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Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG. Belo Horizonte, v. 5, n. 8, mar. 2011. ISSN: 1982-3053.
Tudo se ilumina à luz do passado: memória cultural judaica na obra de Jonathan Safran Foer
Everything is Illuminated Under the Light of Past: Jewish Cultural Memory on Jonathan Safran
Foer's Novel
Mail Wanderson de Sousa Freitas*
Resumo: A década de 1990 proporcionou uma visão multiangular da Segunda Guerra Mundial.
O cinema trouxe cenas fortes e denunciou para as platéias a maior amostra de barbárie já
cometida pelo furor do homem. O massacre sofrido pelos judeus tornou-se fato conhecido
quase universalmente, embora muitas pessoas não entendam direito as motivações de tal crime,
nem saibam realmente quem são os judeus. O presente artigo tem por intuito esclarecer as
peculiaridades do povo judeu, refletindo acerca da influência do período pós Segunda Guerra
para a construção da identidade cultural judaica atual. Após analisar os elementos nos quais se
fundamenta a identidade judaica, será feita uma leitura da importância da memória cultural
judaica para a construção do personagem central do romance Tudo se ilumina, de Jonathan
Safran Foer.
Palavras-chave: Judaísmo. Memória. Jonathan Safran Foer.
Abstract: The decade of 1990's gave us a multi-angular vision of the Second World War. The
motion pictures have shown us strong scenes and denunciated to the audience the greatest ever
sample of barbarism commited by men's rage. The massacre suffered by the Jews has become a
fact known almost universally, although many people do not understand rightly the
motivations for such crime, and not even know who really the Jews are. The present work aims
to enlight the peculiarities of the Jewish people, considering the influence of the post-Second
World War period on the construction of the Jewish cultural identity today. After
understanding the elements, which are fundamental for the Jewish identity, an analysis will be
developed focusing on the relevance of the Jewish cultural memory for the construction of the
main character in the novel Everything is illuminated, by Jonathan Safran Foer. As theoretical
basis, this work is reasoned upon studies of Jonathan Sacks (2002) about Jewish culture, and
also upon considerations by Stuart Hall (2006).
Keywords: Judaism. Memory. Jonathan Safran Foer.
Introdução
O judaísmo é uma das religiões mais antigas de que se tem conhecimento. A história do povo
judeu é uma trajetória que se estende ao longo de mais de cinco mil anos. Com participação
importante em inúmeros acontecimentos históricos importantes, é inegável sua contribuição nas
artes e nas ciências. Entretanto, sempre enfrentou perseguições e ódio de outros povos,
chegando perto do total extermínio de presença na Europa durante o Holocausto na Segunda
Guerra Mundial.
Após a guerra, os judeus se dispersaram para vários países do mundo e deram início a um
processo de resgate da memória de seus antepassados e reconstrução da sua identidade
cultural. Hoje, a identidade judaica é fortemente marcada pela tragédia da Segunda Guerra
Mundial. Os remanescentes do Holocausto assumiram um compromisso com a preservação das
tradições judaicas, garantindo a sobrevivência, de uma forma ou de outra, de seus costumes e
tradições.
Essa perpetuação se dá não apenas no ambiente da educação familiar, mas também por meio da
arte, com destaque para o cinema e a literatura, sendo esta última o foco principal deste artigo,
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que tem por objeto de estudo o romance Tudo se ilumina (Everything is illuminated), de Jonathan
Safran Foer, que permeou sua obra com elementos da memória cultural judaica.
Da narrativa pós-moderna de Foer aos relatos fervorosos do Rabino Jonathan Sacks,
compreenderemos a importância do passado para os judeus, e perceberemos como a memória
de um povo pode se tornar um compromisso com as gerações futuras.
1 Tudo se ilumina à luz do passado: Foer, criador e criatura
Como já foi dito, a Segunda Guerra Mundial foi um triste marco para a história da humanidade,
não só da história judaica. Evento de barbárie e destruição, essa guerra foi também um fator
determinante para a cultura e o pensamento ocidentais.
