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Autonomia e solidariedade na disposição de órgãos para depois da morte
Ana Carolina Brochado Teixeira*
Carlos Nelson Konder**
RESUMO:
O presente estudo se debruçará sobre o embate entre liberdade e solidariedade ou, em outras palavras, entre
ordem pública e autonomia privada no direito civil contemporâneo, com especial destaque para a solução
dessa controvérsia nos atos existenciais. Tomamos como principal exemplo a antinomia hoje existente entre o
art. 14 do Código Civil e a Lei 9.434/97, no que se refere à autonomia ou heteronomia na decisão de doar os
órgãos.
PALAVRAS-CHAVE: liberdade, autonomia privada, solidariedade, funcionalização, doação de órgãos,
sucessão
ABSTRACT:
This paper dedicated to the conflict between freedom and solidarity, individual autonomy and public order, in
contemporary civil law, specifically in regard of non-patrimonial acts, centered in the example of the
antinomy between Brazilian laws regarding the decision of donating organs for transplant.
KEY WORDS: freedom, autonomy, solidarity, organs donation.
A family is a tyranny ruled over by its weakest member.
- George Bernard Shaw
1. A autonomia privada entre liberdade e solidariedade
Entre os grandes desafios do direito civil contemporâneo certamente tem lugar de
destaque a questão da autonomia privada. No direito civil tradicional, construído
essencialmente ao longo dos séculos XVIII e XIX, a autonomia da vontade era o princípio
fundamental de todo o sistema. Imponderável, quase absoluta, ela só sofria restrições de
origem externa e, sempre, excepcionais.1 Inspirado no ethos burguês revolucionário, o
modelo visava consagrar a plena liberdade individual frente ao sistema anterior,
* Doutora em Direito Civil pela UERJ. Mestre em Direito Privado pela PUC/MG. Especialista em Direito
Civil pela Universidade de Camerino (Itália). Professora de Direito Civil no Centro Universitário UNA.
Advogada. Diretora do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM.
** Doutor e mestre em Direito Civil pela UERJ. Especialista em Direito Civil pela Universidade de Camerino
(Itália). Professor adjunto de Direito Civil da UERJ e da PUC-Rio.
1 Sobre esta concepção de autonomia privada, v. Ana PRATA. A tutela constitucional da autonomia privada.
Coimbra: Almedina, 1982.
caracterizado por um Estado absoluto e uma sociedade rigidamente separada em
estamentos.
Em virtude disso o sistema estava calcado em uma divisão fundamental: de um lado
o direito privado, com o objetivo de garantir o livre jogo das vontades e proporcionar a
regulação da sociedade através do “inteligente egoísmo” que guiava o mercado; de outro
lado, o direito público, com o objetivo de controlar os poderes do Estado de modo a
impedir que ele interferisse nos espaços dos indivíduos e perturbasse o delicado equilíbrio –
a “mão invisível” – do mercado sobre o qual se firmava a própria sociedade civil.2
Instalado no poder, o ideal de emancipação do sujeito, de inspiração iluminista, se
converteu em uma concepção de liberdade individualista, voluntarista e patrimonialista. A
versão de autonomia privada positivada se pautava em uma visão do homem isolado
(“homo clausus”), concebido de forma abstrata (o “sujeito de direito”), que não
correspondia às reais condições de vida.3 Esta autonomia era julgada apenas com base na
formal manifestação de vontade: assinado o contrato sem algum dos defeitos tipificados
(erro, dolo, coação), tornava-se o sujeito refém de sua própria declaração. Garantia-se a
liberdade formal para vender, alugar, emprestar a juros, sem que fossem fornecidas as
condições materiais necessárias para a efetiva fruição de tais liberdades.4
As crises econômicas e as atrocidades cometidas pelos regimes nazi-fascistas
impuseram uma mudança de paradigma no sentido da proteção prioritária da dignidade da
pessoa humana. Consagrada nas declarações internacionais de direitos humanos e na
positivação de direitos fundamentais nos textos constitucionais, a dignidade transforma-se
em princípio a impor proteção plena da pessoa, em todos os seus aspectos. A sua real
emancipação não ocorre através da garantia de uma liberdade formal de declarar vontade,
mas através do que se convencionou chamar “livre desenvolvimento da personalidade”.5
2 Gustavo TEPEDINO. Temas de direito civil, 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 223. Na descrição de
Giselda Maria Fernandes Novaes HIRONAKA, “estava consagrado assim o espírito da época: o individualismo
jurídico-liberal, a dicotomia entre direito público e direito privado e a garantia da liberdade dos indivíduos”
(Tendências do Direito Civil no Século XXI. Revista Trimestral de Direito Civil, v. 10, abr.-jun./2002, p.
214).
3 Luiz Edson FACHIN. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, pp. 11 e ss.
4 Para uma análise das acepções de liberdade e autonomia privada v., entre nós, Daniel SARMENTO. Diretos
fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, pp. 173 e ss.
5 As recentes aplicações do termo – que tem origem na Lei Fundamental alemã, art. 2º, I. – são descritas por
Claus-Wilhelm CANARIS. A influência dos direitos fundamentais sobre o direito privado na Alemanha. In
Ingo Wolfgang SARLET (org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2003, pp. 223-243.
Sob este novo paradigma se destaca que não existe liberdade em abstrato: toda
autonomia é constituída a partir da sociedade dentro da qual o sujeito constrói a sua própria
identidade, na constante convivência com o outro (a alteridade).6 Só existe verdadeira
autonomia no âmbito de uma situação jurídica determinada, no diálogo entre fato e norma
que considera a pessoa em suas peculiaridades, tutela suas vulnerabilidades e assim garante
que ela tenha efetivas condições de um exercício pleno da sua liberdade. Neste sentido, já
se afirmou que, “melhor do que individuar „o‟ fundamento constitucional da autonomia
contratual é pesquisar „os‟ fundamentos constitucionais da autonomia negocial”.7
O principal destaque está na implementação de um tratamento diferenciado para a
autonomia relativa a atos existenciais, isto é, para realização de escolhas ligadas não ao
patrimônio, mas àqueles elementos que constituem a identidade que individualiza e
caracteriza cada ser humano. Como ressalta Pietro Perlingieri:
O ordenamento não pode formalisticamente igualar a manifestação da liberdade
através da qual se assinala, profundamente, a identidade do indivíduo com a
liberdade de tentar perseguir o máximo lucro possível: à intuitiva diferença entre
a venda de mercadorias [...] e o consentimento a um transplante corresponde uma
diversidade de avaliações no interno da hierarquia dos valores colocados pela
Constituição.8
Por isso, é fundamental se refletir sob esse viés existencial da autonomia privada,
qualitativamente diferente da sua vertente patrimonial. Isto porque as situações jurídicas
subjetivas patrimoniais, tendo em vista sua instrumentalidade indireta para a realização da
dignidade da pessoa humana, devem desempenhar uma função social para serem
merecedoras de tutela. Em virtude disso, a autonomia privada patrimonial pode sofrer
limitação em virtude do princípio da solidariedade de uma forma mais acentuada,
funcionalizada à realização também de interesses coletivos.
Já as situações jurídicas subjetivas existenciais, por serem manifestações diretas da
personalidade como valor, não podem ser instrumentalizadas. Assim, no que se refere à
autonomia privada existencial, para que se garanta o livre desenvolvimento da
personalidade, é fundamental que a pessoa possa escolher a forma de vida que mais lhe
6 Maria Celina Bodin de MORAES. O princípio da solidariedade. In: Manoel Messias Peixinho, Isabella Franco
Guerra e Firly Nascimento Filho (orgs.). Os princípios da constituição de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2001, p. 169.
7 Heloísa Helena BARBOZA. Autonomia em face da morte: alternativa para a eutanásia? In Tânia da Silva
Pereira et al. (coord.). Vida, morte e dignidade humana. Rio de Janeiro: GZ, 2010, p. 38.
