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Discriminação racial e (re)construção nacional
em Moçambique: O Alegre Canto da Perdiz, de
Paulina Chiziane
Racial discrimination and national (re)
construction in Mozambique: O Alegre Canto da
Perdiz, by Paulina Chiziane
doriS WieSer
1*
Resumo: Neste ensaio analiso os efeitos da discriminação racial colonial em Moçambique
e as suas consequências na época pós-independência, em O alegre canto da perdiz (2008),
de Paulina Chiziane. A análise inspira-se nos “espaços semâncos” de Jurij Lotman e nos
“cronotopos” de Mikhail Bakhn. Idencam-se assim um espaço míco, um espaço
histórico (colonial e pós-colonial) e um espaço do futuro imaginado, e quesona-se o
papel destes espaços para à construção de uma idendade nacional.
Palavras-chave: Literatura moçambicana, racismo, idendade nacional, Paulina Chiziane.
Abstract: In this essay, It is analyzed the eects of colonial racial
discriminaon in Mozambique and its consequences in the post-independence era, in O
alegre canto da perdiz (2008) by Paulina Chiziane. The analysis is based on
the “semanc spaces” of Jurij Lotman and the “chronotopes” of Mikhail Bakhn. Thus, It
is idened a mythical space, a historical space (colonial and post-colonial) and a
space of imagined future. Aerwards It is quesoned the role of these spaces for the
construcon of a naonal identy.
Keywords: Mozambican literature, racism, naonal identy, Paulina Chiziane.
* Professora Auxiliar no Departamento de Filologia Românica da Universidade de Göngen e
Pós-doutoranda da Fundação Alexander von Humboldt, no CEsA (ISEG) e na Faculdade de Letras
da Universidade de Lisboa (2014-2016).
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. Introdução
A idendade (seja individual, coleva ou nacional2) mantém, historicamente,
uma relação conituosa com a cor da pele. Hoje em dia estamos acostumados,
por razões de caráter políco-histórico, a dissociar nidamente questões de
idendade e de “raça”.3 É-nos impossível conceber a idendade com base numa
essência genéca, seja ela qual for, devido à profunda convicção construvista
dos nossos tempos. Porém, em Moçambique, as gerações que atualmente se
encontram em plena avidade prossional e políca ainda nasceram na “Provín-
cia ultramarina de Moçambique”.4 Portanto, estes cidadãos passaram por pro-
cessos de socialização especícos na infância e juventude, dependendo da sua
cor da pele. Nos tempos em que a lei disnguia entre brancos, mesços, assimi-
lados e indígenas5, a cor da pele cunhava não só o estatuto social, mas também a
idendade das pessoas de uma maneira violenta. Portanto, é compreensível que
apenas 40 anos após o m do colonialismo português, que no século XX adquiriu
carateríscas do apartheid e estabeleceu uma “barreira biológica de idendade”
(ZAMPARONI, 2006, p. 147), certos ressenmentos racistas não tenham desapa-
recido por completo.
Paulina Chiziane dedicou um romance inteiro ao tema da discriminação racial
colonial e a sua implicação social até aos nossos dias. O Alegre Canto da Per-
diz, publicado em 2008, desempenha uma função importante para a “memória
2 Entenda-se como “idendade nacional” um po parcular de “idendade coleva”.
3 Optamos pelas aspas porque não há nenhuma base cienca que jusque postular a existência
de “raças” humanas. “Raça” é antes uma categoria discursiva que genéca (HALL 2006: 62s.).
4 As “colónias” portuguesas em África foram rebazadas “províncias ultramarinas” em 1951
devida à pressão internacional das nações que favoreciam a descolonização. Para os pormenores
do debate políco veja Castelo (2011: 48-61).
5 Sobre o variável uso destes termos veja Zamparoni (2006). No século XX, Portugal (tal como
a França) estabeleceu uma legislação que visava a assimilação dos colonizados (“indígenas” e
“mesços”) à cultura portuguesa. A Portaria Provincial no 317 de 9 de janeiro de 1917 introduziu
o estatuto do “assimilado aos europeus”. Para adquirir o alvará de assimilado era necessário
cumprir com uma série de requisitos rígidos e diceis de alcançar. Segundo Zamparoni, a Portaria
perseguia o objevo de melhor controlar e excluir os indígenas nas colónias. Na realidade esta
legislação não ampliava os direitos de cidadania, mas limitava-os, ao isolar a elite de negros, a
“pequena burguesia lha da terra” (ZAMPARONI, 2006, p. 150) tanto dos brancos como da massa
dos indígenas comuns. Este espírito, embora os requisitos para a assimilação fossem atenuados
em 1927, foi racado pelo Ato Colonial de 1930 (ZAMPARONI, 2006, p. 162-164).
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cultural”6 de Moçambique, na medida em que explica o presente através do pas-
sado e relembra que o passado colonial não pode ser visto “em branco e negro”
no que diz respeito às diversas culpas.
