Available via license: CC BY-ND 4.0
Content may be subject to copyright.
Para uma aproximação
Língua-Literatura em português
de Angola e Moçambique*
Perpétua Gonçalves**
* Agradeço à Gabriela Antunes, ao Michel Laban e ao João Melo as contribui-
ções a uma versão anterior deste texto.
** Professora da Universidade de Maputo. Moçambique
Uma abordagem linguística da linguagem literária
No pós-independência dos países africanos de língua oficial portuguesa, a
massificação do uso do Português teve como consequência a formação de varie-
dades locais desta língua, que, apesar de apresentarem ainda alguma instabilida-
de, constituem já o património linguístico de comunidades importantes. Assim,
em países como Angola e Moçambique – que partilham entre si o facto de estarem
localizados na zona das línguas bantu – as normas locais desta língua distinguem-
se do padrão europeu por alterações registadas ao nível do sistema fonético-
fonológico, do léxico e também da sintaxe.
Como se inserem os escritores neste processo de variação e mudança
linguística? Que fatia do novo sistema linguístico adoptam no seu discurso literá-
rio? Este é o contexto da comunicação a ser aqui apresentada, na qual procurarei
estabelecer uma ponte entre as variedades do Português de Angola e Moçambique,
e a linguagem literária.
Conforme já tive oportunidade de referir, ao analisar o caso específico de
Moçambique
1
, a situação linguística acima descrita abre aos escritores um leque
muito rico de escolhas linguísticas. Estes podem optar entre escrever numa lín-
gua bantu local - o que raramente acontece - e/ou escrever em Português. Para os
casos de opção pela escrita em Português, existem diferentes possibilidades. No
caso de Moçambique, por exemplo, há escritores que adoptam a norma europeia
1
Cf. GONÇALVES, P. A Situação Linguística em Moçambique – Opções de Escrita. Colóquio-Letras, n. 110-111, p. 88-
93,1989.
via atlântica n. 4 out. 2000
214
na sua escrita, outros que “salpicam” um discurso regido pelo modelo europeu de
vocabulário em línguas locais, e outros ainda que parecem preferir deixar que as
normas do Português produzidas por esta comunidade de locutores sejam parte
do seu discurso literário. Penso que esta caracterização sumária se adequa ao
caso da literatura angolana em Português, onde me parece existe igualmente um
amplo espectro de opções linguísticas, que oscila entre a fidelidade ao padrão
europeu e um progressivo afastamento das suas regras gramaticais.
Na presente comunicação, gostaria de me ocupar do último tipo de escrito-
res, isto é, daqueles que se demarcam claramente da norma europeia, recorrendo
a diferentes tipos de estratégias linguísticas. Por me parecer que representam
formas distintas de apropriação do processo de variação e mudança que atinge o
Português nestes países, escolhi a linguagem do escritor moçambicano Mia Couto
(MC) e do escritor angolano Luandino Vieira (LV) como objecto desta análise
linguística. Ainda que na obra destes dois escritores se encontrem tanto inova-
ções lexicais como sintácticas, o primeiro sobressai pelo uso de diferentes tipos
de processos lexicais, e o segundo distingue-se pela criatividade ao nível da sinta-
xe do seu discurso literário, pelo que, na minha abordagem das suas obras, vou
referir-me mais particularmente a estes aspectos.
