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DOSSIÊ LITERATURA
COLONIAL
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A
oikonomia
do engenho ou o
engenho da
polis
cristã: Prudêncio
Amaral, Antonil e o açúcar
Guilherme Amaral Luz
Universidade Federal de Uberlândia
Searas do Brasil, eu vou cantar-vos,
E o, que verteis, ó Arundíneos Gomos,
Rival do Mel Hyblêo, suave Assúcar.
Trilhar me agrada os conhecidos campos,
E os Lavradores regular da Pátria
Por certa Lei; ou semeando estendam
Canaviais, ou em diversa quadra
No prelo esmaguem as cortadas Canas;
E espremidos os purguem, e na chama
Os sucos lhe condensem; ou já densos
De novo expurguem, te que rijo Assúcar
Nívea brancura depurados vistam.1
s versos acima, na tradução de João Gualberto Ferreira dos
Santos Reis, formam a primeira estrofe da obra De Sacchari
Opificio Carmen, escrita pelo Pe. Prudêncio Amaral S.J. (1675
– 1715). Esta obra foi editada pela primeira vez somente cerca de cem anos
depois de escrita, compondo parte do livro De Rusticis Brasilicis Rebus
(1781), de José Rodrigues de Melo. Já no século XVIII, segundo Serafim
Leite, os poemas de Prudêncio Amaral e José Rodrigues de Melo passaram
a ser denominados “Geórgica Brasílica”, título que, com pequenas
O
1 AMARAL, 1941, p. 175.
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A oikonomia do engenho ou o engenho... Guilherme Amaral Luz – p.81-94
variações, manteve-se nas suas poucas reedições futuras.2 É fato reconhecido
pela fortuna crítica da obra, que tanto os versos de Amaral, quanto os de
Rodrigues de Melo são canções emuladas a partir das Geórgicas de Virgílio.
Mas os versos de Amaral permitem ir um pouco mais além,
lançando-se a hipótese de que a obra imita, particularmente, o predicado
do Livro IV, do poeta latino. Naquele livro, Virgílio elogia a apicultura e,
alegoricamente, constrói a colméia como símile da vida política perfeita,
fiel à ordem do Império de Augusto. Destaca-se, neste sentido, em primeiro
lugar, a comparação do açúcar com o “mel da Hibléia”, referindo-se, aqui,
ao mesmo tempo ao mel produzido na Sicília durante a Antiguidade, e
também à suposta introdução da cana-de-açúcar, na Europa, a partir
daquela região. Nota-se que a palavra latina traduzida aqui como “rival” é
aemula, que também quer dizer “aquilo que deseja imitar”, ou ainda, uma
“imitação que supera”. É logo nos primeiros versos do poema, que o objeto
de louvor se anuncia: a economia agrária do Brasil e, principalmente, aquele
que é o seu principal produto: o açúcar, êmulo do mel romano, cantado
por Virgílio. Fica-se sugerido que a este elogio, desde o início, está articulado
um outro, alegórico, a certa ordem política.
Não se pode precisar exatamente quando Prudêncio do Amaral
escreveu De Sacchari Opificio Carmen, mas é provável, pelo tempo da vida
do autor, que isso tenha se dado entre fins do século XVII e a primeira década
do século XVIII. O texto, portanto, é mais ou menos contemporâneo de
Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas, editado em 1711, do
também jesuíta Pe. João Antônio Andreoni (Antonil). Serafim Leite hipotetiza
que o livro de Antonil tenha precedido os poemas latinos sobre os produtos
do Brasil. Afirma o historiador da Companhia que:
Dignos de nota são os poemas latinos, que cantam as “drogas” do
Brasil e que tinham sido precedidos de um valioso livro em prosa,
escrito pelo Pe. João Antônio Andreoni com o pseudônimo (quase
anagrama) de André João Antonil, Cultura e opulência do Brasil
por suas drogas e minas, impresso em Lisboa em 1711.3
2 LEITE, s/d, p. 227.
3 LEITE, s/d, p. 227.
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Já, o crítico Wilson Martins, comparando passagens dos versos de
Amaral com outras do tratado de Antonil, após referir-se a aspectos da
moenda, em ambos, conclui categoricamente:
Essa passagem [de Antonil sobre a moeda], como numerosas outras
(para não falar na estrutura global do volume e nos pormenores
referidos, na ordem em que são referidos), prova, sem sombra de
dúvida, que o Pe. Andreoni, Reitor do Colégio da Bahia, havia lido
o poema do seu irmão em Jesus Cristo, o Pe. Prudêncio do Amaral.4
Mas o que parece uma hipótese bastante verossímil é que há
profundas relações entre os dois textos, e que ambos foram gerados a partir
do Colégio dos Jesuítas da Bahia, na virada do século XVII para o XVIII.