O enredo do romance, apresentado por um narrador (ou uma narradora que
toma pardo pelas mulheres) omnisciente, desenrola-se na terra dos m’zambezi,
mais precisamente entre o rio Licungo, ao Norte da cidade de Quelimane, e o Rio
dos Bons Sinais (conhecido também como rio Cuácua), na província Zambézia,
região central do país, onde as culturas patrilineares e matrilineares se misturam
e, sobretudo, onde a miscigenação entre negros, brancos, árabes e indianos tem
sido mais intensa. No romance, a Zambézia representa por extensão a nação
moçambicana e até a humanidade inteira. Além do mais, a cidade de Gurué, ao
pé dos montes sagrados de Namuli, desempenha um papel central no desfecho
do enredo.
O romance dispõe de dois eixos temporais constuídos por um tempo histó-
rico linear: o primeiro abrange a época do colonialismo durante o Estado Novo;
o segundo centra-se num curto período da época pós-colonial, em que as diver-
sas personagens se reencontram e enveredam pelo caminho do perdão. A estes
eixos se acrescentam outros dois espaços temporais que se caraterizam por um
tempo cíclico: o tempo dos mitos, contados pela mulher do régulo de Gurué
(uma espécie de griot), e o tempo do futuro imaginado.
A protagonista do eixo do tempo histórico colonial é uma mulher negra, Del-
na, pertencente à etnia dos chuabo, que se carateriza pela simbiose entre a
cultura matrilinear e patrilinear.7 Delna cresce num ambiente impregnado pe-
los processos polícos: seus três irmãos mais velhos foram deportados8 e a mãe
obrigou-a a tornar-se prostuta. Porém, Delna apaixona-se perdidamente por
um homem também negro, José dos Montes, de um grupo cultural considera-
6 Para Jan Assmann a “memória cultural” compreende a dimensão externa da memória
humana, isto é, a soma das memórias armazenadas externamente e, sobretudo, a tradição do seu
signicado. O termo abrange tanto os modos de lembrança como de esquecimento (ASSMANN,
2007, p. 19, 34).
7 Baseio-me no mapa etnográco exposto no Museu Nacional de Etnograa de Nampula.
8 Depois do esclavagismo, o trabalho forçado (chibalo) veio substuir o trabalho do escravo.
Acordos regionais permiam a deportação dos trabalhadores forçados para o Transvaal (África do
Sul), a Rodésia e também para a então colónia portuguesa de São Tomé e Príncipe (ZAMPARONI,
1998, p. 87).
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do inferior, os lomwe9, além de possuir a condição de “condenado“10. Apesar
da críca da sua mãe Serana (“Melhora a tua raça, minha Delna”, CHIZIANE,
2010, p. 96), ela decide casar-se com José e dá à luz uma lha em 1953, Maria
das Dores, e mais tarde um lho (Zezinho). Delna, mulher ambiciosa, exige que
o marido se torne um “assimilado” para melhorar o estatuto social da família.11
Porém, após a assimilação, José vê-se forçado a trabalhar como sipaio12, o que
implica maltratar os trabalhadores negros nas plantações e, numa expedição
militar, matar gente da sua própria “raça”. No entanto, Delna consegue seduzir
um colono português de nome Soares (homem casado e com lhos) e gera dois
lhos mulatos (Jacinta e Luisinho), aos quais dará preferência doravante. Con-
tudo, Soares não consegue abdicar da sua família portuguesa e decide voltar a
Lisboa. Deixa uma generosa herança aos seus lhos mulatos, todavia não deixa
nada à ávida Delna, que depois de ser assaltada e roubada, ca sem quaisquer
meios ou recursos. Começa então um relacionamento com o feiceiro Simba, a
quem mais tarde “vende” a sua lha primogénita Maria das Dores. Simba toma
posse da menina de apenas 13 anos, droga-a, estupra-a e engravida-a. Aos seus
18 anos, Maria das Dores já tem três lhos (Rosinha, Benedito e Fernando) e
consegue fugir da casa em 1974. Delna, no entanto, volta à prostuição. Os
seus dois lhos mulatos e Zezinho também fogem dela.
9 Serana diz sobre ele: “Se ao menos fosse um Chuabo, que é um clã superior. Pelos vistos é um
lomwe, um escravo qualquer, sem classe nem berço” (CHIZIANE, 2010, p. 107).
10 Ao lado do chibalo, um método de recrutar trabalhadores gratuitos foi o aprisionamento de
indígenas “por bebedeira, desordem, desobediência e vagabundagem” (ZAMPARONI 1998: 90).
A parr de 1916 estas infrações já não eram multadas senão converdas em pena de trabalho
correcional (ZAMPARONI, 1998, p. 87-93). No romance realça-se a maneira arbitrária e volúvel
das autoridades, posto que José dos Montes é apanhado sem ter comedo crime nenhum: “O seu
percurso é igual ao de todos os condenados. Foi caçado e acorrentado como um criminoso, sem
saber o mal zera [sic]” (CHIZIANE, 2010, p. 73).