Trata-se de um exercício em que procurarei pôr algumas técnicas usadas na
análise formal das línguas naturais ao serviço da linguagem literária. Com este
tipo de abordagem, espero proporcionar um olhar diferente sobre a língua destes
escritores, produzida num contexto sociolinguístico de mudanças “catastróficas”
no sistema gramatical de referência, o padrão europeu. Espero também que esta
proposta de pesquisa não seja interpretada como uma visão reducionista da lin-
guagem literária, mas apenas como mais uma perspectiva de observação – entre
tantas outras de natureza diferente – que pode ajudar a compreender como se
constrói uma obra de arte, no domínio da literatura. À semelhança do que tem
sido feito para os crioulos, no final da análise procurarei estabelecer um continuum
linguístico do Português, em que estejam ordenadas as diferentes variedades/nor-
mas desta língua, começando num extremo do espectro (o Português europeu),
passando por estágios intermediários (as diferentes normas locais, neste caso as
normas de Angola e Moçambique), e culminando nos estilos literários (as varieda-
des individuais dos escritores que não adoptam a norma europeia como mode-
lo)
2
. Tendo em conta que este exercício contrastivo linguagem corrente-lingua-
2
Cf. MUYSKEN & SMITH que, referindo-se à dificuldade em identificar os crioulos como línguas particulares, menci-
onam a existência de um continuum de formas de fala, variando de um extremo do espectro (o “basilecto”) através de
estágios internediários (variedades “mesolectais”) até à língua lexificadora (o “acrolecto”). MUYSKEN, P., & SMITH,
N. The Study of Pidgin and Creole Languages. In ARENDS, J., MUYSKEN, P., & SMITH, N. (Eds.) Pidgins and
Creoles: an Introduction. p. 3-14. Amsterdam: John Benjamins, 1994.
outros ensaios GONÇALVES, Para uma aproximação...
215
gem literária exige algum conhecimento do Português de Angola (PA) e de
Moçambique, e não existindo estudos disponíveis sobre o PA, não levarei muito
longe as minhas observações sobre o contraste de LV-PA, limitando-me a fornecer
algumas pistas que podem ser estimulantes para futuras investigações.
De um modo geral, os linguistas não se ocupam da linguagem literária, consi-
derada um produto individualizado, não representativo da comunidade de locuto-
res de uma língua, e não podendo, por essa razão, ser considerada uma base válida
para o conhecimento da faculdade humana da linguagem, um dos objectivos cen-
trais da linguística moderna. Contudo, é minha opinião que talvez haja algo a ga-
nhar com um contacto, mesmo que experimental, com o discurso literário, sobretu-
do nos casos em que a sua especificidade reside não apenas na sua riqueza ou origi-
nalidade temática, mas também numa ruptura com as normas usadas na lingua-
gem corrente. Com efeito, actualmente, os linguistas reconhecem cada vez mais
que a estabilidade dos estados de língua sincrónicos nem sempre proporciona à
investigação sobre as línguas naturais uma visão clara do seu modo de funciona-
mento, e que são frequentemente as rupturas no equilíbrio dos sistemas linguísticos
que tornam mais salientes as suas propriedades. Anderson
3
, um especialista em
teoria morfológica, considera, por exemplo, que as mudanças das línguas naturais,
em que são alteradas algumas regras gramaticais de um dado sistema linguístico,
podem ser de grande interesse para a investigação, uma vez que “tal como um ani-
mal destacando-se no fundo de uma floresta, os contornos de uma gramática po-
dem ser lançados num relevo súbito quando alguma coisa muda.” É assim que o
estudo das diferentes variedades do Português, brasileira ou africanas, e até da lin-
guagem dos escritores, pode pôr em destaque aspectos da gramática do Português,
que ficam obscurecidos em situações linguísticas estáveis.
O Português de Angola e Moçambique
Como foi referido no início, as variedades do Português de Angola e Moçambique
estão em formação num contexto de contacto com línguas do grupo bantu, e distin-
guem-se do padrão europeu por alterações registadas a nível do seu sistema fonéti-
co-fonológico, do léxico e também da sintaxe. De um modo geral, o facto de o Portu-
guês não ser a língua materna da maior parte dos seus locutores, parece “acelerar” o
processo de mudança desta língua. Contudo as alterações registadas apresentam
ainda grande instabilidade e variabilidade, não sendo partilhadas de forma sistemá-
tica pela totalidade dos locutores destas comunidades linguísticas
4
.
3
ANDERSON, S. A-Morphous Morphology.Cambridge: Cambridge University Press., 1992. p. 337.
4
GONÇALVES, P. A Construção/Abandono de uma Variedade de Português em Moçambique. Comunicação apresentada
no VII Encontro da Associação das Universidades de Língua Portuguesa, 1997 (Rio de Janeiro, 31/3-4/4/97) (não publicado)
via atlântica n. 4 out. 2000
216
As divergências relativamente ao padrão europeu são o resultado natural do
processo de aprendizagem do Português por falantes com línguas maternas bantu,
em contextos em que há pouca ou nenhuma oferta linguística de acordo com a
norma europeia. Isto é, os desvios a esta norma não são produzidos consciente-
mente por uma comunidade de falantes que quer construir a sua identidade
linguística nacional – para além daquela que as diversas línguas bantu facultam –
mas resultam em geral da falta de exposição à norma de referência, que poderia
permitir a convergência com a língua-alvo.