Significativo, neste sentido, é que, entusiasta e admirador das “Geórgicas
Brasileiras”, por ele consideradas as melhores expressões de poesia neolatina
do Brasil colonial, Serafim Leite as tome (incluindo o texto de Amaral)
como realizações superiores, compostas a partir do “valioso texto em prosa”
de Antonil.5 Martins, por sua vez, julgando o autor de Cultura e opulência
do Brasil, como “mercantilista prematuro” e precursor de Adam Smith,
considerou-a composta, a partir da fonte menor de Amaral, cujo poema ele
qualifica como “manual do agricultor”.6
O que ambos os críticos parecem ter pouco em consideração é que
as diferenças de gênero entre as duas obras têm mais implicações para além
da engenhosidade poética ou “analítica” de seus “gênios criadores”. Além
disso, há que se ter em vista, que as duas obras foram compostas em um
momento particular da história da colonização, momento no qual o elogio
ao campo e à economia açucareira deveria fazer sentido, considerando a crise
do Império português, no século XVIII. No caso das colônias americanas,
era elemento de tal crise a descoberta do ouro, que teria “provocado um
desequilíbrio sem precedentes”, conforme analisa Laura de Mello e Souza.
4 MARTINS, 1978, p. 281.
5 LEITE, s/d, p. 227-228.
6 MARTINS, 1978, p. 278-293.
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Desse desequilíbrio profundo, o próprio Andreoni teria sido, conforme a
mesma autora, um “arauto involuntário”.7
Com muita razão, Francisco Eduardo de Andrade, percebeu que para
Antônio Vieira e, posteriormente, também para Antonil e Sebastião da
Rocha Pita:
As minas e seus descobrimentos eram castigos escondidos de Deus
que depois se manifestam em fomes, pestes, guerras “e outras
calamidades temporais”. Castigos mais terríveis porque sob
aparência enganadora da imagem preciosa que os homens (e os
colonos) tanto estimavam.8
Segundo os autores referidos por Andrade, o ouro representaria
riquezas ilusórias, que esconderiam terríveis castigos de Deus, enquanto a
agricultura, esta sim, seria a verdadeira e mais legítima fonte de riquezas
segundo a lei divina.9 Não nos cabe, no espaço deste ensaio, aprofundar
mais do que isso, no universo dos topoi, que fazem da ilusão de riqueza um
atrativo demoníaco, para a perdição da humanidade. Aqui, vale, sobretudo,
reconhecer que o elogio das formas agrícolas coloniais não se entende,
adequadamente, sem que percebido como contraponto aos perigos que o
advento da economia aurífera representava à ordem política teologicamente
concebida, por padres jesuítas e moralistas lusos de inícios do século XVIII.
Mas, qual é a ordem política teologicamente concebida, que se elogia
alegoricamente, nos versos de Prudêncio Amaral, sobre a cultura do açúcar?
Se retomarmos os versos que abrem este ensaio, veremos que se trata de uma
ordem de transição, que leva do separado ao condensado, do impuro ao
puro; de uma ordem de expurgação, mediada pela “arte” do engenho. Se,
no início do processo de produção do açúcar, o aedo canta a denegrida e
vermelha terra, de cujo seio ótimas canas brotariam; ao fim do processo,
o que se obtém é o açúcar ,de raríssima alvura, cândido como a neve, que
7 SOUZA, 2006, p. 78-108.
8 ANDRADE, 2006, p. 175.
9 ANDRADE, 2006, p. 175.
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tem os cisnes como rivais em brancura (Haud omnibus idem est candor;
niveis haec albicat aemula cycnis).10 No meio de todo esse processo,
representa-se a luta do agricultor, para dar ordem à terra, tornando regulares
as plantações, e livres de pragas ou ervas daninhas; refere-se ao papel decisivo
da devoção, e do rogar a Deus por chuvas, que garantam a manutenção das
roças, dissipando assim, os ares imoderados do clima do Brasil; identifica-
se, em quase toda fase do processo, a presença de um fogo purificador, que
limpa os campos, que queima as impurezas da cana, transformando-as em
adubo para os campos; fogo que, nas caldeiras de cobre, condensam e
purificam melado... Do processo, dispersam-se os resíduos impuros (faeces)
com os seus humores que escondiam e assombravam os “sacarinos dons”
(sacchareis donis) que o Brasil ofereceria ao mundo.