Ao fugir do extermínio propagado pelas forças nazistas, muitos judeus se estabeleceram nos
Estados Unidos. Um deles foi o avô de Jonathan Safran Foer. Marcado pela tragédia do
Holocausto, o escritor é um dos milhões de descendentes de judeus, cujas lembranças de seus
antepassados se perderam em meio aos escombros na Europa da década de 1940. Por muito
tempo, os judeus foram obrigados a se esconder, vítimas de perseguições e preconceitos. Hoje,
mais de sessenta anos após a criação do Estado de Israel, a cultura judaica parece enfrentar
menos hostilidade no mundo ocidental e o antissemitismo, embora ainda exista, já não é a
ideologia que outrora dominava nações.
É compreensível que a configuração da sociedade pós Segunda Guerra tenha influenciado
muitos escritores, com atenção especial aos autores de origem judaica. O escritor, que é também
um homem de seu tempo, não vive dedicado exclusivamente ao universo literário. Ele sofre
influências da sociedade e da época em que vive; por isso, hoje é fecundo o acervo de obras
literárias que buscam a recuperação da identidade judaica por meio da arte:
A interlocução das obras de muitos escritores com a tradição cultural
judaica evoca a noção de "intertextualidade", essencial ao estatuto
disciplinar da literatura. Tal conceito possibilita analisar como certas
imagens, estruturas e argumentos são resgatados e reelaborados nas
obras de autores e sistemas literários distintos ou ainda nas obras de
um mesmo autor, expressando a tendência salutar de ultrapassar
fronteiras artísticas e intelectuais, além da interlocução criativa da
literatura com outras formas artísticas e outras modalidades de
conhecimento. (ROANI, 2003, p. 21)
Em uma tentativa de recuperar parte da memória de sua família, Foer fez uma viagem à
Ucrânia, buscando informações sobre seu avô. A viagem serviu de inspiração para seu romance
de estreia, Tudo se ilumina (Everything is illuminated), publicado em 2002.
A conclusão lógica, para muitas pessoas, é a de que hoje os judeus se sintam mais livres para
expressar sua própria identidade e viver a fé judaica. Porém, o que se vê, mesmo atualmente, é
um grande número de descendentes de famílias judaicas abandonando a religião, influenciados
pelo modo de vida moderno. Nesse cenário atual de confronto entre a tradição e a pós-
modernidade, vive a personagem central de Tudo se ilumina (Everything is illuminated).
Para compreender todas as implicações do romance de Foer, é necessário perceber sua obra não
somente à luz de outras áreas do conhecimento – como a História e a Sociologia –, mas também
entender como fatos históricos contribuíram para a formação da identidade cultural na qual o
autor se insere.
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Não se pode pensar que a identidade de cada indivíduo se encerra em si mesmo. Cada pessoa
agrega valores e influências relacionados a fatores regionais, sociais e culturais. A família, a
religião, o conhecimento enciclopédico têm um peso significativo na forma de entender o
mundo e a si próprio.
De acordo com Hall (2006, p. 13), a identidade "é definida historicamente, e não
biologicamente". Além disso, nem se pode dizer que cada pessoa possui apenas uma
identidade:
Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em
diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo
continuamente deslocadas. Se sentimos que temos uma identidade
unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque
construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma
confortadora "narrativa do eu" [...]. A identidade plenamente
unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso,
à medida em que os sistemas de significação e representação cultural
se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade
desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma
das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente.
(HALL, 2006, p. 13)
Deve-se atentar, ainda, para o fato de que nem mesmo a concepção de indivíduo é fixa; ela
muda por influência dos valores ideológicos que vigoram em cada época. Por isso, é importante
conhecer a evolução da concepção do sujeito, para que se compreenda a implicação desse
conceito hoje.
A relação entre o indivíduo e os valores culturais vem desde as sociedades mais antigas, onde
era mais forte o poder dos valores religiosos sobre a vida das pessoas. Política e vida social
eram intrinsecamente ligadas à religião, que detinha não somente o poder ideológico, mas
também político e econômico.
O judaísmo possui forte cunho social e seus ritos estão presentes no cotidiano de seus
seguidores, não apenas nos templos, daí provém a influência marcante da religião na formação
de uma identidade coletiva judaica. A obediência a costumes milenares garantiu, desse modo,
ao povo de Moisés que preservasse sua cultura mesmo sem um território próprio. Foer
transmite em sua obra elementos do universo judaico, do qual ele faz parte.
