Content uploaded by Maria João Guia
Author content
All content in this area was uploaded by Maria João Guia on Feb 01, 2016
Content may be subject to copyright.
129
REMHU - Rev. Interdiscip. Mobil. Hum., Brasília, Ano XXIII, n. 45, p. 129-144, jul./dez. 2015
Maria João Guia, João Pedroso
A INSUSTENTÁVEL RESPOSTA DA “CRIMIGRAÇÃO” FACE À
IRREGULARIDADE DOS MIGRANTES: UMA PERSPETIVA DA
UNIÃO EUROPEIA
Maria João Guia1
João Pedroso2
A condição jurídica de “Irregular” dos imigrantes na entrada e
na permanência, em determinado país, é uma decisão de cada
um dos Estados, que escolhem entre criminalizar e proibir esses
comportamentos ou os integrar e “regularizar”, permitindo o seu acesso
a (alguns) direitos dos nacionais. Nos últimos anos vários Estados dos
EUA enveredaram por uma política pública de “crimigração” fazendo
convergir a lei criminal com a lei de imigração com o objetivo de punir
e expulsar os imigrantes “construídos” como irregulares. Na Europa
também têm sido implementadas recentemente políticas, direito e
práticas “crimigratórias” transplantadas dos EUA. No entanto, países
como Portugal acolhem moderadamente essa tendência, continuando
a optar preferencialmente pela inclusão e por uma legislação de
“regularização permanente” dos imigrantes.
Palavras-chave: irregularidade, imigrantes, crimigração, criminalização,
inclusão.
Introdução3
A necessidade do debate acerca da emigração e imigração, na Europa,
intensificou-se nos últimos anos4. Alguns países estão sujeitos a grandes pressões
resultantes de uma imigração crescente5 e as estimativas apontam para a
1 Centro de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Coimbra, Portugal.
2 Centro de Estudos Sociais (CES), DECIDe - Núcleo da Democracia, Cidadania e Direito. Coimbra,
Portugal.
3 Este artigo resulta de uma reflexão conjunta dos autores a partir de GUIA, Maria João. Imigração,
‘Crimigração’ e Crime Violento. Os Reclusos estrangeiros e as representações sobre imigração e Crime.
4 PEIXOTO, João. A imigração em Portugal, demografia e dinâmicas.
5 As estimativas mostram que 15% dos imigrantes a viver na União Europeia e 30% dos que entram
todos os anos o fazem irregularmente (cf. Migration News). O problema das pressões migratórias foi
130 REMHU - Rev. Interdiscip. Mobil. Hum., Brasília, Ano XXIII, n. 45, p. 129-144, jul./dez. 2015
A insustentável resposta da “crimigração” face à irregularidade dos migrantes: uma perspetiva da UE
existência de milhões de imigrantes irregulares, que há muito tempo se resignaram
à sobrevivência na Europa Ocidental e nos Estados Unidos da América. Com
efeito, nos últimos 20 anos, vários países da União Europeia receberam grandes
vagas de imigrantes, oriundos maioritariamente de países pobres de continentes
como Ásia, África e América do Sul. Em 2014, a maior parte dos indivíduos
detetados em irregularidade na UE eram oriundos da Síria, Eritreia e Afeganistão,
sendo que estas 3 nacionalidades constituíam um terço do total6. Na verdade,
e segundo Barbagli7, desde a altura em que os países da Europa abrandaram a
absorção de mão-de-obra migrante, as únicas formas de atravessar as fronteiras
têm sido através dos pedidos de asilo ou da imigração irregular.
As recentes medidas mais restritivas quanto à entrada de imigrantes no
espaço europeu têm vindo a provocar o efeito perverso do favorecimento da sua
entrada irregular8, acabando por se verem colocados em situação de exclusão
permanente no que concerne a apoios sociais, acesso à saúde e à educação.
Labbens9 havia já invocado, relativamente aos imigrantes, o que conhecemos
como a “célebre trilogia webberiana”10 ao afirmar que “para ser pobre, é
necessária a falta simultânea da fortuna e da ocupação remunerada (classe), da
força social (poder) e da responsabilidade (estatuto)”. Engbersen11 apelidou este
espaço de “Europa Panóptica”, não tanto pela vertente foucaultiana da “correção
de comportamentos”, mas pelo seu caráter de “fábrica de exclusão” de “pessoas
habituadas ao seu estatuto de excluídos”12.
Neste artigo, começaremos por refletir sobre a questão da irregularidade e,
de seguida, o modo como as “mutações” do Estado alteram as políticas de gestão
das migrações irregulares. Por último, abordaremos as perspetivas da irregularidade
de migrantes na esfera da emergência da ‘crimigração’ nos Estados Unidos da
América (EUA) e na União Europeia (UE), num contexto “insuflado por um alvoroço
securitário contemporâneo, sobre as garantias e as liberdades individuais”13.
analisado pelo Conselho Europeu, reunido em Edimburgo em 1992, que decidiu “reforçar as suas
tentativas comuns para combater a imigração ilegal”.
6 SABBATI, Giulio, POPTCHEV, Eva-Maria. Irregular immigration in the EU: Facts and Figures.
Briefing, p. 3.
7 BARBAGLI 1998 apud KILLIAS, Martin. Immigration and Crime: The European Experience. Improving
US and EU Immigration Systems, p. 5.
8 Enquanto a força laboral do trabalho dos imigrantes for rentável para as economias de cada Estado,
este continuará a ser permissivo na estadia de migrantes, desde que eles não levantem problemas
graves (GIL-ROBLES, Alvaro. Report by Mr Alvaro Gil-Robles, Commissioner for Human Rights on his
visit to Portugal, 27-30 Maio 2003).
9 LABBENS, Jean. Le Quart-Monde, étude sur la condition sous-prolétarienne.
10 ETIENNE, Jean et alii. Dicionário de Sociologia.
11 ENGBERSEN, Godfried. The unanticipated consequences of panopticon Europe. Residence
strategies of illegal immigrants.
12 Ibidem, p. 242.
13 CAEIRO, Pedro. Alguns aspectos do Estatuto de Roma e os reflexos da sua ratificação na proibição
constitucional de extraditar em caso de prisão perpétua, p. 58.
131
REMHU - Rev. Interdiscip. Mobil. Hum., Brasília, Ano XXIII, n. 45, p. 129-144, jul./dez. 2015
Maria João Guia, João Pedroso
1. Da (des)construção da (i)rregularidade à “crimigração”
“Devia ter ido lá fazer um discurso, mas, com o meu sotaque,
temi que me expulsassem” (Arnold Schwarzenegger, 201014).
