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Afro-Ásia,
27 (2002), 79-120 79
A DINÂMICA DAS RELAÇÕES DE GÊNERO
E PARENTESCO NUM CONTEXTO COMERCIAL:
UM BALANÇO COMPARATIVO
DA PRODUÇÃO HISTÓRICA
SOBRE A REGIÃO DA GUINÉ-BISSAU
SÉCULOS XVII E XIX.
Philip J. Havik*
Como alguns estudiosos afirmaram, com pertinência, os conceitos
de parentesco e gênero não podem estar separados quando se estudam
relações sociais.1 Eles são mutuamente construídos e fundados numa
visão específica — andro e viricêntrica —, da sociedade, assim como
na reprodução biológica. Gênero e parentesco não podem ser conside-
rados como algo apartado dos conceitos de cultura e de mudança histó-
rica e das desigualdades existentes na sociedade.2 Esta observação é
de particular importância para um entendimento das representações das
interações interculturais entre diferentes sociedades e de sua evolução
histórica. Ao assumir que gênero e parentesco são socialmente
construídos, queremos demonstrar a natureza dinâmica de tais categori-
as, para além das divisões geográficas e culturais, e ao longo do tempo.
As noções de diferença e de desigualdade social variam através das
* Professor da Universidade de Leiden, Holanda e do Instituto de Investigação Científica
Tropical, Lisboa, Portugal. Versão modificada de comunicação apresentada no 43º Annual
Meeting of the African Studies Association, Nashville, 16-19 de novembro de 2000.
Tradução: Valdemir Zamparoni.
1Jane F. Collier & Sylvia J. Yaganisako, “Toward a unified analysis of gender and kinship”, in:
Collier & Yganisako (orgs), Gender and Kinship: essays toward a unified analysis (Stanford,
Stanford University Press, 1987), pp. 14-50.
2Idem, ibidem, pp. 39-48.
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fronteiras naturais e políticas. Quando observamos diferentes socieda-
des, e os seus membros individualmente considerados, ao longo dos sé-
culos, verificamos que as fontes suscitam algumas questões importan-
tes. Entender relações conjugais e de descendência torna-se um exercí-
cio problemático, uma vez que as fontes escritas contêm inúmeras lacu-
nas e preconceitos. Ao tratar do passado distante, o uso de relatos de
viagem e de documentação de arquivo é essencial, a fim de que se
possa obter informações acerca das tradições e práticas das sociedades
em questão. Entretanto, a maioria dessas fontes primárias escritas foi
produzida com o objetivo de satisfazer as ambições e compromissos de
seus autores. Elas expressam uma relação triangular entre o autor, o
receptor e o sujeito, mediada pelo primeiro. Portanto, ao usar este tipo de
informação como a fonte principal para o estudo sobre relações de paren-
tesco e gênero, deve ser sempre levada em conta a importância dos rela-
cionamentos hierárquicos que determinaram as concepções presentes.
Quando o assunto tratado encontra-se além do horizonte cultural do autor
da fonte, emerge a questão da alteridade, do relacionamento entre o escri-
tor e o “outro”. A necessidade da desconstrução das categorias e referen-
tes torna-se, então, imperativa.
Quando estudadas num contexto comparativo, as relações de gê-
nero e de parentesco revelam o papel desempenhado pelos fatores tem-
porais na configuração das representações, sobretudo se considerarmos
que a maioria das fontes escritas foi produzida por homens de determi-
nadas camadas sociais, que davam importância fundamental às linhas
consangüíneas patrilineares e aos ideais de honra masculina e subservi-
ência feminina. Neste paradigma transcultural, as descrições retóricas
da África e dos africanos são associadas ao corpo feminino e a noções de
feminilidade. Uma vez que foram combinados com ideais de
“embranquecimento”, essas representações relacionaram diferença e de-
sordem com um gênero feminino africano imaginado.3
No caso da Áfri-
ca Ocidental, essas idéias preconcebidas chocaram-se com as práticas
3Kim F. Hall, Things of Darkness: economies of race and gender in early modern
England, Ithaca, Cornell University Press, 1995, pp. 25-61. Para um olhar sobre o
outro lado do Atlântico, vide Mary Del Priore, Ao Sul do Corpo: condição feminina,
maternidades e mentalidades no Brasil Colônia, Rio de Janeiro, José Olympio Ed.,
1993.
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matrilineares e matrifocais, que foram vistas como desviantes da norma
patriarcal. A confusão de categorias e o desnorteamento dos forasteiros
com relação ao “outro”, culturalmente diferente, foram intensificados
por processos de miscigenação, de casamentos mistos, de coabitação.
Esses modos de interação social foram eufemisticamente resumidos no
conceito lusófono de convivência.4 Devido à sua natureza sensível, a
descrição — e posterior reconstrução — das relações interculturais tor-
nou-se um tema altamente controverso, tanto na antropologia quanto na
história portuguesa, sobretudo durante o Estado Novo (1926-1974).5
Temas afins, tais como gênero, foram também abordados no que diz
respeito ao “império” português, mas somente de maneira incidental e
por poucos autores.6 Assim, permaneceu uma separação artificial das
disciplinas acadêmicas, que barrou o caminho para um entendimento
interdisciplinar dos processos históricos de mudança social.
O foco, entretanto, voltou-se inexoravelmente para o estudo do im-
pacto do colonialismo nas representações. Entretanto, a emergência da
literatura preocupada com a dissecação das noções androcêntricas da África
centrou-se, sobretudo, nos “impérios” britânico e francês.7 Como conse-
qüência, alguns estudiosos começaram a defender uma completa revisão
da apreciação das mudanças culturais por meio da migração e da miscige-
nação. Eles contestaram as idéias de pureza profundamente incrustadas
no pensamento etnológico, fortemente influenciado pelo contexto do
colonialismo e pela combinação de noções eugênicas e genealógicas de
parentesco.8 Tão logo o trabalho de campo levou ao desmantelamento de
tais preconceitos formulados nos gabinetes, as pesquisas realizadas nas
4A. J. R. Russel-Wood, The Portuguese Empire, 1415-1808: a world on the move,
Baltimore, John Hopkins Press, 1998, p. xxi
5Vide V. Magalhães Godinho, História Económica e Social da Expansão Portuguesa, Lisboa,
Ed. Terra, 1947; Ralph C. Boxer, Relações Raciais no Império Colonial Português, 1415-
1825. Porto, Afrontamento, 1977.
6Alfredo Margarido “Algumas Formas da Hegemonia Africana nas Relações com os Europeus”,
in: Relações Europa-África no 3º Quartel do século XIX (Seminário do Instituto de Ciência
Tropical, Lisboa, 1989), pp. 383-406; Ralph C. Boxer, A Mulher na Expansão Ultramarina
Ibérica - 1415 -1815. Lisboa, Livros Horizonte, 1977.
7Philip D.Curtin, Image of Africa, Madison, University of Wisconsin Press, 1964; Christopher L.Miller,
Blank Darkness; Africanist discourse in French, Chicago, University of Chicago Press, 1985.
8Jean-Loup Amselle, Mestizo Logics: anthropology of identity in Africa and Elsewhere, Stanford,
Stanford University Press, 1998, pp. 5-24.
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últimas décadas com fontes escritas também contribuíram para desafiar
os conceitos de diferença cultural, até então profundamente arraigados.
Recentes exemplos, no caso português, buscam desconstruir certos con-
ceitos “modernos” tais como abolicionismo e eugenia.9 O reconhecimen-
to da existência da pluralidade de culturas muito contribuiu para a com-
preensão do significado daqueles indivíduos que alguns, inadequadamente,
chamavam de “intermediários” e que, no passado, tinham servido como
informantes para os estrangeiros.10 Ao se centrar nessas categorias soci-
ais híbridas, que desafiavam a dicotomia negro-branco, foram reveladas
tanto a tensão entre expansão e aculturação, quanto a importância da
reciprocidade cultural. Na verdade, os próprios autores das fontes, em
sua maioria administradores, missionários ou comerciantes, eram então
identificados com as comunidades que emergiram no contexto da interação
e comércio afro-atlântico e, ao mesmo tempo, pejorativamente descritos
como uma “casta difícil”, dominada por lealdades divididas, que se colo-
cava no caminho da expansão e da conversão. Na África, as invectivas
eram, sobretudo, dirigidas às “mulheres más” que juntamente com os
“homens desajustados”, supostamente minavam os interesses europeus
no continente.
Na África pré-colonial atlântica, os forasteiros foram obrigados a
se adequar aos valores locais, do casamento à escravidão doméstica. Os
avanços da ciência e da exploração, no século XVIII, e a transição do
comércio de escravos para o de produtos agrícolas, no XIX, assinalaram
a mudança na ênfase da aculturação dos africanos nas plantações dis-
tantes de suas terras para um foco nas suas sociedades na África. O
medo que a libertação dos escravos instilou nos círculos atlânticos, que
tinham controlado o “Atlântico negro”, deu alento às teorias social-
darwinistas que dividiram os povos consoante linhas eugênicas. Mas,
uma vez que o controle sobre o continente ainda lhes escapava, tinham
de contar com os tais “grupos intermediários” que, anteriormente, ti-
nham sido condenados por sua ambivalência. Sob esta nova ótica, as
9João Pedro Marques, Os Sons do Silêncio: o Portugal de oitocentos e a abolição do
tráfico de escravos, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 1999; Ricardo Roque, Antro-
pologia e Império: Fonseca Cardoso e a expedição à Índia em 1895, Lisboa, Instituto
de Ciências Sociais, 2001.
10 Adam Jones & Beatrix Heintze, “Introduction”, in: Heintze & Jones (orgs.) “European Sources
for Sub-Saharan Africa before 1900: use and abuse”, Paideuma, 33, 1987, 1-17.
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ligações interculturais seriam bem vindas somente se contribuíssem para
a consolidação dos objetivos nacionais, isto é, se facilitassem o acesso à
terra e à força de trabalho. A mudança na valoração das relações de
parentesco e gênero é patente na emergência das “grandes mulheres” e
“grandes homens”, terminologia que foi empregada para as sociedades da
África Ocidental no século XIX.11 Rainhas — isto é, rainhas-mães —
comerciantes ou nobres, estas mulheres e homens têm, desde então, ser-
vido como paradigmas para distintos conceitos de poder e autoridade.12
Uma perspectiva patriarcal foi, então, dada às parcerias entre mulheres
africanas e homens atlânticos responsáveis por extensas redes, que in-
cluíam chefes africanos (régulos) e casas comerciais européias. Como a
corrida para a África parecia anunciar a sua iminente colonização, a
ocupação, e não o comércio, era vista como a portadora da civilização e
o meio para, finalmente, explorar as riquezas africanas. Diante disso, a
miscigenação e o casamento misto ficaram, mais uma vez, sob a suspeição
de um estado colonial determinado a regular a desordem e a impor a
diferença.
A existência de um padrão binário de idéias culturalmente defini-
das, sempre sujeitas a mudanças baseadas na expansão política e econô-
mica, de um lado, e em processos de imersão social e cultural, de outro,
é aqui assumido como meio para analisar o impacto sobre as representa-
ções acerca das comunidades afro-atlânticas e os seus representantes
durante um período de dois séculos. A área que tem sido chamada de
“Guiné de Cabo Verde” ou “Costa da Alta Guiné”, que se estendia do
Senegal ao rio Sherbro (atualmente Serra Leoa), fornece numerosos exem-
plos de como os relacionamentos entre mulheres locais e homens “atlân-
ticos” foram vistos de forma diferente ao longo do tempo. No caso da
região da Guiné-Bissau13, muitos dos empreendedores locais tinham an-
11 Vide um balanço da literatura em Frances E. White, “Women in West and West-Central
Africa”, in Frances E. White & Íris Berger, Women in Sub-Saharan Africa; restoring
women to history, (Bloomington, Indiana University Press, 1999), pp. 63-129.
12 Vide Flora Edouwaye Kaplan, Queens, Queen Mothers Priestesses and Power: case studies in
African gender, New York, The New York Academy of Sciences, 1997, e também Edna G. Bay
Wives of Leopard: gender, politics and culture in the Kingdom of Dahomey, Charlottesville,
University of Virginia Press, 1998.
13 A região da Guiné-Bissau é aqui definida como a área entre a Gâmbia e o Rio Nunez na África
Ocidental.
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tepassados guineenses e cabo-verdianos, mas foram todos agrupados
como “portugueses”, moradores ou cristãos. Baseados em entrepostos
comerciais, mas demonstrando uma notável mobilidade espacial e social
num ambiente extremamente competitivo, sua atividade, altamente com-
petente, impressionou os visitantes europeus e os anfitriões africanos.
Os estudos de caso apresentados a seguir, que examinam algumas des-
tas parcerias entre mulheres e homens, são baseados em dados extraí-
dos de fontes documentais de diferentes períodos, e ilustram a osmose
entre contexto e representação. O primeiro exemplo é do século XVII,
quando um grupo de poderosos comerciantes locais desafiou, com su-
cesso, a política da Coroa Portuguesa numa área em que o tráfico de
escravos constituía uma importante fonte de renda. O segundo situa-se
no século XIX, quando o tráfico de escravos foi dando lugar às exporta-
ções de produtos agrícolas, e quando os clãs mercantis locais passaram
a negociar o usufruto da terra para o cultivo de exportação. Estes perí-
odos têm sido objeto de inúmeras publicações de especialistas, incluindo
Walter Rodney, Avelino Teixeira da Mota, António Carreira, Jean
Boulègue e George Brooks.14 Todavia, a despeito de seus esforços e do
escrutínio das evidências documentais, ainda persistem muitas lacunas
que requerem esclarecimento.