11 A mulher e os lhos menores de dezoito anos passavam automacamente à condição de
assimilado do homem (ZAMPARONI, 2006, p. 149). Segundo Zamparoni os assimilados, “ao menos
em tese, poderiam gozar dos mesmos direitos civis e administravos dos colonos europeus como,
por exemplo, receberem salários com base-ouro, […] ou ter tratamento igualitário no acesso aos
cargos e funções públicas que, entretanto, nunca passou de ilusão” (ZAMPARONI, 2006, p. 165.).
12 Os sipaios eram um po de polícia negra, a serviço dos postos administravos. Entre as suas
tarefas contava ajudar os régulos a recrutar homens para o chibalo e para as forças militares
e de cobrar o imposto de palhota. Zamparoni considera-os “agentes diretos do aparelho de
Estado, atuando como correias de transmissão dos novos valores impostos pelo dominador e
desempenhando avo papel na opressão de sua própria gente” (1998, p. 128).
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A narração começa e termina com o segundo eixo temporal (o tempo his-
tórico pós-colonial), situando-se depois da guerra civil que constui um hiato
na biograa das personagens. A protagonista agora é Maria das Dores que está
à procura dos seus lhos e erra nua e aparentemente louca pelas ruas de Gu-
rué. No desfecho que apresenta as carateríscas de uma anagnórise, todas as
pessoas se reúnem, iniciam um diálogo de reconciliação e imaginam um futuro
melhor.
2. Análise: O Alegre Canto da Perdiz
Se focalizamos, em O Alegre Canto da Perdiz,13 o espaço como espaço semân-
co (LOTMAN, 41993 [1972])14 e cronotópico (BAKHTIN, 1981)15, podemos cons-
tatar que se constui por, pelo menos, três camadas: 1) um espaço de tempo
míco, 2) um espaço de tempo histórico (subdividido em tempo colonial e pós-
-colonial) e 3) um espaço do tempo futuro imaginado.
2.1 O espaço míco
O espaço míco baseia-se numa série de mitos fundacionais do povo zambe-
ziano. Para Assmann, um mito é uma estória contada com a nalidade de con-
13 Sobre este romance já foram publicados vários estudos. Questões de gênero são analisadas p.
ex. por Miranda (2010), Teixeira (2010), Nascimento/Botelho (2013) e Braga (2013); a assimilação,
mesçagem e a repressão colonial são centro de interesse de Costa (2009), La Guardia/Goncalves
(2010) e Khan (2013).
14 Lotman usa a bivalência inerente à nossa linguagem para postular fronteiras classicatórias e
espacialmente metaforizadas que dividem o espaço semânco do mundo ccional em diferentes
subespaços que formam a “estrutura primária” do texto. A travessia de uma personagem de
um subespaço a outro constui um “acontecimento”. Todos os “acontecimentos” em conjunto
produzem uma “estrutura secundária” que se sobrepõe à “estrutura primária” e entra em conito
com ela: cria pontos de resistência contra o sistema binário discursivo restrivo (LOTMAN, 1993,
p. 311-340).
15 Para Bakhn, as carateríscas do tempo em textos literários só se manifestam no espaço, e vice-
versa, o espaço só aufere dimensão e sendo através do tempo (BAKHTIN, 1981, p. 84). Parndo
da invesgação dos mecanismos da memória cultural, Assmann chega a um diagnósco muito
parecido quando arma que a memória precisa de lugares e tende a expressar-se em espaços
(ASSMANN, 2007, p. 39).