Robert Koulish15 analisa a viragem no discurso e no tratamento dos
imigrantes em situação irregular nos EUA, baseado na “sociedade de risco”,
mudando o enfoque da prevenção da entrada para a gestão e o controlo social
destas populações quando elas já se encontram dentro do território americano16.
A entrada de imigrantes é impossível de impedir através dos instrumentos legais,
pelo que deixa de ser entendida como um risco eliminável, para passar a ser um
risco passível de ser gerido. As narrativas adotadas, neste contexto, estabelecem
associações entre a imigração e perigos de catástrofe global e transfronteiriça,
permitindo desse modo a criminalização da circulação desses indivíduos17. De
acordo com o autor, este discurso permite, ainda, formas de controlo social
que vão muito além da criminalização, recorrendo às novas tecnologias da
informação e à biométrica como forma de controlo social. O discurso do risco
aplicado à imigração irregular é polissémico: esta constitui um risco à soberania
do Estado Nação – “à integridade territorial” – no sentido em que as populações
em situação irregular são ingovernáveis, e constitui igualmente um risco para
elas mesmas e para o resto da comunidade – por exemplo, as consequências
advindas da falta de acesso a cuidados de saúde básicos18.
Com efeito, os imigrantes em situação irregular ficam desprovidos de
qualquer estatuto jurídico e de cidadania, o que facilita a subjugação de, muitos
deles, a organizações, por vezes criminosas, que operam transnacionalmente. Eles
caem nas redes criminosas procurando melhores condições de vida e o acesso a
cuidados mínimos de saúde, educação e trabalho. Paradoxalmente, a atividade
destas organizações acaba por ser estimulada pelos Estados industrializados, que
são permissivos na utilização de mão-de-obra barata, face às necessidades que
não conseguem suprir, descurando muitas vezes as condições de vida e estatuto
de cidadania dos imigrantes.
1.1. A “crimigração” como resposta à irregularidade
A ‘crimigração’ é uma teoria que tem vindo a ser construída desde 200619
originária dos Estados Unidos da América (EUA) desde a década de 80, do século
14 Arnold Schwarzenegger, governador republicano da Califórnia, de origem austríaca, a propósito
da aplicação da lei anti-imigração votada pelo estado do Arizona. The Atlanta Journal-Constitution,
Estados Unidos da América. Cf. Courier Internacional, n. 173, julho de 2010, p. 18.
15 KOULISH, Robert. Entering the risk society: A contested terrain for immigration enforcement.
16 Ibidem, p. 62.
17 Especialmente a partir do 11 de setembro de 2001. Ibidem, p. 63.
18 AGUILERA, 2012 apud KOULISH, op. cit., p. 64.
19 STUMPF, Juliet. The Crimmigration Crisis: Immigrants, Crime & Sovereign Power.
132 REMHU - Rev. Interdiscip. Mobil. Hum., Brasília, Ano XXIII, n. 45, p. 129-144, jul./dez. 2015
A insustentável resposta da “crimigração” face à irregularidade dos migrantes: uma perspetiva da UE
XX, com uma implementação recente na Europa20. O argumento central desta
teoria assenta na perda progressiva de direitos dos migrantes e, em simultâneo,
na criminalização crescente dos comportamentos dos mesmos, com a aplicação
simultânea da lei penal a migrantes (que não cometeram crimes) e a aplicação
da lei de imigração a condenados por crimes (com afastamento permanente dos
territórios onde estes condenados cometeram os crimes). Stumpf21 caracterizou
esta política como a convergência da Lei Penal com a Lei de Imigração,
caracterizando-a pela elevada intransigência em relação aos indivíduos não
nacionais, o que implica uma estratificação do acesso aos direitos, incluindo o
direito de exercer a cidadania. Inicialmente, esta maior intolerância para com os
estrangeiros infratores ou para com a irregularidade destinava-se a um conjunto
de crimes violentos (homicídio, tráfico de droga e de armas), aos quais se foram
juntando, ano após ano, outros crimes menores que passaram a ser motivo de
expulsão e de interdição de entrada cada vez mais prolongadas22.
1.2. EUA: o berço da “crimigração”
A evolução histórica dos Estados Unidos da América explica muitos dos
fatores relacionados com os movimentos migratórios do país, que é fruto de uma
imigração massiva de cidadãos europeus e do domínio destes sobre os nativos,
devendo, aliás, o seu desenvolvimento ao trabalho escravo e mais tarde ao trabalho
imigrante. A partir dos anos oitenta, com o aumento da imigração irregular oriunda
da Ásia e do México23, depois do colapso financeiro de 198324 e do caso “Boatlif
Mariel” em que o governo cubano encorajava os cubanos condenados a ir para
o mar e tentar o pedido de asilo nos EUA25, a Lei Penal e a Lei da Imigração
começaram a convergir, dando lugar à política pública da “crimigração”.
A estratificação do acesso aos direitos, incluindo o direito de exercer a
cidadania em pleno, e a acumulação de sanções penais e imigratórias, levou ao
20 VAN DER LEUN, Joanne, VAN DER WOUDE, Maartje. Uma Reflexão Sobre a Crimigração na
Holanda: O Complexo da Segurança Cultural e o Impacto do Enquadramento.
21 STUMPF, op. cit.
22 Os designados “aggravated felonies” implicavam inicialmente os crimes de homicídio, tráfico de
droga e de armas. Em 1990, o Immigration Act redefiniu este grupo de crimes constantes no
“aggravated felonies” para todos os crimes violentos condenados com penas superiores a 5 anos. Em
1995, foram acrescentados a este grupo de crimes outros não violentos (furtos, burlas, falsificações,
prostituição, etc.). Em 1996, o grupo de crimes incluídos no “aggravated felonies” estendeu-se a
todos os crimes condenados em pena de mais de um ano.
23 E mais recentemente com a ameaça dos ataques terroristas.
24 Entre 1982 e 1988, a administração de Miguel de la Madrid Hurtado levou a cabo inúmeras
reformas, liberalização do comércio e grandes contenções de gastos públicos. Mas a inflação
subiu acima dos 100%. O terremoto de 1985 ocorrido na Cidade do México e a queda do preço
do petróleo em 1986 contribuíram da mesma forma para este cenário de catástrofe económica
(KESSLER, Timothy. A Quebra do Peso Mexicano: Causas, Consequências e Recuperação).