Por meio de uma perspectiva comparativa, a discussão dos casos
aqui apresentados tem a intenção de demonstrar a natureza dinâmica das
representações. A ação feminina e masculina nos espaços afro-atlânti-
cos foram classificadas — por homens, uma vez que todas as fontes
foram exclusivamente por eles produzidas, agindo como oficiais milita-
res, comerciantes e missionários — de diferentes formas, de acordo com
os recursos empregados e os interesses envolvidos. Em ambos os casos,
as fontes são portuguesas, e o contexto é o da rivalidade e da competição
— intra-européia e afro-atlântica — pelo espólio do comércio. A lista de
14 Walter Rodney, A History of the Upper Guinea Coast, 1545 to 1800, Oxford, The
Clarendon Press, 1970; Avelino Teixeira da Mota, “Contactos Culturais Luso-Africa-
nos na Guiné do Cabo Verde”, Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, nos 11-12,
1951, pp. 5-13; António Carreira, Os Portugueses nos Rios de Guiné (1500-1900),
Lisboa, ed. do autor, 1984; Jean Boulègue, Les Luso-Africains de Sénégambie, XVIe-
XIXe siècles, Lisboa, Instituto de Investigação Científica Tropical, 1989; George E.
Brooks, “Historical Perspectives on the Guinea Bissau region, fifteenth to nineteenth
centuries”, in: Vice-Almirante Teixeira da Mota, In Memoriam, vol. I, Lisboa, Academia
da Marinha, 1984: 277-304.
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Detalhe da região da Guiné. Baseado em Antonio Carreira,
“A Etnonimia dos povos de entre o Gâmbia e o Estuário do Geba”,
in Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, vol. XIX, 75, pp. 233-75.
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atores em questão inclui desde os descendentes das linhagens nativas
dirigentes até os comerciantes relacionados aos gan — do kriol, ou
crioulo, da Guiné: povoado ou clã — mercantis operando nos entrepostos
da região. Ao centrar o estudo nas parcerias empresariais, queremos
sublinhar o papel central que o gênero e o parentesco desempenharam ao
nível das práticas e representações do comércio e da interação afro-atlân-
tica, numa região que quase não tem sido explorada em termos de estudo
e pesquisa.15
Ña Bibiana e Ambrósio Vaz
Fortes imagens emanam dos documentos do século XVII sobre uma
mulher comerciante chamada Bibiana Vaz de França, coloquialmente
conhecida como Ña Bibiana (Ña no crioulo da Guiné, e também de Cabo
Verde: senhora). Guineense de nascimento e membro de uma influente
gan mercantil, estabelecida num desses entrepostos “portugueses” de
comércio costeiro, ela ocupa um lugar especial nos escritos do último
quarto do século XVII. Cacheu, situada numa posição estratégica na foz
do rio do mesmo nome, naquela que hoje é chamada de Guiné-Bissau,
mas que, então, era conhecida como “Guiné de Cabo Verde”, era, então,
um importante porto de atração para traficantes de escravos, do qual
estima-se que três mil escravos eram exportados anualmente. O lugar,
onde anteriormente existia uma tabanka, ou seja, uma aldeia no territó-
rio controlado pelos Pepel matrilineares, foi fortificado, nos anos 1580,
por comerciantes privados, os chamados lançados com os negros e
tangomaos ou tangomas. Eles geralmente tinham um ancestral cabo-
verdiano na linha masculina, mas eram guineenses pela linha feminina,
embora alguns tivessem ascendência portuguesa. A permissão para a
fixação foi dada pelos Pepel, dunus di tchon em kriol (derivado do por-
15 O autor discutiu estas e outras parcerias em várias publicações, por exemplo: Philip J.
Havik, “Comerciantes e Concubinas: sócios estratégicos no comércio Atlântico na
Costa da Guiné”, in: Fernando Albuquerque Mourão (org.) A Dimensão Atlântica de
África, (Actas da II Reunião Internacional de História de África, São Paulo, CEA-USP/
SDG-Marinha/CAPES, 1997), pp. 161-179, e Philip J. Havik, “Matronas e Mandonas:
parentesco e poder no feminino nos Rios de Guiné (século XVII)”, in: Selma Pantoja,
Entre Africas e Brasis, (Brasília, Ed. Paralelo 15, 2001), pp. 13-34.
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tuguês “donos do chão”), aos ditos tangomaos, que viram a construção
de uma fortificação como uma medida de proteção.16 Os dunus di tchon
da comunidade Bañun, noutro lugar ao longo do Rio Cacheu, suposta-
mente os tinham tratado mal e, além disso, eles também precisavam se
proteger contra os ataques dos competidores rivais europeus. Os produ-
tores locais forneciam gêneros alimentícios, tais como arroz, milhete,
milho, carne, laticínios e sal para o sustento de seus habitantes. Após
receber o “direito de cidade” da Coroa portuguesa (em 1605) e ter se
convertido numa “capitania”, Cacheu logo se tornou o principal entreposto
“português” para o tráfico de escravos, mas também exportava cera de
abelha, marfim, panos de algodão e peles animais.
Todavia, durante séculos, o reconhecimento do valor deste distrito
militar (capitania) e fortaleza (presídio), por parte da monarquia portu-
guesa foi dificultado devido à objeção desta à presença de comerciantes
privados que negociavam com nações européias rivais e deixavam de
pagar impostos. Isto se deu precisamente devido ao controle que os
tangomaos e seus descendentes, muitos com raízes sefaraditas e perse-
guidos pela Inquisição e pela Coroa, exerceram sobre grande parte das
trocas comerciais na região, o que contrariava os interesses dos portu-
gueses estabelecidos, que reclamavam direitos de monopólio sobre tal
comércio.17 A administração dessas cidades-fortalezas esteve,
alternadamente, nas mãos de oficiais portugueses e africanos, geralmen-
te recrutados no arquipélago de Cabo Verde e nos gan mercantis locais.
Ao mesmo tempo, comunidades de africanos batizados, os então chama-
dos “cristãos por ceremónia” ou kriston que incluíam uma população
heterogênea, desde escravos domésticos até profissionais e comerciantes
livres que tinham se estabelecido em áreas localizadas em torno da cida-
de fortificada, tinham seu próprio governo independente, dirigido pelos
“juízes do povo”. No início do século XVII, Cacheu possuía vinte ou
trinta “vizinhos” mas, nas últimas décadas do mesmo século, estimou-se
16 Os Pepel desempenharam um importante papel na história das relações afro-atlânticas,
uma vez que o seu território sediava os dois mais importantes presídios da região, ou
seja, Cacheu e Bissau, que ficava um pouco mais ao sul, no Rio Geba. Por séculos, eles
resistiriam à penetração Atlântica, até que a ocupação militar de 1915 pôs fim à sua
autonomia.
17 Philip J. Havik, “Missionários e Moradores: na Costa da Guiné: os padres da Companhia de
Jesus e os ‘portugueses’ no princípio do século XVII”, Studia, 56/57 (2000), pp. 223-262.
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um total de 400 a 500 “vizinhos”, um estatuto limitado aos que viviam
como “portugueses livres”, isto é, que excluía os escravos.18 Documen-
tos contemporâneos, entretanto, não deixam dúvidas sobre o seu alegado
estado pecuniário lastimável, sugerindo que os habitantes ricos eram
aqueles que viviam e comerciavam no interior.19 A presença de brancos
residentes, nascidos na Europa, era ainda mais ínfima, indicando que os
que se intitulavam “brancos” eram nascidos localmente, e simulavam
sua brancura calçando sapatos.20 A taxa de mortalidade entre os resi-
dentes era apontada como sendo alta, de tal modo que, no início do se-
gundo quartel do século XVIII só seis “moradores” estavam ainda
registrados.21 Realçavam-se, assim, os problemas de aclimatização e
das doenças tropicais, numa zona desprovida de qualquer apoio médico
exterior.22
Essa camada social afro-atlântica, direcionada para a troca mer-
cantil e a administração política, efetivamente ganhou o controle do co-
mércio regional costeiro e fluvial entre o final do século XVI e o início
do XVII. Nas primeiras décadas do século XVII, as autoridades cabo-
verdianas protestaram contra a presença de “muita gente da nação”, isto
é, judeus sefaraditas, que negociavam com os holandeses, ingleses e fran-
ceses, e tinham o seus próprios exércitos de escravos.23 Na época, a
concorrência entre as nações européias, incluindo Portugal, França, Grã-
Bretanha e Holanda, pelos lucros do tráfico foi ainda mais intensa, após
quase um século e meio no qual traficantes “portugueses” exerceram o
monopólio Atlântico. As redes de tangomaos eram baseadas no paren-
tesco e coabitação com as linhagens governantes que controlavam os
recursos humanos e materiais entre os grupos litorâneos, permitindo-
18 AHU, 1ª secção, Guiné, Cx. 2, 26-9-1670. O termo “vizinhos”, mais do que simples-
mente designar aqueles que vivem próximo um do outro, traz o significado de fogos ou
unidades familiares. Nos estudos demográficos estes dados geralmente tem sido multipli-
cados por quatro quando se trata de Portugal, embora, para os padrões africanos, isto
deveria resultar numa população entre 1600 e 2000 habitantes.
19 AHU, 1ª secção, Guiné, Cx. 2, 30-6-1671; 24-4-1673; 18-6-1674
20 AHU, 1ª secção, Guiné, Cx. 5, 10-6-1728
21 AHU, Cx. 5, Guiné, 10-5-1727
22 Estas questões, geralmente abafadas na correspondência oficial, só começam de ser abordadas no
século XVIII, com os avanços da medicina; vide Curtin The Image of Africa, pp. 58-87.
23 “Requerimento da Câmara de Santiago”, 1614, in: António Brásio, Monumenta Missionária Africa-
na, IV, África Ocidental (1600-1622), 2ª série (Agência Geral do Ultramar, Lisboa, 1968), p. 563.
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lhes monopolizar o comércio fluvial com acesso baseado na terra. Cro-
nistas contemporâneos associaram os “portugueses” à camada de mu-
latos que garantiam grande parte da renda do comércio regional.24 Por
volta da segunda metade do século XVII, tinham emergido alguns gan
que combinavam o acesso às rotas para o comércio Atlântico com víncu-
los certos com os fornecedores africanos locais. Os mais poderosos gan
de Cacheu foram o Gomes, com origens sefaraditas, e o Vaz de França,
relacionado aos grupos matrilineares Bañun e Pepel. Este último contro-
lava as áreas ribeirinhas do Rio Cacheu e tinha em Farim sua principal
fonte de comércio. Farim encontrava-se no limite das marés, no períme-
tro ocidental da confederação de Kaabú. Estando nas mãos dos Soninké,
esta se desvinculou do império do Mali no século XVI, e exerceu um
domínio incontestado sobre as rotas comerciais com a região do Alto
Níger, no interior, até o século XIX.25 Redes comerciais marítimas eram,
sobretudo, articuladas para a compra de noz de cola na região de Serra
Leoa, mais ao sul, e a sua troca, com barras de ferro e sal, por escravos
e ouro na área de Farim.26 A criação, por decreto real, mas com fundos
privados, da Companhia de Cacheu, em 1676, tinha como intenção to-
mar conta deste lucrativo comércio. Protestos de várias partes de Cabo
Verde e da Guiné já sugeriam que a companhia não era particularmente
bem vinda pelos interesses afro-atlânticos locais.27 O principal obstáculo
foi a proibição, por parte da companhia, aos “moradores” de Cabo Verde
e das terras firmes, de comerciarem com os estrangeiros.28 Isto, a despeito
dos apelos dos comerciantes de Cacheu no sentido de que o rei, D. João IV,
deveria se “lembrar deste povo” e garantir-lhe a liberdade para participar
do comércio transatlântico, como faziam os seus congêneres em Cabo Verde.
Por fim, afirmaram que “como o nosso comércio é somente o resgate de
escravos e senão tivermos saída para elles pela mesma via será impossível
24 D.O. Dapper, Description de l’Afrique, Amsterdam, Boom & Van Someren, 1686, pp.
228-245.
25 Carlos Lopes, Kaabunké: espaço, território e poder na Guiné Bissau, Gâmbia e Casamance
pré-coloniais, Lisboa, Comissão Nacional para a Comemoração dos Descobrimentos Portugue-
ses, 1999.
26 George E. Brooks, Kola Trade and State Building, Upper Guinea coast and Senegambia, 15th
to 17th centuries, Boston, African Studies Center Working Papers, 1980.
27 Daniel A. Pereira, “A Formação da Companhia de Cacheu (1671-1676)”, comunicação, Cacheu,
Colóquio Cacheu, Cidade Antiga, 1988.
