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Revista História e Cultura, Franca-SP, v.2, n.3 (Especial), p.332-348, 2013. ISSN: 2238-6270.
QUEM É DIGNO DE ABRIR OS SELOS? O COMENTÁRIO
BÍBLICO COMO GÊNERO DE ESCRITA
NA ALTA IDADE MÉDIA
WHO IS WORTHY TO OPEN THE SEALS? THE BIBLE
COMMENTARY AS WRITTEN GENRES IN
THE HIGH MIDDLE AGES
Raquel de Fátima PARMEGIANI
Resumo: Neste trabalho, temos como proposta refletir sobre o processo de construção da
relação entre texto bíblico e seus comentadores na Alta Idade Média. Nosso objetivo é pensar
esta escritura na sua historicidade, ou seja, seus usos sociais e suas possibilidades de leitura.
Para tanto, partiremos da análise do Comentário ao Apocalipse do Africano Ticônio (cerca de
328), um dos primeiros autores a analisar este livro, e do seu trabalho Liber Regylarum, no qual
propõe sete preceitos a partir dos quais os textos bíblicos deveriam ser interpretados. Embora
este autor tenha sido considerado herético pela Igreja Romana, o uso das suas regras ganhou um
reconhecido lugar entre os comentaristas bíblicos na Idade Média, o que pode ser percebido na
obra de autores cristãos como Santo Agostinho, São Jeronimo, Cesário de Arlés, Beda e Beato
de Liébana.
Palavras-chave: Comentário Bíblico – Práticas de leitura – Cristianismo Medieval.
Abstract: In this paper, we will try to reflect how the relationship between the biblical text and
its commentators is building in the High Middle Ages. Our aim is to think this scripture in its
historicity, that is, its social uses and possibilities of reading. For this, we begin with the
analysis of the Tyconius’ Commentary on the Apocalypse (about 328), one of the first authors
to analyze this book and your work entitled Liber Regylarum, in which he proposes seven
principles according to which the biblical texts should be interpreted. Although this author has
been considered heretical by the Roman Church, the use of these rules has gained a recognized
place among the bible commentators in the Middle Ages, as we can see in the works of
Christian writers such as St. Augustine, St. Jerome, Caesarius of Arles, Beda and Beatus of
Liebana.
Keywords: Bible Commentary – Reading practices – Medieval Christianity.
A relação entre textos bíblicos e seus comentários – analisados a partir dos
vestígios das práticas da leitura e da escrita –, nos permite olhar para esta obra, pelo viés
da sua historicidade, ou seja, seus usos sociais e suas possibilidades de leitura. Dentro
desta perspectiva, a escrita que se segue se pautará pela ideia de que os leitores são
necessariamente intérpretes e o texto deliberadamente vago, ou às vezes,
desconcertantemente preciso e o que se tira dele depende, em grande medida, do que se
Doutora em História – Professora Adjunta do Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e Arte –
UFAL – Universidade Federal de Alagoas, Campus A. C. Simões, CEP: 57072-900, Maceió, Alagoas –
Brasil. E-mail: rparmegiani@gmail.com
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põe nele
1
. Assim, cabe pensar, mais do que na hermenêutica da Bíblia, nas habilidades
das comunidades de leitores pelas quais ela foi e é consumida.
Os comentários destes textos considerados sagrados, entendidos aqui como
escritura
2
, tornam-se um material cultural, que nos possibilita certo contato para com as
regras da construção desta relação entre a Bíblia e seus leitores e, por conseguinte, nos
possibilita pensar como essa obra se constituiu como parte das práticas culturais e,
principalmente, como parte das relações de poder que estão submersas dentro das redes
sociais e políticas que se organizaram em torno das práticas da escrita e da leitura em
determinado recorte histórico.
O que pretendemos fazer aqui, portanto, é refletir sobre os discursos que,
durante os primeiros séculos da Idade Média, foram superpostos aos textos bíblicos por
tradições subsequentes de interpretação, ou seja, falaremos sobre as técnicas de exegese
aplicada a estes textos na Alta Idade Média e das condições socioculturais nas quais
essas tradições discursivas se circunscrevia, tendo como primícias o fato de que a tarefa
exegética está ligada à mediação entre a Bíblia e a situação material na qual o autor está
inserido.