8 Pietro PERLINGIERI. Perfis do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 276.
realize, bem como concretize o seu projeto de vida individual. Por isso, nesse campo, não
se pode afirmar que a autonomia seja funcionalizada, ainda mais a interesses sociais ou
coletivos. Se se pensar na funcionalização da autonomia privada existencial, a única
alternativa possível é lhe atribuir uma função pessoal, individual, vinculada exclusivamente
à livre realização da personalidade.9
2. O respeito à autonomia existencial: pluralismo democrático, identidade pessoal e
privacidade
A proteção a esta autonomia existencial ganha especial relevo no contexto de uma
sociedade diversificada. Reconhece-se de forma ampla que a sociedade contemporânea não
é marcada pela homogeneidade e pela semelhança, mas sim pela diversidade e pela
diferença, cabendo-lhe o desafio de lidar com todas as conseqüências decorrentes deste
fato. Neste debate, é necessário afastar as visões reacionárias e autoritárias que tendem a
combater e reprimir este fenômeno e, em seu lugar, reconhecer que a tolerância e o diálogo
tornam a diversidade uma benesse para o enriquecimento cultural de qualquer comunidade.
Não se pode deixar de verificar que, mesmo dentro desta perspectiva de
acolhimento do pluralismo, diferentes visões se embatem sobre como exatamente deve ser
a postura do direito para estabelecer o diálogo e, nos pontos necessários, o consenso entre
as distintas concepções de bem ou identidades partilhadas pelos destinatários do
ordenamento. Mas desde visões mais liberais, na linha de uma imparcialidade da justiça
frente à diversidade, até visões mais comunitaristas, em compromisso com uma visão
substantiva de tolerância, passando ainda por uma perspectiva dita democrático-
deliberativa, de construção discursiva do direito, todas podem ser acolhidas como premissa,
enquanto partilharem da idéia comum de respeito à diversidade de orientações.10
Foi este o caminho trilhado pelo nosso ordenamento. Ao constituir-se como Estado
Democrático de Direito, nossa Constituição tomou como fundamento o pluralismo político
(CF, art. 1º, V), que, como se destaca em doutrina, não se limita ao pluralismo partidário:
Embora a Constituição brasileira, assim como tantas outras, utilize a expressão
pluralismo agregando-lhe o adjetivo político, fato que à primeira vista poderia
sugerir tratar-se de um princípio que se refere apenas a preferências políticas e/ou
9 Ana Carolina Brochado TEIXEIRA. Saúde, corpo e autonomia privada. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p.
147.
10 Sobre o complexo tema, v. Gisele CITTADINO. Pluralismo, direito e justiça distributiva. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 1999.
ideológicas, em verdade a sua abrangência é muito maior, significando
pluralismo na polis, ou seja, um direito fundamental à diferença em todos os
âmbitos e expressões da convivência humana – tanto nas escolhas de natureza
política quanto nas de caráter religioso, econômico, social e cultural, entre outras
– um valor fundamental, portanto, cuja essência Arthur Kaufmann logrou traduzir
em frase de rara felicidade: não só, mas também. Dessarte, falar em pluralismo
político significa dizer que, respeitadas as poucas restrições estabelecidas na
própria Lei Fundamental – pois nesse terreno é imperativa a reserva de
Constituição –, o indivíduo é livre para se autodeterminar e levar a sua vida como
bem lhe aprouver, imune a intromissões de terceiros, sejam elas provenientes do
Estado, por tendencialmente invasor, ou mesmo de particulares.11
Da mesma forma, a expressa opção por uma república que objetiva a constituição de
uma sociedade livre, justa e solidária (CF, art. 3º, I) e pela promoção do bem de todos, sem
qualquer tipo de preconceito (CF, art. 3º, III), impõem, a priori, o respeito às concepções
pessoais de felicidade e ao livre desenvolvimento da própria personalidade. Afinal, a pessoa
pode, no âmbito de um catálogo aberto de direitos fundamentais constitucionalmente
tutelado, buscar a arquitetura do seu estilo de vida, consoante os valores pessoais que a
realizem.12
É esta liberdade que franqueia a possibilidade de cada sujeito elaborar sua própria
identidade, a qual, embora construída dialogicamente com seus convivas, torna-se única e
individual, elemento de seu destacamento frente a seus pares. Em atendimento a este
aspecto fundamental da proteção à dignidade da pessoa humana – e em reação à notória
insuficiência do tradicional rol de direitos da personalidade – tornou-se comum a referência
a um “direito à identidade pessoal”. Embora não protegido por dispositivo legal específico,
a jurisprudência pioneiramente dele se utilizou em hipóteses nas quais o sujeito se via
lesado na sua dignidade por ser retratado com caracteres identificativos incompatíveis com
aqueles que escolhera para guiar sua vida pessoal e social.13 Trata-se, portanto, de mais um
11 Paulo Gustavo Gomes BRANCO, Inocêncio Mártires COELHO e Gilmar Ferreira MENDES. Curso de Direito
Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 146.
12 Ana Carolina Brochado TEIXEIRA. Saúde, corpo e autonomia privada. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p.
112-113.
13 Os precedentes italianos da década de 1970 envolviam um casal cuja imagem foi utilizada em uma
propaganda contrária à lei do divórcio, um tradicional político indicado como membro do partido adversário e
um médico indicado como se defendesse que os cigarros seriam menos danos que o alardeado. Sobre o tema,
v. Carlos Fernández SESSAREGO, Derecho a la identidad personal, Buenos Aires: Astrea, 1992, e Giorgio
PINO, Il diritto all’identità personale. Bologna: Mulino, 2003. Entre nós, o caso mais citado é o da atriz e
apresentadora Xuxa Meneguel, que conseguiu impedir o lançamento em videocassete do filme ‘Amor,
estranho amor’, película de cunho erótico exibida no cinema cuja difusão deturparia sua imagem junto ao
público infantil. O TJRJ entendeu que: “após o lançamento da fita (no cinema), ocorrido em 1982, Xuxa se
projetou, nacional e internacionalmente, com programas infantis na televisão, criando uma imagem que muito
justamente não quer ver atingida, cuja vulgarização atingiria não só ela própria como as crianças que são o
instrumento jurídico para garantir o respeito às escolhas de vida individuais de caráter
existencial, cerne da tutela conferida à dignidade da pessoa humana.
Entretanto, sem sombra de dúvida, o instrumento jurídico que mais nitidamente
acolhe este movimento de respeito à esfera de livre escolha existencial é o direito à
privacidade. Tradicionalmente entendida, a partir da difusão de Warren e Brandeis da visão
de Robert Kerr, como “o direito a ficar só”, a privacidade sofreu drástica transformação e
ampliação nas últimas décadas, impelida pelas inovações tecnológicas e pela extensão da
proteção às situações jurídicas existenciais. As críticas à concepção do indivíduo murado,
isolado, em que se baseava a concepção tradicional, e da tutela puramente negativa, de
exclusão, a que ela dava origem, deram lugar ao entendimento da privacidade como “o
direito à autodeterminação informativa”, consistente no real poder sobre nossas próprias
informações.14 Resguarda-se, assim, o sujeito contra o acesso e a interferência aos seus
dados pessoais, em especial aqueles ditos “sensíveis”, relativos às suas escolhas mais
individuais, como sentimentos, conduta sexual, saúde, defeitos físicos, fé religiosa, idéias
políticas.
A partir desta reformulação, a tutela da privacidade, prevista expressamente entre
nós nos arts. 5º, X, da Constituição, e 21 do Código Civil, vem sendo defendida como uma
cláusula geral de tutela da autodeterminação quanto às escolhas existenciais, entendida “a
„inviolabilidade da vida privada‟ não como a tímida tutela do microcosmo da casa, mas
como o espaço (inviolável) da liberdade de escolhas existenciais”.15
Assim, enquanto as relações patrimoniais são mero instrumento, a ser
funcionalizado a outros valores constitucionais e, portanto, esferas em que a autonomia é
merecedora de tutela de forma condicionada, nas relações existenciais a liberdade parte
com prioridade para realização da dignidade, a ser sopesada somente em situações
seu público, ao qual se apresenta como símbolo da liberdade infantil, de bons hábitos e costumes, e da
responsabilidade das pessoas” (TJRJ, 2a Câmara Cível, Apelação Cível 1991.001.03819, Des. Thiago Ribas
Filho, julg. 27.02.1992). V. Raul Cleber da Silva CHOERI. O direito à identidade na perspectiva civil-
constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010.