28 Idem, ibidem, p. XXXVIII
29 AHU, Guiné, Cx. 1, 19/5/1655.
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senhor podermos sustentar as nossas famílias”.29
Uma das pessoas mencionadas no decreto de criação da Compa-
nhia foi Ambrózio Gomes, marido de Ña Bibiana, um rico traficante de
escravos, com raízes africanas e sefaraditas, que já tinha ocupado o pos-
to de capitão-mor e era visto como um futuro diretor da companhia.30
Nascido em Cacheu em 1621, as suas raízes paternas apontam para a
vila de Arroiolos, no Alentejo, onde passou uma parte da sua infância
numa família de origem sefaradita. Sua mãe era originária das Ilhas
Bijagó, situadas defronte à costa da atual Guiné-Bissau, que durante
séculos foram importantes fontes de escravos.31 Ele era tido como al-
guém capaz de inspirar mais medo e respeito do que o então governador
de Cacheu, um morgado — proprietário de terras — em Cabo Verde que
estava encarregado da companhia. Desde os anos 1640, Ambrózio Go-
mes regularmente fez ouvir sua voz em Lisboa, reclamando do tratamen-
to desigual dispensado aos comerciantes guineenses, em comparação com
os cabo-verdianos. Uma fonte francesa descreveu-o, a ele e a seu filho
Lourenço, como “negros, mas civilizados e respeitados em seu país”.32
Embora os dados biográficos sobre a vida de Bibiana sejam muito sumá-
rios, sabemos que ela nasceu no início do século XVII. As primeiras
referências ao apelido Vaz, de origem cabo-verdiana, remontam ao sécu-
lo XVI e sempre estiveram associadas ao rio Gâmbia, conforme atesta
uma menção ao primo de Ña Bibiana, Francisco Vaz de França em carta
ao Rei escrita pelo então capitão-mor de Cacheu em 1647.33 Muito pou-
co se sabe de Ña Bibiana antes da morte do seu marido Ambrozio Go-
30 Pereira, “A Formação da Companhia”, p. XL.
31 Veja, ANTT, Inquisição de Lisboa, Processo 2079 (1668), contra Crispina Peres de Cacheu. O pai
de Ambrozio pode ter sido Manuel Gomes da Costa, natural de Lisboa, que tinha 36 anos em 1622,
e comerciava escravos nas Ilhas Bijagó, enquanto “Teodosia Gomes que nunca casou, hé mãe do
capitão Ambrozio Gomes (..) e hé negra Bujagó, bautizada e moradora na povoação de Cacheu”.
32 Nize Isabel de Moraes, “La Campgane de Sto. António das Almas (1670)”, Bulletin de L’Institut
Fondamentale de l’Afrique Noire, 40, 4 (1978), pp. 708-17.
33 Veja a menção a Francisco Vaz, um alfaiate, que tinha um escravo chamado Gaspar Vaz no porto
de Cassão (Kassan) no rio Gambia, em André Donelha, Descrição da Serra Leoa e dos Rios de
Guiné do Cabo Verde (1625), (coord. de A.Teixeira da Mota e P.E.H. Hair), Lisboa, Junta de
Investigações Científicas de Ultramar, 1977, p. 148. Veja ainda AHU, Guiné, 1a secção, Cx. 1,
carta de Gonçalo Gamboa de Ayala ao Rei, Cacheu, 25-2-1647.
34 Veja ANTT, Inquisição de Lisboa, Processo 2079 (1668) contra Crispina Peres de Cacheu. O
réu refere-se ao “Ambrózio Gomes, capitão da terra cazada com Bibiana Vaz”.
Afro-Ásia,
27 (2002), 79-120 91
mes, além do fato de já estar casada nos anos sessenta.34 Embora fal-
tem dados conclusivos acerca do seu casamento com Ambrózio Gomes,
a aliança entre os dois gan foi significativa. Logo após a morte de seu
marido, em 1679, uma disputa com o recém-indicado comandante mili-
tar de Cacheu, José de Oliveira, catapultou-a, já em idade avançada,
para os livros de história. Ao fazer cumprir a “regra da exclusão”, que
proibia todo comércio com os “estrangeiros” — holandeses, ingleses e
franceses —, ignorando, assim, a recusa da comunidade mercantil local
em reconhecer o contrato da companhia, o comandante precipitou a sua
própria queda. Bibiana, seu irmão Ambrósio Vaz e seu primo Francisco
armaram uma emboscada e o fizeram prisioneiro em 25 de março de
1684, assim que saiu da missa celebrada no hospício católico local. Ele
foi algemado como um escravo e humilhado diante da comunidade de
Cacheu, quando Bibiana declarou-o, publicamente, culpado de abuso de
poder. A seguir foi mandado rio acima, para Farim, onde foi mantido por
mais de um ano no apertado e escuro corredor de uma casa que Bibiana
tinha lá. Pouco antes do “golpe”, os comerciantes de Cacheu tinham
feito uma petição acusando-o de “injustiças, deshonras, tiranias, roubos
e aleivosias” além de deslealdade e furto.35
Relatos posteriores claramente identificam Bibiana como a diri-
gente que estava por trás da conspiração. Foi dito que todos os encontros
dos rebeldes tiveram lugar em sua casa, em Cacheu, e que foi ela que,
efetivamente, recebeu os assessores do comandante após sua prisão.
Apesar disso, a declaração que se seguiu à prisão, num tom marcadamente
“republicano”, trazia a assinatura de seu irmão, na época um dos mais
ricos comerciantes afro-atlânticos da região. Em vez de ser uma chefe
nominal, Ña Bibiana foi a mais respeitada anciã do clã, mas não exerceu
nenhuma função administrativa e não sabia escrever o português. Em
vez de ser uma figura secundária, que permaneceu nos bastidores como
muitas de suas congêneres, ela, por causa de sua extensa clientela, que
tanto era atlântica quanto africana, desempenhou um papel-chave nos
acontecimentos. Os eventos que se seguiram demonstram o estreito rela-
cionamento entre ela, seu irmão e seu sobrinho, que apoiaram seus atos.
35 AHU, 1ª secção, Guiné, Cx. 3, 20-3-1684
Afro-Ásia,
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Uma vez que o eminente prisioneiro não era somente o comandante
militar, mas também o diretor local do monopólio da coroa portuguesa
representado pela companhia comercial, a revolta revelou o profundo e
enraizado conflito entre os interesses portugueses na região e os dos gan
mercantis locais. Ao reclamar poder político, os revoltosos declararam:
1. não admitir capitão desse Reino, nem destas Ilhas [de Cabo
Verde], sem primeiro dar conta a Vossa Majestade, e esperar
que saia ‘resolução’;
2. nenhum Português negociará com os gentios, mas só com os
moradores da praça com pena do perdimento das fazendas;
3. não queriam nem haviam de aceitar como não aceitaram o
contrato da Companhia, instituído por especiais ordens da VM,
nem tão pouco admitir na praça, nem ainda como particulares,
os administradores della.36
No dia seguinte aos eventos acima narrados, Ambrósio, junto com
outros notáveis de Cacheu, assumiu o poder sob a forma de triunvirato,
apreendendo todos os bens do comandante e a propriedade da Compa-
nhia. A “república de Cacheu” tinha sido declarada, segundo os termos
usados na sindicância feita depois. Apesar disto, os rebeldes não esque-
ceram, ao menos formalmente, de reiterar sua fidelidade ao rei. Apesar
do fato de que uma multidão, incluindo escravos, tinha tomado parte na
prisão do comandante, a sindicância afirmou que “o povo”, em nome do
qual decerto tinha sido elaborada, não tinha tomado parte nem tinha
apoiado genuinamente a revolta e, supostamente, tinha sido conduzido
pelo medo e pela ignorância.
Quando a notícia chegou a Lisboa, a situação causou grande em-
baraço e preocupação às autoridades portuguesas, temerosas de perder o
seu principal porto continental na costa da Alta Guiné. O conflito deve
ser visto como um reflexo da situação de fato, do acentuado declínio dos
negócios portugueses, sobre o qual conselheiros e funcionários bem in-
formados vinham alertando desde o final do século XVI. Desde então, a
crescente competição por parte de outras nações européias, tais como a
França, a Holanda e a Inglaterra, tinha enfraquecido o monopólio afro-
36 AHU, 1ª secção, Cabo Verde, Cx.7-A, 18-8-1691
Afro-Ásia,
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atlântico português. O fato de que os rebeldes de Cacheu estavam ne-
gociando com comerciantes ingleses e franceses, que eram vistos como
inimigos, sublinha o contexto euro-atlântico do conflito. O “golpe” de
Cacheu, se tivesse sucesso, implicaria no abandono de qualquer espe-
rança portuguesa de competir com os rivais europeus, além de acarretar
a perda do lucrativo comércio com o Kaabú, no interior. E o fato de que,
dentre todas as pessoas, uma mulher, e ainda por cima africana e idosa,
estava frustrando os planos portugueses na região, era outra grande cruz
a ser carregada pelos estrategistas políticos de Lisboa. A curta vida da
Companhia, que foi seguida de outros esforços monopolistas igualmente
fracassados nos anos 1690, só serviu para acentuar esta situação. Inter-
vindo, as autoridades portuguesas provaram, sem sombra de dúvida,
que os operadores afro-atlânticos, incluindo os crioulos, kriston e forne-
cedores africanos, estavam claramente em vantagem, e assim permane-
ceriam pelos próximos duzentos anos.
A parceria entre Ña Bibiana, viúva, e seu irmão, então com seus
cinqüenta e tantos anos, é crucial para a compreensão do espaço social
no qual os conflitos tiveram lugar. Seus fortes laços colaterais, estabele-
cidos por meio da coabitação e dos casamentos mistos com linhagens
africanas governantes, reproduziram um padrão de interação afro-atlân-
tica que facilitou a tessitura das redes interculturais altamente fluidas,
pelas quais a região era conhecida. Estas encarnavam a efetiva combina-
ção entre mobilidade geográfica e social, que lhes permitiu assumir o
controle do comércio regional. Seus “descendentes mestiços” represen-
tavam a essência do parentesco bilateral num contexto matrilinear ca-
racterístico dos gan mercantis da região. Foi precisamente esta configu-
ração que deu a mulheres como Bibiana uma base de poder sócio-cultu-
ral que elas transformaram em riqueza econômica e influência política.
Seu controle partilhado sobre os recursos e o apoio recebido dos dignitá-
rios africanos locais também ilustra a existência de uma flexível divisão
de responsabilidades, que provou ser um fator decisivo em sua capacida-
de de iludir as autoridades portuguesas. Inúmeros eventos servem para
elucidar o contexto local, por exemplo, a petição de Lourenço Gomes,
filho do casamento anterior de Ambrózio Gomes, para obter a herança
do pai; a sindicância entre os moradores de Cacheu acerca do papel de
Afro-Ásia,
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Bibiana no “golpe”; a localização de sua propriedade e as suas relações
com as linhagens dirigentes Bañun; sua ida a Cabo Verde e a questão de
seu analfabetismo.
Os documentos mostram que Lourenço Matos Gomes tentou, em
vão, obter a herança a que ele, pela lei patriarcal portuguesa, teria direi-
to. Ele endereçou uma petição ao rei português, afirmando que, imedia-
tamente após a morte de seu pai, tinha tentado fazer uma distribuição
eqüitativa (ou que ele via como tal) do espólio com sua madrasta, o que
resultara em fracasso. Isto é revelador, e particularmente ilustrativo, das
tradições de parentesco bilateral da costa. Na petição, afirmou que
por morte do seu Pay, Ambrosio Gomez, capitão mor que foi
daquelle praça, ficara elle supplente habilitado por seu herdei-
ro de muyta quantidade de fazenda, e em razão ‘o ditto seu Pay
estar cazado com Viviana Vás, se metera de posse della como
Cabeça de Cazal, fazendose tão poderosa com dadivas e que
desde o anno de 1679 em que seu Pay falecera athe o prezente,
elle não fora possivel fazer lhe fazer inventario, e partilha que
hia decipando, e consumindo de maneira que não viria elle de-
pois a herdar couza alguma.37
E acrescentou, significativamente, que “a falta de justiça que mal
naquellas partes, sem poder, se podia administrar, ou por razão de muito
que grangear a indústria de quem sabia negociar em terras tão faltas de
letrados que só vencia as couzas, que melhor com a intelligencia propria
as meneiava”.38 A despeito de suas repetidas tentativas e do apoio de
Lisboa, ele nunca conseguiu obter o que pedira.
A sindicância sobre a revolta entre os moradores de Cacheu (ocor-
rida em 1687) demonstra o quanto Bibiana foi aviltada e acusada de
comerciar livremente com os africanos e outros europeus, como os ingle-
ses, especialmente na calada da noite, sem recolher qualquer imposto
aos cofres de Cacheu. Usando estes argumentos como pretexto — por-
que, afinal de contas, todos negociavam com os comerciantes rivais ope-
rando na região e que pagavam mais —, pedia que “aquela mulher” —
37 AHU, 1ª secção, Guiné, Cx. 3, 2-9-1682
38 Ibidem.
Afro-Ásia,
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algumas vezes também mencionada como “a viúva” — fosse mantida
sob custódia e submetida a julgamento, e que fosse feito um inventário de
suas posses. Os sindicantes acrescentaram que seria também aconselhá-
vel colocar o seu irmão e o seu primo por trás das grades, pois, do contrá-
rio, eles poderiam esconder a riqueza da família obtida ilegalmente.