25 MILLER, Teresa. Citizenship & Severity: Recent Immigration Reforms and the New Penology.
133
REMHU - Rev. Interdiscip. Mobil. Hum., Brasília, Ano XXIII, n. 45, p. 129-144, jul./dez. 2015
Maria João Guia, João Pedroso
aumento imediato das deportações26. A Lei da Imigração tem sido desde então
aplicada a comportamentos que anteriormente eram objeto exclusivamente da
Lei Penal. As ordens de expulsão passaram a incluir situações de irregularidade e
condenações iguais ou superiores a 5 anos, que, por sua vez, passaram a abranger
crimes não violentos e, posteriormente, estendeu-se a crimes cujas condenações
não ultrapassavam um ano – o que engloba crimes não violentos e as “bagatelas
penais”. Além disso, o período de interdição de entrada nos EUA duplicou,
assim como a detenção de cidadãos estrangeiros sem acusação, ao abrigo da
lei antiterrorista. Neste contexto, o aumento das condenações e das ordens de
expulsão a cidadãos estrangeiros constitui uma ferramenta de exclusão (implícita
e explícita, respetivamente), refletindo escolhas políticas27.
A ‘crimigração’28 analisa, como se referiu, a convergência da lei criminal
(penal) com a lei da imigração, concretizada através da existência da teoria da
pertença29, problematizando a cidadania nos EUA, o que cataloga os migrantes
em “insiders” e “outsiders”, cingindo os indivíduos não-nacionais a sentimentos
de inserção ou exclusão da sociedade. A teoria da pertença preconiza a permissão
concedida aos membros do contrato social30 estabelecido entre o governo norte-
americano e os indivíduos, restringindo a alguns o acesso a determinados direitos
e privilégios e aventando explicações para tal exclusão. Quando a teoria da
pertença está em causa, todo o âmbito de direitos constitucionais depende da
perspetiva do decisor31, o que, segundo Demleitner32, resulta no esvaziamento
da dignidade da pessoa humana como cidadão, ao sofrer as restrições sociais e
políticas resultantes daquilo a que se designa por ‘paradigma da crimigração’.
Esta conexão da lei de imigração com a lei penal implica, em primeiro lugar,
uma exclusão física e, logo depois, a imposição de normas que estabelecem níveis
estratificados de cidadania. A convergência da ‘crimigração’ implica também que,
para um mesmo comportamento, possa haver sanções criminais (que resultam,
normalmente, em reclusão) e as previstas na lei de imigração (normalmente a
expulsão). As bases de dados dos estrangeiros passaram a estar disponíveis para
as polícias, o que acabou por reforçar a lei de imigração que passou também a
26 STUMPF, op. cit.
27 Refira-se ainda que o período de interdição de entrada no país após estas deportações passou
para um período de 10 a 20 anos, bem como as detenções dos chamados “não cidadãos” sem
acusação, justificada por um “razoável período de tempo” que pode ir até 7 dias, sobretudo ao
abrigo da lei antiterrorista.
28 STUMPF, op. cit.
29 “Membership theory” no original (ibidem).
30 A cidadania é definida por Aleinikoff como a “pertença a um Estado resultante de consentimento
mútuo entre um indivíduo e um estado” (ALEINIKOFF, Alexander. Theories of Loss of Citizenship).
31 STUMPF, op. cit.
32 DEMLEITNER, Nora. Misguided Prevention: The War on Terrorism as a War on Immigrants
Offenders and Immigration Violators.
134 REMHU - Rev. Interdiscip. Mobil. Hum., Brasília, Ano XXIII, n. 45, p. 129-144, jul./dez. 2015
A insustentável resposta da “crimigração” face à irregularidade dos migrantes: uma perspetiva da UE
substituir a lei criminal, sobretudo fundamentando as detenções ou deportações
dos supostamente envolvidos em ações terroristas33.
Para além disso, o Sistema Nacional de Segurança de Entradas e Saídas,
o NSEERS34, a partir do 11 de setembro começou a exigir aos indivíduos
“não-cidadãos” oriundos de determinados países árabes e muçulmanos que
fizessem um registo no INS35. Os condenados por crimes ou por violações à
lei de imigração, de fé muçulmana e de etnia árabe, foram, inclusivamente,
procurados, detidos e deportados, independentemente dos factos que lhes
tinham sido imputados, por estarem relacionados com atividades terroristas36.
As leis de imigração, nestes casos concretos, foram usadas para deter e deportar
indivíduos “não-cidadãos”. Acresce que a raça/etnia e a nacionalidade de origem
dos indivíduos passaram a ser condições humanas, que o Supremo Tribunal
dos EUA considerou serem de relevo e justificativas para as operações stop de
cidadãos efetuadas pela polícia37.
2. A irregularidade e a emergência da “crimigração” na União
Europeia
Existem cada vez mais turistas e estudantes que se deslocam ao
estrangeiro38, e cada vez mais trabalhadores a desenvolver projetos em Estados-
membros da UE, que não os seus. Adicionalmente, catástrofes, guerras e ataques
terroristas têm levado à deslocação massiva de pessoas para a UE39, em busca de
melhores condições de vida.
Mas nem todos os migrantes entram nos países de destino com os devidos
documentos legais. As estimativas apontam para 2,5 a 4 milhões de migrantes
irregulares que atravessam fronteiras internacionais todos os anos. O cálculo
correspondente aos “stocks” de migrantes irregulares na Europa40 (UE) aponta
para os 5 milhões (dentro dos 56,1 milhões que aí vivem), o que representa cerca
de 10% dos migrantes na sua totalidade41.
33 STUMPF, op. cit.
34 NSEERS – National Security Entry-Exit System, do inglês original.
35 INS - Immigration and Naturalization Service, do inglês original.
36 STUMPF, op. cit.
37 Ibidem, p. 25.
38 O número de migrantes dentro na nossa sociedade globalizada duplicou nos últimos 25 anos,
atingindo os 213.943,8 milhões de migrantes que abandonaram os seus países de origem em 2010,
um número considerável, segundo United Nations, Department of Economic and Social Affairs.
39 Não obstante, é preciso não esquecer que mais de 96% da população mundial nasce, vive e morre
no mesmo país, uma afirmação que contradiz a hipótese de que as migrações se encontrarem fora
de controlo (PIRES, Rui. Atlas of Migrations).
40 O cálculo de migrantes irregulares nos EUA (stocks) aponta para os 10,5 milhões (HOEFER, Michael et
alii. Estimates of the Unauthorized Immigrant Population Residing in the United States: January 2006).