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ferir orientação em relação ao indivíduo e ao mundo, é uma verdade de ordem
superior que reivindica constuir normas e possui força formava (ASSMANN,
2007, p. 76). Além disso, os mitos estabelecem uma referência ao passado para
iluminar a parr dali o presente e o futuro (ASSMANN, 2007, p. 78). O tempo
míco carateriza-se por estar situado num passado absoluto, desconectado dos
eventos históricos. Além disso, é cíclico e sempre mantém a mesma distância
do presente em progresso. O espaço míco, no caso do romance, é congruente
com o espaço geográco real, a Zambézia, a região dos sagrados Montes Namuli,
considerados “o berço da humanidade inteira” (CHIZIANE, 2010, p. 137).16
Com ajuda dos mitos, a mulher do régulo, que desempenha a função de por-
tadora especializada da memória cultural, conforta os habitantes da vila que
recorrem a ela quando Maria das Dores aparece nua e supostamente louca to-
mando banho no rio – espaço desnado aos homens. A transgressão de Maria
provoca uma interpretação do subespaço histórico a parr da exegese dos mitos
angos. É signicavo que o primeiro dos mitos referidos no romance parta de
uma sociedade em que os dois sexos (ou gêneros) não convivem num espaço co-
mum, mas em dois subespaços separados, e em que, ademais, as mulheres são
felizes e exercem a sua supremacia sobre os homens. A felicidade das mulheres,
porém, termina quando são seduzidas sexualmente pelos homens que, desta
feita, conseguem usurpar o poder (CHIZIANE, 2010, p. 21s.). Tanto na Génesis bí-
blica como nestes mitos africanos, o início da desgraça da humanidade reside na
sedução sexual e, por extensão, na promessa falsa de um amor feliz. Mas, nestes
mitos, os papéis dos sexos são inverdos em relação a Adão e Eva. Quem seduz
aqui é o homem e quem sucumbe e perde a felicidade é a mulher. Outro mito
conta que Deus era uma mulher muito desejada pelos homens da terra. Mas
quando a Deusa aceita ter relações sexuais descobre que “engravidou de apenas
um” e que “anal não nha poderes para parir o universo inteiro” (CHIZIANE,
2010, p. 227), pelo que os homens a derrubam e reprimem todas as mulheres
da terra. Um terceiro mito conta a vingança das mulheres que matam todos os
homens, retomam o poder, mas não conseguindo resisr à beleza de um jovem,
16 La Guardia e Gonçalves (2010, p. 219) oferecem uma leitura metonímica dos Montes Namuli
(representação do falo) e da Zambézia (representação da feminilidade)
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matam a rainha e fazem dele o rei (CHIZIANE, 2010, p. 269).17
Estes mitos, oriundos da mistura entre culturas matrilineares e patrilineares,
fundamentam a idendade zambeziana (e, por extensão metonímica, moçam-
bicana ou até africana), e interpretam o mundo como uma “guerra dos sexos”
(CHIZIANE, 2010, p. 310) em que os papéis de dominação potencialmente se
alternam eternamente. A mulher do régulo, poder interpretavo desta pequena
comunidade, vê na aparição de Maria das Dores um sinal de esperança para as
mulheres: “Uma mulher nua do lado dos homens? Ó gente, ela veio de um reino
ango para resgatar o nosso poder usurpado” (CHIZIANE, 2010, p. 22). O sistema
patriarcal, predominante na grande maioria das culturas do planeta, implantado
também pela colonização portuguesa, não é portanto encarado como um siste-
ma imutável, mas como um estado potencialmente transitório.
Assmann disngue entre mitos que transcorrem no passado absoluto e mitos
que se situam no passado histórico. Os primeiros realizam a semanzação do
cosmos, os segundos, da história. Os mitos situados no passado absoluto são
carateríscos das chamadas sociedades “frias” (sociedades tradicionais que as-
piram ao equilíbrio e à connuidade) e aqueles situados no passado histórico
encontram-se geralmente em sociedades “quentes” (sociedades que aspiram a
desenvolver-se e progredir) (ASSMANN, 2007, p. 68-78). No romance de Paulina
Chiziane encontramos também estes dois pos. A mulher do régulo mica a
história ao resumir o percurso do povo moçambicano, mencionando migrações,
guerras e a miscigenação violenta, tanto antes como durante a colonização, de-
sembocando no tempo presente das personagens: “As mulheres violadas cho-
ravam as dores do infortúnio com sementes no ventre, e deram à luz uma nova
nação. Os invasores destruíram os nossos templos, nossos deuses, nossa língua.
Mas com eles construímos uma nova língua, uma nova raça. Essa raça somos
nós” (CHIZIANE, 2010, p. 23). Deste modo, as guerras pré-coloniais (entre grupos
culturais disntos) e a colonização são interpretadas como a repeção dos mitos
angos na medida em que são encaradas como uma vitória dos homens sobre
as mulheres.
17 Este mito pode também explicar a poligamia. Além dos mencionados o romance contém outros
dois mitos (veja-se CHIZIANE, 2010, p. 279s. e p. 310s.). Os mitos são dominados essencialmente
pela narração da perda do poder das mulheres, tendo pouco espaço as tentavas da recuperação
do mesmo, mas isto não invalida a esperança da recuperação cíclica.
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O relato não deixa dúvidas quanto à função míca (e tradicional) do amor que
é a procriação e, portanto, a connuidade da comunidade. A mulher do régulo
conta, em tom micante, a história da colonização em que a Zambézia se trans-
forma alegoricamente em mulher e se torna víma dos colonizadores-homens
(os “marinheiros”):18
De todas as sereias a Zambézia era a mais bela. Os marinheiros invadiram-
na e a amaram-na amara-a [sic] furiosamente, como só se invade a
mulher amada. A Zambézia bela, encantada, gritava em orgasmo pleno:
vem, marinheiro, ama-me, eu te darei um lho. Eu e tu, sempre juntos,
criando uma nova raça. Em todo o lado deixaremos marcas do nosso amor.
Deixaremos um mulato em cada grão de areia, para celebrarmos a vossa
passagem por este mundo! (CHIZIANE, 2010, p. 67s.).