Em termos de estilo, Prudêncio Amaral mantém-se ao longo do
poema, quase exclusivamente, naquele que Santo Agostinho, a partir de
Cícero, nomeara temperado. Também poderíamos chamá-lo de estilo
florido, edificante, moderado ou médio, e que bem se situa, como estilo
próprio da emulação das Geórgicas, em meio termo, entre a simplicidade
das Bucólicas e do caráter sublime da grande épica, como no caso da Eneida.
Ou seja, ele não se preocupa tanto com a simplicidade do ensinar (docere)
ou com a força do convencer/mover (mouere), mas com a utilidade do
agradar (delectare).11 Louvando a cultura do açúcar, busca fazer com que
os leitores/ouvintes sejam dóceis na recepção e se apeguem ao objeto de
louvor, no caso, ao açúcar e ao processo de purificação do qual ele é
resultado, reconhecendo-os como portadores de belas virtudes. Não é papel
do aedo, no estilo temperado, explicar os sentidos das analogias entre a
cultura do açúcar e a vida política cristã na colônia. Tais sentidos
subentendem-se como já dominados pelos leitores/ouvintes discretos. A
10 AMARAL, 1941, p. 121.
11 Sobre a teoria dos estilos em Santo Agostinho, c.f.: AGOSTINHO, 2002.
p. 233-262. Sobre a questão dos estilos nas obras de Virgílio e a emulação
dos mesmos a partir da rota Virgilii nas poéticas quinhentistas, c.f.: VILÀ i
TOMÀS, 2001. p. 150.
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clareza dessas analogias apresenta-se, na intersecção do poema com seu público
suposto, quais sejam: homens letrados, versados em latim, conhecedores
de Virgílio, capazes de compreender alegorias, e minimamente versados em
agronomia. Esta última habilidade, por sinal, parece ser a menos
importante, considerando as notas explicativas do poema, ainda que muitas
só tenham sido compostas, no final do século XVIII. Não é em relação ao
açúcar, propriamente, que Amaral busca a boa vontade de seu público, mas
em relação aos significados edificantes, que sua cultura produz, no coração
do leitor discreto.
Os versos de Prudêncio Amaral trazem à cena um “lugar comum”
dos “escritos coloniais”, que Laura de Mello e Souza identificou e
interpretou, a partir de “autores”, tais como Nóbrega, Frei Vicente do
Salvador, Jaboatão, Gandavo, Vieira, Antonil, Ambrósio Fernandes
Brandão e outros: “lugar comum” segundo o qual o Brasil compreendia-
se como purgatório, quando considerada a sua relação com a Metrópole.
Ou seja, a colônia formaria um espaço em que “homens danados podiam
alcançar os céus através do esforço honesto, do trabalho diário, da sujeição
à vontade metropolitana”.12 Supõe-se aqui, que a purificação é efeito de um
trabalho de correção, dos desvios da natureza e da humanidade, da colônia
na direção da norma paradisíaca, que se pretende estabelecer. Supõe-se,
sobretudo, um trabalho árduo e difícil que espreme, condensa, esmaga,
expurga (utilizando verbos que aparecem na epígrafe deste ensaio) a
desordem, e tudo que seja potencial ou efetivamente mal, impuro ou
ímpio, para buscar a máxima e perfeita pureza, beleza e virtude. Mais
fortemente do que Alfredo Bosi reconhece em Antonil, em Amaral, a cana-
de-açúcar personifica o sujeito de um martírio purificador, êmulo das dores
de Cristo na Paixão. A geração do açúcar ensina que nada se converte à
perfeição sem apertos, sem tormentos, sem as dificuldade e dores de um
martírio.13 Esta “sabedoria” é que se explica em Antonil, engendra-se nos
ornatos agradáveis de Prudêncio Amaral e também fundamenta, por
12 SOUZA, 1987, p. 84.
13 C.f.: BOSI, 1993, p. 165-175.
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exemplo, as exortações sublimes de Antônio Vieira, quanto ao trabalho
escravo em seus sermões do Rosário.