14 Stefano RODOTÀ. A vida na sociedade de vigilância: privacidade hoje. Rio de Janeiro: Renovar,
2008. Entre nós, v. Danilo DONEDA. Da privacidade à proteção de dados pessoais. Rio de Janeiro: Renovar,
2006; e Bruno LEWICKI. A privacidade da pessoa humana no ambiente de trabalho. Rio de Janeiro: Renovar,
2003.
15 Maria Celina Bodin de MORAES. Ampliando os direitos da personalidade. Na medida da pessoa humana.
Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 148.
excepcionais, que envolvam desrespeito à solidariedade ou outros aspectos igualmente
prioritários à própria dignidade.
Nestes termos, a proteção à livre realização de um projeto de existência individual
deve ser um dos maiores objetivos de um ordenamento jurídico que preza pela tutela da
pessoa humana, pois significa que sua dignidade está sendo realizada, uma vez que a
personalidade está sendo construída da forma que o próprio indivíduo escolheu para si.
Sendo a dignidade um dos escopos da República Federativa do Brasil e o pluralismo um
dos pilares do Estado Democrático de Direito, não há outra forma que não esta de deixar
que a pessoa construa seu próprio caminho, sua própria identidade. Por isso, é defeso ao
Estado, ao legislador, ou governo, a outras pessoas interferirem na edificação e na
concretização desse projeto de vida individual, pois faz parte das escolhas mais íntimas que
cada um faz para si. Esse núcleo está submetido apenas ao exercício da própria autonomia.
Deve a Constituição garantir que esse espaço de autonomia seja preservado, sob
pena de supressão da subjetividade. É preciso que, efetivamente, abram-se os espaços para
que as escolhas individuais possam ser feitas e para que cada pessoa possa participar da
construção da sua personalidade e dignidade. Foi dessa forma que o constituinte traçou as
diretrizes da abertura do catálogo de direitos fundamentais. Trata-se de possibilidades
atribuídas a cada indivíduo, para que ele escolha a melhor forma de se realizar, através dos
aspectos pessoais que lhe franqueia a autonomia privada. Nesse sentido, no âmbito dos
direitos fundamentais, pode a pessoa agir de acordo com o entender seja melhor para si,
principalmente no que tange às decisões referentes a si, ao seu corpo, à sua individualidade.
Em questões de maior intimidade, portanto, o fio norteador deve ser a autonomia privada,
pois a vontade individual é a mais legítima a guiar tais decisões, em lugar da imposição do
Estado ou de terceiros. Conforme afirma Stefano Rodotà, trata-se de um espaço
“indecidibile per il legislatore”, ou seja, um espaço no qual a decisão da pessoa é a
verdadeiramente legítima, quando estiver em jogo questões afetas à sua personalidade. É
um espaço delimitado pelo constituinte e, dentro desse limite, o Estado autorizou a ação do
particular:
Relega-se assim o coração do problema, que consiste justamente em uma
avaliação preventiva quanto ao “se” da decisão, quanto à própria conveniência de
legislar em situações em que a consciência a respeitar não é a dos deputados e
senadores, mas a das mulheres e homens que devem poder governar a sua própria
existência. E que, portanto, não devem ser expropriados da liberdade de decisão,
mas sim colocados em posição de exercê-la responsavelmente, da mesma forma
que os doutos, para os quais “não se trata de apelar à fé ou à religião, mas de
confiar em uma tomada de consciência” (Ignazio Marino). A democracia é
também sobriedade e respeito.16
E complementa o autor:
A lei não pode, em nenhum caso, violar os limites impostos pelo respeito à
pessoa humana, diz com sua bela linguagem a Constituição [italiana] no seu
artigo 32. É a consciência individual, com os seus tormentos, que deve ser
respeitada por um legislador ao qual se destina a sobriedade e, nos casos limites,
o silêncio. Ademais, concordando que exista uma área “indecidível” para o
legislador e remetida às decisões individuais, no quadro de princípios gerais se
encontraria uma regra capaz de evitar conflitos lacerantes onde se invoquem
valores considerados inegociáveis.”17
Assim, utilizando a construção que já se tornou referência, a proteção à dignidade
da pessoa humana tem por corolários a tutela da integridade psicofísica, da igualdade, da
liberdade e da solidariedade.18 Nesta difícil ponderação entre liberdade e solidariedade se
encontra o desafio de reconstruir, sob este novo paradigma, o conceito de autonomia
privada. O problema da disposição de órgãos para depois da morte constitui exemplo da
16 Tradução livre de Stefano RODOTÀ. Politici, liberateci dalla vostra coscienza. Disponível em
<http://daleggere.wordpress.com/2008/01/13/stefano-rodota-%C2%ABpolitici-liberateci-dalla-vostra-
coscienza%C2%BB/>, acesso em 14 jul. 2008. No original: “Si trascura così il cuore del problema, che
consiste appunto in una valutazione preventiva intorno al "se" della decisione, all’opportunità stessa del
legiferare quando la coscienza da rispettare non è quella di deputati e senatori, ma quella delle donne e degli
uomini che devono poter governare la loro esistenza. E che, quindi, non devono essere espropriati della
libertà di decisione, ma messi in grado di esercitarla responsabilmente, allo stesso modo degli scienziati, per
i quali «non si tratta di appellarsi alla fede o alla religione ma di puntare su una presa di coscienza» (così
Ignazio Marino). La democrazia è anche sobrietà e rispetto.”. Neste sentido, afirma ainda Rodotà: “Per
carità, la libertà di coscienza va sempre presa in considerazione. Ma in realtà in queste materie cosiddette
eticamente sensibili e che riguardano decisioni individuali, la libertà di coscienza che deve essere rispettata è
quella della persona che deve prendere la decisione. Il punto chiave non è la libertà di coscienza del politico
ma il fatto che la legge non può espropriare la libertà di coscienza di ciascuno di noi. E questo è un limite
all’invasività della politica e all’uso proibizionista della legge. Inoltre è anche evidente che così la politica
perde il suo senso di grande dibattito pubblico e si privatizza, e anche questo è sintomo della regressione
culturale. Il confronto tra le idee lascia il posto all’arroccamento sulla torre d’avorio della propria
coscienza, della quale non si risponde né alla politica né alla collettività. Ma attenzione all’effetto cascata
delle obiezioni di coscienza: perché allora un giudice non potrebbe rifiutarsi di applicare una legge non
conforme alla propria coscienza?”
17 Tradução livre de Stefano RODOTÀ. Politici, liberateci dalla vostra coscienza. Disponível em
<http://daleggere.wordpress.com/2008/01/13/stefano-rodota-%C2%ABpolitici-liberateci-dalla-vostra-
coscienza%C2%BB/>, acesso em 14 jul. 2008. No original, “La legge non può in nessun caso violare i limiti
imposti dal rispetto della persona umana’, dice con il suo bel linguaggio la Costituzione proprio nell’articolo
32. É la coscienza individuale, con i suoi tormenti, a dover essere rispettata da un legislatore al quale si
addice la sobrietà e, nei casi limite, il silenzio. Inoltre, convenendo che vi sia un’area ‘indecidibile’ per il
legislatore e rimessa alle decisioni individuali nel quadro di principi generali, si troverebbe una regola
capace di evitare conflitti laceranti là dove una o più delle parti politiche faccia riferimento a valori ritenuti
non negoziabili. [...]”.