Tanto nos mitos angos como nos mitos novos, a usurpação do poder das mu-
lheres pelos homens, não se representa unicamente como uma violação, mas
também como um desejo mútuo. Desta maneira, o poder interpretavo tradi-
cional (a mulher do régulo) visa a reconciliação entre os sexos e também entre as
“raças”. Porém, no tempo míco absoluto a questão racial ainda não aparece: a
comunidade míca é homogénea: “Na primeira geração éramos da cor da terra:
todos negros” (CHIZIANE, 2010, p. 54). Todavia, no tempo histórico micado a
questão racial já aparece como um elemento novo, que é harmonizado e incor-
porado na comunidade através da micação da “nova raça” mesça.
Em conclusão, o espaço míco de O Alegre Canto da Perdiz, na sua qualidade
de espaço semânco e cronotópico, se carateriza basicamente por um tempo
cíclico (que vai devorando gradualmente o tempo histórico) e uma subdivisão
num espaço feminino e masculino. A relação entre os subespaços é conituosa,
mas a separação do espaço feminino e masculino mantém-se intacta, mesmo
que se subverta a relação de dominação feminina inicial. Portanto, a “guerra dos
sexos” constui a estrutura primária do texto, apresentada como condição natu-
ral e divina e interpretada como motor da procriação e garana da persistência
da comunidade.
18 Tanto La Guardia e Gonçalves (2010, p. 219) como Miranda (2011, p. 9) chamam a atenção
sobre esta relação metonímica mulher-Zambézia-África víma de homem-colonizador-Europa.
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2.2 O espaço histórico colonial e pós-colonial
O passado histórico é relavo. A sua distância do presente em curso alonga-se
gradualmente, ao contrário do que acontece com o passado absoluto dos mitos.
O espaço histórico do romance abrange os mencionados dois eixos temporais da
narração: a época colonial recente e um curto momento da época pós-colonial.
Ao contrário dos mitos que são domínio da memória cultural, o tempo histórico
recente faz parte da memória comunicava que abrange as vivências das três ou
quatro gerações vivas (ASSMANN, 2007, p. 48-56). Este passado recente apre-
senta um início temporal concreto na memória:
Mas tudo começou no dia em que o pai negro paru para não mais voltar. Tudo
começou quando o pai branco amou a sua mãe. Tudo começou quando a sua mãe
vendeu a sua virgindade para melhorar o negócio de pão. Tudo começou com
relação que envolvia sexo e amargura (CHIZIANE, 2010, p. 28).
Estes momentos incisivos na biograa de Maria das Dores, que traz a dor no
seu nome, marcam o início do sofrimento individual e, por extensão metoní-
mica, colevo, causado pelo que chamaremos de “guerra das raças”. Esta nova
“guerra” não só constui um conito entre brancos e negros (portugueses e
africanos), mas também potencializa a “guerra dos sexos” subjacente. Enquan-
to a hierarquia entre os subespaços feminino e masculino é variável (devido à
mistura de culturas matrilineares e patrilineares e a conceção do tempo cíclico),
a hierarquia entre o subespaço dos negros e dos brancos é rígida e conhece as
seguintes escalas: negros comuns (“indígenas”), negros assimilados, mesços e
brancos.
A problemáca racial é-nos apresentada a parr da perspeva dos negros.
Sobretudo Delna, personagem muito ambiciosa, transforma ambas as “guer-
ras” num assunto pessoal. O objevo primordial dela é a ascensão social (“terei
a grandeza das sinhás e das donas, apesar de preta!”, CHIZIANE, 2010, p. 81) e
a anulação da sua condição de negra (“Amava os brancos. Ela queria ser bran-
ca”, CHIZIANE, 2010, p. 31). Na linha de Frantz Fanon em Peau noire, masques
blancs (1952), La Guardia e Gonçalves (2010, p. 222s.) armam que Delna, na
sua condição de sujeito colonizado, desenvolve um comportamento neuróco e
constrói uma imagem inferiorizada de si mesma e da sua própria “raça”. Para tal,
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ela instrumentaliza e reica os homens e os seus próprios lhos. Como negra,
encontra-se na escala social mais desfavorecida, porém é membro de uma cul-
tura em que as mulheres desempenham papéis mais avos e têm mais direitos
do que nas culturas do sul do país.19
Neste conito socio-racial, o amor e as suas diferentes leituras culturais ob-
têm novamente um papel importante. Delna, jovem prostuta, apaixona-se
perdidamente por José dos Montes, que lhe parece indigno de ser o seu mari-
do, não só por ser preto, mas também, pela sua condição de “condenado”. Não
obstante, “apenas para consumir a paixão” (CHIZIANE, 2010, p. 102), ela decide
casar com José: “Então casemos, assim o amor acaba” (CHIZIANE, 2010, p. 92).