A literatura, uma forma de arte que lida com palavras, é, muitas vezes, confundida com textos
que não possuem natureza literária. A natureza da obra de literatura origina-se na
ficcionalidade; a obra literária é uma ficção, mesmo que seja inspirada em acontecimentos reais.
O autor recria o mundo em um universo ficcional, e se torna seu dono, impondo suas próprias
regras.
Não se pode dizer, então, que uma obra de ficção seja mentirosa, pois seu intuito não é a
reprodução exata da realidade:
As afirmações contidas num romance, num poema ou num drama não
representam a verdade literal; não são proposições lógicas. Existe uma
diferença central e importante entre uma afirmação, mesmo a
produzida num romance histórico ou num romance de Balzac que
pareça comunicar uma "informação" acerca de sucessos reais, e a
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mesma informação quando publicada num livro de história ou de
sociologia. Até na lírica subjetiva, o "eu" do poeta é um "eu"
dramático, fictício. Uma personagem de romance é diferente de uma
figura histórica ou de uma figura da vida real. É formada meramente
pelas frases que a descrevem ou pelas que foram postas na sua boca
pelo autor. (WELLEK e WARREN, p. 27, grifos dos autores)
O universo criado na obra literária é, portanto, distinto do mundo real, e não pode ser avaliado
em relação às leis e à lógica da realidade. Essa concepção de criação e ficcionalidade é
perfeitamente concordante com a hiperrealidade pós-moderna. O autor, por meio da ficção,
altera e intensifica a nossa percepção do mundo, dando-lhe talvez mais impacto e vivacidade
que a verdade crua.
Faz-se, então, pertinente a assertiva de que o Jonathan Safran Foer autor não é, necessariamente,
a mesma figura que o personagem homônimo do romance. Este é um ser fictício, que se baseia
em memórias do autor e na forma como ele mesmo se reinterpretou e nos retransmitiu seu
mundo. O romance, mesmo autobiográfico, não perde sua natureza ficcional.
2 Memória cultural judaica: uma busca rígida
A cultura judaica está marcada em Tudo se ilumina desde a dedicatória: "Simples e
impossivelmente: para minha família". A família é, pois, o ponto de partida e de chegada do
romance. Fortemente valorizada pelo judaísmo, a instituição familiar foi fragilizada após a
guerra, até hoje existem judeus que buscam evidências e lembranças de seus parentes mortos.
Essa é a motivação do personagem Jonathan, na trama, um jovem que possui uma obsessão:
colecionar memórias de sua família. As paredes de seu apartamento são repletas de sacos
plásticos contendo objetos que relembrem seus antepassados: de fotografias a restos de comida.
Conhecer o passado é um anseio que leva o personagem a uma busca para conhecer a si mesmo.
A construção da sua identidade envolve características pessoais (atributos físicos e
psicológicos), bem como a inserção em grupos, coletividades e processos sociais (Epelboim,
2004, p. 88).
A personalidade e a percepção do mundo, para os humanos, são fortemente relacionadas a
fatores coletivos, assim, o conhecimento transmitido pela família, pela religião, pela ideologia
do grupo no qual se está inserido. Essa bagagem cultural, reinventada no personagem, de certa
forma herdada, pode ser denominada memória coletiva, uma temática que ultimamente vem
sendo bastante estudada:
The large and growing literature on collective memory, based on the
research by sociologists, historians and psychologists, studies the
ways in which societies remember, represent and interpret the past,
exploring not only the role of professional historians, but also that of
film, novels, popular histories, the media, political speech, textbooks,
monuments, museums, commemorative rituals…1 (DESSÍ, 2004, 19)
Em parte, a construção da memória individual depende da memória cultural. Os critérios que
se utiliza para avaliar as informações à volta, muitas vezes, podem ser oriundos da tradição
herdada dos antepassados.
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Hoje, para o povo judeu, a tradição e a perpetuação da memória cultural têm uma importância
bastante significativa. Mesmo passando um longo tempo em diáspora, espalhados em vários
países do mundo, os seguidores da religião de Moisés não perderam certa unidade,
preservando costumes, valores. Embora não tivessem um território próprio até o fim da década
de 1940, os judeus permaneceram unidos pelo laço da memória cultural.