18 Maria Celina Bodin de MORAES. Danos à pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 201 e ss.
importância do esforço em repensar o conteúdo, as fronteiras e, principalmente, a função da
autonomia privada em um sistema guiado pela proteção da dignidade da pessoa humana.
3. Transformações na legislação dos transplantes
Toda legislação de transplantes de órgãos e tecidos está calcada em uma ponderação
entre liberdade e solidariedade. De um lado, a liberdade de decidir acerca do destino de seu
corpo, mesmo depois da morte, respeitando convicções religiosas ou pessoais. De outro
lado, a solidariedade presente na possibilidade, oferecida pela ciência médica, de que o
material biológico já não mais útil ao seu portador original possa servir para garantir a
saúde ou mesmo a sobrevivência de outra pessoa – a “preservação da vida de alguém por
meio do uso de órgãos de outras pessoas”.19 No problema em exame, verificamos ainda a
colisão entre os interesses manifestados em vida do eventual doador, falecido, e os
interesses dos familiares vivos – nos termos da lei, “cônjuge ou parente, maior de idade,
obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau inclusive” – no tocante
ao destino do corpo do ente querido falecido.
No Brasil, a legislação sobre os transplantes se inicia com a Lei n. 4.280, de 6 de
novembro de 1963, mas foi com a Lei n. 5.479, de 10 de agosto de 1968, que se passou a
exigir com destaque que o transplante só ocorresse com expressa manifestação de vontade
do disponente ou de familiar.20 No sistema original, portanto, o sopesamento era feito de
forma que somente na ausência de opção expressa do titular no sentido da doação, e ainda
da família, não ocorreria o transplante, mas bastava que um ou outro autorizasse a doação
para que ela fosse viabilizada.
Com o desenvolvimento da tecnologia médica e o crescimento da demanda pelos
transplantes, a normativa foi substituída no início da década de noventa, já com uma sutil
19 Giselda Maria Fernandes Novaes HIRONAKA. Bioética e biodireito: revolução biotecnológica, perplexidade
humana e prospectiva jurídica inquietante. Revista brasileira de direito de família, v. 16, jan.-mar./2003, p.
48. Sobre o papel da solidariedade e do altruísmo na política de transplantes, v. José Roque Junges. Bioética:
perspectivas e desafios. São Leopoldo: Unisinos, 1999, pp. 205 e ss.
20 L. 5.479/68, art. 3º: “A permissão para o aproveitamento, referida no art. 1º, efetivar-se-á mediante a
satisfação de uma das seguintes condições: I - Por manifestação expressa da vontade do disponente; II - Pela
manifestação da vontade, através de instrumento público, quando se tratar de dispoentes relativamente
incapazes e de analfabetos; III - Pela autorização escrita do cônjuge, não separado, e sucessivamente, de
descendentes, ascendentes e colaterais, ou das corporações religiosas ou civis responsáveis pelo destino dos
despojos; IV - Na falta de responsáveis pelo cadáver a retirada, somente poderá ser feita com a autorização do
Diretor da Instituição onde ocorrer o óbito, sendo ainda necessária esta autorização nas condições dos itens
anteriores”.
alteração no sentido da solidariedade: de acordo com a Lei n. 8.489, de 18 de novembro de
1992, no silêncio do possível doador, somente a recusa expressa da família impediria a
doação – presumia-se seu consentimento.21 Como destacou na ocasião José Carlos Moreira
Alves, criticando a forma pela qual a lei foi regulamentada: “o que se deveria dar ao
cônjuge, ao ascendente ou ao descendente era a oportunidade de opor-se, se assim o
quisesse, caso em que a iniciativa partiria dele, implicando o silêncio sua não-oposição, o
que é diverso da necessidade de autorização por escrito que, em última análise, representou
a volta – da legalidade discutível – ao sistema da legislação anterior”.22
Mas foi com a criação do Sistema Nacional de Transplantes, em 1997, que se
instituiu verdadeira reviravolta: além da constituição de mecanismos mais transparentes e
eficazes, buscava-se reduzir a escassez de órgãos para doação, tendo por base o princípio de
solidariedade social.23 Para a doação post-mortem, a Lei n. 9.434, de 4 de fevereiro de
1997, dava o passo pioneiro de introduzir a presunção de consentimento, salvo prévia
manifestação de vontade em sentido contrário.24 Instituía-se no Brasil, de forma precursora,
o chamado opting out system, em lugar do generalizado sistema de informação aos
parentes.25 Aqueles que não desejassem ser doadores deveriam fazer constar da carteira de
identidade ou de motorista e, como estas passariam a ser emitidas obrigatoriamente com
esta declaração, a norma de consulta subsidiária aos familiares teria sua aplicação cada vez
mais reduzida, vindo o sistema a converter-se no de declaração obrigatória.
21 L. 8.489/92, art. 3º: “Art. 3° A permissão para o aproveitamento, para os fins determinados no art. 1° desta
lei, efetivar-se-á mediante a satisfação das seguintes condições: I - por desejo expresso do disponente
manifestado em vida, através de documento pessoal ou oficial; II - na ausência do documento referido no
inciso I deste artigo, a retirada de órgãos será procedida se não houver manifestação em contrário por parte do
cônjuge, ascendente ou descendente”. Como destacou na ocasião José Carlos Moreira Alves, “o que se
deveria dar ao cônjuge, ao ascendente ou ao descendente era a oportunidade de opor-se, se assim o quisesse,
caso em que a iniciativa partiria dele, implicando o silêncio sua não-oposição, o que é diverso da necessidade
de autorização por escrito que, em última análise, representou a volta – da legalidade discutível – ao sistema
da legislação anterior”
22 José Carlos Moreira ALVES. Os aspectos jurídicos, éticos e legais dos transplantes de órgãos. Revista de
Direito Renovar, n. 1, jan./abr. de 1995, p. 9.
23 Ainda sobre o projeto, afirmava Antonio CHAVES: “O que importa assinalar é o critério verdadeiramente
inovador que trazia o projeto de lei do governo de substituir a indispensabilidade de consentimento expresso
do disponente em vida, só possível de alguns raros doadores esclarecidos que consigam vencer sua própria
inércia, ou de seus parentes mais próximos, em geral tomados de escrúpulos, pelo aproveitamento, ressalvada
a manifestação prévia em sentido contrário” (Direito à vida e ao próprio corpo: intersexualidade,
transexualidade, transplantes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p. 253).
24 Redação original do art. 4o: “Salvo manifestação de vontade em contrário, nos termos desta Lei, presume-se
autorizada a doação de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano, para finalidade de transplantes ou
terapêutica post mortem”.
25 Sobre os sistemas, v. Maria Helena DINIZ. O estado atual do biodireito. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 271.
A radical transformação, todavia, gerou intensa polêmica, causando grande
mobilização na mídia e na sociedade civil de modo geral. Seus opositores alegavam que a
lei era inconstitucional “pela estatização do corpo humano, devido ao fato de o Estado ficar
com algo que não é seu”, desrespeitando “o direito individual da pessoa à sua integridade
física e dignidade” e o “princípio filosófico do controle do homem sobre o próprio
corpo”.26 Além desta linha de argumentação fundada na afronta à autodeterminação e na
interferência exagerada na esfera privada, vinculada à tradição liberal, invocou-se também
a falta de informação da população brasileira como fator impeditivo para uma manifestação
plenamente consciente de vontade.27
Estes argumentos, aliados a certa desconfiança com relação ao critério de avaliação
da morte encefálica – e com relação ao rigor de sua aferição diante da ameaça do tráfico de
órgãos28 – geraram pressão suficiente para fazer com que o executivo editasse uma medida
provisória retornando ao sistema anterior: de acordo com a MP 1.718, de 6 de outubro de
1998, na ausência de manifestação expressa de vontade do doador, os familiares poderiam
impedir a realização do transplante.29
No entanto, depois de reeditada 26 vezes, a medida provisória foi sub-repticiamente
alterada, revertendo completamente o avanço legislativo inicial e exigindo sempre o
consentimento expresso dos familiares, independentemente da opção declarada pelo
doador: na redação dada pela MP 1.959-27, de 24 de outubro de 2000, “a retirada de
tecidos, órgãos e partes do corpo de pessoas falecidas para transplantes ou outra finalidade
terapêutica dependerá da autorização do cônjuge ou parente, maior de idade, obedecida a
26 É o que relata Maria Helena DINIZ. O estado atual do biodireito, cit., p. 289.