Mas tornemos a considerar a obra de Antonil. Um de seus críticos
atuais, Rafael Marquese, demonstra que ela representa, exemplarmente, a
teoria cristã de governo, dos escravos, na América portuguesa, na passagem
do século XVII para o XVIII. Similarmente a outros jesuítas, como Antônio
Vieira e Jorge Benci, Andreoni, argumenta o autor, buscava defender a
Companhia de Jesus de ataques dos colonos, e apontava a fragilidade das
práticas senhoriais vigentes, quanto ao correto modo de governar a
escravaria. Nesse sentido, os jesuítas apregoavam que os preceitos da
moralidade católica deveriam servir para normatizar o “governo da casa”.
Assim, emulando a “literatura agrária” latina e os tratados gregos de
oikonomia, lidos conforme os princípios bíblicos das obrigações recíprocas,
entre o pater familis e seus subordinados, os inacianos da América
portuguesa, entre os quais Antonil, procuraram prescrever os moldes de
uma família patriarcal perfeita, indissociável do projeto missionário da
Companhia de Jesus, e fundamental para a realização do mesmo.14
Nesse caso, se é válida a formulação de Marquese, inspirada em
Hespanha, de que, no Antigo Regime, “o poder do monarca, apesar de uno,
era partilhado por diferentes corpos sociais, dentre os quais, na colônia,
sobressaía o dos senhores de escravos”;15 então, pode-se inferir, que a teoria
jesuítica do governo da casa buscava normatizar a oikonomia, em benefício
da polis cristã. Para isso, os padres precisavam atingir a consciência dos senhores,
refreando suas paixões e conduzindo-os na direção de uma racionalidade,
teologicamente, orientada. Seguindo a moral católica e seus princípios de
condução do governo da casa, os senhores seriam recompensados com o
sucesso do empreendimento, alcançando a tão almejada nobilitação, que
o Engenho parecia prometer. Caso contrário; se fossem na contracorrente
da ordem divina “ensinada” pelos padres, estariam sujeitos à ira de Deus e
14 C.f.: MARQUESE, 2004, p. 19-83.
15 MARQUESE, 2004, p. 68.
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às suas justas punições, colocando em risco a própria saúde do Império
como um todo.
Conhecidíssima é a seguinte passagem, que abre o primeiro livro de
Cultura e Opulência do Brasil:
o ser senhor de engenho é título a que muitos aspiram, porque traz
consigo o ser servido, obedecido e respeitado de muitos. E se for,
qual deve ser, homem de cabedal e governo, bem se pode estimar
no Brasil o ser senhor de engenho, quanto proporcionalmente se
estimam os títulos entre os fidalgos do Reino.16
Muitos citaram esta formulação para ilustrar o suposto status de
nobre que o senhor de engenho devia possuir na colônia, o que se dava,
dependendo das análises posteriores, apesar ou por causa dos rendimentos
advindos da economia açucareira. Poucos autores, contudo, perceberam o
caráter condicional da estima do ser senhor de engenho no Brasil e os
sentidos da proporcionalidade (não equivalência), da mesma, em relação
à que se tem aos títulos, no reino. Se lermos isso com atenção, notaremos que
o que está para ser elogiado por Antonil é um senhor de engenho perfeito,
a ser construído como retrato de excelência e, ainda, um senhor de engenho
cuja dignidade está nos valores, que se evidenciam na sua perfeição de caráter,
em relação ao conjunto político amplo e hierarquizado, do qual ele é parte.