Enfatizaram que ela deveria ser julgada em Cabo Verde, não só sugerindo
que o então comandante não tinha nenhuma influência significativa sobre
a administração, mas que queriam remover o gan Vaz do poder.39
Quando Bibiana foi, finalmente, feita prisioneira, ela se benefi-
ciou da hospitalidade de um chefe linhageiro Bañun, ou udjagar (djagra
em kriol), em cuja casa ficou. O relato de sua captura dá-nos alguma
idéia dos problemas encontrados por aqueles enviados para realizar esta
tarefa:
Grandemente me fez Deos em me livrar de Guiné sem que me
enchessem a barriga de pssonha, que foy la muito mal aceito no
interior, mas como eu me vir dessa banda com o favor de Deos
fallarey, e tudo ha de ser verdade; o que direy athé he que se a
minha lealdade não fora tanta ficara Bibiana Vas em Guiné
metida no gentio porque atirei de caza de hum Rey para onde
fugio, fazendo a vir a praça com minhas industrias.40
O oficial foi obrigado a investir largas somas de seus próprios
recursos em presentes, a fim de convencer os parentes e anfitriões a
entregá-la. Mas pouco ele conseguiu ter de volta, uma vez que as posses
de Ña Bibiana não puderam ser encontradas pois os “os bens desta mu-
lher estão todos em terras de gentios, e por isso se lhe não achou quasi
nada no sequestro que se lhe fez”.41 Embora seu primo Francisco (Vaz
de França) estivesse fora, negociando na costa, não seria possível perse-
gui-lo “porque os que andam ausentes, não é fácil acolhelos a mão”,
demonstrando mais uma vez a debilidade portuguesa na região. O oficial
ainda acrescentou que “de Gambia sahiam dois navios a esperarme na
barra de Cacheu” — o que conseguiu evitar — para “tirarme a Bibiana
39 AHU, 1ª secção, Cabo Verde, Cx. 7-A, 18-8-1791
40 AHU, 1ª secção, Cabo Verde, Cx. 7A, 17-6-1687
41 Ibidem
42 Ibidem
Afro-Ásia,
27 (2002), 79-120 96
Vaz, e neste caso é certo havia de pelejar até morrer”.42
Na verdade, durante a ausência de Ña Bibiana, toda a sua rique-
za foi guardada por seu primo, convenientemente ausente. Portanto, só
seus escravos poderiam ser confiscados, porém todas as tentativas de
fazê-lo levaram-nos, imediatamente, a fugir para o “gentio”. Numa pe-
tição feita por Bibiana quando estava detida em Cabo Verde, ela afir-
mou que levá-la para Portugal, para ser julgada, não só a mataria, velha
e doente como estava, atacada pela malária, mas que sua contínua au-
sência da Guiné poderia levá-la a perder, para seus rivais, todas as suas
posses.43 Neste meio tempo, ela obteve o apoio dos mais ricos e influen-
tes comerciantes cabo-verdianos, que garantiram sua segurança e sus-
tento enquanto esteve no arquipélago. Isto demonstra a dimensão Atlân-
tica de seu status africano no contexto regional, sua influência e autori-
dade. Quando a Ña Bibiana, finalmente, foi concedido o perdão real,
após ter pagado uma soma simbólica como indenização pelas perdas
sofridas pela Coroa, ela retornou à Guiné e moveu uma vigorosa cam-
panha para libertar seu irmão que, afinal de contas, fora o seu principal
parceiro nos eventos. No fim, tanto seu irmão quanto seu primo foram
perdoados. A lógica por trás desta mudança de procedimento é signifi-
cativa. Nem o fato de que o pagamento de indenização por parte do
primo tenha se mostrado impossível de ser efetuado, nem o perdão ao
primo e irmão, por cuja soltura ela tinha insistentemente lutado, aconse-
lhavam a ser imprudente:
se quizer apertar e constranger a Bibiana Vaz e aos mais outros
maiores subsidios, creio que tudo se perderá; porque nem as
pessoas se hão de colher para o castigo, nem se lhes hão de
achar os bens para satisfação das penas pecuniarias, e com as
suas ausencias e emnisios se inquietara a paz da praça, como
experimentei no tempo em que alguns deles passaram aos gen-
tios com o receio de serem prezos.44
O mesmo sindicante admitiu que “todo aquelle povo está reduzido
43 AHU; 1ª secção, Cabo Verde, Cx. 7-A, 12-6-1687
44 AHU, Cabo Verde, Cx. 7-A, 18-8-1691
45 Ibidem
Afro-Ásia,
27 (2002), 79-120 97
a excessiva pobreza, assim por occazião do comércio com os
extrangeiros, que lhe esgotarão o mais preciozo, como pela esterilidade
do negócio com os Portuguezes, e remeças destas Ilhas [de Cabo Ver-
de]”.45 Esta sua crítica estava claramente dirigida aos comerciantes
portugueses em geral, às autoridades em Cabo Verde e, sobretudo, ao
governador que, obsessivamente, tinha perseguido Ña Bibiana.46 A fim
de resolver este impasse sem perder completamente a influência na
região, os sindicantes decidiram obter uma declaração escrita, uma pro-
messa e obrigação, mas que não foi assinada diretamente por ela, já
que se declarou “analfabeta”.47 Este documento formalizou o acordo
entre a coroa portuguesa e Bibiana, que prometeu construir um fortale-
za de pedra em Bolor, defronte a Cacheu, na barra do mesmo rio, numa
posição estratégica que controlava o acesso ao rio. Mas ela somente o
faria em troca da soltura e do perdão ao seu irmão e primo. Entretanto,
afirmou, com certa ironia, que, por ser mulher, não poderia levar a cabo
a construção do forte. Além disto, na região não havia pedra considera-
da boa para construção, a qual teria de ser trazida de Cabo Verde. To-
davia, ela se declarou pronta para, “voluntária e livremente”, pagar pela
construção. Levando-se em conta a perda de bens sofrida durante e
devido à sua ausência — ela disse que tinha sido deixada somente com
a posse de alguns escravos — e o fato de que seu primo estava na
posse de todos os seus bens, ela teve de contar consigo própria para
honrar o pagamento. A primeira parcela, com a metade do valor, deveria
ser paga quando seu primo chegasse a Cacheu, para o que não foi fixa-
da uma data, e a segunda deveria ser efetuada um ano depois. Ela acres-
centou que se devia “mandar-lhe restituição ao dito seu irmão a esta
praça soltandose da prizão em que está porque com a sua pessoa conti-
nuara o negocio que não se pode perder por ser molher”.48 E, como
forma de assegurar o cumprimento de seu lado na barganha, ela deu em
garantia “todos os seus bens materiais”. Depois de tudo o que foi dito e
feito, pode-se imaginar o que, na prática, realmente significava esta ga-
rantia, já que nenhum desses bens podia ser acessado por estrangeiros.
46 “Como pelo falecimento do governador Diogo Ramires Esquivel se dilatava o ajuste com Bebianna
Vaz”, Ibidem.
47 Idem, 20-4-1691
48 Ibidem.
Afro-Ásia,
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Depois de soltos, seu irmão Ambrósio e seu primo Francisco tornaram-
se alvos das autoridades de Lisboa, Cabo Verde e Guiné. Francisco,
referido como “primo de Bibiana”, foi acusado de crueldades, tais como
ter matado brutalmente alguns de seus escravos e “causado terror a
todos e ao gentio” na área do Rio Nunez mais ao sul.49 Um inquérito foi
ordenado para que se pudesse dar-lhe um “exemplar castigo”.50 Ambrósio
tornar-se-ia um dos críticos mais abertos das políticas e do apoio — ou
da falta de ambos — de Lisboa, durante os trinta anos seguintes, inclu-
indo a falta de ajuda para lidar com as ameaças dos africanos. Quase
todas as petições formuladas pelos comerciantes de Cacheu, nesse pe-
ríodo, traziam sua assinatura. Nada foi mencionado sobre Bibiana nos
documentos após 1694, o que não surpreende, levando-se em conta a
sua idade já avançada e o seu estado de saúde.
Rosa de Carvalho Alvarenga e Honório Pereira Barreto
A história de outra parceria, desta vez entre mãe e filho, serve para
analisar o empreendimento afro-atlântico numa perspectiva comparati-
va e cronológica. Claras distinções entre a condição e a iniciativa femi-
nina e masculina podem ser feitas no seio dos gan mercantis de Cacheu
e de Ziguinchor — ao norte, localizado na região de Casamance, no rio
do mesmo nome — do século XIX. Também neste caso, sabemos mais
sobre o homem do que sobre a mulher aqui referidos, mas há pouca
dúvida sobre a autoridade de um e de outra. Tal como ocorreu com sua
ilustre antecessora, Ña Bibiana, os dados biográficos são poucos e
esparsos: enquanto muito se sabe sobre seu marido e filho, nenhum dado
concreto sobre seu nascimento e morte foi encontrado. Presumimos
que ela tenha nascido em algum momento do último quartel do século
XVIII, e falecido em meados dos anos 1850. Em termos de status soci-
al, Dona Rosa de Carvalho Alvarenga, também chamada de Dona Rosa
de Cacheu ou, mais afetuosamente, de Ña Rosa, descende do mais
preeminente gan do presídio de Ziguinchor. O uso do termo “dona”, nas
fontes portuguesas, indica sua inclusão na classe dos “notáveis” locais,
49 AHU, 1ª secção, Guiné, 22-6-1694
50 AHU, 1ª secção, Guiné, 30-10-1694
Afro-Ásia,
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intimamente associados com a administração e o comércio. A povoação
tinha sido erigida em meados do século XVII, por uma administração
desejosa de estender o seu raio de ação para o lucrativo comércio do rio
Casamance, a norte de Cacheu. O clã Alvarenga, originário das ilhas de
Cabo Verde pela linha masculina, controlava, praticamente, a adminis-
tração da cidade militar desde meados do século XVIII. Seu pai, Manu-
el de Carvalho Alvarenga, era o comandante de Ziguinchor na virada
para o século XVIII. Tal como todos os altos funcionários, ele também
atuava no comércio de escravos, cera de abelha, arroz, sal e marfim,
que eram trocados por ferro, armas, pólvora e aguardente. Na linha
feminina, a autoridade do clã estava baseada em laços de parentesco e
clientelismo com as comunidades Bañum/Kasanga e Felupe/Djola, que
habitavam a região de Casamance. Estes eram, respectivamente, os
principais fornecedores de escravos, cera de abelha e arroz da região.
Junto com os escravos obtidos dos Soninké/Mandinga, no interior, e dos
Bijagó, nas ilhas da costa, o gan Alvarenga tinha acumulado considerá-
vel experiência, influência e riqueza.
Nascida no final do século XVIII, Ña Rosa ficou viúva em 1829.
Seu falecido marido, João Pereira Barreto, tinha sido um oficial militar
cabo-verdiano. Filho de um padre cabo-verdiano e uma escrava guineense,
possivelmente de origem Felupe, tinha comandado postos nas adminis-
trações de Ziguinchor e Cacheu, e estabeleceu uma rede de relações de
patronagem com as comunidades africanas vizinhas, incluindo os Felupe/
Djola e Pepel. Em 1814, ele liderou uma revolta contra o então coman-
dante de Cacheu, que foi deposto em nome do povo deste lugar sob a
acusação de insanidade.51 O “golpe”, que colocou um triunvirato no
controle da cidade, foi, ao contrário da intervenção de Bibiana, posteri-
ormente justificado numa investigação oficial. Os relatórios oficiais re-
conhecem a sua autoridade, que era “bem merecida e [que tinha] heredi-
tária influência com as nações gentias”.52 Na época, ele era o rico pro-
prietário da maior casa comercial de Cacheu. Quando viajou para as
ilhas de Cabo Verde por razões de saúde, foi acompanhado por “sua
51 AHU, 1ª secção, Guiné, Cx. 21, 22-10-1814
52 AHU, Guiné, Cx. 22, 4-5-1819
53 AHN, CV, Secretaria Geral do Governo, A6/4, 24-1-1824
Afro-Ásia,
27 (2002), 79-120 100
mulher, a família constante de trezentos pessoas”, a maioria das quais
eram escravos e serviçais domésticos.53 Ao morrer, deixou terras na
Guiné, Cabo Verde e Brasil, além de uma casa em Lisboa para sua espo-
sa, que veio a se tornar a mais poderosa comerciante das regiões de
Cacheu e Ziguinchor. Sua irmã, Josefina, nascida em Cabo Verde, ca-
sou-se duas vezes, em ambas com oficiais militares que detinham postos
chaves na Fazenda Real.54
O filho de Ña Rosa, Honório Pereira Barreto, nasceu em Cacheu
em 1813 e, quando da morte do pai, foi chamado de volta à Guiné, de
Portugal onde estava estudando, a fim de tomar o lugar daquele nos
negócios da família. Juntos, mãe e filho determinaram o destino da com-
panhia comercial criada pelo marido e pai, e desempenharam um papel
dominante nos assuntos administrativos da região. Tal como no século
XVII, o controle do governador português estabelecido em Cabo Verde,
cuja jurisdição incluía as cidades e guarnições guineenses, era fraco ou
quase inexistente. Assim, a combinação entre a fama inquestionável de
Ña Rosa, baseada numa sólida associação de parentesco e empreendi-
mento, e o papel de seu filho na débil administração guineense, emergiu
com força na primeira metade do século XIX. Elementos centrais para
indicar o estado das relações de poder na época são o envolvimento de
Ña Rosa na produção agrícola para exportação na Guiné e Cabo Verde;
a sua influência sobre os governantes africanos e comunidades kriston; a
sua ação como mediadora de conflitos; o seu pedido para obter a custó-
dia legal de seus dois filhos; a meteórica carreira de seu filho na adminis-
tração do entreposto e, finalmente, o envolvimento de seu filho, e dela
própria, no tráfico de escravos. As fontes deixam claro que as operações
comerciais de Ña Rosa incluíam uma plantação, então chamada ponta, a
primeira deste tipo na região, onde escravos eram empregados no cultivo
de arroz: “A fazenda de D. Rosa de Cacheu, no Poilão de Leão, é a única
que existe no limite da Guiné Portuguesa”.55
A importância do arroz pode ser ilustrada pelo fato de que Cacheu,
54 AHU, 1ª secção, Guiné, Cx. 22, ant. a 31-10-1823.
55 José Conrad Carlos de Chelmicki & Francisco Adolfo de Varnhagen, Corografia Cabo Verdiana
ou Descripção Geographica Histórica da Provincia das Ilhas de Cabo e Verde e Guiné, 2
vols, Lisboa e Cunha, 1841; op cit, vol I, p. 184.