41 Cf. RCMI. As Migrações num Mundo Interligado: Novas Linhas de Acção. Nos EUA, estima-se que
cerca de 3,1 milhões desses 10,5 milhões de pessoas a residir sem autorização nesse espaço em
2005 tenham entrado depois do ano 2000.
135
REMHU - Rev. Interdiscip. Mobil. Hum., Brasília, Ano XXIII, n. 45, p. 129-144, jul./dez. 2015
Maria João Guia, João Pedroso
2.1. Os imigrantes em irregularidade na UE: entre a inclusão e a
criminalização
Os fluxos migratórios irregulares têm sido entendidos como “indesejáveis”
desde a proibição do recrutamento de imigrantes nos anos 7042. No início dos
anos 90, estimou-se que existiam cerca de 2,6 milhões de imigrantes irregulares
na Europa Ocidental43. A partir de 1980, muitos países optaram por implementar
diversos programas de regularização de imigrantes44.
A forma como os Estados têm adotado medidas de combate à imigração
irregular dentro dos Estados-Membros da UE é bastante diferente, especialmente
entre os membros da Europa do Norte, que adotaram medidas de “dissuasão,
exclusão e, em último caso, expulsão”45, e os países do sul ocidental
(especialmente Portugal, Espanha, Itália e Grécia) que optaram pela via da
regularização, no que foram acompanhados pela Bélgica e pela França46. Entre
1973 e 2008, foram conduzidos 68 programas de regularização nos Estados-
membros, tendo ocorrido 4,3 milhões de regularizações47. Mas o maior número
de regularizações de migrantes teve lugar entre 1998 e 2008, um período em
que foram implementados 40 programas de regularização na Europa e realizadas
3.268.860 regularizações, um valor que permite calcular a verdadeira dimensão
deste fenômeno. Foi nos referidos países do Sul que os programas de maior escala
para a regularização de migrantes em situação irregular48 foram implementados49.
Kraler sublinha, entre outros fatores, a “alteração das normas de proteção
internacional, o aumento das considerações em torno das normas dos direitos
humanos no domínio da legislação de estrangeiros, e os lobbies extremamente
fortes que existem na sociedade”50.
É ainda importante sublinhar que o alargamento da UE resultou na
“regularização” de muitos cidadãos que anteriormente eram considerados
42 CVAJNER, Martina, SCIORTINO, Giuseppe. A Tale of Networks and Policies: Prolegomena to an
Analysis of Irregular Migration Careers and Their Developmental Paths.
43 CASTLES, Stephen, MILLER, Mark. The Age of Migration: International Population Movements in the
Modern World, p. 79.
44 KRALER, Albert. Regularisation: A Misguided Option or Part and Parcel of a Comprehensive Policy
Response to Irregular Migration?, p. 17.
45 BROEDERS, Dennis, ENGBERSEN, Godfried. The Fight Against Illegal Migration. Identification
Policies and Immigrants’ Counterstrategies.
46 Na UE, o surgimento de várias propostas que visavam limitar a liberdade dos programas de
regularização levaram ao estabelecimento de um “mecanismo de informação mútua” em
2006 (decisão do Conselho 2006/688/CE de 5 de outubro de 2006. Esta decisão é relativa ao
estabelecimento de um mecanismo de informação mútua sobre as medidas dos Estados-Membros
nos domínios do asilo e da imigração.
47 KRALER, op. cit., p. 20.
48 Têm existido ainda alguns programas de regularização concebidos com propósitos humanitários.
49 Os migrantes irregulares encontram-se divididos em três categorias principais: migrantes laborais,
refugiados e migrantes em trânsito (ibidem).
50 Ibidem, p. 22.
136 REMHU - Rev. Interdiscip. Mobil. Hum., Brasília, Ano XXIII, n. 45, p. 129-144, jul./dez. 2015
A insustentável resposta da “crimigração” face à irregularidade dos migrantes: uma perspetiva da UE
indivíduos de países terceiros. Estes acontecimentos devem-se a escolhas
efetuadas pelos Estados com base em decisões no campo das políticas de
imigração. É o Estado que designa quem ‘pertence’ e quem ‘não pertence’,
traçando linhas de soberania em torno dos indivíduos e estabelecendo normas
para que os mesmos possam aceder aos direitos, podendo assim ser considerados
ou não cidadãos51.
Na Europa, os Estados são soberanos desde os tratados de paz da
Vestefália52. A territorialidade e a ausência de agentes externos tornaram-se
parte dos Estados-Nação. Consequentemente, as fronteiras surgem como uma
das características da soberania dos Estados-Nação, sendo implementadas leis e
regulações feitas para os fluxos de imigrantes que querem atravessar fronteiras:
“só num mundo ordenadamente dividido em estados-nação, que definem regras
explícitas sobre a entrada legal (e consequentemente ilegal) de imigrantes é que
existe ‘migração ilegal’”53.
Foi a partir deste momento que o conceito da “ilegalidade” foi
institucionalizado (mesmo apesar de ser uma constante), mas só nos últimos
20 anos assumiu importância na agenda acadêmica54 e, principalmente, nas
preocupações estatais55. Pode-se, assim, concluir que a migração, na perspetiva
dos Estados não é um direito das pessoas56, uma vez que estes são soberanos e
podem escolher, por várias razões, se aceitam ou não a entrada de um determinado
indivíduo. E nestas circunstâncias, as pessoas escolhem frequentemente a entrada
através de métodos irregulares.
No espírito que esteve na base do Pacto Europeu sobre a Imigração e o Asilo,
as medidas de gestão das migrações, do asilo, de proteção e de solidariedade são
alvo de atenção, havendo uma aposta acurada, em alguns Estados, em políticas
de integração que possam proteger os direitos dos migrantes. A política externa
da UE, incluindo as parcerias com outros países e o respeito pela promoção de
normas e valores, em espírito de solidariedade e interação, revela-se também
parte do plano de ação do Programa de Estocolmo, em aplicação desde 2010.
51 GUILD, Elspeth. Justice and Migration. Metropolis15th International Metropolis Conference. Haia,
Holanda, 5 de outubro de 2010.
52 Ou os Tratados de Münster e Osnabrück.
53 KRALER, op. cit., p. 5.
54 ANDERSON, Bridget, RUHS, Martin. Researching Illegality and Labour Migration.
55 A escolha dos termos para esta entrada não-regular num país indica ou uma posição política de
neutralidade ou uma inclinação para essa questão.