27 Para uma análise dos argumentos, v. Rodrigo Pessoa Pereira da SILVA. Doação de órgãos: uma análise dos
aspectos legais e sociais. In: Maria de Fátima Freire de SÁ (coord.). Biodireito. Belo Horizonte: Del Rey,
2002, pp. 419-424. A ementa a seguir também retrata bem a concepção então vigente, não obstante se trate de
consentimento de menor que não poderia ser colhido, para se manifestar sobre sua condição ou não de doador
de órgãos: “AÇÃO CIVIL PÚBLICA. Lei nº 9434/97. Remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano
para fins de transplante e tratamento. Doação. Gravação da expressão "não doador de órgãos e tecidos", na
Carteira de Identidade Civil. Menor de dezoito anos. Exigência indevida de manifestação de vontade do
menor pelo Instituto de Identificação através de representação ou assistência. Impossibilidade jurídica, para
efeitos da lei em comento, vez que, para a disposição "post mortem" de tecidos, órgãos e partes do corpo
humano, não têm os representantes ou os assistentes poderes legais para suprir a incapacidade. Manutenção da
sentença.” (TJMG, Ap. Cív. 167.579-2/00, 2ª. CC, Rel. Pinheiro Lago, J. 19/12/2000, DJMG 16/2/2001)
28 Sobre o tema, v. Giovanni BERLINGUER e Volnei GARRAFA. O mercado humano: estudo bioético da
compra e venda de partes do corpo Brasília: UnB, 1996.
29 A MP incluiu um novo parágrafo ao art. 4o: “§ 6o. Na ausência de manifestação de vontade do potencial
doador, o pai, a mãe, o filho ou o cônjuge poderá manifestar-se contrariamente à doação, o que será
obrigatoriamente acatado pelas equipes de transplante e remoção”.
linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau, inclusive, firmada em documento
subscrito por duas testemunhas presentes à verificação da morte”. Esta medida provisória
veio a se converter, depois de mais cinco reedições, na Lei n. 10.211, de 23 de março de
2001.30
A legislação especial sobre o tema, portanto, na ponderação entre liberdade e
solidariedade, prioriza a liberdade, mas, curiosamente, não a liberdade do possível doador e
sim a liberdade da família. De fato, entre as duas, a liberdade do possível doador é
absolutamente desprezada diante do desejo da família: ainda que o falecido tenha, em um
gesto de solidariedade, exprimido o desejo de doar seus órgãos, esta manifestação será
desconsiderada se a família não concordar expressamente com o transplante.
4. O Código Civil e as disposições para depois da morte
O cenário apresentado pela legislação especial a partir de 2000 foi, todavia,
problematizado por um dispositivo do Código Civil de 2002. O Código, justificadamente,
recebeu inúmeras críticas por nascer envelhecido, sem levar em conta a história
constitucional e a experiência jurisprudencial brasileira, em especial no tocante ao seu
capítulo de direitos da personalidade.31 Mas curiosamente é exatamente neste capítulo que
encontramos um enunciado normativo que se contrapõe à linha adotada pela legislação
especial. Talvez seja um influxo da referida “lógica da socialidade” que guiou o projeto,
inspirada exatamente na solidariedade constitucional, ou talvez simplesmente porque
mesmo a posição assumida pela lei de transplantes atual seja ainda mais antiquada que o
espírito da década de 70 que permeou a redação do Código Civil.
A referida “novidade” é o artigo 14, que determina que “é válida, com objetivo
científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para
30 O parágrafo único originalmente previsto no projeto (“A retirada de tecidos, órgãos e partes do corpo de
pessoas falecidas poderá ser realizada a partir de registro feito em vida, pelo de cujus, nos termos do
regulamento”) foi vetado pelo executivo por poder conduzir a interpretação diversa. A nova lei também
invalidou as declarações existentes: “art. 2º. As manifestações de vontade relativas à retirada „post mortem‟
de tecidos, órgãos e partes, constantes da Carteira de Identidade Civil e da Carteira Nacional de Habilitação,
perdem sua validade a partir de 22 de dezembro de 2000”.
31 Na a lição de Gustavo TEPEDINO: “o novo Código nascerá velho principalmente por não levar em conta a
história constitucional brasileira e a corajosa experiência jurisprudencial, que protegem a personalidade
humana mais do que a propriedade, o ser mais do que o ter, os valores existenciais mais do que os
patrimoniais. E é demagógico porque, engenheiro de obras feitas, pretende consagrar direitos que, na verdade,
estão tutelados em nossa cultura jurídica pelo menos desde o pacto político de outubro de 1988” (O Novo
Código Civil: duro golpe na recente experiência constitucional brasileira. Temas de Direito Civil, t. II. Rio de
Janeiro: Renovar, 2004, p. 358).
depois da morte”.32 Enquanto o dispositivo precedente, referente aos atos de disposição em
vida, remeta para a legislação especial (CC, art. 13, parágrafo único), no tocante à
disposição do corpo para depois da morte, com fim científico ou altruístico, o Código
assegura, de forma assertiva, a sua validade. A ratio do dispositivo é clara: a proteção do
desejo do falecido, neste caso, é, simultaneamente, a tutela da liberdade, pois assegura a
disposição do corpo, e da solidariedade, pois atende à finalidade científica ou altruísta.
A antinomia se estabelece, portanto, entre o art. 4º da Lei de Transplantes (L.
9.434/97, alterada pela L. 10.211/01), que determina que a legitimidade para autorizar a
retirada de partes do corpo depois da morte para fins de transplante é da família,
desconsiderada assim a declaração do falecido, e o art. 14 do Código Civil de 2002, que
prevê a validade da declaração feita pelo falecido no sentido da disposição de seus órgãos
com finalidade altruística ou científica.
Pela utilização dos critérios tradicionais de solução de conflitos entre regras, a
norma especial prevalece sobre a norma geral, todavia a norma geral, neste caso, é
posterior.33 Mas especialmente em uma antinomia como esta, envolvendo a tutela da
liberdade e da solidariedade – e, portanto, da dignidade humana – é imperioso solucionar o
conflito a partir da tábua de princípios constitucionais que inspira e imanta todo o sistema.
Como leciona Pietro Perlingieri: “a norma não está nunca sozinha, mas existe e exerce sua
função no interior do ordenamento, e o seu significado muda com o dinamismo e a
complexidade do próprio ordenamento”.34
Entretanto, deve-se ter em mente que o conflito aqui não é simplesmente entre
liberdade e solidariedade, como de costume, mas sim entre a liberdade do possível doador
(amparada também pela solidariedade) e o interesse da família.35 O que se cogita é o
32 O parágrafo único do dispositivo assegura a revogabilidade da disposição: “Art. 14. [...] Parágrafo único. O
ato de disposição pode ser livremente revogado a qualquer tempo”.
33 Para uma apresentação dos critérios clássicos de solução de antinomias, v., entre todos, Norberto BOBBIO.
Teoria do ordenamento jurídico, 10. ed. Brasília: UNB, 1997.
34 Pietro PERLINGIERI. Il diritto civile nella legalità costituzionale, t. II, 3. ed. Napoli: ESI, 2006, p. 580.
35 O interesse da família é descrito por Maria de Fátima Freire de SÁ: “Porém, sabe-se, não é por já não terem
vida, nem porque não mais se prestam a ela, que os mortos deixam de ser importantes para as suas famílias.