Afro-Ásia,
27 (2002), 79-120 101
assim como Ziguinchor, dependiam inteiramente da importação deste
produto da região circunvizinha, e que Gâmbia (isto é Bathurst), recém
tornada um estabelecimento britânico, estava, entrementes, atraindo o
grosso do comércio da região, criando, assim, novos mercados e incenti-
vando o cultivo do arroz como cultura de renda. Embora sua localização
seja conhecida, pouca informação é fornecida sobre a própria ponta.
Informações baseadas em rumores dão conta de que era uma “uma gran-
de fazenda que diziam estar bem cultivada”.56 A área era conhecida pela
existência de “habitações e campos de arroz” de comerciantes de
Cacheu.57 Muitas fontes falam da localização e sobre a produtividade da
plantação de Ña Rosa, embora ninguém, aparentemente, tenha-a visita-
do pessoalmente. Há, na verdade, boas pistas neste silêncio. O fato de
que a dita ponta, que ela presumivelmente “comprara” dos Bañun, esta-
va localizada num riacho (o Saral) que liga os rios Cacheu e Casamance,
numa área que escapava ao controle da administração portuguesa, e que
era insistentemente rotulada como uma rota de contrabando, ilustra sua
importância estratégica. A mesma área tinha, na verdade, sido o lugar de
povoamentos comerciais como o de São Felipe e Buguendo, importantes
centros do comércio afro-atlântico nos séculos XVI e XVII. Localizada
em território Bañum, seus trilhados caminhos eram bem conhecidos de
muitos comerciantes baseados em Cacheu, tais como Ña Bibiana. No
século XIX, a reputação da área revela a importância das relações de
parentesco com as comunidades locais, que controlavam o acesso à mes-
ma. Como pontuou um contemporâneo, “apesar de ser este caminho mais
comum e cômodo, por ser mais perto, não se pode ir sem algum perigo
das perseguições dos pretos, de modo que é preciso pagar-lhes para atra-
vessar as suas terras, como também para carregarem as fazendas, fato e
tudo o que qualquer quer levar”.58
Significativamente, o acordo era feito com os Bañun cujo poder e
controle territorial estavam, na época, muito reduzidos, já que o seu auge
tinha ocorrido em época anterior ao contato afro-atlântico. O pai de Ña
56 José Joaquim Lopes de Lima, Ensaios sobre a Estatística das Ilhas de Cabo Verde no
Mar Atlântico e suas Dependências na Guiné Portuguesa, Lisboa, Imprensa Nacional,
1844, p. 95.
57 Bertrand Bocandé, “Sur La Guinée Portugaise ou Sénégambie Meridionale”, Bulletin de la Societé
de Geographie de Paris, 3e serie, T.II (1849), p. 315.
58 Chelmicki, Corografia, I, p. 109
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Rosa mantivera excelentes relações com o “rei” Bañun de Jame (ou Jami),
situado num riacho que vinha de Ziguinchor, e que era então, assim como
no tempo de Ña Bibiana, uma importante fonte de escravos e cera de abe-
lha na região, onde Bibiana chegou a morar. Os paralelos com os episódi-
os do passado são, certamente, notáveis, também em relação aos fre-
qüentes casamentos mistos entre oficiais-comerciantes vindos de fora e
mulheres de descendência Bañun. Tais laços ofereciam vantagens para
ambos os lados, assegurando um fluxo contínuo de mercadorias baseado
no acesso privilegiado às provisões, e reforçando a confiança e as obriga-
ções mútuas que determinavam o sucesso comercial. Mobilidade social e
espacial eram importantes na região, que era conhecida por sua duvidosa
segurança, por causa dos ataques dos nativos, ou gentios, sobre as em-
barcações, raptando as tripulações. Devido aos avanços franceses sobre
a região na tentativa de estabelecer uma posição segura e tomar parte no
comércio, estas alianças eram, então, encaradas pelas autoridades portu-
guesas numa perspectiva nacional: “A conservação d’este ponto se deve
realmente ao Sr. Honório e a sua mãe D. Rosa, senhora muito rica, natu-
ral d’aqui, que exerce grande influência sobre os pretos”.59 Por “pretos”,
esta fonte entendia não somente os governantes africanos, mas também
as comunidades kriston vivendo no povoamento e ao seu redor, que for-
mavam a espinha dorsal do comércio litorâneo e conduziam as transações
com o interior. A comunidade de Cacheu era vista como sendo mais bem
comportada do que sua contraparte mais rebelde, a cidade comercial de
Bissau, e relações pacíficas eram mantidas com os Pepel, em cujos tchon
Cacheu estava localizada, tudo isto graças à presença de Ña Rosa. Como
resultado disto, ela e seu filho, Honório Pereira Barreto, capturaram a
imaginação dos cronistas e historiadores portugueses e cabo-verdianos,
em busca de ícones dos centenários e míticos elos “luso-africanos” para
reforçar as reivindicações territoriais portuguesas. Este aspecto foi, mais
tarde, explorado durante a ditadura nacionalista do Estado Novo (1926-
1974), quando alguns começaram a descrevê-la como a chefe do gan
Alvarenga: “A preponderância dos Alvarenga transmitia-se de tal modo,
59 Chelmicki, Corografia, I, p.107
60 Jaime Walter, Honório Pereira Barreto, Bissau, Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, 1947,
p. 12.
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que Rosa de Carvalho era conhecida pela designação de Rosa de Cacheu,
e cegamente acatada a sua autoridade pelos indígenas”.60
Imbuído de fortes tons nacionalistas, seu grande prestígio entre
os africanos, tanto “gentios” como “cristãos”, foi exaltado, sendo ela,
ainda, descrita como uma “senhora de cor, de grandes virtudes” com
“qualidades de honradês”. Suas ações e as de seu filho foram sistema-
ticamente colocadas numa perspectiva “lusocêntrica”, a fim de contras-
tar com as investidas francesas e inglesas na região da Senegâmbia na
época. Curiosamente, estes elogios emularam aqueles contidos no enci-
clopédico estudo publicado pelo historiador cabo-verdiano Senna Bar-
celos, escrito na virada para o século XX, quando se desenrolavam as
campanhas militares portuguesas que levariam à criação do estado co-
lonial na Guiné, conforme demonstra o trecho: “Esta senhora, de côr,
dominava as tribus da Guiné, os régulos eram seus vassalos e por isso
nos nossos domínios de Cacheu, Zeguinchor e Farim os gentios presta-
vam a mais cega obediência às autoridades”.61
Isto demonstra claramente a mudança de atitude em relação a
gênero, parentesco e cor, impelida pela necessidade de aliados e pelo
crescente sentido de nacionalidade. Suas operações comerciais iam além
da Guiné e se estendiam para a ilha de Santiago, no arquipélago de Cabo
Verde, que, afinal de contas, era a terra natal da linha masculina de sua
ascendência, que lá possuía “morgadios”. Pedidos de passaporte para
viajar às ilhas de Cabo Verde, feitos ao governador português baseado
no arquipélago, eram imediatamente atendidos, sem hesitação. Suas afi-
nidades com as ilhas assoladas pela fome são, também, evocadas quan-
do subscreve, junto com outros membros do gan Barreto, um pedido de
auxílio em meados dos anos 1850.62 Ña Rosa negociava diretamente
com escravos, arroz e cera de abelha, mas também com importantes
mercadorias de troca, tais como os panos de algodão, chamados “ban-
das”, produzidos nas ilhas, além de tabaco e pólvora, que circulavam
como moeda de troca local. Sua influência estendia-se para o universo
político em razão das posições administrativas ocupadas por seu marido
61 Cristiano José de Senna Barcellos, Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné, 5
vols., Lisboa, Typ. da Academia Real das Sciencias, 1899-1913, II, Parte 3, p. 159.
62 Boletim Oficial de Cabo Verde, no 2, 23-3-1855.
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e seu filho, mas também como decorrência dos laços que mantinha com
as comunidades estrategicamente localizadas no litoral, tais como os
Bañun/Kasanga, Felupe/Djola e Pepel. Ela foi chamada muitas vezes,
tanto pelas autoridades portuguesas quanto guineenses, para mediar con-
flitos nas praças de Ziguinchor, Cacheu e Farim, e não hesitou, sempre
que necessário, em usar o seu exército de escravos. Um dos exemplos
desta ação de Ña Rosa foi a sua mediação entre as aldeias Pepel da área
de Cacheu e as autoridades da cidade, a pedido destas, em 1825.63 Ao
eliminar os impedimentos ao livre exercício do comércio na região ela,
naturalmente, era uma das principais beneficiárias de tais apaziguamen-
tos. Que sua influência política era sentida através da região norte da
Guiné-Bissau e Senegâmbia, incluindo Casamance, é algo que também
fica patente nas fontes francesas.64 Mas, notavelmente, a prioridade é
dada à carreira meteórica de seu filho, Honório Pereira Barreto, que Ña
Rosa promoveu de forma determinada. Ele pôde gozar largamente da
influência de sua linhagem paterna, mas sobretudo da materna; pois a
própria posição proeminente de sua mãe como comerciante afro-atlânti-
ca foi decisiva para o sucesso de suas aventuras comerciais. Ao mesmo
tempo, os serviços prestados por seu pai na administração local muito o
ajudaram em sua carreira política
No que tange ao universo privado, os dados também indicam a
ocorrência de mudanças nas percepções e práticas. Com a morte de seu
marido, Ña Rosa submeteu um pedido formal a Lisboa para obter a
guarda de seus dois filhos, Honório e Maria, que foi provisoriamente
garantida. Os documentos incluem testemunhos de moradores de Cacheu,
acerca da sua capacidade para educar os filhos. Aqueles que atestaram
sua responsabilidade moral e civil declararam, inequivocamente, “pela a
conhecer ha muitos anos, ser ela muito capaz e suficiente para a boa e
fiel administração dos bens de seus filhos, porquanto é assas público e
notório a actividade, zelo e intelligência com que tem portado negócios
dos seu cazal e na boa educação dos seus filhos”.65 Inquirida sobre o
63 Ibidem, p.348
64 Veja Christian Roche, “Ziguinchor et son passé (1645-1920)”, Boletim Cultural da Guiné Por-
tuguesa, XXVIII, 109 (1973), pp.35-59.
65 AHU, 1ª secção, Guiné, Cx. 23, 18-12-1828
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assunto, Ña Rosa declarou que ela não só renunciava a todos os direitos
e privilégios que a viuvez podia assegurar pela lei portuguesa, mas “que
obrigava todos os seus bens presentes e futuros pela boa e zelosa admi-
nistração dos seus filhos, e para que hipotecava os seus mesmos bens”
(ibidem). Este foi um dos primeiros casos nos quais tais direitos foram
formalmente garantidos para um cidadão nascido na Guiné, e é particular-
mente significativo o recurso à lei portuguesa por uma viúva, como meio
para assegurar direitos paternais, não só demonstrando o seu controle so-
bre os negócios da família como a extensão dos seus recursos materiais.
A parceria estratégica entre mãe e filho, no âmbito comercial e
político, permitiu a Ña Rosa e aos seus sucessores obterem contratos-
chave da administração. Um dos grandes prêmios foi o contrato para
“arrematação” das alfândegas de Cacheu, Bissau e Bolama em 1845. O
citado contrato tinha sido, previamente, entregue a uma das principais
casas comerciais guineenses, dirigida por uma sociedade rival,
estabelecida em Bissau, formada por Aurélia Correia e Caetano José
Nozolini. Todavia, este último tinha oferecido “condições inaceitáveis”
a uma proposta alternativa. A doação que Honório Pereira Barreto tinha
feito, no mês anterior, à coroa portuguesa, dos contratos para o direito
de estabelecimento que ele tinha celebrado com vários chefes africanos
no rio Casamance, provavelmente também teve influência na decisão da
coroa de outorgar-lhes a mencionada “arrematação”. No contrato, Ña
Rosa e seu filho são designados como “moradores proprietários” de casa
comercial baseada em Cacheu. Nas fontes contemporâneas, são elogia-
das as habilidades de barganha que seu filho empregava nas negociações
com vários chefes locais, de diversas comunidades nativas da região,
bem como a sua capacidade para atrair investidores estrangeiros. É
indicativo de seu status o fato de que comerciantes ingleses, belgas e
franceses tenham-no escolhido “como o único árbitro em todas as ques-
tões que podiam surgir com o governador geral de Cabo Verde”, isto é,
com Joaquim Pereira Marinho, com o qual ele mantinha relações cordi-
66 É interessante notar, nesse contexto, que o mesmo governador Marinho teve uma
postura muito dura acerca do casamento misto e da miscigenação entre “pretos e
mulatos”, sublinhando a necessidade de “branquear” a população de Cabo Verde, a fim de
evitar que “as famílias desta Província retrogradem para a raça Africana”. AHU, CV,
Pasta 3, 11-12-1838.