Cabe normalmente aos intelectuais e aos políticos valorizar e recuperar soci-
almente os diferentes processos linguísticos inconscientemente produzidos pelos
membros da comunidade, considerados evidências atraentes do processo de
nativização do Português no pós-independência dos países africanos. Em geral,
há maior abertura aos fenómenos que assinalam a renovação lexical da língua ex-
colonial, do que aos desvios a nível da chamada gramática da língua, que são objecto
de censura escolar e até social. Assim, estimulam-se e divulgam-se neologismos
lexicais, mas condenam-se e classificam-se como erros as faltas de concordância
ou as incorrecções na flexão dos verbos
5
. Note-se que do ponto de vista linguístico
mais restrito, tanto estão excluídos do sistema da língua portuguesa os neologis-
mos como os erros de gramática: só um olhar não linguístico (político?) pode dife-
renciar e classificar como aceitáveis ou não as diferentes evidências sobre a mu-
dança das línguas natutais.
Vivendo neste ambiente linguístico, como reagem escritores como LV ou MC?
Que fidelidades ou infidelidades linguísticas cometem no seu discurso, quer seja
relativamente ao modelo “original”, o Português europeu (PE), quer seja em rela-
ção às normas do Português emergentes nos seus próprios países? Ambos fazem
parte do grupo de escritores que não adoptam integralmente a norma europeia
no seu discurso literário. Tratando-se, nos dois casos, de falantes nativos de Por-
tuguês, que conhecem esta norma, a presença de formas desviantes no seu texto
literário tem de ser tomada como uma plena opção da sua escrita em Português.
Tal não significa, contudo, que os desvios que ocorrem nas suas obras procurem
respeitar as “novas” regras do Português, criadas pelas comunidades de falantes
desta língua em Angola ou Moçambique. Em entrevista conduzida por Michel
Laban
6
, LV, por exemplo, mostra claramente que, embora considerando necessá-
rio aproveitar literariamente o Português corrente de Angola, “um escritor tem a
liberdade de criar uma linguagem que não seja a que os seus personagens utili-
5
Exemplos: Raparigas
bonito bonito
bonito bonito
bonito ou Eu
fazi fazi
fazi fazi
fazi este bolo.
6
LABAN, M. Encontros com Luandino Vieira em Luanda. In Luandino – José Luandino Vieira e a sua Obra. p. 11-82.
Lisboa: Edições 70, 1980. p. 27.
outros ensaios GONÇALVES, Para uma aproximação...
217
zam, uma homóloga desses personagens”. Uma evidência desta descontinuidade
entre o discurso corrente em Português e a linguagem literária é, por exemplo, o
facto de não se encontrarem na obra destes escritores os chamados erros de gra-
mática, tão frequentes em faixas sociais de falantes de Português/L2 menos ins-
truídos, revelando assim uma clara demarcação destes escritores das normas lo-
cais. Em suma, falantes nativos de Português, LV e MC apresentam em comum o
facto de produzirem uma linguagem literária na qual há uma clara distanciação
da norma europeia, e embora esta posição linguística possa ser favorecida pelo
ambiente de variação e mudança linguística que se vive nos dois países, tal não
implica necessariamente uma resposta mimética, em que haja preocupação de
fidelidade a um modelo linguístico, nacional.
A “variedade” do Português de Mia Couto
Conforme referi inicialmente, a análise da linguagem de MC incidirá na área
lexical, por ser aquela em que a obra deste escritor mais se destaca do ponto de
vista linguístico. Note-se, contudo, que, embora menos salientes estilisticamente,
não estão ausentes das suas obras construções sintácticas que parecem, de algu-
ma maneira, reproduzir padrões estruturais observáveis no discurso da comuni-
dade moçambicana de locutores de Português
7
.