O amor não constui para ela um valor, mas um estorvo no caminho à ascensão
socio-racial. Contudo, o amor míco (paixão-procriação) não perdeu seu vigor,
Delna não consegue negar-se a vivê-lo. Mas a mãe de Delna, Serana, tenta
opor-se ao casamento, vendo no amor unicamente uma fonte do sofrimento:
“Diz-me o que é o amor, para a mulher violada a caminho da fonte por um sol-
dado, um marinheiro ou um condenado? As histórias de paixão, são para quem
pode sonhar” (CHIZIANE, 2010, p. 101). Para ela, o amor míco transformou-se
no espaço histórico em eterno sofrimento feminino. E um eventual amor-paixão
românco de corte europeu nesta África colonial parece ser um privilégio só dos
brancos. Segundo Serana, é preciso apagá-lo para atenuar a dor e o sofrimento.
Enquanto Serana é apresentada como víma da colonização, Delna torna-
-se agente ava e José dos Montes seu cúmplice involuntário. Depois do casa-
mento ela pede-lhe para ele se tornar “assimilado”, exigência que José tenta
declinar, consciente do papel ambíguo destes (“Os assimilados são assassinos,
Delna”, CHIZIANE, 2010, p. 122), mas que acaba aceitando por amor, este amor-
-paixão que mais uma vez é interpretado como fonte de dor. Delna considera
a assimilação o único meio para a ascensão social: “Colonizar é fechar todas
as portas e deixar apenas uma. A assimilação era a [sic] único caminho para a
sobrevivência” (CHIZIANE, 2010, p. 123). Os trâmites legais da assimilação são
19 Na seguinte citação do romance a voz do narrador, ou melhor, da narradora, apregoa as
vantagens do matriarcado para as mulheres: “A alegria e a liberdade são lhas do matriarcado,
onde se obedecem às leis da natureza, porque só a mulher sabe o verdadeiro pai dos lhos que
tem. Os homens são simples reprodutores, seres menores. Por isso eles devem pagar por tudo.
Pelo lazer, pelo prazer que é concedido pelas mulheres […]. A violência é produto do patriarcado,
porque os homens roubaram o poder às mulheres” (CHIZIANE, 2010, p. 280).
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retratados pela voz da narradora (do narrador) com violência e azedume, tal
como comprovam os vocábulos sumamente negavos:
Vamos, jura por tudo, que não dirás mais uma palavra nessa língua bárbara. Jura,
renuncia, mata tudo, para nascer outra vez. Mata a tua língua, a tua tribo, a tua
crença. Vamos, queima os teus amuletos, os velhos altares e os velhos espíritos
pagãos (CHIZIANE, 2010, p. 123).
O espaço histórico é, para os negros, um espaço de sofrimento e de violên-
cia não só sica, mas também social uma vez que lhes é negado um espaço
de representação simbólica e a autoarmação de uma idendade própria mi-
nimamente digna. José, que tenta escapar desta esgmazação, não consegue
adotar a nova idendade. O assimilado dá-se conta de que acaba vivendo num
espaço muito precário e instável entre as duas “raças”, em palavras de Sheila
Khan (2013, p. 208), “um lugar sem enunciação, sem história, sem narração”,
razão pela qual a parr deste momento a vida de José dos Montes entrará em
declínio. Torna-se sipaio e, portanto, traidor, torturador e assassino de homens
da sua própria “raça”. A assimilação revela-se como “ferramenta de exploração,
de submissão e de desapropriação territorial, social e ontológica” (KHAN, 2013,
p. 208), e a unidade inicial do povo negro, unidade míca, quebra-se:
No princípio éramos apenas um. Um povo. Uma família, um exército de resistência.
De repente cámos diferentes. Eles lá e eu do lado de cá. Fizeram-me crer que do
lado de lá estava a tristeza e eu creio. Fizeram-me crer que do lado de cá está a
nobreza e eu creio (CHIZIANE, 2010, p. 135).
É neste espaço intermédio que os assimilados, seduzidos pelas promessas
do discurso hegemônico racista, se tornam culpados não só da morte dos seus
iguais, mas também do êxito da colonização em geral (“Sem a cumplicidade dos
assimilados e seus sipaios, a terra jamais seria colonizada”, CHIZIANE, 2010, p.
139) e mais ainda da destruição da sua unidade míca por se terem transfor-
mado no “Outro”. No entanto, Delna connua lutando impiedosamente pela
ascensão social e dá à luz uma criança mulata, lha do colono português Soares
(“O meu estatuto é maior a parr de agora! Mãe de mulata. Concubina de um
branco”, CHIZIANE, 2010, p. 193). Delna transforma-se num monstro que se
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dedica a destruir a felicidade tanto dos negros como dos brancos, numa luta
aparentemente egoísta.
Porém, perde tudo. A sua guerra parcular contra o sistema colonial revela-se
infrufera: “Delna, a rainha! Que desaou brancos, desaou o sistema, entrou
na guerra, ganhou e perdeu […]” (CHIZIANE, 2010, p. 277). Consciente de que
o seu comportamento foi causa de muito sofrimento, Delna coloca a questão
da culpa. Curiosamente acusa todos os seus próximos, seus pais, seus homens
e inclusivamente a si mesma e, portanto, incrimina indivíduos antes do sistema
subjacente:
Por culpa da minha mãe que me fez preta e me educou a aceitar a rania como
desno de pobres e a olhar com desprezo a minha própria raça. Por culpa do Simba,
meu amante e teu marido, que me alimentou de feiços e fantasias destruvas.