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ais.66 Os tratados assinados com as tabankas (kriol: aldeia ou períme-
tro cercado) Bañun do rio Casamance, perto de Ziguinchor, e com os
régulos Pepel na vizinhança de Cacheu assim como os negociados com
os Biafada e Bijagós, mostram o quanto a rede de parentesco e
clientelismo que ele cultivou devia-se à sua ascendência materna e edu-
cação, como era então reconhecido: “Este senhor, um filho do país, exerce
sobre os povos gentios uma extraordinária influência conhecendo os
seus usos e costumes, e até a própria linguagem, acatando diplomatica-
mente os seus prejuízos. Distribuindo com largueza seus haveres, e es-
tudando com extrema finura seus caprichos e interesses pode, ao seu
bel prazer, entre aqueles povos atear a guerra, ou conseguir a paz”.67
Sua reputação de “patriota português”, que ele mesmo, “um es-
curo e obscuro Africano”, cultivou, era, todavia, acompanhada por uma
dura atitude crítica acerca da estreiteza de visão da política portuguesa
diante da expansão francesa na região.68 Obviamente, a opinião franca
de um comerciante guineense em relação aos seus superiores em Cabo
Verde e Lisboa, que reclamavam a soberania sobre a região, provocou
reações díspares. Visto como “a pessoa mais instruída de toda a nossa
Guiné”69 , ele foi o primeiro governador a publicar suas opiniões e quei-
xas num ensaio muito citado. É uma devastadora acusação, feita por um
guineense que enxerga a lastimável condição das poucas “possessões
portuguesas” em meados do século XIX: “Desgraçadamente, se pode
dizer que nestas possessões há um governador, e comandante, mas que
não há governo. O país está inteiramente desorganizado. Todos os em-
pregados, desde o primeiro até o último, ignoram quais são seus deveres;
só tratam de seus negócios, pois são negociantes”.70 Embora ele, clara-
mente, reconheça as relações desiguais de poder na região, mostra pouco
respeito pelo modo de vida de seus moradores:
67 Januário Correia de Almeida, Um Mez na Guiné, Lisboa, Typ. Universal, 1859, p. 23
68 As suas críticas faziam eco àquelas feitas pelo então deputado Alexandre Herculano nas Cortes
poucos anos antes; vide Luciano Cordeiro, “A Questão da Guiné num discurso de Alexandre
Herculano”, in Obras de Luciano Cordeiro, I, Questões Coloniais, Coimbra, Imprensa da Uni-
versidade, 1934: pp. 633-662.
69 AHU, 2ª secção, Cabo Verde, Pasta 3, 5-4-1837
70 Barreto, Memória, p. 9
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Os estabelecimentos são cercados por gentios mais ou menos
insolentes, mas que geralmente dominam os Portugueses (..) Dos
gentios vizinhos aos nossos estabelecimentos vem os sustentos
(..) Os habitantes, à excepção dos poucos notáveis, seguem os
costumes dos gentios, de que descendem (..) São preguiçosos,
indolentes, inertes, e a nada se querem aplicar; podendo, se
queizessem, levar a grande escala a agricultura, pois o terreno é
fecundo (..) Não tem idéia alguma de moral, nem de virtude soci-
ais; mamam o leite da devassidão, vivem brutalmente e morrem
quase sempre cheios de moléstias venéreas.71
Quanto mais fala do papel de Lisboa, mais claro o documento se
torna: “Nomeado um governador, não por suas virtudes e talentos, mas
pelo partido que segue, é logo julgado infallível e santo (..) o governador
é agraciado, antes de exercer seu cargo pelos serviços que há de fazer, e
é agraciado depois pela participações que deu, sem o governo procurar
saber se são ou não verídicas” e vai além, ao afirmar que a “má qualida-
de de gente que da Europa vem para estas Possessões, é uma das causas
do atraso da civilisação delas. Degradados por crimes infames, e ho-
mens da mais baixa classe do povo, e que apenas aqui chegados passam
a ser notáveis e até oficiais, não podem introduzir bons costumes; antes,
pelo contrário, adoptam os de cá, porque favorecem a sua immoralida-
de.”72 Apesar disto, as fontes portuguesas o elogiam por seu alegado
patriotismo e filantropismo. Honório Pereira Barreto, segundo elas, era
dono de “uma das casas comerciais desta província; a que possui talvez
mais numerário e a que tem mais crédito nas suas transacções e que o
mesmo coronel é o único cidadão desta província que faz sacrifícios
pecuniários ao governo sem interesse algum próprio”.73 Outros elogia-
vam sua “real inteligência e patriotismo”,74 assim como seu “acrisolado
patriotismo [ao qual] se deve a conservação de alguns dos nossos estabe-
71 A despeito de sua origem, ele sempre aconselhou Lisboa a nunca indicar um residente
local, pois isto poderia facilitar abusos: “todos, sem excepcçao são negociantes; e de tal
lugar só servirá para o exercerem em seu proveito”. Idem, Ibidem, pp. 47-8.
72 Ibidem, pp. 37-8 e 41-2
73 AHU, 2ª secção, Cabo Verde, Pasta 3, 11-3-1838
74 AHU, 2ª secção, CV, Pasta 21, 11-5-1856
75 Almeida, Um Mez na Guiné, p. 24
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lecimentos da Guiné”.75
As razões para tais elogios são patentes: sem nenhum controle
efetivo sobre a região, a coroa portuguesa tinha de confiar na iniciativa
daqueles que estavam preparados para ocupar postos na administração
local e podiam reivindicar certa autoridade diante das populações locais.
Honório Pereira Barreto atribui, enfaticamente, a um preconceito de
cor o fato de que seus repetidos apelos não eram levados a sério em
Lisboa. Amargamente, reclamava que “parece que a minha cor tem
sido o único motivo de não serem atendidos minhas participações, com
quanto eu julgue que a verdade e o patriotismo não tem cor”.76 Negoci-
ando intensivamente com dignitários africanos acerca de direitos de ter-
ra e tratados de paz, ele criticava aqueles que condenavam essa sua
política, pois “julgam que o negro é igual ao macaco”.77 A despeito do
fato de que os habitantes da região estavam sendo seduzidos por nações
rivais, os portugueses só os viam como “pretos”.78 Em seus prolíficos
escritos como oficial militar ele fez algumas referências diretas à sua
mãe, que respeitosamente chamava de “Dona Rosa Carvalho
d’Alvarenga”.79 Nestes escritos, mostrou grande admiração por ela e
pelo gan Alvarenga: “Pela Guiné hei sacrificado minha fortuna, minha
saúde, e o que mais é o bem estar da minha família, que idolatro”.80
Mas alguns dos aspectos menos palatáveis — por exemplo, aqueles
associados ao tráfico de escravos, que era regulado nos tratados entre
as nações européias da época da Conferência de Viena — foram conve-
nientemente omitidos pela historiografia oficial. Os acordos de mãe e
filho como comerciantes (de escravos) privados foram completamente
obscurecidos por sua carreira política. A evidência de que eram trafican-
tes está contida nos relatórios da comissão anglo-portuguesa encarrega-
da de supervisionar o cumprimento dos tratados que visavam abolir a
76 AHU, 2ª secção, CV, Pasta 23, 27-2-1857
77 AHU, 2ª secção, CV, Pasta 23, 5-5-1857
78 AHU, 2ª secção, CV; Pasta 23, 27-2-1857
79 AHU, 2ª secção, CV, Pasta 22, 28-7-1856
80 AHU, 2ª secção, CV, Pasta 23, 29-5-1857. É possível que o tom amargo, que se torna habitual
na segunda metade dos anos cinqüenta, esteja associado à morte da sua mãe.
81 ANTT, Fundo do Ministério de Negócios Estrangeiros , Cx. 224, Comissão Mista de Serra Leoa
(1819-1857), Comissão de Cabo Verde, Of. 12, Boa Vista, 17-2-1844. .
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exportação de escravos da África Ocidental. Eles demonstraram que, a
despeito de Honório Pereira Barreto, no final de sua carreira, ter tomado
medidas favorecendo a alforria e abolição do tráfico de escravos, ele e a
sua mãe tinham traficado escravos em Cacheu nos anos 1830 e ainda na
década seguinte.81 Documentos mostram que a escuna capturada pelas
autoridades inglesas, que transportava escravos para as Bahamas, era
de propriedade de Ña Rosa, e que a maioria dos escravos estava regis-
trada em seu nome e em nome de seu filho.82 Na verdade, ela tinha
deixado instruções escritas para o comandante do navio sobre do que
fazer com sua carga. Uma vez que os escravos foram embarcados na
calada da noite, e consignados a um traficante privado (norte-america-
no) operando na costa, a tentativa de enganar os oficiais britânicos tor-
nou-se clara. Por isso, a correspondência britânica sobre o assunto afir-
ma que o estabelecimento-sede da empresa comercial da família em
Cacheu “tem sido freqüentemente indicado (...) como um bem notório
mercado de escravos”.83 A despeito do declínio de Cacheu como
entreposto de escravos durante a primeira metade do século XIX, a
casa comercial Alvarenga-Barreto era, de longe, a maior proprietária de
escravos da área na década de 1850. Na ocasião do primeiro censo de
escravos, realizado em 1857, a casa comercial possuía 147 escravos,
sendo 77 mulheres e 70 homens. O clã Alvarenga tinha 290 escravos
em Cacheu e Ziguinchor, o que representava mais de um quarto de
todos os escravos registrados (1085) destas localidades.84 Honório Pe-
reira Barreto possuía 61 escravos (47 mulheres e 14 homens), enquanto
seus parentes pela linha paterna (os Barreto) tinham 19 escravos. As-
82 Public Records Office (PRO), London, PRO/FO, 84/117. Dados gentilmente fornecidos
por João Pedro Marques. Para uma perspectiva histórica da abolição no contexto
português, vide Marques, Os Sons do Silêncio, op. cit.
83 Ibidem.
84 AHU, Fundo do Governo da Guiné, Livro 35
85 Os Alvarengas baseados na ilha de Santiago, em Cabo Verde, também possuíam escravos, embo-
ra em número muito menor; vide os dados do censo de escravos de 1856 em António Carreira,
Cabo Verde; formação e extinção de uma sociedade escravocrata (1460-1878), Bissau, Cen-
tro de Estudos da Guiné Portuguesa, pp. 512-20. Honório Pereira Barreto também possuía dois
escravos na ilha de Santiago (Carreira “Cabo Verde”, p. 519), e parentes dos dois “gan” possu-
íam cerca de trinta escravos. Na época, o maior proprietário de escravos do arquipélago tinha
pouco mais de 50 escravos, enquanto os ricos comerciantes da Guiné podiam possuir centenas de
escravos. O número total de escravos registrados no arquipélago era de 5.182, três quartos dos
quais em Santiago e Fogo.
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sim, juntos, eles detinham catorze por cento da população cativa. Os
dois clãs controlavam mais de um terço de todos os escravos de
Ziguinchor e Cacheu.85 Enquanto isto, a criação de um conselho muni-
cipal em Cacheu em 1850 tinha, finalmente, implementado um decreto
real que datava de 1605, e que lhe conferia os direitos de “cidade” e,
portanto, uma aura de “respeitabilidade” após ter servido por mais de
três séculos como porto de escravos.
Em contraste com a sua mãe, não há evidências de que Honório
Pereira Barreto tenha se casado,86 uma circunstância interessante, con-
venientemente ignorada por seus biógrafos, que se abstêm de qualquer
referência à sua vida privada.87 Uma fonte chega a admitir que “ele
morreu solteiro, mas deixou descendência”.88 Após o seu desapareci-
mento de cena, a influência e autoridade que tinha acumulado junto às
sociedades africanas, e que conduziam até a mater familias Ña Rosa,
foram aparentemente ignoradas pelas autoridades de Lisboa e Cabo Ver-
de, durante a “corrida para a África”, como reconhece um autor: “Por
morte de Dona Rosa passou esse grande prestígio para o filho e depois
para os descendentes. O que teem perdido, por culpa das autoridades
locais, que decidiram resolver os conflitos à força de balas, de preferên-
cia à intervenção diplomática dessa família, o que seria muito mais útil à
prosperidade da colônia para o aumento do comércio e desenvolvimento
da agricultura”.89
Conclusões
86 Sobre a origem dos gan guineenses, veja George E. Brooks, “Notas Genealógicas de
Proeminentes Familias Luso-Africanas no Século XIX na Guiné”, Soronda, Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP), Bissau, 9 (1990), pp. 53-71.