Tendo em vista a integração deste escritor num continuum do Português,
começarei por uma apresentação de algumas características do PM ao nível do
léxico. Antes, porém, uma breve introdução aos materiais que integram essa com-
ponente das línguas naturais a que chamamos Léxico.
O léxico das línguas naturais é composto por diferentes tipos de unidades
lexicais, algumas com autonomia sintáctica (as palavras) e outras que só “sobre-
vivem” associadas a outras unidades lexicais (os radicais, os prefixos e os sufixos).
O léxico de uma língua pode renovar-se e alargar quer através dos seus recursos
internos (por neologismos lexicais, isto é, combinando estas unidades lexicais de
diferentes formas, ou por neologismos semânticos, isto é atribuindo novos senti-
dos a unidades pré-existentes
8
), quer recorrendo à importação de unidades lexicais
de outras línguas (os chamados neologismos por empréstimo).
7
Está neste caso o uso dos pronomes pessoais átonos, em frases como: Ele trouxe-
lhelhe
lhelhe
lhe para terra. (= trouxe-a) (TS:118).
Note-se, contudo, que,ainda no que se refere ao uso dos pronomes pessoais, o escritor usa padrões de ordem que não
são nem do PE nem do PM (tanto quanto os dados já recolhidos mostram), colocando-os em posição pré-verbal: Ela
sese
sese
se banhava. Esta é uma evidência da “originalidade” linguística dos escritores, acima referida.
8
Por exemplo, actualmente é frequente a criação de novas palavras na área dos computadores, destinadas a preencher
lacunas lexicais nesta área semântica. Exemplos: computarização (em que há uma combinação “nova” do sufixo ção
com uma base) ou ficheiro (em que é atribuído um “novo” sentido a uma palavra já existente).
via atlântica n. 4 out. 2000
218
Conforme já tive oportunidade de referir
9
, no PM são ainda em número redu-
zido as inovações lexicais por empréstimo, e há também pouca produtividade no
nível das neologias lexicais, em que há combinação de diferentes materiais lexicais.
Os primeiros são em geral introduzidos para nomear aspectos culturais, sociais,
religiosos da realidade moçambicana, e, à excepção de alguns termos que desig-
nam realidades do quotidiano da comunidade, têm uma área de utilização limita-
da. Quanto aos neologismos lexicais, são raros e têm carácter disperso, isto é não
são partilhados em geral pela comunidade de locutores de Português. Por exem-
plo, em recolhas de dados orais e escritos (nomeadamente jornais) do PM, encon-
tram-se palavras como emprestação, perigosidade, ajudamento, falagem, que
derivam de novas associações entre radicais e sufixos existentes no Português. A
ocorrência destes neologismos não significa, contudo, que estas palavras possam
ser consideradas parte do património linguístico da comunidade, uma vez que
têm carácter disperso, continuando a predominar na linguagem corrente o uso
das suas equivalentes standard empréstimo, perigo, ajuda e fala. No discurso cor-
rente, a nível do léxico, são mais frequentes as chamadas neologias semânticas,
em que há alterações do sentido de palavras já existentes no PE. Estão neste caso
palavras como calamidade ou antepassado, em que ou se altera radicalmente o
sentido original das palavras (como em calamidade, que significa “roupa usada”
(e inicialmente destinada a vítimas de calamidades naturais)), ou se recupera o
sentido literal das palavras (como em antepassado, que significa “antes do últi-
mo” (penúltimo)). Em síntese, pode dizer-se que não são típicas da linguagem da
comunidade de locutores do PM as inovações lexicais obtidas a partir de emprés-
timos ou de novas combinações das unidades lexicais do PE, sobressaindo a ten-
dência para conservar o léxico já existente, introduzindo novos traços semânticos
ou recuperando o seu sentido literal.