Para tal trabalho, partiremos da análise da Liber Regylarum, do Africano
Ticônio (cerca de 328), na qual ele propõe sete preceitos a partir dos quais os textos
bíblicos deveriam ser interpretados e a quem é atribuído ainda, um Comentário ao
Apocalipse, considerado uma das primeiras obras a analisar este livro bíblico.
A relação entre os textos bíblicos e seus intérpretes/comentadores, começou no
século II d.C. Alexandria foi um dos centros mais importantes neste período nos estudos
de exegese e teologia. Autores como Clemente e Orígenes, preocupados em combater o
predomínio cultural dos gnósticos junto aos cristãos cultos, acrescentaram às práticas de
escrita catequética, análises verdadeiramente interpretativas desses textos.
Esses autores começaram a cruzar os dados oferecidos pela Escritura e pela
tradição cristã; e o fizeram mediante ao sistemático recurso aos instrumentos
apresentados pela cultura grega profana: retórica, filosofia e filologia. Embora a
filosofia grega ainda fosse vista com suspeita pelos cristãos, ela era considerada um
importante instrumento para se chegar ao estudo da Bíblia, assim como o cabedal de
conceitos básicos e procedimentos hermenêuticos e demonstrativos dela deduzidos.
Logo, a filosofia grega foi fundamental para o desenvolvimento da exegese e da
teologia cristã.
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Os primeiros trabalhos exegéticos usaram como método interpretativo, a
alegoria. Clemente, por exemplo, entendia o símbolo como meio da expressão para a
passagem do sensível ao inteligível. Assim, ele alargou os limites da tradicional
interpretação cosmológica, que via nas realidades terrestres o tipo das celestes (o templo
de Jerusalém tipo do céu) e a interpretação moral (Agar e Sara, símbolos da cultura
mundana e da sabedoria). Daí ele deduziu também, processos hermenêuticos que se
tornaram típicos da exegese alexandrina: valor simbólico dos números, animais, plantas,
etc.; alegorias extraídas da etimologia de nomes hebraicos. Essa exegese se estendeu
para além do nome, para a história ou relato da ação. Ela se deslocou do logos para a
práxis, das palavras para as ações. Segundo Umberto Eco (2010), a experiência da
interpretação nos primeiros séculos do cristianismo, de uma forma geral, passou pela
compreensão da experiência com a escritura como algo que continha uma mensagem
que ninguém jamais seria capaz entender. Só por meio de uma revelação, além da fala
humana, uma revelação que viria anunciada pela própria divindade, usando o veículo da
visão, do sonho ou do oráculo, se poderia vir a conhecer a verdade.
3
Essa forma de interpretação dos textos bíblicos baseou-se fortemente nos
trabalhos de Filón. Judeu de língua grega e filósofo helenista que viveu em Alexandria,
onde a versão dos Setenta foi produzida a fim de proporcionar um texto das Escrituras
para o acesso de uma numerosa população judaica que já não entendia o hebraico. Em
suas obras é sugestivo o fato dele usar a palavra grega trepein “virar”, para o que hoje
diríamos figurativo, que significa “não transformação” (uma coisa que vira a outra), mas
conversão (virar algo em outra direção).
A ideia remonta à alegoria da caverna de Platão. O interesse da alegoria,
contudo, está mais em nomes do que em ditos (ou histórias ou textos inteiros). Para
alguém como Filón, teria sido normal supor que cada nome no Gênesis, por exemplo,
pertencia a dois contextos. Ele nomeava aquilo que, por sua vez, nomeava no texto
bíblico (Moisés significa apenas Moisés), mas também pertencia a um segundo léxico
que derivaria da linguagem da filosofia moral, que vinha desde a Academia de Platão.
Para Gerald L. Bruns a alegoria como método exegético inseriu-se no contexto
da tradução dos textos hebraicos para o grego:
Na medida em que as línguas são históricas, bem como gramaticais, a
tradução envolve situar um texto em uma nova estrutura conceitual –
uma nova história – e não apenas transferir um significado de uma
língua para outra. A tradição, por certo, implica sinônimo, mas
sabemos que línguas nem sempre são cognatas entre si; e de fato
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filósofos analíticos da linguagem cunharam a expressão “tradução
radical” para caracterizar a tradução entre línguas com histórias
completamente diferentes, ou entre as que não tiveram um período
extenso de contato [...] (BRUNS,1997, p. 680).