87 O fato de que só os filhos de sua irmã, Maria Pereira Barreto, casada com o funcionário e comer-
ciante guineense Cleto José da Costa, foram considerados como seus únicos sucessores legais
poderia confirmar isto. Arquivo Histórico Nacional, Praia, Cabo Verde, Secretaria Geral do
Governo, A6/9, Guiné: 21-8-1878.
88 Barreto, História da Guiné, p. 241. Seus descendentes diretos, embora “ilegítimos”, (todos ho-
mens), foram Rufino António Barreto, Pedro Pereira Barreto, Ludgero Pereira Barreto, Ernesto
Pereira Barreto e Heitor Pereira Barreto; eram caixeiros e “nenhum deles possuía qualquer meio
de riqueza” AHU, Lisboa, Cabo Verde, Pasta 51, 30-9-1871.
89 Senna Barcellos, Subsídios para a História, II, 3ª parte, p. 159
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Um das mais complexas tarefas com que se defronta o pesquisador que
tenta reconstruir o impacto do comércio afro-atlântico sobre as socieda-
des pré-coloniais é, precisamente, a desconstrução de categorias, com
base na diferença e desordem onipresentes nas fontes disponíveis. O que
se torna claro, após consultar pilhas de documentos tirados de pratelei-
ras empoeiradas, é que tanto as práticas quanto as representações sofre-
ram mudanças marcantes ao longo dos três séculos do contato afro-atlân-
tico. O fato de que a interação social, num sentido intercultural, esteve
sempre entranhada nas transações comerciais, sublinha seu caráter ne-
gociado. Na ausência de um controle externo, processos contínuos de
negociação eram fatores-chave na construção de redes de parentesco e
clientelismo e no estabelecimento de direitos e obrigações recíprocas. Ao
mesmo tempo, o comércio era uma fonte de profunda desordem e confli-
tos resultantes do tráfico atlântico de escravos. Ainda que a troca comer-
cial, sempre em parceria com a conversão religiosa, tenha se tornado o
padrão para julgar o “outro” no contexto afro-atlântico, aqueles a ele
associados eram vistos diferentemente, em consonância com a cambian-
te configuração das relações afro-atlânticas. Os comerciantes tanto po-
diam ser vistos depreciativamente, como inferiores, pela camada aristo-
crática da Europa pré-industrial, quanto, dos fins do século XVIII em
diante, como agentes civilizadores dos povos africanos.
Estas variadas visões estavam diretamente relacionadas a mudan-
ças nos padrões de comércio e interação. Embora fossem a mercadoria
mais importante da conexão afro-atlântica até o século XIX, os escravos e
a escravidão já eram partes integrantes das sociedades ibéricas e do mun-
do mediterrânico mais amplo antes da “descoberta” do comércio transa-
tlântico no século XV.90 O contraponto entre diferentes culturas, tais como
90 Isabel M.R. Mendes Drumond Braga, Mouriscos e Cristãos no Portugal Quinhentista:
duas culturas, duas concepções religiosas em choque, Lisboa, Hugin, 1999; I.O. Hunwick,
“Black Slaves in the Mediterrenean World: introduction to a neglected aspect of the
African diaspora”, in: Elizabeth Savage The Human Commodity: perspectives on the
Trans-Saharan Slave Trade, London, Frank Cass, 1992, pp. 5-38.
91 A.C. de C.M de Saunders, Escravos e Libertos Negros em Portugal (1441-1555), Lisboa, Im-
prensa Nacional/Casa da Moeda, 1994; e também José Ramos Tinhorão, Os Negros em Portu-
gal: uma presença silenciosa, Porto, Ed. Caminho, 1997.
92 Boxer, Relações Raciais no Império Colonial Português; vide também John Thornton, Africa
and Africans in the Making of the Atlantic World, 1400-1680, Cambridge, Cambridge University
Press, 1992.
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o Islã e a cristandade, que abraçaram a escravidão e o tráfico de escra-
vos, foi o ponto de partida e serviu como justificativa para a expansão
levada a cabo por Portugal e Castela. A presença de africanos na Europa
era silenciada ou demonizada, por exemplo, em Portugal, especialmente
após a contra-reforma.91 Eles também eram os meios pelos quais as re-
lações de poder eram estruturadas no mundo Atlântico, tanto na Europa
quanto fora dela.92 Conflitos engendrados no contexto afro-atlântico iri-
am estimular fortemente o comércio triangular, o que aumentaria a
estratificação baseada no gênero, parentesco, cor, raça e religião, por
meio dos laços constituídos em torno do casamento, concubinato, sujeição
por dívida, adoção temporária, rapto e incursões para capturar escravos.93
Enquanto os homens atlânticos atuavam como fornecedores de mercado-
rias tais como ferro, pólvora e álcool, as mulheres africanas eram, sobre-
tudo, vistas como mercadorias que foram integradas nos agregados dos
comerciantes como escravas e concubinas. Por isto, não é coincidência
que aquelas mulheres africanas que obtiveram notoriedade e fama fos-
sem todas beneficiárias do status de livre, agissem como cabeça da famí-
lia, possuíssem e dirigissem casas comerciais e não estivessem inibidas
por obrigações conjugais. Conseqüentemente, elas não tinham de se en-
caixar nas vigentes noções patriarcais de empreendimento, nem precisa-
vam se adequar aos padrões de relações hierárquicas baseadas na escra-
vidão. Ainda que inseridas num espaço africano amplo, elas, quando viú-
vas, por estarem no contexto específico das povoações afro-atlânticas,
conseguiram escapar ao levirato e escolher os seus parceiros, ou consti-
tuir a sua própria linhagem, sem intervenção dos seus pares. Atuando
como comerciantes e indivíduos por seu próprio direito, e extraindo gran-
de autoridade de suas relações de parentesco com linhagens governantes,
elas emergem das fontes como poderosas atrizes num mundo aparente-
mente dominado pelos homens. Tidas, primeiramente, como ameaça aos
poderes instalados, as ñara, com o tempo, passaram a ser vistas como
uma benção. No momento em que os produtos agrícolas apresentaram-se
como uma alternativa viável aos escravos, a situação mudou: as mulheres
africanas comerciantes tinham, agora, acesso à terra e ao seu usufruto,
exercendo, então, elas próprias, o controle sobre a produção, e ganhando
93 White, Women in West and West-Central Africa, p. 70.
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“legitimidade” no processo. O fato de que tenham se aliado a influentes
homens atlânticos estrangeiros foi crucial para a sua recém adquirida “res-
peitabilidade” e a de seus filhos, então também em função das noções
raciais. Claramente, os nacionalismos emergentes no contexto colonial —
note-se a patente conotação feminina de nacionalidade, em contraste com
a ideologia masculina construída em torno da noção de cidadania — am-
pliaram a importância da conexão “luso-africana”, a ponto de, nesta, se-
rem aceitos grupos sociais e indivíduos que, até então, tinham sido ex-
cluídos.
O pouco que tem sido escrito sobre as relações interculturais na
região joga alguma luz sobre as diferentes valorações acerca das parce-
rias acima descritas e sobre o seu significado para a história social da
interação e troca afro-atlântica. As abordagens extrapoladas a partir das
fontes escritas diferem, claramente, entre si, de acordo com o período
considerado: enquanto Bibiana e seu irmão foram acusados de auxiliar a
expansão de interesses não-portugueses na região, Ña Rosa e seu filho
foram elogiados por fazerem exatamente o inverso. Enquanto a oposição
à interação entre governantes africanos e comerciantes atlânticos marca
fortemente as fontes do século XVII, a cooperação entre as duas partes
foi advogada no século XVIII. Enquanto as ações de Ña Bibiana e seus
parentes foram vistas como fomentadoras da disrupção, a atuação de Ña
Rosa e seu filho foi tida como preventiva e pacificadora de rebeliões,
além de mediadora de conflitos. Enquanto o tráfico do gan Vaz foi con-
denado, o do Alvarenga foi tolerado, ou simplesmente ignorado. En-
quanto as propriedades de Ña Bibiana, que ficavam fora do alcance das
autoridades portuguesas, levaram estas a vê-las com grande suspeita, a
fazenda pertencente a Ña Rosa, localizada numa rota de contrabando,
foi tida como um empreendimento elogiável. Enquanto o papel de Ña
Bibiana, considerada uma madrasta ruim, foi vituperado, a reputação
maternal de Ña Rosa foi positivamente avaliada. Enquanto a longa car-
reira administrativa e comercial (bem sucedida desde os anos 1730) de
Ambrósio, irmão de Ña Bibiana, recebeu escassas menções devido à sua
atitude crítica às políticas portuguesa, a de Honório Pereira Barreto,
filho de Ña Rosa, foi saudada como um grande exercício patriótico, a
despeito de ele ter, publicamente, denunciado a séria falência de tais
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políticas.
Todavia, num outro nível da análise, certos denominadores co-
muns também aparecem. O perdão que as autoridades portuguesas es-
tenderam a Ña Bibiana, seu irmão e seu primo evidencia um senso de
“força maior” frente às relações de poder na região, da mesma forma que
os seus esforços para reconhecer e valorizar os contatos de Ña Rosa e
seu filho. O reconhecimento implícito do poder e da influência do gan
Vaz, que estava bem entranhado nas comunidades africanas, tornou-se
explícito no reconhecimento da autoridade derivada da descendência afri-
cana por parte do gan Alvarenga, e sobretudo a de Ña Rosa e seu filho.
Em ambos os casos, fatores externos ditaram as atitudes. Ao mesmo
tempo, as tradições orais da região sugerem que, entre as comunidades
kriston, estas mulheres eram veneradas como “mindjeres garandis” (kriol:
mulheres grandes) e matriarcas de um poder hegemônico no passado. A
crescente influência de outras nações européias na região, no século XVII,
que pôs fim ao efetivo monopólio de Portugal sobre o comércio de mer-
cadorias e escravos no âmbito regional e Atlântico, e a sua renovada
penetração no século XIX, foram determinantes para a aquiescência
mostrada diante dos clãs locais e de seus negócios. A confusão política e
econômica que afetou Portugal após o período da dominação de Castela
(1580-1640), a independência do Brasil e a revolução liberal nas primei-
ras décadas do século XIX também desempenharam um papel importan-
te na definição de atitudes e políticas.
As intervenções e visões contidas nas fontes localmente produzi-
das, tais como os relatórios de governadores e as petições das comunida-
des mercantis, ilustram claramente esta ambivalência, que caracterizou
as representações no período pré-colonial. A despeito de lacunas na pro-
dução histórica sobre a região, as atividades do que tem sido chamada de
camada “luso-africana” e as suas relações com as sociedades africanas
têm produzido, nas últimas décadas, uma crescente literatura sobre as
áreas de presença lusófona na África. Estes grupos, usualmente vistos
94 Peter Mark, “Constructing Identity: sixteenth and seventeenth century architecture in
the Gambia-Geba region and the articulation of Luso-African identity”, History in
Africa, 22 (1995), pp. 307-27, e também do mesmo autor “The Evolution of Portuguese
Identity: Luso-Africans on the Upper Guinea coast from the sixteenth to the nineteenth
century”, Journal of African History, 40 (1999), pp. 173-91.
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como híbridos e intermediários, foram objeto de considerável confusão
por parte dos observadores atlânticos, e mesmo os escritos históricos
mostram dificuldades em lidar com eles. O fato de que viviam em casas
retangulares avarandadas, muitas vezes pintadas com cal (feito com con-
chas de ostras), construídas junto às margens dos rios, enquanto seus
vizinhos moravam em cabanas circulares feitas de barro, tem sido toma-
do como um indicador de sua identidade enquanto grupo.94 A categoria
“luso-africano” foi, também, extrapolada das fontes dos viajantes a fim
de dar-lhes uma aura de “etnicidade” que transcendia as categorias cul-
turais existentes até então: português ou africano.95 Outros, entretanto,
deram grande ênfase à sua eficiente mobilidade espacial e social, mo-
vendo-se entre rios e riachos, e entre diferentes camadas sociais, assim
como sua diversidade cultural e social.96 Do mesmo modo que muitos
outros agentes operando no solo africano, eles foram descritos como
“hóspedes”, residindo em lugares indicados para este propósito pelos
senhores da terra, isto é, pelas linhagens governantes, às quais eles de-
viam fidelidade em troca de proteção. A este respeito, a afirmação de
sua condição liminar no contexto Atlântico foi a precondição para o seu
sucesso comercial em costas africanas.97
A necessidade de assentar sua presença e suas atividades nas co-
munidades africanas das quais estas mulheres emergiam, e em cujo tchon
(chão, território) com elas coabitavam, é ainda mais importante. O fato de
que eram comerciantes, e não agricultores, uma circunstância que, muitas
vezes, tem sido negligenciada, é fundamental. Tal como qualquer outro
comerciante local, eles tinham de pagar um tributo, ou daxa, aos seus
anfitriões e parentes por cada transação e travessia em território indígena.
Eram obrigados a receber e a servir aos seus anfitriões e parentela, caso os
95 José da Silva Horta, “Evidence for a Luso-African Indentity in Portuguese Accounts on
Guinea of Cape Verde (sixteenth to seventeenth centuries)”, History in Africa, 27
(2000), pp. 99-130.