56 O programa de Estocolmo centra-se na defesa de medidas que promovam a Europa como
paradigma da justiça e da proteção dos cidadãos contra o crime, sobretudo o que envolve a
criminalidade transnacional, aplicando medidas extraordinárias na fronteira, e de gestão célere de
catástrofes. A segurança interna e externa fazem parte de uma estratégia comum e reforçada, o que
não impede que o acesso à Europa seja eficiente e ao mesmo tempo seguro, procurando-se para
tal reforçar ou implementar serviços simultaneamente de controlo e de proteção.
137
REMHU - Rev. Interdiscip. Mobil. Hum., Brasília, Ano XXIII, n. 45, p. 129-144, jul./dez. 2015
Maria João Guia, João Pedroso
Mitsilegas57 analisa, contudo, o crescente enfoque na criminalização como
meio de combate à imigração irregular na Europa, observando de que forma
tal se repercute nas Leis Europeias e nas leis nacionais dos Estados-membros
em matéria de imigração, até que ponto a lei criminal é adotada para lidar com
condutas relacionadas com os fluxos migratórios nas duas esferas e até que
ponto as Leis da UE impõem limites à soberania dos Estados e ao seu poder
para criminalizar essas mesmas condutas. Esta é uma realidade que se afirma
como um transplante daquela que se vive, há mais tempo, nos Estados Unidos
da América, conforme expusemos anteriormente, mas que se vive a diferentes
intensidades nos vários Estados-membros. É importante não esquecer que, apesar
de partilharem a soberania a um nível macro, os Estados-membros mantêm uma
quota-parte de soberania intocável, sendo-lhes permitido adotar, dentro de um
grau de intensidades variável que decorrem das Diretivas Europeias, matizes de
intensidade que se vão repercutir em “liminal laws58” diferenciadas.
Portugal, por exemplo, destaca-se por uma baixa intensidade de
criminalização dos imigrantes, tendo sido considerado, novamente, pelo MIPEX59
2015 como o segundo melhor país em termos de medidas de integração de
imigrantes. Foi, ainda, considerado recentemente pelo Institute for Management
Development suíço60 o Estado-membro com a lei de imigração mais positiva
no que concerne a integração de imigrantes na área do trabalho. Tal não deve,
no entanto, favorecer olvidar que, em 2012 (Lei 29/2012, de 9 de Agosto), a
reformulação da Lei 23/2007, de 04 de Julho, passou a incluir a possibilidade
de expulsar de Território Nacional cidadãos estrangeiros que até àquela data
eram considerados inexpulsáveis61, passando esses indivíduos não nacionais
a ser devolvidos a países com os quais não têm qualquer laço familiar, social,
económico e até desconhecendo a própria língua.
57 MITSILEGAS, Valsamis. The Changing Landscape of the Criminalisation of Migration in Europe. The
Protective Function of European Union Law, p. 87.
58 Este conceito foi usado por Juliet Stumpf numa comunicação proferida no congresso anual da
“Lawand Society Association”, 2015 em Seattle. “Liminal” consiste nas estruturas e processos que
operam como lei mas apenas são quasi lei (são postos em prática através de documentos como
memorandos) (GUIA, Maria João, PEDROSO, João, FERREIRA, António Casimiro. The stratification
of citizenship in Portugal, in the context of the European Union - irregularity and ‘crimmigration’:
roots and dangers).
59 MIPEX – Migrant Integration Policy Index. Para mais informações, vide <http://www.mipex.eu/>.
60 Este instituto é uma escola de negócios classificada como líder na área da gestão. Para mais
informações, consulte <http://www.imd.org>.
61 Artigo 135º da Lei 29/2012, de 9 de Agosto: “Limites à decisão de afastamento coercivo ou de
expulsão. Com exceção dos casos de atentado à segurança nacional ou à ordem pública e das
situações previstas nas alíneas c) e f) do n.º 1 do artigo 134.º, não podem ser afastados ou expulsos
do território nacional os cidadãos estrangeiros que: a) Tenham nascido em território português e
aqui residam habitualmente; b) Tenham a seu cargo filhos menores de nacionalidade portuguesa
ou estrangeira, a residir em Portugal, sobre os quais exerçam efetivamente as responsabilidades
parentais e a quem assegurem o sustento e a educação; c) Se encontrem em Portugal desde idade
inferior a 10 anos e aqui residam habitualmente”.
138 REMHU - Rev. Interdiscip. Mobil. Hum., Brasília, Ano XXIII, n. 45, p. 129-144, jul./dez. 2015
A insustentável resposta da “crimigração” face à irregularidade dos migrantes: uma perspetiva da UE
2.2. A emergência da criminalização da imigração na União Europeia
A imigração irregular constitui-se, assim, como um elemento decisivo
para a modelagem de políticas ‘crimigratórias’. Mais, a realidade da imigração
irregular relacionada com o discurso do crime é apresentada como um problema
de segurança nacional que os Estados soberanos encaram como necessidade de
combater através da regulação e do reforço do controlo interno nas fronteiras,
que podem funcionar como canal facilitador da circulação ou como elemento de
bloqueio à passagem de migrantes62. É neste contexto, que surge a perspetiva da
securitização proposta pela Escola de Copenhaga, em que a existência de opções
políticas impõe uma legitimação das mesmas através de um “ato discursivo”63
que declara a existência de uma ameaça e que justifica a adoção de medidas
extraordinárias de segurança para defender um determinado objeto de referência
(seja ele um Estado, uma nação, uma religião). Independentemente da existência
real dessa ameaça, é necessário que essa ideia seja aceite e reconhecida pelo
público a quem a mensagem se destina64, transformando-se numa ameaça
“existencial”, mais do que num problema normal, o que justifica a construção das
fronteiras de acordo com escolhas políticas em relação àquilo que representa, ou
não, uma ameaça nacional. Esta política de securitização, segundos os autores, cria
condições de segurança no interior, garantindo a proteção em relação ao exterior65.
Uma lacuna identificada nos estudos sobre o fenómeno da ‘crimigração’
por Van der Leun e Van der Woude66 é a predominância do recurso à perspetiva
jurídica, limitação essa que se propõem ultrapassar, na senda de Aas67, redefinindo
a ‘crimigração’ como “o entrelaçar do controlo da criminalidade e do controlo da
imigração” e introduzindo na pesquisa a esfera social. À esfera jurídica definida
por Stumpf (que identifica a convergência da Lei da Imigração e da Lei Penal,
com a aproximação dos respetivos aspetos processuais e aplicação de leis),
que as autoras classificam como “manifestações exteriores e visíveis assumidas
pelo Estado”68 de forma consciente, junta-se um complexo processo social que
contribui para a construção do conceito de criminalidade e de estereótipos que
lhe servem de base. Para as autoras, esta complexidade da análise é essencial
para o desenvolvimento de estudos comparativos e interdisciplinares sobre o
fenómeno, que em si também é dinâmico e transfronteiriço e que se manifesta
de forma diferente em vários países. É, assim, essencial compreender de que
62 MATEUS, Nelson. As fronteiras no seu labirinto: permitir ou bloquear o acesso – As políticas de
securitização como Gatekeepers.