Que paralelismos podem ser estabelecidos entre estas características do lé-
xico do PM e o linguagem de MC? Num estudo sobre as inovações presentes em
algumas obras deste escritor
10
, Gaspar et al. mostram que o que sobressai, ao
nível do léxico, são os neologismos lexicais
11
. Segundo estas autoras, o processo
mais produtivo em MC é o da “amálgama”, que resulta da combinação aleatória
de pedaços de palavras do PE. Exemplos: animaldades ou solistência, obtidas
respectivamente pelas seguintes associações: ani[mal] + [mal]dade e soli[tária]
9
GONÇALVES, P. Português de Moçambique: uma Variedade em Formação. Maputo: Faculdade de Letras-Livraria
Universitária, 1996. p. 61.
10
Nomeadamente Vozes Anoitecidas (1987), Cada Homem Uma Raça (1990), Cronicando (1991) e Terra Sonâmbula
(1992).
11
Os exemplos da obra de MC a seguir citados são extraídos do artigo de GASPAR, A.; SANTOS, A.; & DIOGO, C..
Inovação Lexical nos Textos de Mia Couto. In Revista Internacional de Língua Portuguesa, n. 12, p. 58-63, 1994.
outros ensaios GONÇALVES, Para uma aproximação...
219
+ [exi]stência. A amálgama é um processo inexistente no PM, não podendo, por
essa razão, considerar-se que MC toma a linguagem corrente como fonte para as
suas inovações linguísticas.
Ainda de acordo com Gaspar et al., na obra de MC são igualmente frequen-
tes as combinações de prefixos e sufixos do Português a novas bases. Vejam-se as
palavras obtidas por prefixação
desdes
desdes
descuidadoso ou
inin
inin
incompletar, ou as palavras de-
rivadas por sufixação açucar
osooso
osooso
oso ou sofrê
nciancia
nciancia
ncia. Os prefixos des- ou in-, e os sufixos
-oso ou -ncia existem e são produtivos em Português, como prova a existência de
palavras como
desdes
desdes
desfazer ou
inin
inin
incompleto, e medr
osooso
osooso
oso ou fragrâ
nciancia
nciancia
ncia. A novidade de
MC consiste na sua associação a novas bases, mesmo em casos em que o Portugu-
ês já dispõe de um termo equivalente, como no caso das palavras cium
osooso
osooso
oso (vs
ciumento) ou sofrê
ncia ncia
ncia ncia
ncia (vs sofrimento).
Contrastando a linguagem de MC com o PM, verifica-se, como foi referido,
que, embora nesta variedade do Português possam encontrar-se associações
lexicais igualmente prescritas pela norma europeia, o seu carácter disperso e pou-
co frequente, não permite considerar que os neologismos presentes na obra de
MC reproduzem termos já em circulação no discurso desta comunidade linguística.
Assim, embora tanto no PM como nos textos de MC a renovação lexical seja obti-
da por rearranjos de material lexical disponível, a linguagem do escritor distin-
gue-se da variedade moçambicana do Português pela produtividade dos proces-
sos lexicais utilizados: ao nível da comunidade, a insegurança linguística que ca-
racteriza os locutores de L2s parece bloquear o uso sistemático destas estratégias
de produção do sentido, ao passo que na obra de MC estas constituem um dos
recursos mais típicos da sua linguagem literária.
A “variedade” do Português de Luandino Vieira
Linguisticamente, a obra de LV é mais difícil de caracterizar do que a de MC,
dado que a sua linguagem exibe uma acumulação de vários processos formais,
lexicais e sintácticos, que podem tornar o seu texto quase incompreensível para
falantes de Português que não pertencem à comunidade angolana
12
. A nível do
léxico, encontram-se diferentes tipos de inovações, que vão desde os emprésti-
mos ao Kimbundu, os mais frequentes, até aos neologismos lexicais. São exemplo
dos primeiros palavras como muadié ou monandengue, e são exemplo dos segun-
dos as derivações aprendizar ou remorsificado, ou ainda as reduplicações logo-
logo ou bocado-bocado. Contudo, como foi referido, é sobre aspectos da estrutura
12
Stern ao referir-se ao “hermetismo” de LV, afirma que a língua de LV “só é válida para a parte ocidental de Angola”.
STERN, I. A Novelística de Luandino Vieira: Descolonização ao nível do Terceiro Registo. In Luandino – José Luandino
Vieira e a sua Obra. p. 189-98. Lisboa: Edições 70, 1980.
via atlântica n. 4 out. 2000
220
sintáctica do seu discurso literário que vou tecer algumas considerações, uma vez
que é a este nível que me parece que a obra de LV se destaca no seio da literatura
escrita em Português.