O fator predeterminante para que a condição de senhor de engenho
seja estimada por aqueles que a aspiram é ser “homem de cabedal e
governo”. Sem tal pré-requisito, buscar o senhorio do açúcar é inútil e,
antes, imprudente. Os que se lançam a tentar ascensão por meio da
economia açucareira sem, antes, possuírem “cabedal e bom juízo”, diria
Antonil, quebram diante de sua “mal fundada pretensão”, que converte “em
palha seca aquela primeira verdura de uma aparente, mas enganosa
esperança”.17 Pois o que faz todo o livro I de Cultura e Opulência do Brasil
16 ANTONIL, 1977, p. 139.
17 ANTONIL, 1977, p. 141.
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é prescrever o “cabedal e o juízo” necessários à oikonomia do açúcar, sem os
quais, não haveria como alguém destacar-se como senhor de engenho. Com
teor altamente moralizante, este primeiro livro concebe um senhor afável
(em oposição à altivez, à arrogância e à soberba); justo e verdadeiro; que evita
a inveja e a discórdia, com bom coração e urbanidade no trato; prudente
na escolha das pessoas que o servem; zeloso com a salvação da alma de todos
que estão sob sua autoridade (em especial escravos e filhos); prudente na
forma de punir seus subordinados, evitando excessos, vinganças e
desmandos (de feitores), capazes de colocar sua autoridade em ameaça; que
seja sábio no lidar com as alforrias, nas repartições dos escravos para o
trabalho, na administração da justiça no interior de sua “casa” e na permissão
de “divertimento honesto” entre os escravos; que evite a avareza tanto
quanto não seja pródigo, refreando dispêndios excessivos; que coloque
limite nos filhos, e atente para sua educação em condições “honestas”; que
seja fiel e pontual em guardar suas promessas; honesto com todos aqueles
com quem trata comercialmente; que saiba ter boa vizinhança; que seja
senhor hospitaleiro, tanto por cortesia como por virtude cristã...
A relação de proporcionalidade entre o senhor de engenho e o fidalgo
titulado do reino está no reconhecimento público, cada qual em seu espaço
de poder – mais próximo (no caso do fidalgo) ou mais distante (no caso do
senhor de engenho) da cabeça do corpo político –, de que possuem alto valor
de caráter, como os acima elencados. Proporcionalmente, ambos são
emanações da majestade da coroa, vassalos úteis do rei, pois homens
honrados, prudentes, de bom juízo e, logo, bem dispostos a servirem a
Deus e ao bem-comum. Eles não se equivalem em termos de posição política,
no Império português. Os fidalgos do reino estão hierarquicamente acima
dos senhores de engenho, na sociedade portuguesa do “Antigo Regime”. A
equivalência é proporcional, quando considerado o prestígio que detém
junto aos demais súditos, que habitam ao seu redor, e desses homens, de
certa forma, dependem politicamente, de modo que os servem, os
obedecem e os respeitam.
Percebe-se, aqui, uma engenhosa construção segundo a qual há
relação direta entre poder (de ser servido, obedecido e respeitado) e conduta
90
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ética. Antonil, sugere que poderoso, no contexto do Brasil açucareiro, é quem
consegue prosperar como senhor de engenho, o que demandava, sobretudo,
na concepção do jesuíta, uma conduta, especialmente pautada, na ética
cristã e em princípios de cortesia e fidalguia. Nesse sentido, a prosperidade
de um senhor de engenho entende-se claramente, como sinal de fidalguia
e nobreza, condição que poderia ou não ser reforçada expressa ou
tacitamente pelo próprio rei.18 Dito isso, talvez se possa compreender de
maneira mais aguda a formulação que abre o proêmio da obra de Andreoni:
Quem chamou às oficinas, em que se fabrica o açúcar, engenhos,
acertou verdadeiramente no nome. Porque quem quer que as vê, e
considera com a reflexão que merecem, é obrigado a confessar que
são uns dos principais partos e invenções do engenho humano, o
qual, como pequena porção do Divino, sempre se mostra, no seu
modo de obrar, admirável.19
O engenho de açúcar, tal qual fruto máximo do engenho humano, é
uma “pequena porção do Divino”, sendo o seu modo de funcionamento
admirável para aquele que, agudamente, percebe o que tal funcionamento
revela. No funcionamento deste engenho não se faz somente o valioso
açúcar, mas também se retira o valoroso senhor. No funcionamento do
engenho, tem-se o bom ordenamento da família e dos dependentes
18 Segundo Maria Beatriz Nizza da Silva, o estatuto da nobreza colonial
dependia da graça e ou da mercê régia para que existisse. Como explica a
autora, a vontade do rei em tornar um súdito mais nobre poderia se dar de
forma expressa ou de forma tácita, sendo que “a primeira ocorria quando o
monarca, ‘de palavra ou por escrito’, declarava alguém ‘fidalgo, cavaleiro, ou
simplesmente nobre’. A segunda forma tinha lugar quando fosse conferida
a um indivíduo alguma dignidade, posto ou emprego ‘que de ordinário
costume andar em gente nobre”. (C.F.: NIZZA DA SILVA, 2005, p. 18).
Sendo necessário ao bom senhor de engenho ser homem de “cabedal e de
governo”, pressupõe-se sua capacidade e mérito para gozar do
reconhecimento tácito ou expresso do rei como nobre ou fidalgo.
19 ANTONIL, 1977, p. 133.
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(escravos ou livres), que vivem ao redor da autoridade do nobre da terra.