Ao contrário. Talvez estas fiquem muito mais apegadas, naquele momento de dor, conscientes de que seus
entes queridos continuam a traduzir a imagem da pessoa viva, e o que é mais desesperador, tal como uma
imagem congelada, um retrato que não se expressa – não fala, não sente, mas projeta a pessoa querida, de
forma com que ela faça parte da sua convivência e do seu dia-a-dia, muitas vezes como um „pano de fundo‟,
dependendo do grau de afetividade que as ligava ao falecido” (Biodireito e direito ao próprio corpo. Belo
Horizonte: Del Rey, 2000, p. 74).
sacrifício de um desejo individual do falecido – que em vida seria plenamente amparado
pelo direito – em nome do desejo de seus familiares ainda vivos. Para realizar esta
ponderação, portanto, é necessário abordar qual o papel e a importância da família na
ordem constitucional contemporânea.
5. A funcionalização da família e o respeito à decisão do doador
A estrutura imposta pela legislação especial sobre transplantes para a doação de
órgãos post mortem, determinando que prevaleça sempre a vontade dos familiares, é típica
do modelo tradicional de tutela jurídica da família. Neste modelo, a chamada “família-
instituição” era reputada um bem a ser protegido por si só, de forma autônoma, intocável
pelo direito: qualquer intervenção estatal era vista com certa hostilidade. Em razão disso,
seria tolerável – e por vezes mesmo esperado – eventual sacrifício a ser sofrido por cada um
de seus componentes em nome da preservação da “célula mater” da sociedade.36
No contexto atual, todavia, a Constituição elege como princípio fundamental a
dignidade da pessoa, não a intangibilidade da entidade familiar. A família, “base da
sociedade”, só recebe proteção especial do Estado porque é um lócus especialmente apto
para garantir uma rede de amparo afetivo e material a cada um dos seus membros – e só
será protegida enquanto estiver desempenhando esta função. Ela é tutelada em nome de
cada um de seus integrantes, como “caminho da realização de seu projeto de felicidade
pessoal”.37
Por conta disso se fala, sob a perspectiva da constitucionalização do direito civil, de
“funcionalização” ou “instrumentalização” da família: as entidades familiares deixam de
ser instituições protegidas em si mesmas para servirem como instrumentos para o
desenvolvimento da personalidade de seus membros. Antes, a proteção da paz doméstica,
da coesão formal do grupo familiar e da integridade do vínculo conjugal era considerada
merecedora em si de tutela, ainda que em detrimento da realização pessoal dos seus
integrantes, porque se partia da análise exclusivamente estrutural dos institutos.38 Hoje, a
ratio da proteção da família é o livre desenvolvimento da personalidade de seus membros, a
efetivação da dignidade de cada um de seus componentes, logo somente enquanto estiver a
36 Gustavo TEPEDINO. Temas de direito civil, cit., p. 418.
37 Giselda Maria Fernandes Novaes HIRONAKA. Família e casamento em evolução. Revista Brasileira de
Direito de Família, n. 1, abr./jun. 1999, p. 8.
38 Gustavo TEPEDINO. Temas de direito civil, cit., p. 372.
desempenhar este papel serão as decisões da entidade familiar merecedoras de respaldo
jurídico.
O modelo compatível com a ordem constitucional, então, é a “família democrática”,
na qual todos os membros têm voz e participação: ela é calcada no diálogo e no respeito
mútuo, sem qualquer forma de violência, e nela é garantida a igualdade entre os membros e
a liberdade de cada um deles sem sacrifício da solidariedade que os interliga.39 Nas
palavras de Anthony Giddens, “a família está se tornando democratizada, conforme modos
que acompanham processos de democracia pública; e tal democratização sugere que a vida
familiar poderia combinar escolha individual e solidariedade social”.40 Tanto é que, cada
dia mais, os membros da família vêm ganhando autonomia, com a diminuição crescente da
intervenção do Estado, para que a própria família possa dirigir seus rumos.41
Neste modelo, portanto, a entidade familiar é construída no esforço de conciliar a
solidariedade familiar, demandada especialmente pelos projetos comuns, com a necessária
liberdade individual.42 A família, assim, é sempre suporte – e jamais obstáculo – ao
desenvolvimento da personalidade de seus membros. Mesmo entre os incapazes, a quem as
regras tradicionais de direito civil vedam – em nome de sua proteção – a liberdade para
realizar os atos da vida civil por conta própria se vem reconhecendo autonomia na medida
de sua maturidade, de modo a relativizar o regime tradicional das incapacidades.43
As relações familiares são permeadas por deveres mútuos, seja de assistência, o que
se constata através dos alimentos, seja de cuidados pessoais e patrimoniais, conforme se
pode extrair dos institutos da tutela, curatela, poder familiar. O art. 229 da Constituição
Federal demonstra exatamente o quão intensa é a incidência do princípio da solidariedade
no âmbito da família. Aos pais incumbe o cuidado com os filhos na infância e juventude,
39 Maria Celina Bodin de MORAES. A família democrática. In: Anais do V Congresso Brasileiro de Direito de
Família. São Paulo: IOB Thompson, IBDFAM, 2006, p. 613-640
40 Anthony GIDDENS. A Terceira Via: Reflexões sobre o Impasse Político Atual e o Futuro da Social-
Democracia, Rio de Janeiro: Record, 2000 p. 98, apud Maria Celina Bodin de MORAES. A família
democrática, cit., p. 616.
41 Demonstrações dessa afirmação não faltam: a Lei 11.447/2007 – que autorizou o procedimento cartorial da
separação e o divórcio - e a recente aprovação da Emenda Constitucional 66, que aboliu a necessidade da
discussão de tempo para a dissolução do casamento, expurgou a culpa do Direito de Família matrimonial e,
segundo a doutrina majoritária, pôs fim ao instituto da separação (judicial e extrajudicial).
42 Ana Carolina Brochado TEIXEIRA. Família, guarda e autoridade parental. Rio de Janeiro: Renovar, 2009,
p. 29.
43 Sobre o tema, v.. Ana Carolina Brochado TEIXEIRA et. al.. Autonomia privada da criança e do adolescente:
uma reflexão sobre o regime das incapacidades. Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões, v. 1,
2007, pp. 57-73.
quando ainda não têm maturidade, o que justifica a existência de um processo educacional;
aos filhos é atribuído o dever de cuidado dos pais na velhice, carência ou doença, isto é,
quando necessitarem de assistência.44
Isso não significa a não incidência do princípio da autonomia privada no âmbito da
família. Se a família passou a ser instrumento para a livre realização dos seus membros, sua
formação e manutenção apenas se justifica enquanto significar uma escolha, no que tange à
conjugalidade. Logo, o que origina a formação familiar é exatamente um ato de liberdade;
contudo, após sua constituição, há forte incidência de deveres mútuos, cuja gênese é o
princípio da solidariedade, principalmente enquanto algum de seus membros tiver alguma
vulnerabilidade. Vulnerabilidade justifica diminuição de autonomia, pois uma das
condições para se ter plena autonomia é a ampla capacidade do sujeito, que pressupõe a
vontade livre, em todos os sentidos, para que possa praticar, validamente, atos jurídicos. A
vulnerabilidade é razão justificadora da publicização de algumas relações, pois, neste caso,
a autonomia das partes pode não ser suficiente para assegurar a concretização da dignidade,
uma vez que ambas não são detentoras de iguais liberdades.45
Constata-se, portanto, o constante conflito entre liberdade e solidariedade: a
liberdade na formação da família, da forma de realização no interior da família e,
simultaneamente, a intensa incidência do princípio da solidariedade, pois, na relação afetiva
com “o outro”, no âmbito da alteridade familiar, existe corresponsabilidade. Como
justificar, então, que, depois da morte, não prevaleça mais a decisão tomada pela pessoa,
porque incompatível com o desejo de seus familiares?
Não ampara este entendimento o fato de a extinção da personalidade com a morte
conferir legitimidade aos familiares para zelarem, a partir de então, pelos aspectos da
personalidade do de cujus (CC, art. 12, parágrafo único, e art. 20, parágrafo único).