Não é fácil identificar como se constrói linguisticamente a singularidade da
sintaxe literária de LV, e a ausência de dados sobre o PA torna ainda mais difícil
esta tarefa visto que não se dispõe de uma referência que permita estabelecer
uma fronteira entre as construções produzidas pela comunidade e a criatividade
do escritor. Nesta análise, a fim de cobrir as lacunas de informação sobre a gramá-
tica do PA, vou assumir que, do ponto de vista sintáctico, esta apresenta alguma
semelhança com o PM, uma vez que estas duas variedades do Português são
construídas num contexto de aquisição similar, em que os locutores têm línguas
bantu como L1s. Isto significa que nestes dois países as línguas maternas dos
aprendentes de Português pertencem à mesma família linguística, e partilham,
por conseguinte algumas propriedades gramaticais. Por exemplo, nestas línguas,
os nomes flexionam em classe (e não em género), a morfologia flexional é prefixal
(e não sufixal), a voz passiva é obtida por um processo de sufixação (e não através
de um verbo auxiliar), etc.
De acordo com teorias linguísticas recentes sobre aquisição de L2s
13
, as L1s
maternas constituem um conhecimento linguístico prévio que condiciona o pro-
cesso de aquisição das L2s. Por conseguinte, é esperável que, nestas duas varieda-
des do Português, ocorram desvios gramaticais do mesmo tipo, uma vez que, ex-
cluindo o léxico, que varia de língua para língua, a gramática das L1s dos
aprendentes de Português apresenta propriedades similares. Admito assim que,
no PA, estejam em curso mudanças do mesmo tipo das que se registam no PM,
comó é o caso, por exemplo, da regência dos complementos verbais (ex: chegar
emem
emem
em em vez de chegar
aa
aa
a), ou das regras de colocação dos pronomes pessoais áto-
nos (ex: uso da forma lhe em contextos que requerem a forma o/a), ou da estrutu-
ra das frases subordinadas (ex: flexão do verbo no do modo indicativo em vez do
modo conjuntivo).
Que reflexos destes fenómenos se encontram na obra de LV? Num estudo
preliminar sobre as propriedades sintácticas do seu discurso literário
14
, verifiquei
que se encontram na sua obra desvios que parecem ser partilhados pela comuni-
dade de locutores do PA, como os que foram acima assinalados, relacionados com
a regência verbal, os pronomes pessoais ou as orações subordinadas. A título de
exemplo, no que se refere à regência verbal, encontram-se na obra de LV os verbos
13
GASS, S. & SELINKER, L. Language Transfer in Language Learning. Amsterdam: John Benjamin, 1994 e Lakshmanan,
U. Child Second Language Acquisition of Syntax. Studies in Second Language Acquisition, n. 17, p. 301-29, 1995.
14
Base de dados desta pesquisa: Vidas Novas (1976), Velhas Estórias (1976) e João Vêncio e os seus Amores (1979).
outros ensaios GONÇALVES, Para uma aproximação...
221
encostar
emem
emem
em (em vez de encostar
aa
aa
a), dar
para para
para para
para (em vez de dar
aa
aa
a), que são prova-
velmente usados também pela comunidade angolana de locutores de Português.
Contudo, há outros desvios que, se não são da autoria do escritor, parecem ter,
pelo menos, um índice de frequêcia muito mais elevado do que na linguagem cor-
rente. Está neste caso um dos processos sintácticos mais produtivos nos textos
de LV, que consiste na “adição” de termos que não participam explicitamente na
descodificação semântica do discurso.