Quando ganha da avó uma foto que mostra seu avô, ainda jovem, ao lado de uma mulher,
Jonathan decide viajar à Ucrânia para tentar encontrar a moça da fotografia – as únicas
informações que ele possuía era o nome dela, Augustine, e que ela havia ajudado o avô de
Jonathan a fugir do vilarejo de Trachimbrod, na Ucrânia, onde eles viviam.
A trama do romance alterna entre duas narrativas: a primeira é ambientada no século 19, e
mostra o surgimento do vilarejo de Trachimbrod; a segunda história se passa no século 20, e
relata a viagem de Jonathan à Ucrânia, na companhia do seu tradutor, o jovem Alex, do avô
dele (que se diz cego, mas mesmo assim dirige um carro) e da cadela-guia Sammy Davis Junior
Júnior.
As duas narrativas distinguem-se não só pelo tempo em que se passam, mas também pela
linguagem com que nos são mostradas. Enquanto a viagem de Jonathan é narrada com um
estilo mais conciso, simples, a vida no vilarejo de Trachimbrod é descrita com um tom
fantástico, mítico.
A linguagem do texto de Foer é reconhecidamente pós-moderna; não se procura enquadrar a
escrita do romance em determinado padrão literário. Há trechos em que os fatos nos são
narrados como displicência e humor, assim como há também espaço para o uso de recursos da
linguagem poética.
No romance, vê-se a expressão em prosa do pós-modernismo, período que engloba as
manifestações artísticas desde a década de 1950 até hoje. O cenário da arte contemporânea
reflete a desordem pela qual o mundo passa. O pós-modernismo não representa,
necessariamente, um estilo de época, pois não se pode identificar uma linha de pensamento
única que oriente as artes, no momento histórico atual.
É mais coerente dizer que o pós-modernismo seria a imagem da diversidade artística, sob a
influência de uma época culturalmente riquíssima e é inegável a relação entre arte, história e
cultura. A arte é gerada pela natureza humana e cada pessoa carrega consigo uma forte
influência da cultura do lugar em que vive ou de seus antepassados. Para Wellek e Warrern,
"Os indivíduos, porém, somente podem ser descobertos e compreendidos em referência a
algum esquema de valores, o que não é mais do que a cultura sob outro nome". (p. 16) A
postura artística trazida pelo pós-modernismo influenciou não somente a literatura, mas
também a arquitetura, a fotografia, a música e o cinema, uma das artes que mais se
popularizou.
Para Santos (2001):
Pós-modernismo é o nome aplicado às mudanças ocorridas nas
ciências, nas artes e nas sociedades avançadas desde 1950, quando,
por convenção, se encerra o modernismo (1900-1950). Ele nasce com a
arquitetura e a computação nos anos 50. Toma corpo com a arte Pop
nos anos 60. Cresce ao entrar pela filosofia, durante os anos 70, como
crítica da cultura ocidental. E amadurece hoje, alastrando-se na moda,
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no cinema, na música e no cotidiano programado
pela tecnociência (ciência + tecnologia invadindo o cotidiano com desde
alimentos processados até microcomputadores), sem que ninguém
saiba se é decadência ou renascimento cultural. (SANTOS, 2001, p. 8).
No romance de Foer, mescla-se uma dicção harmônica da delicadeza com uma força dramática.
Alguns dos trechos de maior poeticidade acontecem nos momentos que mostram a relação do
personagem Yankel com sua filha adotiva Brod:
Ele fez uma cama com jornais amassados numa assadeira funda e
colocou-as delicadamente dentro do forno, para que ela não fosse
perturbada pelo ruído da pequena cachoeira lá fora. Deixava a porta
do forno aberta, e ficava sentado durante horas olhando para ela,
como alguém poderia ficar vendo um pão crescer. [...] Quando ele a
tirava do forno, para alimentá-la ou simplesmente segurá-la, o corpo
dela estava coberto de letras. [...] Às vezes ele a ninava nos braços até
ela adormecer, lendo o que estava escrito no corpo dela, e ficava
sabendo de tudo que precisava saber sobre o mundo. Se não estivesse
escrito nela, não era importante para ele. (p. 59-60)
A linguagem delicada e poeticamente esmerada é utilizada especialmente para narrar os fatos
que se passam em Trachimbrod. O vilarejo é uma representação alegórica da Terra Prometida,
um lugar imaculado onde os judeus podiam viver em paz, respeitando todos os costumes de
sua religião. Esse ambiente pacífico foi, no entanto, destruído com a chegada das tropas nazistas
e quase não houve sobreviventes. Jonathan só viria descobrir isso seis décadas depois, em sua
viagem à Ucrânia.
