Available via license: CC BY 4.0
Content may be subject to copyright.
259
Boletim do CESP – v. 20, n. 27 – jul./dez. 2000
O
A RETÓRICA DO EXAGERO: ESTUDO
DA CANTIGA Nº110 DO CANCIONEIRO
MARIANO DE D. AFONSO X, O SÁBIO
Carla Cristina de Araújo*
Uni/BH
trabalho que pretendo apresentar consta da análise de
uma Cantiga de Santa Maria, precisamente a de nº 110. A
minha leitura incidirá na interpretação das numerosas
hipérboles da Cantiga.
Primeiramente, faz-se necessário situar a Cantiga objeto deste
estudo dentro da literatura medieval. As Cantigas de Santa Maria
são, como se sabe, uma coleção de 429 cantigas religiosas, dedicadas
à Virgem Maria, da autoria de D. Afonso X, o Sábio, e um grupo de
colaboradores. Além da parte literária, esse Cancioneiro apresenta
as composições musicais de cada cantiga, e, ainda, uma iluminura
de cada uma delas. Cada iluminura é feita em seqüência de
quadrinhos, geralmente seis. As Cantigas de Santa Maria datam da
segunda metade do século XIII, e foram compostas em galego-
português. Conservaram-se em três códices, compilações manuscritas
das Cantigas, que são os seguintes: o Códice Florentino, o Códice
Toledano, e dois Códices Escurialenses. Um desses dois últimos, por
contar com o maior número de cantigas, partituras e ilustrações,
enfim, por ser o mais completo deles, é também chamado Códice
Rico. Da transcrição das Cantigas desse Códice é que temos As
Cantigas de Santa María, compiladas e publicadas com um estudo
* Professora do Departamento de Ciências Humanas, Letras e Artes do UNI-BH,
mestranda em Literaturas de Língua Portuguesa na PUC Minas. Membro da
ABRABLIP.
260
A retórica do exagero: estudo da... Carla Cristina de Araújo – p.259-266
introdutório, pelo erudito alemão Walter Mettmann, primeiramente,
através da Editora da Universidade de Coimbra e, mais tarde, pela
Editora Castália, de Madrid. Seu trabalho, que teve início na década
de 50, teve sua primeira publicação portuguesa em três volumes, aos
quais ele acrescentou um último, o Glossário, que é o resultado de
um trabalho muito cuidadoso de apuração do vocabulário. Nesse
último volume, indispensável ao pesquisador ou ao leitor das
Cantigas, ele dá o significado das palavras, transcrevendo versos que
mostram como essas palavras foram empregadas. A edição de 1986
desse trabalho, publicada pela Clásicos Castalia, de Madrid, é a que
serve de referência para este estudo. A essa edição falta o glossário,
que seria o quarto volume.
Os poemas são de duas espécies: Cantigas de Milagre e
Cantigas de Louvor. Apresentarei um pequeno estudo sobre a
Cantiga nº 110 que, como todas as cantigas numeradas com dezena
inteira, é de louvor. As que não são numeradas por dezenas inteiras
são de milagre, com exceção de umas poucas, talvez cinco, que
versam sobre as festas de Nossa Senhora.
Feitas essas considerações preliminares, vamos à leitura da
Cantiga e, em seguida, à sua análise:
Cantiga nº 110
ESTA É DE LOOR DE SANTA MARIA
Tant’ é Santa Maria de ben mui comprida,
que pera a loar tempo nos fal e vida.
E como pode per lingua seer loada
a que fez porque Deus a ssa carne sagrada
quis fillar e ser ome, per que foi mostrada
sa deidad’ en carne, vista e oyda?
Tant’ é Santa Maria de ben mui comprida...
Ca tantos son os be)ens de Santa Maria,
que lingua dizer todos nonos poderia,
nen se fosse de ferro e noite e dia
non calasse, que ante non fosse falida.
Tant’ é Santa Maria de ben mui comprida...