Estes termos “adicionais” podem ser de natureza adverbial (como ainda,
embora ou mesmo), ou conjuncional (mais particularmente que), e têm em co-
mum o facto de não serem requeridos pelo contexto sintáctico ou semântico. Tanto
quanto posso avaliar, os termos adverbiais estão esvaziados semanticamente, con-
ferindo um tom coloquial ao discurso (exs: O ajudante tinha
aindaainda
aindaainda
ainda encostado na
parede. (VN:65); Sua cabeça vadiava
embora. embora.
embora. embora.
embora. (VE:54)). Quanto ao morfema que,
verifica-se que este é usado junto de um grupo diversificado de palavras (ex: onde
queque
queque
que, nem
queque
queque
que), entre as quais sobressaem quantificadores como tudo, nada, mui-
tas vezes, alguns, conferindo-lhes uma proeminência sintáctico-semântica nos
contextos em que ocorrem (exs: Nada
que que
que que
que ele conseguia ver. (VN:60); Alguns
que que
que que
que
começaram a ver (VE:39)). Do ponto de vista linguístico, pode dizer-se que esta
gramaticalização de palavras do Português é um fenómeno comum nas línguas
naturais
15
, não sendo por isso de estranhar que ocorra tanto no PA como na vari-
edade individual de LV. Contudo, mantendo o paralelismo com o PM – e não per-
dendo de vista que o Português é uma L2 – seria esperável uma tendência no sen-
tido inverso, isto é, uma tendência para o abandono de termos que, no PE, já se
encontram gramaticalizados, e que, por essa razão, são mais complexos de adqui-
rir por falantes não nativos. A confirmar esta hipótese, no PM verifica-se que há
tendência para o desaparecimento de “falsos” pronomes reflexivos (que ocorrem
com verbos como levantar-
sese
sese
se ou queixar-
sese
sese
se) ou de preposições não interpretáveis
semanticamente (que regem complementos de verbos como abusar
dede
dede
de ou bater
emem
emem
em)
16
.
Na ausência de dados objectivos sobre o PA, fica em aberto se a
gramaticalização de palavras do Português é uma novidade da escrita de LV, ou se
a sua criatividade reside apenas na produtividade deste processo que, embora
presente no PA, não é tão dominante na linguagem corrente. Dadas as lacunas de
informação sobre o PA, parece igualmente prudente não alargar a outras áreas da
língua esta análise das especificidades sintácticas de LV. É possível que alguns
15
Veja-se, por exemplo, em Português o uso de lá, sem o seu sentido locativo, em frases do tipo Leva
lálá
lálá
lá o teu livro.
16
É interessante notar que na obra de LV também se verifica esta tendência, estando omitidos não só os reflexivos (ex:
zangar em vez de zangar-
sese
sese
se) como também a preposição a que liga diferentes verbos auxiliares (começar, continuar,
estar) aos verbos principais.
via atlântica n. 4 out. 2000
222
desvios à norma europeia localizados na sua obra sejam igualmente criação sua, e
não constituam uma reprodução do discurso corrente do PA. Estão neste caso
fenómenos como: (i) a omissão da conjunção que com o verbo parecer (ex: Pare-
cia — era chuva na terra. (VE:87)); (ii) uso do verbo adiantar como verbo auxiliar
(ex: Outra pequena brisa [...]
adianta adianta
adianta adianta
adianta refrescar a cidade. (VE: 62)); (iii) a conver-
são sintáctica de advérbios que são usados como substantivos (ex: com
devagardevagar
devagardevagar
devagar,
com
depressadepressa
depressadepressa
depressa). Só um conhecimento mais objectivo do PA permitiria determinar
se estas propriedades pertencem já a esta variedade do Português, ou se são pro-
duto da criatividade do escritor
17
.
O que parece possível afirmar neste momento é que, à semelhança do que
acontece na obra de MC, embora exista uma continuidade linguística entre o PA e
a “variedade” individual de LV, o Português deste escritor distingue-se, se não
pela criação de novos processos sintácticos, pelo menos por uma produtividade
mais alta de alguns processos já presentes na linguagem corrente.
O continuum do Português
Ao finalizar esta comunicação, vou tentar estabelecer o lugar das variedades
do Português de Angola e Moçambique, assim como de MC e LV num continuum
do Português, tomando como medida de avaliação o grau de intercompreensão
entre as diversas “normas” desta língua.