63 BUZAN, Barry et alii. Security: A New Framework For Analysis, p. 26.
64 Ibidem, p. 27.
65 BIERSTEKER, Thomas. The Rebordering of North America? Implications for Conceptualizing
Borders After September 11, p. 153.
66 VAN DER LEUN, VAN DER WOUDE, op. cit.
67 AAS, 2011, p. 332 apud VAN DER LEUN, VAN DER WOUDE, op. cit., p. 106.
68 Ibidem, p. 107.
139
REMHU - Rev. Interdiscip. Mobil. Hum., Brasília, Ano XXIII, n. 45, p. 129-144, jul./dez. 2015
Maria João Guia, João Pedroso
forma conceitos como criminalidade e imigração são enquadrados e introduzidos
na esfera social e política e que tipo de discursos suscitam em ambas, já que são
estas esferas que formam a base sobre a qual a dimensão jurídica é construída,
para funcionar como uma “arma de controlo social”69.
A este propósito, refira-se o caso das polémicas em torno da criminalização
da imigração irregular70 na Itália71 e o debate suscitado na Holanda com vista
à criminalização da imigração irregular, apesar da aplicação da Diretiva do
Retorno72 em curso naqueles países73.
A criminalização do imigrante irregular fere frontalmente os postulados de
direitos humanos por desconsiderar a dignidade da pessoa humana ao criar
uma norma penal que, a um só tempo, viola o princípio da ofensividade ou
lesividade, pela incriminação de atitudes internas que não ultrapassam o
âmbito do autor e que não afetam bens jurídicos (crime sem vítima); e fere o
princípio da presunção de inocência, valendo-se da consideração de crimes
de perigo abstrato, presumindo a culpabilidade do agente74.
Não podemos esquecer que atualmente 1775 dos 28 Estados-membros da
União Europeia já criminalizam o comportamento de atravessar irregularmente
69 ibidem, p. 109-110.
70 As leis italianas sobre imigração sofreram sucessivas alterações, das quais destaco a Lei nº 40 de
06/03/1998 (Lei Turco-Napolitana) sobre imigração e estrangeiros em Itália, alterada pela lei nº
189, de 30/07/2002 (Lei Bossi-Fini) que introduziu medidas contra o tráfico de pessoas, Centros
de Detenção de Migrantes, entre outras medidas e a Lei nº 125, de 25/07/2008 que criminalizou
a irregularidade dos indivíduos em Itália. “O debate que ocorreu nas cortes judiciárias italianas foi
desaguar no Tribunal Constitucional que, pela Decisão nº 22/2007, entendeu ser constitucional o
dispositivo que impunha a pena de prisão de 1 a 4 anos aos estrangeiros que não respeitassem as
ordens de expulsão, permanecendo ilegalmente em solo italiano” (Decreto Legislativo n. 286, de
25 de julho de 1998, in SANTOS, Christian. A criminalização da imigração irregular e os direitos
humanos. Os casos específicos de Brasil e Itália, p. 109). Foi então o Decreto-Legislativo nº 286, de
25/07/1998, no seu artigo 10-A que passou a prever este crime: “Ingresso e soggiorno illegale nel
territorio dello Stato. 1. Salvo che il fatto costituisca più grave reato, lo straniero che fa ingresso ovvero
si trattiene nel territorio dello Stato, in violazione delle disposizioni del presente testo unico nonchè
di quelle di cui all’articolo 1 della legge 28 maggio 2007, n. 68, è punito con l’ammenda da 5.000 a
10.000 euro. Al reato di cui al presente comma non si applica l’articolo 162 del codice penale”.
71 Através da adoção do “Pacto de Segurança”, aprovado em 2009 pela Câmara dos Deputados e
que passou no Senado (157 votos a favor, 124 votos contra e 3 abstenções). Este foi um percurso
trilhado pela Itália há já alguns anos, tendo marcos já referidos a assinalar, como o Decreto Dini e
Decreto Conso, ambos adotados em 1995, a lei Turco-Napolitana e a lei Bossi-Fini, já mencionadas
(GARCIA, Fernanda Di Flora. Direitos humanos x políticas migratórias: os centros de detenção
para imigrantes na Itália), e a recente descriminalização da imigração irregular, em 2014, após um
debate intenso na Câmara dos deputados, em 28 de Fevereiro de 2014, transposta pela revogação
do artº 10º, constante no Decreto Legislativo, nº 40 de 4 de Março de 2014.
72 A Diretiva do Retorno (a já referida Diretiva 2008/115/CE do Parlamento e do Conselho de 16
de Dezembro de 2008) foi acordada em Agosto de 2008 (e finalizada a 24.12.2010), e prevê o
retorno de cidadãos oriundos de países terceiros, fornecendo aos Estados-Membros critérios para
os procedimentos no que diz respeito aos direitos fundamentais do ser humano.
73 GUIA, PEDROSO, FERREIRA, op. cit.
74 SANTOS, op. cit., p. 124.
75 Referimo-nos à Bélgica, à Bulgária, à Croácia, ao Chipre, à Dinamarca, à Estónia, à Finlândia, a
140 REMHU - Rev. Interdiscip. Mobil. Hum., Brasília, Ano XXIII, n. 45, p. 129-144, jul./dez. 2015
A insustentável resposta da “crimigração” face à irregularidade dos migrantes: uma perspetiva da UE
a fronteira com penas de prisão e/ou com multas, enquanto 8 Estados-membros
punem este ato com multas76 (ou com prisão, em certas condições de gravidade).
Apenas Portugal, Espanha e Malta não punem a entrada irregular com pena
de prisão ou com multas, mas o processo de abandono de território é, por lei,
iniciado de imediato77. Já a permanência ilegal em determinado Estado-Membro
é criminalizada com prisão e/ou multa por 10 dos Estados-membros78, e por 1579
com multa, que pode ser transformada em prisão se o indivíduo não puder pagar
(medidas que podem implicar o abandono coercivo do território). Apenas Portugal,
Malta e França não punem a permanência ilegal, apesar de ser dado início a um
processo de retorno do indivíduo, quando este é detetado, ao seu país de origem80.