Por culpa da natureza que me deu beleza sobre todas as mulheres. Por culpa do
José, pobre e preto que me alimentava de farinha e peixe seco, enquanto eu,
Delna, queria bacalhau e azeitonas, A culpa é do Soares, que me elevou aos céus
e me largou no ar. A culpa foi minha. Por ter desejado ser o que jamais poderia ser.
A culpa é do mundo, que me ensinou a odiar (CHIZIANE, 2010, p. 47).
Só na úlma frase da citação podemos deduzir que Delna chega a entender
vagamente que a culpa é do regime políco injusto e da sua ideologia racista.
Ao lutar com as próprias armas do sistema para alcançar uma melhor posição
dentro do sistema (e não fora), ela ca durante muito tempo impossibilitada
de discernir os contornos do verdadeiro culpado. A “guerra das raças”, se bem
que constui um processo irreversível na medida em que produz classes sociais
e raciais intermédias (os assimilados e os mulatos), não leva ainda à dissolução
das linhas divisórias racial-sociais. Inclusive no segundo eixo temporal, a época
pós-colonial, connua reinando uma mentalidade colonial:
Trinta anos de independência e as coisas voltam para trás. Assiste ao regressar
às raízes. Os lhos dos assimilados ressurgem violentos e ostentam ao mundo o
orgulho da sua casta. O colonialismo já não é estrangeiro, tornou-se negro, mudou
de sexo e tornou-se mulher. Vive no útero das mulheres, nas trompas das mulheres
e o sexo delas se transformou em ratoeira para homem branco (CHIZIANE, 2010,
p. 345).
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Nesta reexão atribuída a José dos Montes (num discurso interior livre), per-
dedor na “guerra dos géneros” e das “raças”, a lógica da estrutura primária, i.
e., a hierarquia social determinada pelas “raças”, transformou-se, mas só a nível
epidérmico. Na época pós-colonial a hierarquia social profunda permanece em
vigor, mas muda de cor. Os negros comuns connuam sendo os mais desfavore-
cidos, os escalões mais elevados são ocupados pelos assimilados e mulatos, por
aquelas classes que na época colonial estavam mais próximas do poder branco.
A “guerra das raças” transforma-se denivamente em “guerra social”.
2.3 O espaço do futuro imaginado
Não é por acaso que as personagens se reencontram no nal em Gurué, ci-
dade ao pé dos Montes Namuli, origem cosmogónica: “O céu azul foi chocado
nos Montes Namuli, num ovo de perdiz. Nasceu com asas de pássaros, voou e
colonizou a terra inteira […]. É aqui o princípio do mundo. O m do mundo. To-
das as raças nasceram aqui” (CHIZIANE, 2010, p. 338s.). O mito que dá tulo ao
romance conta a criação do mundo antes de qualquer conito humano. É a este
lugar que as personagens regressam simbolicamente: o lugar do (re)começo.
O espaço do futuro imaginado, do recomeço, testemunha o desejo do povo
moçambicano, que vivenciou a guerra colonial (1964-1974) e a guerra civil
(1977-1992), de viver em paz. As personagens imaginam um futuro harmonioso
em que as três “guerras” mencionadas na análise, a dos sexos, das “raças” e a
social, acabam por se transformar numa relação de amor. No espaço histórico
colonial o amor era interpretado como um estorvo na vida dos negros, fonte de
sofrimento, e privilégio dos brancos. A visão do futuro, porém, parte da arma-
ção da universalidade do amor: “Não vale a pena tanta guerra. Nas coisas do
amor, todas as raças são iguais” (CHIZIANE, 2010, p. 55), e reinterpreta a “guerra
das raças” como uma “guerra dos sexos”:
Os brancos estavam aqui, ao lado dos pretos. Amando-se e odiando-se como
marido e mulher dentro de uma casa. Mas a zanga e divórcio, sucumbiram ao
milagre do tempo: O ódio de ontem transforma-se num novo amor e a saudade na
emergência de uma nova união (CHIZIANE, 2010, p. 59s.).
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A relação entre colonizador e colonizado é comparada a um casamento em
que a paixão e o amor se transformam, num movimento cíclico, em ódio, vio-
lência e levam depois à reconciliação. Portanto, aqui reaparece a regra de alter-
nância míca.
Mas não só o amor míco e tradicional, a paixão-procriação, irmana as “ra-
ças”, também a violência acaba criando uma união identária desde que cons-
tui uma convivência extremamente intensa que, na perspeva de uma tradição
africana, apresenta uma dimensão espiritual:
O assassino encarna o espírito da sua víma. O preto que matou o branco, parrá
de joelhos para a terra do branco. Para pagar a dívida de sangue na árvore dos
antepassados do morto. Os brancos que mataram voltarão. Para se ajoelharem e
pedir o perdão aos nossos antepassados. E serão recebidos nas nossas palhotas
como irmãos. O sangue derramado irmana, faz um nó e nem a morte pode separar
(CHIZIANE, 2010, p. 61).