96 George E. Brooks, Perspectives on Luso-African Trade and Settlement in the Gambia and the
Guinea Bissau region, 16th to 19th centuries, Boston, African Studies Center Working Papers,
1980 e do mesmo autor “Historical Perspectives on the Guinea Bissau region, fifteenth to nineteenth
centuries”, in: Avelino Teixeira da Mota: In Memoriam, Lisboa, Academia da Marinha (1987),
pp. 277-304; vide também Jean Boulègue, “Les Luso-Africains de Sénégambie”, op. cit.
97 Carlos Alberto Zerón, “Pombeiros e Tangomãos: intermediários de escravos na África”, in: Rui
Manuel Loureiro & Serge Gruzinski, Passar as Fronteiras, (Centro de Estudo Gil Eanes, La-
gos, 1999), pp. 15-38.
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primeiros assim o quisessem. Embora se beneficiassem da proteção, tam-
bém ao nível espiritual, fornecida pelas linhagens dirigentes, estavam su-
jeitos às mesmas leis aplicadas a outros hóspedes e camadas profissionais.
Laços entre eles e seus vizinhos e clientes eram reforçados pela kriason,
ou seja a adoção temporária para criar e educar filhos alheios, e a
kuñadundadi ou relações entre parentes colaterais. Menos do que integrar
uma categoria “luso-africana” abstrata, eles pertenciam às comunidades
kriston, que constituíam o verdadeiro núcleo dos estabelecimentos afro-
atlânticos. Diferentemente do principal escol dos gan, que falava crioulo
cabo-verdiano, a sua linguagem nativa era o kriol, ou crioulo guineense.
Era usada como a “língua franca” das transações comerciais, embora eles
também tivessem controle sobre uma linguagem “étnica”, a qual evocava as
suas raízes sociais e culturais externas aos povoamentos comerciais: um
membro da comunidade kriston de Cacheu podia ter ancestrais Pepel, e um
seu equivalente de Ziguinchor podia, invariavelmente, reclamar seu paren-
tesco com os Bañun. Dependendo de suas relações com as linhagens que
detinham direitos ancestrais sobre a área do assentamento, eles podiam rei-
vindicar propriedades e posições, obtendo influência em relação a seus pares
e clientes. O fato de que os padrões de descendência das comunidades africa-
nas com as quais estavam relacionados eram predominantemente
matrilineares, e de que eles próprios aderiram a práticas bilaterais, implicou
em contradições com as tradições patrilineares comuns no Atlântico norte.
Um dos principais obstáculos à interação afro-atlântica foi, precisamente, a
questão do controle sobre a exploração do comércio e, sobretudo, os privilé-
gios concedidos ao parentesco colateral matrilinear, em detrimento da linha-
gem patrilinear. A duradoura ambivalência no tocante às relações de paren-
tesco e gênero em um contexto intercultural assume um significado clara-
mente definido, quando ancorado em relações de poder locais.
O fato de que a transferência e o controle dos recursos deu-se
98 Um autor, Wilson Trajano Filho, situa esta mudança nos anos sessenta do século XIX;
vide Wilson Trajano Filho ‘Polymorphic Creoledom: the ‘creole society of Guinea
Bissau’, tese de doutoramento, não publicada, University of Pennsylvania, 1998.
99 As subscrições para o auxílio aos habitantes de Cabo Verde, em que Trajano Filho se apóia como
indicadores para o crescente entrelaçamento e homogeneidade dos gan, ilustram claramente esta
kambansa (Kriol: viragem) e reorientação para o exterior. Só um século mais tarde, os gan se viram
obrigados a reatar os laços com as sociedades guineenses no litoral durante a campanha de mobiliza-
ção e a luta pela libertação, liderada pelo PAIGC (Partido de Independência de Guiné e Cabo Verde).
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segundo o padrão matrilinear no caso de Ña Bibiana, embora aparente-
mente em conformidade com o costume patrilinear no caso de Ña Rosa,
é fundamental para compreender o tratamento diferenciado dado a cada
uma delas nos documentos escritos. No século XIX, os gan gradualmen-
te evoluíram para unidades crescentemente autônomas, aparentemente
auto-suficientes, embora fortemente entrelaçadas entre si.98 Como con-
seqüência da imigração cabo-verdiana, os novos gan, que cresceram,
sobretudo, em Bissau, privilegiaram os laços com o arquipélago à custa
de suas raízes entre os povos do litoral.99 As suas estratégias de acumu-
lação, aceleradas pelo crescimento das pontas, também contribuíram
para isso, devido ao grau de endividamento, ficando eles, deste modo, à
mercê de capitais europeus, nomeadamente franceses.
As grandes mudanças ocorridas a partir dos anos trinta do século
XIX provocaram fluxos migratórios entre as comunidades africanas,
dentre as quais a Balanta, Fula, Manjaku e Mankañe, especializadas em
culturas de exportação: mankara ou amendoim, coconote ou caroço de
palmeira, algadon ou algodão, e buracha ou borracha, e também arus
ou arroz. Porém, as comunidades que tinham estado profundamente en-
volvidas no tráfico de escravos, tais como a Bañun, Biafada e Mandin-
ga, perderam terreno. Como conseqüência, os padrões de aliança e os
arranjos de parentesco transformaram-se durante o século XIX, visto
que os dois povos mais numerosos, isto é, os Balanta e os Fula, eram
patrilineares.100 A ocupação da região da África Ocidental pela ação
militar européia reforçou ainda mais a redefinição das relações entre os
gan, os kriston e os povos do litoral. Em vez de mediação, os poderes
europeus confiaram na força armada para criar estados coloniais. Esta
estratégia teve o efeito de quebrar a autonomia não só das sociedades
africanas, mas também dos gan e dos kriston das praças. As medidas
baseadas na segregação segundo linhas raciais e na nacionalização, ou
“lusitanização”, do comércio, visavam reduzir ou excluir estes grupos
das receitas geradas pela economia de extração e plantação. A crise eco-
nômica provocada pelos conflitos armados na região e pelo quase desa-
100 No caso dos Fula, eram os Fula-Djiábe, cativos originários dos Soninké e Biafada, que,
progressivamente islamizados pelos Futa-Fula ou Fula-Ríbe vindos do Futa Djallon,
adotaram tradições partilineares; vide Joye Bowman, Ominous Transition: commerce
and colonial expansion in the Senegambia and Guinea, 1857-1919, Alderhsot, Averbury,
1997.
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parecimento das pontas, nos anos oitenta do século XIX, que deixou o
tecido empresarial muito enfraquecido, facilitou grandemente esta tare-
fa. Os inúmeros impedimentos à mobilidade espacial e social — a “mar-
ca registrada” das comunidades afro-atlânticas — que daí resultaram
tiveram um forte impacto sobre as relações de gênero. A imposição de
conceitos racistas e patriarcais na legislação marginalizou, efetivamen-
te, as mulheres africanas, limitando as suas opções a estratégias de so-
brevivência, e pondo fim às parcerias de acumulação como aquelas aci-
ma referidas. Mas estas mudanças vão além do escopo deste ensaio.
Hierarquias de poder e autoridade desempenharam um papel-
chave em termos de discurso. Além de gênero e parentesco, a questão
da cor e da raça também é muito importante na formulação de repre-
sentações. Enquanto os dignitários africanos aparecem como atores
estratégicos nas representações, o mesmo não ocorre com os seus súdi-
tos. Enquanto os representantes do estado e da igreja, eles próprios
autores da maioria das fontes, são destacados, a maioria dos habitantes
dos povoamentos comerciais, ou seja, os escravos, é geralmente ignora-
da. Como conseqüência, viúvas vivazes e aventureiros astutos parecem
dominar a cena, quer como “bodes expiatórios”, quer como aliados, de-
pendendo da época.101 A população escrava e servil foi, geralmente,
ignorada, pois era vista como mercadoria e não como pessoas. E, ao
contrário, aqueles que possuíam escravos, ou seja, os comerciantes, fun-
cionários e clérigos, garantiram o seu lugar na historiografia afro-atlân-
tica. Enquanto as fontes do século XVII identificam todos os atores,
incluindo o marido de Ña Bibiana, como “pretos”, Ña Rosa, seu marido
e seu filho são, todos, descritos como “de cor” ou “mestiços”.
Com o tempo, a “paleta de cores” usada para descrever o “outro”
torna-se cada vez mais diversificada. O significado do padrão de misci-
genação iria mudar nos séculos XVIII e XIX, como resultado da classifi-
cação biológica e dos conceitos eugênicos. Além disto, o “outro”, aqui
101 Philip J. Havik, “Merry Widows and Wily Traders: negotiating gender and kinship in the
Afro-Atlantic connection”, inédito apresentado na conferência “Negotiating Moralities:
changing state, changing securities”, 15-17/06/1998, Centre of African., Asian and
American Studies (CNWS), Leiden.
102 Fausto Duarte, “Os Caboverdianos na Colonização da Guiné”, Boletim Geral das Colônias,
295,1950, pp. 209-11; vide também António Carreira, “A Guiné e as Ilhas de Cabo Verde: a sua
unidade histórica e populacional”, Ultramar, ano VIII, vol. XIII, 4, 1968, pp. 70-98.
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formado pela camada de crioulos ou mulatos vindos de Cabo Verde, tinha
passado a ocupar posições de poder político, capacitando-se, conseqüen-
temente, a produzir, também, fontes “oficiais”. O “outro”, do ponto de vista
Atlântico, muda consoante os tempos. O constante vai-e-vem entre Cabo
Verde e as terras continentais guineenses — e não o influxo, sempre míni-
mo, de europeus, nem mesmo o de africanos, em sua maioria cativos — é
que foi tomado como referência fundamental para a historiografia dos povo-
amentos comerciais. Só assim pode se explicar a tese de que os impulsos de
mudança vinham exclusivamente do exterior, sobretudo de Cabo Verde.102
Como vimos, questões de gênero, parentesco e classe estão intimamen-
te relacionadas a isto: o fato de que os parceiros dessas mulheres se
originavam ou localizavam sua ascendência em Cabo Verde, e de que
eles detinham importantes postos administrativos no governo local refle-
tiu-se na força e fama atribuídas a estas mulheres. E se a própria mu-
lher, como foi o caso de Ña Rosa, podia ligar sua estirpe ao arquipélago
e, portanto, a distantes antepassados portugueses, sua “respeitabilida-
de” nunca seria posta em dúvida.
As parcerias discutidas acima ilustram as variadas configurações
destas relações, que tinham implicações, tanto no âmbito do empreendi-
mento mercantil, quanto pessoais. Elas abrangiam desde relações de pa-
rentesco com as linhagens matrilineares dirigentes até alianças bilaterais
entre gan ou clãs mercantis. Esses laços interculturais incluíam extensas
redes de clientelismo, que garantiam a acumulação de riqueza e influên-
cia política. Aqueles sem acesso a estes privilégios estavam, claramente,
em desvantagem; na verdade, a maioria deles nunca chegou às fontes
escritas. Aqui, então repousa, provavelmente, a mais importante distin-
ção entre os membros dos gan Vaz e Alvarenga, de um lado, e a maioria
dos habitantes dos povoamentos mercantis e aldeias africanas, de outro,
ou seja, os primeiros controlavam uma parte significativa do comércio
afro-atlântico e obtiveram uma mobilidade espacial e social que era ina-
tingível para a maioria de seus compatriotas africanos. O fato de que os
líderes dos clãs em questão tenham sido mulheres e viúvas foi outro
103 Ver Selma Pantoja, “O Atlântico no Feminino”, Cultura de Sociedade, Ed Paralelo 15,
Brasília (no prelo).
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elemento que demonstrou a direta correlação entre descendência
matrilinear, famílias matrifocais e o comércio afro-atlântico. Ao desafi-
ar as vigentes concepções androcêntricas acerca de relações sociais, tais
mulheres contribuíram decisivamente para a existência de um “Atlântico
no feminino” na historiografia sobre a região.103 Finalmente, em termos
demográficos, os povoamentos comerciais foram sempre caracterizados
por ampla predominância feminina, mesmo que este fenômeno só se te-
nha comprovado no século XVIII, devido aos avanços da estatística.
Isto, não obstante ter sido somente após a morte de seus maridos que tais
mulheres emergiram da sombra para obterem evidência na cena Atlân-
tica, e assim assumir um papel autônomo nas fontes escritas.
A fim de entender as mudanças acima discutidas, é imperativo
que a história social de tais encontros afro-atlânticos seja estudada com
mais detalhes. Para suprimir lacunas nos escritos históricos, a documen-
tação dos arquivos e os relatos de viagem têm de ser relidos e recupera-
dos. Além disso, tais fontes devem ser analisadas a partir de uma pers-
pectiva interdisciplinar, que combine as tradições históricas e antropoló-
gicas. Só então, os vetores da expansão política e econômica, que gover-
naram as fontes, poderão ser contrabalançados por processos de sociali-
zação e aculturação. Os dois estudos de caso discutidos acima mostram
que, com certos limites impostos pela natureza das fontes materiais, tal
abordagem pode alterar de maneira significativa as configurações eco-
nomicistas associadas à historiografia Atlântica e ir além dos localismos
restritos da antropologia, ao esboçar uma dinâmica intercultural até en-
tão desconsiderada ou ignorada.