Tal facto implementou ou reforçou o aparecimento de novos espaços
europeus, onde os indivíduos não nacionais não conseguem aceder ou efetivar os
seus direitos sociais, ficando assim à mercê da crise económica e das decorrências
que uma vida marcada pela vulnerabilidade e exclusão social encetam.
A imagem que se pretende construir é a do imigrante enquanto ‘inimigo’.
Os Estados, preocupados com a agitação do público, tendem a implementar ou
a reforçar medidas progressivamente mais restritivas, dificultando a aceitação,
a fixação e a integração dos imigrantes. A tolerância, tradicional na Europa no
que diz respeito a esse “fluxo de ajudantes e reconstrutores externos”, passou à
intolerância e os direitos daqueles que procuram melhores oportunidades de vida
foram amplamente reduzidos. Dentro deste contexto, alguns comportamentos
de imigrantes, como se referiu, foram e tendem a ser criminalizados, o que, na
prática, acaba por favorecer a mobilidade, na UE, de determinados indivíduos
e dificultar, ou mesmo barrar, a aceitação de outros, potenciando desigualdades
e criando uma cidadania europeia estratificada entre os diversos estratos de
cidadãos e os “sem direitos”.
Conclusão
Da análise do caso norte-americano e europeu da evolução das políticas,
do direito e das práticas, em matéria de imigração, desde os anos noventa, com
a criação de tipos legais de crime e a agravação das penas a serem aplicadas a
estrangeiros – acrescendo ainda a expulsão e a perda de vários direitos adquiridos
França, à Alemanha, à Grécia, à Irlanda, à Letónia, à Lituânia, ao Luxemburgo, à Roménia, à Suécia
e ao Reino Unido.
76 Referimo-nos à Áustria, à República Checa, à Hungria, à Itália, à Holanda (caso seja declarado
“estrangeiro indesejável”), à Polónia, à Eslováquia e à Eslovénia.
77 FRA. Criminalisation of migrants in an irregular situation and of persons engaging with them, p. 4.
78 Referimo-nos à Bélgica, à Croácia, ao Chipre, à Dinamarca, à Estónia, à Alemanha, à Irlanda, ao
Luxemburgo, à Holanda e ao Reino Unido.
79 Referimo-nos à Áustria, à Bulgária, à República Checa, à Finlândia, à Grécia, à Hungria, à Itália, à
Letónia, à Lituânia, à Polónia, à Roménia, à Eslováquia, à Eslovénia, a Espanha e à Suécia.
80 FRA, op. cit., p. 5.
141
REMHU - Rev. Interdiscip. Mobil. Hum., Brasília, Ano XXIII, n. 45, p. 129-144, jul./dez. 2015
Maria João Guia, João Pedroso
–, emerge o novo paradigma da ‘crimigração”, enquanto política pública, que
nasceu da convergência entre a Lei Penal e a Lei da Imigração, sob a influência
da “membership theory”81.
Tais políticas, direito e práticas que ameaçam os “Direitos Humanos” estão
a ser transplantadas para a União Europeia. Contudo, conforme as matizes que
a soberania partilhada entre os Estados-membros na União Europeia permite,
as políticas, as legislações e as práticas “crimigratórias” de gestão da imigração
irregular podem ser de intensidade mais leve em alguns países (como em
Portugal, onde há um enfoque na inclusão e a possibilidade de “regularização
permanente” de imigrantes “ilegais”), ou ser de uma intensidade forte em outros
países da UE (como se pode verificar a partir dos exemplos mencionados dos
Estados-membros que criminalizaram a entrada e permanência de indivíduos em
situação irregular com penas de multa e/ou prisão).
Bibliograa
ALEINIKOFF, Alexander. Theories of Loss of Citizenship. Mich. L. Ver., v. 84, 1986, p.
1471-1490.
ANDERSON, Bridget; RUHS, Martin. Researching Illegality and Labour Migration.
Population, Space and Place, v. 16, 2010, p. 175-179.
BIERSTEKER, Thomas. The Rebordering of North America? Implications for
Conceptualizing Borders After September 11. In ANDREAS, Peter; BIERSTEKER,
Thomas (eds.). The Rebordering of North America. London: Routledge, 2003, p.
153-168.
BROEDERS, Dennis; ENGBERSEN, Godfried. The Fight Against Illegal Migration.
Identification Policies and Immigrants’ Counterstrategies. American Behavioral
Scientist, v. 50, n. 12, 2007, p. 1-18.
BUZAN, Barry; WAEVER, Ole; De WILDE, Jaap. Security: A New Framework For
Analysis. London: Lynne Rienner Publishers, Inc., 1998.
CAEIRO, Pedro. Alguns aspectos do Estatuto de Roma e os reflexos da sua ratificação
na proibição constitucional de extraditar em caso de prisão perpétua. MPM em
Revista, n. 4, 2007, p. 4-13.
CASTLES, Stephen; MILLER, Mark. The Age of Migration: International Population
Movements in the Modern World. London: Macmillan, 1998.
CVAJNER, Martina; SCIORTINO, Giuseppe. A Tale of Networks and Policies:
Prolegomena to an Analysis of Irregular Migration Careers and Their Developmental
Paths. Population, Space and Place, v. 16, n. 3, 2009, p. 213-225.
DEMLEITNER, Nora. Misguided Prevention: The War on Terrorism as a War on Immigrants
Offenders and Immigration Violators. Crim. Law Bulletin, v. 40, n. 6, 2004, p. 550-575.
ENGBERSEN, Godfried. The unanticipated consequences of panopticon Europe.
Residence strategies of illegal immigrants. In GUIRAUDON, Virginie; JOPPKE,
81 STUMPF, op. cit.
142 REMHU - Rev. Interdiscip. Mobil. Hum., Brasília, Ano XXIII, n. 45, p. 129-144, jul./dez. 2015
A insustentável resposta da “crimigração” face à irregularidade dos migrantes: uma perspetiva da UE
Christian (eds.). Controlling a new migration world. London: Routledge, 2001, p.
222-246.
ETIENNE, Jean; BLOESS, Françoise; NORECK, Jean-Pierre; ROUX, Jean-Pierre.
Dicionário de Sociologia. Lisboa: Plátano Edições Técnicas, 1997.
FRA. Criminalisation of migrants in an irregular situation and of persons engaging with
them. European Union Agency for Fundamental Rights, 2014.