No funcionamento desta pequena porção do Divino, a providência
premia, retribui com justiça, a cabeça desta comunidade.20 O engenho dá
a Portugal a opulência derivada da cultura do açúcar, e súditos, localmente
poderosos, mas regidos por preceitos éticos e morais afinados com a ordem
teológico-política do Império. O engenho humano produziu, assim, não
só uma máquina de fazer açúcar, mas uma máquina divina de fazer homens
e, mais ainda, comunidades humanas ordenadas conforme regras ajustadas.
Ele produziu uma máquina de aperfeiçoamento moral dos homens; uma
máquina de purgação, alegórica e verdadeiramente.
Tanto os versos de Amaral quanto a prosa de Antonil inventam um
mesmo objeto a ser louvado, qual seja: uma espécie de mecânica histórica,
providencialmente inspirada, de purificação moral e, concomitantemente,
de ordenamento político, que funciona em torno da oikonomia patriarcal
do engenho de açúcar. Alegoricamente, esta dinâmica evidencia-se na
cultura da cana e na produção do açúcar. Em um momento de crise,
quando a economia açucareira começa a ofuscar-se diante de um rival mais
20 É um excelente exemplo disto, a moralização de Antonil sobre a
necessidade de o senhor de engenho conter a arrogância e a altivez. Observe-
se a passagem: “o ter muita fazenda cria, comumente, nos homens ricos e
poderosos, desprezo da gente mais nobre; e, por isso, Deus facilmente lha
tira, para que se não sirvam dela para crescer em soberba. Quem chegou a
ter título de senhor, parece que em todos quer dependência de servos. E isto
principalmente se vê em alguns senhores que têm lavradores em terras do engenho,
ou de cana obrigada a moer nele, tratando-os com altivez e arrogância.
Donde nasce o serem malquistos e murmurados dos que não podem sofrer;
e que muitos se alegram com as perdas e desastres que de repente padecem,
pedindo os miseráveis oprimidos a cada passo justiça a Deus, por se verem
tão vexados e desejando ver aos seus opressores humilhados, para que
aprendam a não tratar mal aos humildes, assim como o médico deseja e
procura tirar fora a malignidade e abundância do humor pecante que faz ao
corpo indisposto e doente, para lhe dar desta sorte não somente vida, mas
também perfeita saúde”. (ANTONIL, 1977, p. 145. Grifo nosso.)
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luzente – e, até por isso, moralmente mais perigoso –, seu elogio toma a
dimensão de um alerta moral, de um conselho político antimaquiavélico.
A mecânica histórica de purificação por meio da oikonomia do açúcar é
louvada, na iminência de seu enfraquecimento, no mesmo momento em
que os enganos da cobiça, no parecer dos mais moralistas, dragavam as
paixões dos colonos, para as entranhas da terra, para mais distante do rei,
das leis e da fé, convertendo-os em “hidras” ou em “demônios”. Mas a
detração das minas como espaço da crise moral daquela sociedade é um outro
assunto, que não cabe nestas páginas. Por hora, basta dizer que, em inícios
do século XVIII, o açúcar torna-se, por excelência, objeto de encômios,
enquanto o ouro encarnaria a via inversa do vitupério. O efeito, por
quaisquer dessas vias, é o mesmo: o reforço da ordem patriarcal como
fundamento da polis cristã na colônia.
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Resumo
Este artigo pretende avaliar as dimensões teológico-políticas do
louvor à economia do açúcar nas letras jesuíticas na passagem do
século XVII para o XVIII. Pretende-se argumentar que os encômios
devotados ao açúcar integram uma propaganda poética que busca
reforçar a ordem patriarcal como fundamento da polis cristã na
colônia em um momento em que a mesma se via ameaçada na
América portuguesa. Para isso, analisam-se, aqui, duas obras em
especial: Cultura e Opulência do Brasil, de André João Antonil, e
Da lavoura do açúcar, de Prudêncio Amaral.
Abstract
This article focuses on the political and theological dimensions
of praising sugar cane economy in Jesuits’ literature in the turn
of the XVIIth to the XVIIIth Century. It attempts to show that
such encomium is part of a poetical propaganda of patriarchal
order as fundament of the Christian polis in Portuguese America,
when it seemed to be in danger. To reach this purpose, two texts
are particularly analysed: Cultura e Opulência do Brasil, by André
João Antonil, and Da lavoura do açúcar, by Prudêncio Amaral.