Ao fim de sua busca, o protagonista se depara com nada mais que ruínas e objetos encontrados
às margens do rio. Tem-se, então, um retrato impactante da paz pervertida pela guerra,
semelhante ao cenário que Abraão encontra em um trecho do Midrash: um palácio em chamas.
O patriarca questiona-se, então, acerca da semelhança entre o palácio abandonado e o nosso
mundo. Então ele ouve a voz do próprio Deus, que lhe diz: "Eu sou o governante, o Soberano
do universo". (Midrash Bereshit Rabá, 39:1 apud Sacks, 2002, p.73). De acordo com a
interpretação de Sacks (2002), o judaísmo tem início a partir desse momento de questionamento,
de busca.
O palácio é a representação alegórica do mundo caótico e aparentemente sem solução; as
chamas, a maldade. Interpretar essa simbologia de forma simplista é praticamente impossível,
já que o palácio representa a criação, a presença divina, e as chamas representam a maldade, e
pode-se pensar que um automaticamente exclui o outro. No entanto, Sacks afirma, a esse
respeito:
Deus criou a natureza, simbolizada pelo palácio. Mas, em busca do
relacionamento, Deus criou um ser dotado de auto-consciência e,
portanto, da noção de liberdade e da habilidade para escolher o mal.
O homem faz uso desta habilidade. Ele ateia fogo ao palácio e
incendeia o mundo. Deus pode apagar as chamas. Mas talvez escolha
não fazê-lo porque, no momento em que o fizer, o homem não mais
será livre. Um ser finito perde a liberdade em um mundo onde o
poder infinito passa a intervir em suas ações, impedindo-o de levá-las
adiante ou de enfrentar as consequências que venham a acarretar.
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Apenas o próprio homem pode pôr fim ao incêndio. Mas ele não está
só. Deus, o criador da autoconsciência, é também o criador da
linguagem. Deus não somente cria – Ele se comunica. Ele fala com o
homem e lhe diz como apagar as chamas. A moralidade não é factual
(como as coisas são) ou subjetiva (como eu gostaria que fossem). Ela é
fruto da aliança: Deus dá ao homem Sua palavra; o homem dá sua
palavra a Deus. Deus ensina, o homem age, e juntos dão início
ao Ticun Olam, a tarefa de "reparar, ou consertar o mundo". Deus e o
homem se tornam, segundo a expressão rabínica, "parceiros no
trabalho da criação". A ideia é tão revolucionária hoje quanto há
quatro mil anos. E a tarefa ainda não terminou. (Sacks, 2002, p. 78 e 79,
grifos do autor)
O trecho citado, apesar de sua aparente simplicidade, mostra, na verdade, um dos grandes
pilares da construção da fé judaica, a relação entre o homem e seu Deus. No judaísmo, o ser
humano não é mais uma das criaturas, ele assume papel de extrema importância na cocriação e
condução do mundo. O homem, assim, de acordo com a concepção judaica, não obedece
cegamente a um deus. A moral e os costumes foram pactuados entre o ser divino e os humanos.
Assim, ambos são colocados em situação de igualdade, e foi dessa forma que se deu o início
daquilo que Sacks (2002) denomina como moralidade pactual.
Após descobrir o que aconteceu ao vilarejo e como seu avô conseguiu fugir, Jonathan reconstrói
os elos de sua identidade. Seu avô crescera naquele lugar, e sem a ajuda de Augustine, a mulher
da fotografia, o protagonista não teria sequer nascido. Quem relata para Jonathan a invasão do
vilarejo de Trachimbrod pelos nazistas é a irmã de Augustine. Ela conta que, quando as tropas
chegaram, incendiaram a sinagoga e puseram os judeus em fila, para então matá-los um a um:
– Foi no centro da cidade. Ali – disse ela, apontando para a escuridão.