Orígenes acrescentou a esse método de interpretação alegórico, um interesse
sistemático também para com interpretação literal – sendo esta, vista como momento
que antecederia o alegórico. Esse autor nos deu o primeiro tratado de exegese
escriturística. Ele distinguiu três níveis interpretativos para todos, ou quase todos, os
passos da Escritura: literal, espiritual (tipológico) e moral (psicológico). De um lado,
Orígenes dilatou a tipologia acrescentando a tradicional, uma outra, que via o Novo
Testamento como Tipo do Evangelho Eterno, isto é, aquilo que se realizaria no fim do
mundo; já de outro, como Filón e Clemente, o autor se deixou ver nas realidades
terrenas o símbolo das realidades celestes, enfim, a dimensão moral, isto é, a aplicação
do texto sagrado à experiência de cada crente.
Sobretudo, esse autor assumiu a distinção platônica de dois níveis de realidade,
um sensível e um inteligível – dos quais o primeiro seria cópia esbatida e imagem do
segundo – como critério interpretativo de cada aspecto da realidade cristã. Retomando
de Clemente e, mais longe ainda, dos gnósticos, a distinção dos cristãos em duas
categorias, os simples e os perfeitos (chamados gnósticos também por Clemente, com
distinção, porém, não de natureza, como nos gnósticos heterodoxos, mas só no grau de
cultura e de aplicação), Orígenes elaborou esta distinção no sentido de que o simples, o
principiante, ficaria no nível inferior e sensível da realidade, enquanto o perfeito
tenderia ao superior, inteligível, espiritual, segundo a correlação: simples/perfeitos =
Cristo homem/Cristo Deus = interpretação literal/interpretação espiritual (= alegórica)
da Escritura.
Ele desenvolveu e aprofundou um complexo de ideias e de princípios que
constituiu, por muito tempo, o fundamento da cultura cristã. Aqui bastará recordar:
interpretação orgânica alegórica da Sagrada Escritura, teologia do logos e doutrina
trinitária das três hipóstases, depreciação da humanidade de Cristo em relação à sua
divindade, antropologia dualista de tipo platônico, espiritualidade da escatologia. Por
fim, não se deve deixar de afirmar que, para além da distinção em dois ou três (ou
quatro) sentidos encontrados no método deste autor, a unidade do texto bíblico,
mantinha-se pela convicção de que a Palavra de Deus teria fecundidade inexaurível e
que nenhuma interpretação poderia circunscrever e esgotar: o contínuo estudo permitiria
conhecê-la sempre melhor em sua inexaurível pluralidade de significado.
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No Ocidente, o campo exegético esteve sensivelmente atrasado em relação ao
Oriente e sofreu forte influência da escola de Alexandria. Somente na segunda metade
do século IV este gênero de escritura começou a despertar interesse, seja com homilias,
seja com comentários de textos bíblicos. Obras como a de Hilário e Ambrósio deram a
conhecer, no Ocidente, a exegese de tipo alexandrino, cujos princípios hermenêuticos se
impuseram junto com a difusão, no Ocidente, da filosofia Platônica (Orígenes, Plotino,
Porfírio). Justamente este tipo de exegese fortemente alegorizante permitiu que alguns
duros antropormorfismos do Antigo Testamento tornassem acessíveis à sensibilidade
das pessoas cultas da época, enquanto a composição de paráfrases em versos procurava
suprir as insuficiências de língua e de estilo das demasiadamente literais traduções
latinas da Sagrada Escritura.
Este tipo de interpretação teve, portanto, muita autoridade na tradição cristã, não
somente com os patriarcas orientais como Clemente e Orígenes acostumados com a
cultura intelectual de Filón, e que reconheciam seu parentesco com ele, mas também
para homens da Antiguidade Tardia latina tais como Agostinho, que tinha de encarar a
estranheza dos textos bíblicos dentro do contexto das normas ciceronianas de discurso
literário e filosófico.