261
Boletim do CESP – v. 20, n. 27 – jul./dez. 2000
Se purgame)o foss’o ceo estrelado
e o mar todo tinta, que grand’ é provado,
e vivesse por sempr’ un ome enssinado
de scriver, ficar-ll-ia a mayor partida.
Tant’ é Santa Maria de ben mui comprida...
O que chama a atenção, numa leitura atenta da Cantiga nº 110,
é a forma como o poeta conduz o seu discurso, visando a deixar o
leitor/ouvinte totalmente convicto das qualidades de Maria. Sem citar
sequer uma dessas qualidades, o poeta atribui à Virgem um número
infinito delas. E essa noção de infinito é dada pelas dimensões de tempo
e espaço, dois conceitos que, por si só, já encerram essa idéia. Já no
refrão o rei-poeta diz que o tempo de vida de um homem é insuficiente
para que ele possa louvar Santa Maria à altura de seu merecimento:
“pera a loar tempo nos fal e vida”. Como no episódio bíblico de Jacó1
– o pastor que serviu a Labão para merecer o amor de sua filha
Raquel –, em que faltaria tempo e vida para que ele pudesse provar
o seu amor por ela, falta o mesmo, segundo o poeta, a quem se pro-
ponha a louvar Santa Maria. Camões, em seu conhecido soneto sobre
a história de Jacó, conclui o último terceto dizendo que Jacó “mais
servira, se não fora para tão longo amor tão curta a vida”. Pode-se dizer
que é a mesma idéia que está contida no refrão da Cantiga nº 110:
Tant’ é Santa Maria de ben mui comprida,
que pera a loar tempo nos fal e vida.
Neste caso, o contraste longo/curto do soneto camoniano –
longo amor/curta vida – se faz com a idéia de grande quantidade/
pouca durabilidade, isto é, a grande quantidade de virtudes de Maria
é contrastante com a pouca durabilidade da vida de um homem,
que, segundo o poeta, não pode louvá-la na medida do merecimento
dela no espaço de tempo em que ele viver.
A tese anunciada no refrão é desenvolvida nas estrofes. Daí,
a relação da Cantiga com as estratégias discursivas da Arte Retórica,
de Aristóteles. O Livro 3, Capítulo XIII, da Arte Retórica reza que
1 CAMÕES, 1981.
262
A retórica do exagero: estudo da... Carla Cristina de Araújo – p.259-266
O discurso comporta duas partes, pois necessariamente importa
indicar o assunto de que se trata, e em seguida fazer a demonstração.
Pelo que, uma vez indicado o assunto, é impossível não fazer a
demonstração, como o é não fazer esta demonstração sem previamente
ter anunciado o assunto; com efeito, quando se demonstra,
demonstra-se alguma coisa e só se anuncia uma coisa a fim de a
demonstrar.2
O refrão da Cantiga outra função não cumpre senão a de
indicar o tema, enquanto as estrofes fazem a demonstração daquilo
que foi anunciado no refrão, correspondente, do ponto de vista da
Retórica, à primeira parte do discurso. O desenvolvimento do assunto
nas estrofes corresponde também ao desenvolvimento da hipérbole
sobre a qual o refrão foi composto. Vejamos cada uma das estrofes
como partes do desenvolvimento.
Na primeira delas, o poeta emprega um recurso bastante
comum na oratória, que consiste em lançar uma pergunta, para a
qual ele não admite uma resposta diversa da que ele espera ouvir.
A condução para a resposta está na forma de elaborar a pergunta.
É como se o ouvinte ficasse “sem saída”, e não tivesse outro caminho
senão concordar com o que a pergunta adianta em forma de resposta.
Essa estratégia, no caso desta Cantiga, está em que, para mostrar a
grandeza de Maria, o poeta chama à baila a autoridade máxima, que
é Deus. Parafraseando de forma bem simplificada a primeira estrofe,
poder-se-ia transformá-la na seguinte pergunta: “E como pode ser
louvada por língua humana aquela que mereceu que o próprio Deus
quisesse nascer dela?” Ora, haveria argumento mais forte do que esse
para mostrar o quanto Maria é uma mulher especial e privilegiada
por Deus, e portanto, digna de ser louvada?