– Eles desenrolaram uma Torá diante dos homens. Uma coisa terrível.
Meu pai ordenava que nós beijássemos qualquer livro que tocasse o
solo. Livros de cozinha. Livros infantis. Mistérios. Peças. Romances.
Até diários em branco. O General percorreu a fila mandando cada
homem cuspir na Torá, ou eles matariam a família dele. (FOER, 2005,
p. 249-250)
Somente um, dentre todos os homens, não cuspiu na Torá, o pai de Augustine, e, por causa
disso, ela foi morta, mesmo estando grávida. A cena extremamente forte encontra sua
explicação no fervor com que os judeus valorizam sua cultura. Para um judeu, cuspir em no
texto sagrado seria um dos atos mais vergonhosos que ele poderia praticar:
Eu me pergunto se algum povo jamais amou um livro tanto quanto
nós amamos a Torá. Nos levantamos quando ela passa, como se fosse
uma rainha. Dançamos com ela como se dança com uma noiva. Se
danificada ou destruída, nós a sepultamos, da mesma forma que
sepultamos um amigo ou parente. Nós a estudamos
ininterruptamente, como se ela encerrasse todos os segredos da nossa
existência. Heinrich Heine certa vez chamou a Torá de "a terra
ancestral portátil" do povo judeu, querendo dizer que quando não
tínhamos nossa terra, encontramos um lar nas palavras da Torá.
Ainda mais eloqüente, o Baal Shem Tov, fundador do Chassidismo no
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século 18, disse que o povo judeu é um Sêfer Torá vivo, e que cada
judeu é uma de suas letras. (SACKS, 2002, p. 55, grifos do autor)
A Torá é, como pode ser vislumbrado na citação, tão importante para os judeus quanto uma
vida humana. Nela estão os preceitos religiosos dos judeus e também sua história. Por isso, o
personagem não cospe no Sêfer – pois ele estaria cuspindo em si mesmo, em sua própria
família. Além disso, a linguagem escrita é um símbolo de democratização do conhecimento
entre os judeus, uma promessa feita por Deus a seu povo:
Vistes o que fiz aos egípcios, e como vos levei sobre asas de águia e
vos trouxe a mim. Agora, se realmente ouvirdes minha voz e
guardardes a minha aliança, sereis minha propriedade exclusiva
dentre todos os povos. De fato é minha toda a terra, mas vós sereis
para mim um reino de sacerdotes e uma nação santa, são estas as
palavras que deverás dizer aos israelitas. (Êxodo 19, 4-6)
Normalmente, esse trecho bíblico é interpretado a partir de um sentido meramente religioso.
Pode-se pensar que quando Deus promete tornar Israel uma nação de sacerdotes, está exigindo
apenas que seu povo o adore. Isso seria uma visão, no mínimo, de uma divindade egoísta,
tendo criado os homens para que fossem meramente servos.
O judaísmo vê no trecho citado uma conotação política e social, e não religiosa. Na época em
que os hebreus foram prisioneiros no Egito, a linguagem utilizada era a hieroglífica,
extremamente complexa, e de domínio quase exclusivo dos sacerdotes. Os seguidores de
Moisés, no entanto, foram um dos primeiros povos a implementar o uso da escrita alfabética,
bem mais simples e, logo, de mais fácil aprendizado. Assim, todos poderiam ter acesso às
escrituras sagradas, e por isso seriam todos sacerdotes. Conhecendo a forma como se deu esse
acordo, fica mais fácil compreender o porquê de os judeus manterem seus costumes peculiares
até hoje. A moralidade pactual orienta os rumos da vida judaica. E percebendo o quão
importante é o texto sagrado, pode-se compreender a dimensão do momento vivido pelo
personagem do romance de Foer.
Danificar o Sêfer seria insultar a tradição de seu povo, pois o que unifica a identidade judaica é
justamente o compromisso perene com a preservação da sua memória cultural, do passado de
lutas, sofrimento, mas também um passado de glória, que mostra um povo escolhido por Deus
para receber sua palavra.