Como se viu, em Angola e Moçambique estão em formação variedades do
Português que se diferenciam do padrão europeu em diversos níveis, sem contu-
do ser posta em causa a intercompreensão dos falantes destas variedades africa-
nas com falantes do PE. A localização geográfica de Angola e Moçambique na
zona das línguas bantu faz prever que alguns dos fenómenos de mudança do Por-
tuguês, sobretudo os que se referem aos níveis sintáctico e fonético-fonológico,
sejam comuns a estes dois países. Por conseguinte, no continuum do Português, é
esperável que, excluindo o léxico, as variedades “mesolectais” do Português de
Angola e Moçambique se situem em posições idênticas relativamente ao
“acrolecto”, o PE.
Vivendo nestas comunidades, há escritores, como MC ou LV, que parecem ins-
pirar-se neste ambiente de variação e mudança linguística, embora mantendo um
discurso gerido basicamente pela norma europeia. Nas suas variedades individuais
do Português encontram-se assim processos formais criados pela comunidade, e ou-
tros, da sua autoria, específicos da sua linguagem literária. A associação num mesmo
17
O artigo, citado, de Stern (1980) apresenta uma caracterização da língua literária de LV que pode ser útil para uma
caracterização mais profunda do estilo deste escritor.
outros ensaios GONÇALVES, Para uma aproximação...
223
texto destes dois tipos de desvios, nacionais e individuais, coloca a variedade destes
escritores numa posição mais distante do padrão europeu do que as variedades naci-
onais. Este afastamento do modelo “original” é tanto maior quanto maior é a produ-
tividade dos diferentes tipos de desvios que os escritores introduzem nos seus textos.
Assim, por exemplo, comparando o discurso literário de MC e LV, verificou-se que na
obra do primeiro são menos frequentes e diversificados os tipos de desvios do que em
LV. Como foi aqui referido, a obra de MC destaca-se pelas inovações lexicais formadas
com base em material pré-existente no Português, sendo os desvios sintácticos
irrelevantes no seu discurso literário. Além disso, os empréstimos são pouco frequen-
tes e, quando ocorrem, são explicados em notas de rodapé. Quanto a LV, foi aqui
indicado que na sua obra sobressai a acumulação de diferentes tipos de desvios ao
padrão europeu. Entre os desvios lexicais, predomina o uso de empréstimos à(s)
língua(s) local(is), sem qualquer esclarecimento para falantes não nativos da varie-
dade angolana do Português, o que torna o seu texto opaco e difícil de descodificar.
Além disso, o texto de LV está recheado de construções sintácticas igualmente
desviantes, seja em relação à norma europeia ou à própria norma local do PA.
Retomando a ideia de um continuum linguístico do Português em que estes
dois escritores estejam integrados, parece legítimo colocar LV no ponto mais afas-
tado relativamente ao padrão europeu – de quase ruptura com este polo do
continuum – e integrar MC num ponto deste continuum mais próximo das varie-
dades angolana e moçambicana do Português.
Chegamos ao fim deste exercício de ordenamento das diferentes maneiras
de usar os meios que a língua portuguesa põe à disposição dos seus utentes, quer
se trate do cidadão comum na sua interacção verbal com a comunidade, ou dos
escritores, que tomam esta língua como base da sua produção artística. Como
linguista, considero que este tipo de incursões no mundo da linguagem literária
proporciona uma visão mais ampla da faculdade humana da linguagem, revelan-
do as infinitas potencialidades das línguas naturais que não se exibem de forma
tão exuberante na linguagem corrente do cidadão comum. Em última instância
este convívio com a linguagem literária renova o clássico pressuposto da linguística
moderna, segundo o qual todos os seres humanos estão equipados com um siste-
ma finito de conhecimento que os habilita a construir e interpretar um número
infinito de frases. Parece ser privilégio dos escritores pôr em relevo a capacidade
humana de construir um número infinito de frases numa dada língua, com base
no mesmo sistema finito de conhecimento que todos nós adquirimos quando ad-
quirimos uma língua, sobretudo a nossa língua materna
18
.
18
Foram usadas as abeviaturas: L1 – Língua materna; L2 – Língua segunda; LV – Luandino Vieira; MC – Mia Couto; PA
– Português de Angola; PE – Português europeu; PM – Português de Moçambique; TS – Terra Sonâmbula; VE – Velhas
Estórias;.VN – Vidas Novas.