44 “No direito moderno, a propriedade, posto que individual, é como que assegurada aos membros do grupo
familiar, não é porque a todos pertença em comum, mas em razão do princípio da solidariedade, que
fundamenta deveres de assistência do pai aos filhos, e por extensão a outros membros da família, bem como
do filho ao pai, por força do que dispõe o art. 229 da Constituição de 1988. Visa, então, a transmissão
hereditária a proporcionar originariamente aos descendentes a propriedade do antecessor, segundo o princípio
da afeição real ou presumida, que respectivamente informa a sucessão legítima e a testamentária.” (Caio
Mário da Silva PEREIRA. Instituições de direito civil, vol. VI, 15. ed., atualizada por José Carlos BARBOSA
MOREIRA. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 6-7)
45 Sobre vulnerabilidade no âmbito da família, recomendamos Maria Celina BODIN DE MORAES.
Vulnerabilidades nas relações de família: o problema da desigualdade de gênero. In: Maria Berenice Dias.
(Org.). Direito das famílias. Contributo do IBDFAM em homenagem a Rodrigo da Cunha Pereira. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2009, p. 306-322.
Primeiro, porque, do ponto de vista técnico, ao lado destes dispositivos, o mesmo diploma
prevê, em dispositivo específico, a validade das disposições post mortem com fim
altruístico ou científico (o referido art. 14). Portanto, os referidos artigos somente seriam
aplicáveis na ausência de expressa manifestação de vontade do falecido.
Segundo porque a ponderação que subjaz a estes dispositivos não autoriza que a
vontade dos familiares prevaleça sobre a vontade do titular manifestada ainda em vida. De
fato, a estrutura jurídica desta legitimação é objeto de grande controvérsia, com explicações
que vão desde uma personalidade residual do defunto até o reconhecimento dos direitos das
pessoas vivas afetadas, passando inclusive pela sustentação de uma espécie de fidúcia ou
curadoria dos bens existenciais do falecido.46 Do ponto de vista funcional, todavia, há que
se reconhecer que depois da morte ainda há interesses existenciais merecedores de tutela e
que se atribui aos familiares, como em princípio mais vinculados ao morto, a legitimidade
para defendê-los e a terceiros, o dever de respeitar o morto, bem como sua imagem,
privacidade, honra e nome. Trata-se de uma atribuição residual, subsidiária, diante de uma
lesão que pode ser tanto à dignidade do falecido como, indiretamente, de modo reflexo, à
própria família.47
Neste sentido, a melhor doutrina defende que os familiares em tais casos estariam
na verdade investidos de um poder-dever, a ser exercido no presumido interesse da pessoa
falecida: “apesar de não existir propriamente uma obrigatoriedade de ação, há, por outro
lado, um poder de controle quanto à tutela da personalidade da pessoa falecida, que poderá
ser exercido pelos próprios titulares do poder-dever em relação à ação de seus pares”.48
Logo, diante da possibilidade de a própria pessoa se autodeterminar e de haver uma
heterodeterminação – mesmo que por membros da família, os quais, presumidamente, são
caros à pessoa – em questões existenciais, as diretrizes constitucionais são sempre no
sentido de preservar a vontade da pessoa, desde que exteriorizada através de uma decisão
46 Rabindranath Valentino Aleixo Capelo de SOUSA. O Direito geral de personalidade. Coimbra: Coimbra
Editora, 1995, pp. 401 e ss.
47 Como explica Pietro PERLINGIERI: “Si discute se i familiari piú stretti del defunto abbiano un proprio
interesse a far valere la di lui dignitià ed onorabilità oppure se essi abbiano la sola legittimazione a proporre
l’azione (in quanto l’interesse permarrebbe in capo al congiunto anche dopo la sua morte). Il rilievo che la
lesione alla dignitià della famiglia e dei suoi singoli componenti induce a concludere che il congiunto agisce
quale titolare di un interesse, ad un tempo personale e familiare, che affonda le sue radici non soltanto in un
diritto, ma anche in un dovere di solidarietà familiare” (Manuale di diritto civile, 4. ed. Napoli: ESI, 2005, p.
150)
48 Ana Luiza Maia NEVARES. A função promocional do testamento. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 129.
autônoma e responsável, mesmo que ela venha a produzir efeitos após a sua morte. Mesmo
porque, se assim não fosse, o testamento e o consentimento autorizado pelo Código Civil e
pela lei de doação de doação de órgãos cairiam no vazio, não sendo um exemplo de
garantia de autonomia prospectiva dada pelo próprio ordenamento jurídico.
6. A questão sucessória: liberdade de testar plena ou mitigada?
O direito das sucessões, como difundido e positivado no art. 1.796 do Código Civil,
divide-se em dois grandes ramos: a sucessão legítima e testamentária. A primeira é calcada
no princípio da solidariedade e a segunda, na autonomia privada.
A sucessão legítima decorre de lei, que está alheia à vontade, bem como dos afetos e
desafetos do morto. Fundamenta-se nos deveres de solidariedade para que o patrimônio do
morto possa contribuir de maneira efetiva para a continuidade do sustento dos herdeiros:
pode ocorrer que o de cujus, quando vivo, exercesse papel fundamental na subsistência da
família, proporcionando uma vida digna aos seus membros. Por isso, mesmo que estejamos
a tratar de um patrimônio adquirido com o trabalho e esforço pessoal do falecido, sua
vontade não tem ingerência sobre parcela deste mesmo patrimônio, que é direcionado, por
lei, aos familiares. Já que o Direito das Sucessões conjuga o direito de propriedade com o
Direito de Família, justifica-se, desta forma, a sucessão legítima em fatores atrelados à
proteção, coesão e perpetuidade da família.49
A sucessão testamentária, por seu turno, fundamenta-se na vontade, na liberdade de
atribuir ao seu patrimônio a finalidade que seu titular julgar mais conveniente após a sua
morte. Trata-se de aplicação da autonomia privada no âmbito patrimonial, de inegáveis
reflexos existenciais, considerando que o testador terá segurança – garantida pelas
exigências formais para a elaboração do testamento – de que a sua vontade produzirá os
efeitos pretendidos após a sua morte, caso tenha havido o atendimento a todos os
pressupostos exigidos por lei para a validade e eficácia do testamento.
Ocorre que o ordenamento jurídico prevê uma série de regras para a convivência
desses dois tipos de sucessões, principalmente quando existem herdeiros necessários que,
segundo o art. 1.845 do Código Civil, são os descendentes, ascendentes e cônjuge. Nesse
caso, lhes é resguardada a legítima, ou seja, o mínimo de 50% do patrimônio do falecido,
49 Caio Mário da Silva PEREIRA. Instituições de direito civil, vol. VI, 15. ed., atualizada por José Carlos
BARBOSA MOREIRA. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 8.
conforme art. 1.789, CC.50 A vontade do testador pode prevalecer abrangendo a totalidade
do patrimônio, portanto, apenas quando inexistir herdeiros necessários.
Ana Luiza Maia Nevares afirma existir o princípio da intangibilidade da legítima,
tendo em vista que, por ser a herança direito fundamental dos herdeiros (art. 5º, XXX,
CF/88), esta não pode deles ser retirada por mera vontade do testador, pois a sucessão
legítima decorre do princípio da solidariedade. Logo, a legítima é intangível e qualquer
limitação que nela possa vir a existir só pode ser fruto de uma decisão que beneficie os
próprios herdeiros. Nesse sentido, sugere a autora interpretação do art. 1.848, CC, que
tutele os herdeiros: quando este dispositivo determina que pode o testador apor cláusulas
restritivas de propriedade (inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade) na
parte legítima da herança, que só poderá se efetivar caso haja uma justa causa para tal
restrição. Essa justa causa – conceito jurídico indeterminado – segundo a autora, deve estar
ligada ao patrimônio mínimo do herdeiro, ou seja, a alguma razão que lhe tutele “a partir da
indisponibilidade de um bem essencial” à pessoa, por existir razões justificadoras para tais
restrições.51 Logo, mesmo a restrição da propriedade – cuja atribuição deu-se por motivos
cuja ratio baseia-se na solidariedade social – encontra guarida no princípio da
solidariedade, tendo em vista que, em matéria patrimonial, a função social dos bens deve
preponderar sobre a autonomia da pessoa humana, a princípio.