Segundo Bruns (1997), não podemos ver na alegoria um modo pré-lógico ou
insuficiente no que consideraríamos normas de razão analítica. Pelo contrário, na
Antiguidade a alegoria era, sobretudo, uma modalidade filosófica de leitura: ela era
essencialmente uma maneira de avaliar filosoficamente textos não filosóficos, isto é, no
espírito de uma busca por sabedoria. Perseverando em sua natureza filosófica, a alegoria
exibia uma lógica à qual, de fato, estas sociedades recorriam diariamente no curso
normal de perceber o sentido das coisas (BRUNS, 1997, p. 685).
A lógica da alegoria pode ser comparada àquela da metáfora, pois esta não existe
em si, mas apenas no contexto da interpretação: ela simplesmente significa que, o que
não podemos tomar em um sentido, devemos tomar em outro. Tomar algo –
compreender seu sentido – significa simplesmente encontrar um estado de coisa em que
ele se encaixe. A alegoria opera, por conseguinte, sobre esse sentido metafórico de
salvar proposições da acusação de falsidade ou absurdo; a diferença é que a alegoria
está preocupada em salvar textos inteiros, ou de fato tecidos inteiros de sentenças
entrelaçadas. Poder-se-ia dizer que nos primeiros séculos cristãos, a tarefa da alegoria
era a salvação de sistemas inteiros de crença, a Lei Mosaica.
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João Adolfo Hansen (2006) nos diz que a alegoria operada como hermenêutica
(grego herméneia, herméneuien = transporte, transferir, termos traduzidos pelos latinos
por interpretativo, interpretare, “interpretação, “interpretar”) foi entendida na Alta
Idade Média, como uma técnica da interpretação que decifra significações tidas como
verdades sagradas em coisas, homens, ações e eventos das Escrituras:
Segundo a alegoria greco-romana e suas retomas, o mundo é objeto de
representação própria e figurada pela poesia e prosa; segundo a
alegoria hermenêutica, desde sempre existe uma prosa do mundo a ser
pesquisada no mundo da prosa bíblica. No caso, se as coisas podem
ser consideradas signos na ordem da natureza, é porque são signos na
ordem da revelação. Os termos das Escrituras designam coisas,
homens e acontecimentos e estes, por sua vez, significam verdades
morais, místicas, escatológicas. Por isso, a prática interpretativa dos
primeiros Padres da Igreja e da Idade Média lê coisas como figuras
alegóricas – e não as palavras que as representam – para nelas
pesquisar o sentido espiritual (HANSEN, 2006, p. 92).
A interpretação cristã das coisas dos escritos sagrados ocorria segundo três
grandes coordenadas: consideração da presença de Deus nas coisas sensíveis,
considerações da presença de Deus nos seres espirituais e puros espíritos e
considerações da presença de Deus na alma humana, segundo grau de maior ou menor
proximidade na maneira pela qual Ele é figurado. A Escritura Sagrada seria, portanto, o
conjunto de sinais emitidos por Deus que se acomodaria à linguagem e às figuras
literárias.
4
Dentro deste contexto cultural, é que devemos pensar a obra de Ticônio.
Donatista sui generis, escreveu duas obras muito importes para o pensamento exegético
medieval Ocidental: o Liber Regularum, no qual apresenta algumas regras
hermenêuticas para leitura do texto bíblico, e o Comentário ao Apocalipse, cujo texto
completo se perdeu, restando apenas alguns fragmentos em obras de autores cristãs que
utilizaram o seu trabalho.
Preocupado com os problemas enfrentados pela sua Igreja com relação aos
conflitos teológicos, Ticônio tentou responder a estas questões criando princípios
hermenêuticos que, para ele, permitiriam uma aproximação com a Bíblia de forma
segura. Estas regras de interpretação propunham uma forma de acesso a Escritura em
sentido tipológico – já antes desenvolvido por Orígenes – para superar a insuficiência
que ele entendia fazer parte do método alegórico.
Embora este autor tenha sido considerado herético pela Igreja Romana, pois
compartilhava ideias adocionistas, suas regras ganharam um reconhecido lugar entre os
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comentadores bíblicos na Alta Idade Média, o que pode ser percebido na obra de
autores cristãos como Santo Agostinho, São Jeronimo, Cesário de Arlés, Beda,\ e Beato
de Liébana.