Segundo esta cosmovisão africana, cria-se um laço sanguíneo tanto na morte
violenta como na procriação da vida. Amigo e inimigo irmanam-se numa união
espiritual, contra si mesmos.
Além disto, as personagens anelam ainda a re-harmonização racial, que já
foi tema dos novos mitos situados no tempo histórico. Como no início, em que
“todos éramos negros”, agora a “nova raça” converte-se em condição inalienável
para um futuro harmonioso: “É preciso que haja mais guerras até que os pre-
tos e brancos se misturem apenas numa só raça. E numa só nação” (CHIZIANE,
2010, p. 138). Aqui surge a visão utópica de uma “raça” mesça homogénea
que reencaminharia os moçambicanos às origens mícas da Zambézia. Nesta
utopia já não haveria racismo, nem “guerra social”, porque outra vez todos se-
riam iguais. O único conito que prosseguiria seria a eterna “guerra dos sexos”.20
Por conseguinte, o tempo deste espaço semânco é um futuro absoluto, que se
mantém sempre na mesma distância inalcançável do presente (igual ao passado
20 Para La Guardia e Gonçalves “Delna conclui que a mesçagem tão desejada não deve
residir na homogeneidade ou na substuição de uma raça por outra, mas no reconhecimento e
na valorização da diversidade” (2010, p. 223). Contrariamente ao que as autoras armam, não
acreditamos que Delna chegue a uma verdadeira “valorização da diversidade”, mas apenas a
uma utópica proclamação de um novo tempo míco harmonioso.
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absoluto).
O espaço do futuro visa o regresso ao tempo míco. Desta forma, o espa-
ço histórico aparece como um hiato doloroso que será ultrapassado. O novo
mito alicerça o futuro e cria uma idendade nacional que harmoniza todos os
elementos que estavam em luta. Portanto, as personagens não constroem uma
idendade moderna, capaz de entender e aceitar diferenças internas, mas uma
apologia da miscigenação e uma idendade homogénea pica de sociedades
tradicionais.
3. Conclusão
A sociedade retratada no romance de Paulina Chiziane apresenta caraterís-
cas profundamente tradicionais e dispõe de mecanismos próprios para lidar
com conitos. As culpas dos conitos violentos são distribuídos por partes iguais,
num vai e vem alternado: logo vencem os homens, depois as mulheres, às vezes
os brancos, às vezes os negros. Paulina Chiziane constrói uma conceção da histó-
ria uida, em que a alternação parece ser a eterna regra. E é, justamente, esta al-
ternação a culpa distribuída por igual, que possibilita o perdão e a reconciliação.
Desta maneira, a disnção entre vímas e culpados esvazia-se de sendo, e até
a personagem mais cruel do romance, Delna, vai sendo desculpada pela sua
primeira víma, José dos Montes: “A culpa não foi nada tua, Delna. Fomos um
homem e uma mulher na construção do mundo” (CHIZIANE, 2010, p. 343). Esta
sociedade tradicional conhece mecanismos de reconciliação ínmos, abrangen-
tes e, sobretudo, muito diferentes das sociedades modernas que anelam uma
reparação pública e ocial efetuada pelo Estado, e não por um poder interpre-
tavo no microcosmos das aldeias como o griot. Ao passo que os empenhos de
homogeneização da Frelimo21 visavam a transformação rápida do presente com
21 Desde a sua fundação, a Frelimo esforçou-se por homogeneizar o “povo” e construir uma
unidade nacional. Durante a presidência de Samora Machel, o “pai da nação” (1975-1986), a
imagem do inimigo comum, isto é, os vesgios do colonialismo português, connuavam a servir
de elemento unicador, ao lado da introdução do ideal do Homem Novo socialista que rejeitava o
racismo, o tribalismo e o regionalismo. A Frelimo perseguia uma nova políca assimilacionista, já
não à imagem da cultura portuguesa, mas à do Homem Novo, tentando apagar assim a diversidade
cultural e das forças sociais avas no mundo rural (Rocha, 2013, p. 131-134). Esta linha manteve-
se basicamente até ao início dos anos 1990.
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vistas ao futuro imediato, a imaginada homogeneização socio-racial do romance
visa um futuro absoluto, inalcançável, utópico e, portanto, míco. A tentava da
Frelimo de assimilar o povo ao ideal do Homem Novo anal de contas fracassou,
por tratar-se de uma ideia moderna e urbana, mais conveniente a uma socieda-
de “quente” que deseja o progresso e a transformação, enquanto a sociedade
moçambicana, na sua dimensão rural, é basicamente tradicional, isto é, “fria”,
porque pretende o equilíbrio e a connuidade, aguentando simultaneamente a
heterogeneidade do presente, interpretada como etapa transitória.
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