E imediatamente depois dessa pergunta, o poeta passa a
desenvolver, na segunda estrofe, um pensamento que se encadeia
nessa pergunta não como resposta, mas como uma complementação
de uma possível resposta, ou de uma resposta implícita na mente
2 ARISTÓTELES, [s.d.].
263
Boletim do CESP – v. 20, n. 27 – jul./dez. 2000
do leitor. A estrofe se inicia com a palavra ca, que em português
moderno significa ‘porque, pois’, e funciona como um marcador de
continuação, ou seja, um elemento condutor do raciocínio para
encaminhá-lo à conclusão pretendida pelo enunciador. E em
seguida a esse ca, ou porque, que introduz nova ordem de
argumentos, o poeta fala da impossibilidade de um homem, na sua
condição de mortal, louvá-la. O poeta emprega a expressão língua
de ferro para mostrar que ainda que a língua de um homem não
fosse constituída da carne frágil de que o é, mas sim, de uma matéria
muito mais resistente ao tempo, que é o ferro, esta língua não resistiria
ao exaustivo trabalho de arrolar as qualidades de Santa Maria. A respeito
do emprego da palavra língua, quero observar que na primeira estrofe,
a palavra parece ter sido empregada em sentido mais próximo de
idioma. À leitura da primeira estrofe, portanto, pode parecer que
a intenção do poeta fosse dizer que não há idioma suficientemente
rico em adjetivos e expressões que desse conta de louvar Maria na
proporção de suas qualidades. À leitura da segunda, com a palavra
língua empregada no sentido de ‘órgão’, introduz-se a ambigüidade
do termo. Não há mais como determinar o sentido do emprego da
palavra língua na primeira estrofe, mesmo porque a escolha de um
dos sentidos põe a perder a polissemia, que no texto literário tem
um valor positivo. Ainda sobre o sentido de ‘idioma’ para a palavra
língua, vale lembrar novamente que o poeta, em toda a Cantiga, não
cita explicitamente nenhuma qualidade de Maria. Sabe-se que a
possibilidade de combinações para a formação de palavras de um
dado idioma é infinita, mas a relação de adjetivos elogiativos, por
mais extensa que seja, é limitada. Por isso, provavelmente, o poeta
não se dá ao trabalho de citar uma qualidade que seja de Maria. Ao
suprimir suas qualidades, e reforçar a idéia de que são tantas, o poeta
implicitamente lhe atribui todas as qualidades que possam ser
expressas por língua humana em uma dada língua ou idioma, e mais,
aquelas que a pouca duração da vida de um homem não permite
que sejam mencionadas.
Até aqui o poeta já encerrou duas verdades de sua tese: a de
que não há língua que possa louvar Maria, por ter sido ela tão repleta
264
A retórica do exagero: estudo da... Carla Cristina de Araújo – p.259-266
de virtudes a ponto de ser escolhida por Deus para mãe do Salvador
do mundo; e a de que a língua de quem se propuser a elogiá-la
ainda que fosse de ferro, não poderia fazê-lo a contento sem que
viesse a falhar.
Por fim, na terceira estrofe, a hipérbole que o poeta emprega
passa também por uma comparação hipotética:
Se Céu = pergaminho
Se Mar = tinta
e, na mesma esteira dessas hipóteses, sugere ao leitor que imagine
um homem letrado, que fosse imortal, e dedicasse toda a sua vida
ao trabalho de tecer os elogios que a Virgem merece.
Numa paráfrase dessa terceira e última estrofe, poderíamos
mostrar como o poeta encerra seu louvor a Maria nesta cantiga, o
que ele faz dizendo que “ainda que o céu estrelado fosse um
pergaminho, e o mar imenso fosse tinta, e um homem letrado vivesse
para sempre louvando a Virgem, ainda assim, a maior parte das
virtudes dela ficaria por dizer”.