A descoberta desses fatos trágicos é um momento fulcral da jornada do personagem Jonathan,
que conhece as origens de sua família e como ele está relacionado à guerra. O personagem, ao
encontrar o que seria essa sua origem perdida, vive um confronto consigo mesmo. É possível,
então, traçar uma analogia entre a trajetória do personagem e a história bíblica de Jacó. Fugindo
da fúria de seu irmão Esaú, Jacó enfrenta um estranho no meio de seu caminho:
Levantou-se naquela mesma noite, tomou suas duas mulheres, suas
duas servas e seus onze filhos e transpôs o vau de Jaboque.
Tomou-os e fê-los passar o ribeiro; fez passar tudo o que lhe pertencia,
ficando ele só; e lutava com ele um homem, até ao romper do dia.
Vendo este que não podia com ele, tocou-lhe na articulação da coxa;
deslocou-se a junta da coxa de Jacó, na luta com o homem.
Disse este: Deixa-me ir, pois já rompeu o dia. Respondeu Jacó: Não te
deixarei ir se não me abençoares.
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Perguntou-lhe, pois: Como te chamas? Ele respondeu Jacó.
Então, disse: Já não te chamarás Jacó e sim Israel, pois como príncipe
lutaste com Deus e com os homens e prevaleceste. (Gênesis 32, 22-28)
Esaú perseguia o irmão caçula Jacó porque este havia se passado pelo mais velho para receber a
bênção do pai, Isaac. Em sua fuga, Jacó depara-se com um dos acontecimentos mais intrigantes
das passagens bíblicas. Até hoje não há uma interpretação definitiva a respeito desse trecho; não
se tem certeza de com quem ele lutou e qual é o sentido de tal episódio.
Muitos consideram que Jacó teria lutado com um anjo, e por isso fora abençoado. Essa, porém,
não é a interpretação feita por Sacks (2002, p. 244 a 246). Para o rabino, é possível ver um
sentido simbólico no trecho bíblico em questão. Jacó teria lutado internamente contra si mesmo,
entrando em confronto com a sua personalidade e aquilo que ele queria para si, a bênção de seu
irmão Esaú. Após vencer a batalha, ele finalmente se desvencilha de seu passado e está em paz
para assumir sua identidade, passando a se chamar Israel, nome que, em hebraico, significa
"aquele que luta com Deus".
Da mesma forma que Jacó, o personagem Jonathan entra em confronto consigo mesmo quando
se depara com as memórias de seus antepassados e o horror do nazismo. Somente conhecendo
seu passado, ele pode construir sua real identidade. A guerra ocasionou a fuga do avô de
Jonathan para os Estados Unidos, onde pôde constituir uma família, criando seus descendentes
de acordo com as tradições judaicas.
Algumas dessas tradições judaicas são apresentadas de forma bem-humorada, recriadas dentro
do universo literário. Veja-se, por exemplo, a recontagem da história bíblica de Caim e Abel:
Caim matou o irmão por plagiar um de seus poemetos favoritos [...].
Incapaz de conter a fúria de poeta desprezado, incapaz de continuar a
escrever enquanto soubesse que os piratas sem-pena colheriam o
butim de seu trabalho, incapaz de reprimir a pergunta Se os versos
iâmbicos não são para mim, o que será?, o incapaz Caim pôs fim ao furto
literário para sempre. Ou pelo menos assim pensou.
Mas para sua grande surpresa, foi ele, Caim, o punido, foi ele o
condenado a lavrar a terra, foi ele o forçado a usar aquela terrível
marca, e era ele que, apesar de toda a sua triste e espirituosa poesia,
podia transar com alguém toda noite, mas não sabia de ninguém que
houvesse lido uma página de sua magnum opus.
Por quê?
Deus ama o plagiador. E assim está escrito: "Deus criou os seres
humanos à Sua imagem, à imagem de Deus Ele os criou." Deus é o
plagiador original. Na ausência de fontes razoáveis das quais
surrupiar – o homem criado à imagem do quê? dos animais? – a
criação do homem foi um ato de plágio reflexivo. (FOER, 2005, p. 278
e 279)
Por sinal, sem conhecer os costumes da religião judaica, é difícil compreender o romance de
Foer, pois ele é permeado de referências ao judaísmo ao longo de todo o fluxo narrativo,
marcado também pela escrita dialética, como no trecho abaixo, que trata da existência de Deus:
OBJETOS QUE NÃO EXISTEM
Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG. Belo Horizonte, v. 5, n. 8, mar. 2011. ISSN: 1982-3053.
