico se alicerça a visão sociológica do mundo e como a comunicamos, em síntese, aos estudantes no contexto da sua formação universitária básica? Que princípios devem presidir ao processo de apropriação de instrumentos como as teorias sociológicas, que possam revelar-se úteis e relevantes à sua prática científica, profissional e cidadã futura? Haverá “técnicas” para analisar a sociedade ou, antes, experimentação de modelos, formas de pensar concorrentes, com os quais vamos aprendendo a dialogar e afinar o conhecimento sobre a sociedade? Argumenta-se, neste artigo, que o pluriparadigmatismo teórico deve ser considerado recurso fundamental da formação sociológica, bem como a leitura e o trabalho sobre textos originais, independentemente do estatuto clássico ou contemporâneo desses textos. Palavras-chave:teorias sociológicas, pluralismo teórico, obras clássicas
Instituto de Sociologia, Faculdade de Letras, U. do Porto. Renato Miguel do Carmo » renato.carmo@iscte.pt » cies
  • José Madureira Pinto
José Madureira Pinto » jmp@fep.up.pt » Instituto de Sociologia, Faculdade de Letras, U. do Porto. Renato Miguel do Carmo » renato.carmo@iscte.pt » cies, iscte-iul.
Entrevista com José Madureira Pinto "Da sociologia como profissão à sociologia crítica
  • R M Carmo
  • V B Pereira
carmo, R. M., pereira, V. B. (2013), Entrevista com José Madureira Pinto "Da sociologia como profissão à sociologia crítica". Análise Social, 208, xlviii (3.º), pp. 685-720.