Ora, o céu e o mar, por suas incontestáveis extensões, não raro
servem à poesia ou à fala cotidiana para expressar aquilo que se quer
apontar como grande ou excessivo. Esses elementos – céu e mar –
costumam vir à baila quando o que se pretende é dar a idéia de algo
infinito.
E assim, o poeta reforça a idéia da hipérbole – que a comparação
de qualquer coisa com esses elementos por si só já traz – ao afirmar
que ainda assim, com este imenso pergaminho que poderia ser o
céu, e com esta imensa quantidade de tinta que poderiam ser as
águas do mar, a maior parte das qualidades da Virgem ficaria por
dizer, à espera da criação de novas expressões e de mais extensão
de pergaminho e maior quantidade de tinta.
Para concluir, quero considerar agora toda a Cantiga, a fim de
chamar a atenção para o fato de que o poeta reúne as três estrofes
na intenção de inculcar no seu ouvinte/leitor a certeza de que o valor
de Maria é inquestionável e incomensurável, logo indizível.
265
Boletim do CESP – v. 20, n. 27 – jul./dez. 2000
Apêndice
Cantiga nº 110
ESTA É DE LOOR DE SANTA MARIA
Tant’ é Santa Maria de ben mui comprida,
que pera a loar tempo nos fal e vida.
E como pode per lingua seer loada
a que fez porque Deus a ssa carne sagrada
quis fillar e ser ome, per que foi mostrada
sa deidad’ en carne, vista e oyda?
Tant’ é Santa Maria de ben mui comprida...
Ca tantos son os be)ens de Santa Maria,
que lingua dizer todos nonos poderia,
nen se fosse de ferro e noite e dia
non calasse, que ante non fosse falida.
Tant’ é Santa Maria de ben mui comprida...
Se purgame)o foss’ o ceo estrelado
e o mar todo tinta, que grand’ é provado,
e vivesse por sempr’ un ome enssinado
de scriver, ficar-ll-ia a mayor partida.
Tant’ é Santa Maria de ben mui comprida...
Transcrição da Cantiga nº 110 para o português moderno
Cantiga nº 110
ESTA É DE LOUVOR A SANTA MARIA
Tão plena de graças é Santa Maria
que, para louvá-la, nos falta tempo e vida.
E como pode por uma língua ser louvada
aquela que mereceu que Deus quisesse por ela
tomar sua carne sagrada e se tornar homem,
graças ao que a sua divindade mostrada
foi em carne, e vista e ouvida?
Tão plena de graças é Santa Maria...
266
A retórica do exagero: estudo da... Carla Cristina de Araújo – p.259-266
Pois tantas são as graças de Santa Maria,
que uma língua não poderia dizê-las todas,
– ainda que essa língua fosse de ferro,
e noite e dia não se calasse –,
sem que antes falhasse.
Tão repleta de qualidades é Santa Maria...
Se o céu estrelado fosse um pergaminho
e fosse tinta o mar, que como todos sabem é grande,
e vivesse para sempre um homem letrado,
ficar-lhe-ia por dizer
a maior parte das graças que ela tem.
Tão repleta de qualidades é Santa Maria...
Referências Bibliográficas
ALFONSO X, el Sábio. Cantigas de Santa María. Edicion de Walter
Mettmann. Madrid: Clásicos Castalia, 1988.
ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. Trad. Antônio P. de
Carvalho. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d.].
CAMÕES, Luís de. Lírica. Edição preparada por Massaud Moisés. São
Paulo: Cultrix, 1981.
Resumo
Neste artigo, é apresentada análise da Cantiga nº 110 das Cantigas
de Santa Maria, de D. Afonso X, o Sábio. A análise incide na
interpretação das expressões hiperbólicas com que o poeta louva
Santa Maria.
Resumé
Dans ce texte, on présente une analyse de la chanson (cantiga)
numéro 110, originaire de l’oeuvre Les Chansons de la Sainte Maire
(Cantigas de Cantiga de Santa Maria) du roi D. Afonso X, le Savant.
Cette analyse se dédie à l´interprétation des expressions hyperbo-
liques par lesquelles le poète fait des éloges à la sainte Marie.