Coexistem assim, no direito das sucessões, de forma equilibrada, a liberdade do
morto de destinar seu patrimônio para quem ele deseja com a necessidade de proteção aos
membros mais próximos da família. Todavia, é necessário refletir como este equilíbrio
constitucionalmente imposto no tocante à legítima se projeta sobre disposições para depois
da morte de natureza existencial. Fora da esfera patrimonial, seria possível ampliar a
liberdade testamentária do testador? Seria viável, neste âmbito, pensar na liberdade plena
de testar ou esse direito deve ser mitigado em prol da proteção à família?52
50 “Percebe-se, portanto, que o instituto da legítima encontra seu fundamento na conciliação entre o princípio
da liberdade do proprietário dos bens e o direito dos parentes próximos à sucessão, ou seja, entre a plena
liberdade de testar e a proteçao à família, afirmando Pontes de Miranda que „no fundo, conciliam-se os
interesses da família e os interesses provindos de amizade e gratidão‟.” (Ana Luiza Maia NEVARES, O
princípio da intangibilidade da legítima. In: Maria Celina Bodin de MORAES, Princípios do direito civil
contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 501)
51 Ana Luiza Maia NEVARES, O princípio da intangibilidade da legítima. In: Maria Celina Bodin de MORAES,
Princípios do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 532.
52 Ana Luiza Maia NEVARES, O princípio da intangibilidade da legítima. In: Maria Celina Bodin de MORAES,
Princípios do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 543.
A resposta, aqui, deve ser positiva. A influência do princípio da dignidade da pessoa
humana sobre o direito sucessório tem se materializado no que pode ser chamado, nas
palavras de Ana Luiza Maia Nevares, a função promocional do testamento.53
Tradicionalmente entendido como o ato egoísta e puramente subjetivo de dispor do
patrimônio para depois da morte, sob a ótica civil-constitucional, as disposições de última
vontade podem ter conteúdo existencial e servir à realização de interesses merecedores de
tutela, referentes a direitos da personalidade ou relativas à filiação.
Nesta linha, defende-se também o chamado “testamento vital”, no qual as
disposições não tem por objeto efeitos posteriores à morte, mas os cuidados e tratamentos
que lhe serão aplicáveis em estado terminal quando não mais puder exprimir vontade.54
Nesta seara, já se concluiu que, diante dos princípios da dignidade e da liberdade, são
válidas e eficazes tais disposições, uma vez que asseguram a implementação da vontade do
paciente terminal.55
Portanto, a legitimação conferida pela lei aos familiares não pode ser entendida
como uma prerrogativa para substituir a expressa vontade do de cujus pela sua. É
inconcebível que aquilo que foi considerado uma expressão de liberdade e solidariedade do
de cujus em vida seja, depois da sua morte, reputado uma afronta à sua dignidade, idônea a
legitimar seus familiares a fazerem com que cesse. Mesmo porque sua liberdade de escolha
pode ser ampla o suficiente para fazer designações existenciais, que coincidam com suas
crenças e ideais, para após a sua morte. Isso significa que a autonomia privada tem
dimensões espaciais que ultrapassam a existência da pessoa humana e do sujeito de direitos
abstrato. Não parece compatível com nossa tábua principiológica permitir que a família
considere o gesto livre e solidário do doador/testador uma lesão à sua própria dignidade.
Assim, seja em questões afetas à doação de órgãos ou aos testamentos – dentro dos
limites formais e materiais impostos pela lei – não há dúvidas de que deve prevalecer a
vontade da própria pessoa, que em atos autônomos e responsáveis, traça diretrizes para seu
53 Ana Luiza Maia NEVARES. A função promocional do testamento. Rio de Janeiro: Renovar, 2009.
54 Caio Mário da Silva PEREIRA. Insituições de direito civil, vol. VI, 17. ed., atualizada por Carlos Roberto
Barbosa Moreira.. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 181.
55 Ana Carolina Brochado TEIXEIRA e Luciana Dadalto PENALVA. Terminalidade e autonomia: uma
abordagem do testamento vital no direito brasileiro. In Tânia da Silva Pereira et al. (coord.). Vida, morte e
dignidade humana. Rio de Janeiro: GZ, 2010, p. 79.
corpo e seus bens para que tenham em um momento em que ela não tenha condições mais
de decidir, seja por estar em situação de grave doença, ou por já ter falecido.
7. A relevância da declaração de vontade do doador para o transplante de órgãos
depois da morte
Retomando a questão da doação de órgãos, no contexto atual temos, portanto, de um
lado um dispositivo especial (art. 4º da Lei de Transplantes) que determina que a doação de
órgãos e tecidos depois da morte só pode ocorrer com autorização da família. De outro
lado, temos um dispositivo posterior (art. 14 do Código Civil) que assevera a validade da
disposição gratuita do próprio corpo para depois da morte com fim altruístico ou científico.
Não há dúvidas de que a família, no momento em que é consultada sobre o
transplante, sofre o dramático impacto da perda do ente querido. Mas é exatamente por isso
que não deve caber a ela de forma absoluta, em qualquer hipótese, a decisão final acerca da
doação de órgãos – principalmente se o falecido manifestou sua vontade. Seria cruel exigir
dos familiares, neste momento traumático, o desprendimento para autorizar o transplante.56
Deve caber a ela sim, a decisão, no caso de silêncio do falecido, pois representam o que
está mais próximo do que seria sua própria manifestação. Todavia, expresso em vida o
desejo de doar seus órgãos, esta declaração deve ser reputada válida independente do
consentimento dos familiares.
Neste sentido, entre os doutrinadores do direito civil, já se afirmou:
Entende-se prevalecente a interpretação que favorece o art. 14 do novo Código
em virtude, principalmente, de sua adequação com o princípio constitucional da
dignidade da pessoa humana, o qual garante à pessoa, em lugar de aos seus
parentes, o direito de dispor sobre o destino de seu próprio corpo.57
Na mesma linha, o enunciado n. 277, aprovado na IV Jornada de Direito Civil,
promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, em 2006:
O art. 14 do Código Civil, ao afirmar a validade da disposição gratuita do próprio
corpo, com objetivo científico ou altruístico, para depois da morte, determinou
56 Constata-se que os familiares são afligidos, no mais das vezes, diante da dramática e súbita sensação de
perda e de vivência do luto, por sentimentos reprimidos de raiva pelo abandono e pelos transtornos deixados,
de culpa pela impossibilidade de ter viabilizado a salvação, de vergonha, pela doença ou desastre na família,
de castigo, por antigas faltas ou pecados. Sobre o tema, v. David ZIMERMAN. A dignidade diante da morte,
sob a ótica de um psicanalista. In Tânia da Silva Pereira et al. (coord.). Vida, morte e dignidade humana. Rio
de Janeiro: GZ, 2010, p. 133-134.
57 Caio Mário da Silva PEREIRA. Instituições de Direito Civil, vol. I, 22. ed., atualizada por Maria Celina
Bodin de MORAES. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 224.
que a manifestação expressa do doador de órgãos em vida prevalece sobre a
vontade dos familiares, portanto, a aplicação do art. 4º da Lei n. 9.434/97 ficou
restrita à hipótese de silêncio do potencial doador.
Entre os dois dispositivos, portanto, considerando que a família desempenha um
papel instrumental no tocante ao livre desenvolvimento da personalidade de seus membros
e que a decisão de doar os próprios órgãos depois da morte é um ato de autonomia privada
existencial que é amparado tanto pelo princípio da liberdade como da solidariedade, deve-
se concluir pela prevalência do dispositivo do Código Civil.