GARCIA, Fernanda Di Flora. Direitos humanos x políticas migratórias: os centros de
detenção para imigrantes na Itália. In 36 Encontro Anual da Anpocs, Aguas de
Lindóia, 2012. Anais do 36 Encontro Anual da Anpocs, 2012.
GIL-ROBLES, Alvaro. Report by Mr Alvaro Gil-Robles, Commissioner for Human Rights
on his visit to Portugal, 27-30 Maio 2003 (for the attention of the Committee of
Ministers and the Parliament Assembly). Strasbourg: Office of the Commissioner for
Human Rights, 2003.
GUIA, Maria João. Imigração, ‘Crimigração’ e Crime Violento. Os Reclusos estrangeiros
e as representações sobre imigração e Crime. Tese de Doutoramento apresentada
à Universidade de Coimbra, 2015.
GUIA, Maria João; PEDROSO, João; FERREIRA, António Casimiro (forthcoming). The
stratification of citizenship in Portugal, in the context of the European Union -
irregularity and ‘crimmigration’: roots and dangers. In VAN DER WOUDE, Maarte;
VAN DER LEUN, Joanne; BARKER, Vanessa. A special Issue of Europeanization of
Crimmigration. European Journal of Criminology.
HOEFER, Michael; RYTINA, Nancy; CAMPBELL, Christopher. Estimates of the
Unauthorized Immigrant Population Residing in the United States: January 2006.
US Homeland Security: Office of Immigration Statistics, 2006.
KESSLER, Timothy. A Quebra do Peso Mexicano: Causas, Consequências e
Recuperação. Revista de Economia Política, v. 21, n. 3, 2001, p. 121-145.
KILLIAS, Martin. Immigration and Crime: The European Experience. Improving US and
EU Immigration Systems. Migration Policy Institute, 2011.
KOULISH, Robert. Entering the risk society: A contested terrain for immigration
enforcement. In GUIA, Maria J.; VAN DER WOUDE, Maartje; VAN DER LEUN,
Joanne (eds.). Social Control and Justice: Crimmigration in the Age of fear. Haia:
Eleven International Publishing, 2012, p. 61-86.
KRALER, Albert. Regularisation: A Misguided Option or Part and Parcel of a Comprehensive
Policy Response to Irregular Migration? IMISCOEWorking Paper, 2009.
LABBENS, Jean. Le Quart-Monde, étude sur la condition sous-prolétarienne. Pierrelaye,
1970.
MATEUS, Nelson. As fronteiras no seu labirinto: permitir ou bloquear o acesso – As
políticas de securitização como Gatekeepers. O cabo dos trabalhos: Revista Electrónica
dos Programas de Mestrado e Doutoramento do CES/FEUC/FLUC, v. 4, 2010.
Migration News, volume 10, n. 3, Julho de 2003. Disponível em: <https://
migration.ucdavis.edu/mn/more_entireissue.php?idate=2003_07>. Acesso em:
143
REMHU - Rev. Interdiscip. Mobil. Hum., Brasília, Ano XXIII, n. 45, p. 129-144, jul./dez. 2015
Maria João Guia, João Pedroso
28.01.2015.
MILLER, Teresa. Citizenship & Severity: Recent Immigration Reforms and the New
Penology. Georgetown Immigration Law Journal, v. 17, 2003, p. 611-666.
MITSILEGAS, Valsamis. The Changing Landscape of the Criminalisation of Migration
in Europe. The Protective Function of European Union Law. In GUIA, Maria João;
VAN DER WOUDE, Maartje; VAN DER LEUN, Joanne (eds.) Social Control and
Justice. Crimmigration in an Age of Fear. Haia: ElevenInternational Publishing,
2012, p. 87-114.
PEIXOTO, João. A imigração em Portugal, demografia e dinâmicas. Boletim da
Associação Portuguesa de Demografia, n. 3, 2002, p. 1-3.
PIRES, Rui. Atlas of Migrations. Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.
RCMI. As Migrações num Mundo Interligado: Novas Linhas de Acção. Relatório
da Comissão Mundial sobre as Migrações Internacionais. Fundação Calouste
Gulbenkian, Outubro 2005.
SABBATI, Giulio; POPTCHEV, Eva-Maria. Irregular immigration in the EU: Facts
and Figures. Briefing. 2015. Disponível em: <http://epthinktank.eu/2015/04/27/
irregular-immigration-in-the-eu-facts-and-figures/>.
SANTOS, Christian. A criminalização da imigração irregular e os direitos humanos. Os
casos específicos de Brasil e Itália. Revista da FARN, v. 9. n. 1/2, 2010, p. 101-129.
STUMPF, Juliet. The Crimmigration Crisis: Immigrants, Crime & Sovereign Power.
American University Law Review, v. 56, n. 2, 2006, p. 368-419.
STUMPF, Juliet. States of Confusion: The Rise of State and Local Power over
Immigration”. North Carolina Law Review, v. 86, n. 6, 2008, p. 1557-1618.
VAN DER LEUN, Joanne; VAN DER WOUDE, Maartje. Uma Reflexão Sobre a
Crimigração na Holanda: O Complexo da Segurança Cultural e o Impacto do
Enquadramento. Coimbra: CINETS, 2012.
Abstract
The unsustainable response of “crimmigration” to migrant
irregularity: a perspective of the European Union
The “irregular” legal status of immigrants when entering and continuing
in a certain country is a decision of each State, which may choose to
criminalize and forbid these actions or to integrate and “regularize”
them, allowing access to (some) of the nationals’ rights. In the last few
years, several states of the United State shave chosen a public policy of
“crimmigration”, converging criminal law and immigration law, aiming
at punishing and deporting immigrants “defined” as irregular. In Europe,
“crimmigration” policies, legislations, and practices, transplanted from the
United States, have also been recently implemented. However, countries
like Portugal moderately accept this tendency, still preferring the inclusion
and legislation of “permanent regularization” of immigrants.
Keywords: irregularity, immigrants, crimmigration, criminalization,
inclusion.
144 REMHU - Rev. Interdiscip. Mobil. Hum., Brasília, Ano XXIII, n. 45, p. 129-144, jul./dez. 2015
A insustentável resposta da “crimigração” face à irregularidade dos migrantes: uma perspetiva da UE
Recebido para publicação em 19/06/2015
Aceito para publicação em 22/10/2015
Received for publication in June, 19th, 2015
Accepted for publication in October, 22th, 2015
ISSN impresso 1980-8585
ISSN eletrônico 2237-9843
http://dx.doi.org/10.1590/1980-85852503880004507