Os objetos que não existem não existem. Se fôssemos imaginar objetos
que não existem, eles seriam tudo aquilo que Deus odeia. Esse é o
argumento mais forte contra os descrentes. Se Deus não existisse, teria
de se odiar, e isso obviamente é absurdo. (FOER, 2005, p. 280 e 281)
A abordagem dos fatos de forma não linear e a linguagem poética e rápida, algumas vezes
hermética, são frutos do estilo cinematográfico de criação adotado por Foer, que demonstra um
forte poder imagístico em seus romances e sua filiação à dicção pós-moderna. Esta, ao mescla-se
com elementos diversos, enriquecendo ainda mais as possibilidades do universo literário. Hoje,
é cada vez mais brando o limite entre cada uma das artes; elas se relacionam e se misturam. Os
artistas passaram a ironizar as formas tradicionais, que teriam se desgastado e perdido em parte
seu poder catártico:
Mas foi na arte que o fantasma pós-moderno, ainda nos anos 50,
começou a correr o mundo. Da arquitetura ele pulou para a pintura e
a escultura, daí para o romance e o resto, sempre satírico, pasticheiro e
sem esperança. Os modernistas (vejam Picasso) complicaram a arte
por levá-la demasiado a sério. Os pós-modernistas queriam rir
levianamente de tudo. (SANTOS, 2001, p. 10)
A jornada das personagens em Tudo se ilumina se assemelha à trama de um road movie, gênero
cinematográfico em que as personagens vão se conhecendo e se construindo ao longo de
alguma viagem. Uma das características da literatura pós-moderna é, pois, a relação próxima
com as outras artes, especialmente o cinema.
Durante a trama principal do livro, Jonathan e Alex constroem um forte vínculo de amizade, ao
longo de um trajeto que proporciona a cada um dos dois a iluminação do autoconhecimento,
com a visão peculiar, pois que irônica, de Foer acerca do que poderia ser visto como uma
identidade judaica:
NÓS, OS JUDEUS
Os judeus são tudo aquilo que Deus ama. Como as rosas são lindas,
devemos presumir que Deus as ama. Portanto, as rosas são judaicas.
Pelo mesmo raciocínio, todas as crianças são judias, a "arte" bonita é
judaica (Shakespeare não era judeu, mas Hamlet era), e sexo, quando
praticado entre marido e mulher numa posição boa e adequada, é
judaico. A Capela Sistina é judaica? Pode crer. (FOER, 2005, p. 280)
Conclusão
A romance de Foer apresenta um universo extremamente rico, permitindo leituras sob vários
aspectos. O autor constrói um mundo seu, mas envolver uma memória coletiva de milhões de
judeus e não judeus. Embora não se possa usar como critério de validação de uma obra de arte a
lógica do chamado mundo real, é inegável a influência da cultura e da época em que um
romance foi escrito sobre a criação do seu escritor.
Na leitura de um romance de um escritor de origem judaica, é provável que se encontre alguns
elementos oriundos do judaísmo, pois o artista não vive à margem de sua época; de sua
individualidade e, à luz desse contexto, ele traduz a realidade do mundo na ficção. Tudo se
ilumina, de Jonathan Safran Foer, elabora, também, ficcionalmente, uma busca de uma
identidade judaica. A busca pelo passado e a recuperação da memória cultural, das
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reminiscências familiares, constituem, assim, pontos chave na composição do romance. Os
escritos e o escritor tornam-se, desse modo, parte do Sêfer (Livro) vivo que é o judaísmo.
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* Maik Wanderson de Sousa Freitas é Graduando em Letras – Licenciatura Plena em Língua
Inglesa, na UECE, Universidade Estadual do Ceará.
Nota
1 Tradução: "A vasta e crescente literatura acerca da memória coletiva, baseada em pesquisas de
sociólogos, historiadores e psicólogos, estuda as formas por meio das quais as sociedades
relembram, representam e interpretam o passado, explorando não apenas o papel dos
historiadores profissionais, mas, também, de filmes, de romances, dehistórias populares, da
mídia, do discurso político, dos livros em geral, além de monumentos, museus, rituais
comemorativos".
Referências
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