Ticônio viveu na primeira metade do século IV, numa província romana do
norte da África. Pouco sabemos sobre sua vida e, o que nos é mais prejudicial para a
compreensão da sua obra, pouco sabemos da sua formação intelectual/teológica. Temos
apenas a informação que o autor viveu numa região em que o cristianismo enfrentou
problemas devido a influência do marcionismo (não aceitação do Antigo Testamento),
montanismo (forte milenarismo), além dos conflitos referentes a própria questão
donatista (movimento de caráter rigorista em relação a perfeição de comportamento de
seus adeptos), doutrina da qual nosso autor era defensor.
Não havia nessa região uma tradição de uso do Antigo Testamento, não se pode
duvidar que este grupo só aceitasse como livro sagrado o evangelho de Lucas e as cartas
de Paulo. A interpretação alegórica defendida pela escola de Alexandria não era
suficiente para solucionar esta subvalorização dos livros que comporiam o Antigo
Testamento. Seguia também vigente nessa região, por influência do Montanismo,
incluindo o momento em que Tertuliano esteve à frente deste grupo, a crença no
milenarismo, não só quanto à iminência do fim dos tempos, mas também a crença na
realização na terra do Reino dos mil anos, antes da sua consumação no mundo futuro.
São a estas questões teóricas e práticas que o autor parece ter tentado responder
em sua obra. Sua Liber Regularum foi o primeiro tratado hermenêutico em latim. Nela
há uma forte valorização dos textos do Antigo Testamento, uma resposta ao
milenaríssimo e uma explicação ao problema de uma Igreja dividida entre os santos e os
pecadores. O método se compõe de sete regras que oferecem um princípio hermenêutico
em sentido tipológico.
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Basicamente, as regras consistem no estabelecimento de eventos narrados nos
textos bíblicos situados em pontos diferentes no tempo e definidos um em relação ao
outro como passado e futuro. Os acontecimentos são concebidos como sendo totalmente
próprios, particulares e reais. Assim, Adão, o homem, é proposto com figura tipológica
de Cristo, também histórico; Moisés, saindo do Egito, prefigura Cristo, resultando da
morte. Os tipos antecipam a salvação a vir com Cristo e prefiguram sua pessoa e sua
obra. A interpretação tipológica distingue, portanto, tipos nas personagens e eventos do
Antigo Testamento. Não há uma preocupação, no entanto, em se ocupar de meras
classificações verbais, mas da estrutura mesma do universo e da sua ordem. A
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interpretação torna-se assim, dentro da obra desse autor, uma repetição incansável de
um Significado que precede a história humana com sua Providência.
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Percebemos em obras como o Comentário ao Apocalipse, escrito pelo monge
asturiense Beato de Liébana no século VIII, que essa tradição deixada por Ticônio fez
com que a hermenêutica na Alta Idade Média lesse o texto bíblico como um livro
repleto de signos que deveriam ser entendidos segundo uma referência vertical,
anafórica, cujo sentido era a Significação de todas as significações: Deus, a Graça, a
Salvação. Os signos falavam, mas no excesso de sentido absoluto que é Deus; são
paradoxalmente mudos e vazios: falavam fazendo falar o silêncio Dele revelando em
coisas, homens e eventos; tinha sentido porque o Sentido estava fora deles, na
Eternidade, orientando-os providencialmente como sombra das coisas futuras.
A partir destes preceitos, foi que Ticônio criou suas sete regras para
interpretação dos textos bíblicos. É bastante sugestivo que elas sejam sete, já que recai
sobre este número toda uma tradição que evoca a ele o significado de plenitude. E nesse
sentido, ainda é preciso destacar que há nelas uma clara orientação para que o
comentário ao texto bíblico, ao seguir tais normas, evoque a história como “história
sagrada e universal”. Pensemos que o Antigo Testamento comece, segundo o cânone
que foi firmado no século IV, com o livro do Genesis, Criação do mundo: isto seria
interpretado como a prefiguração do Novo Testamento que, por esse mesmo cânone,
terminaria com o Apocalipse – livro que traz em si a garantia da vitória de Deus sobre o
mal e o retorno da humanidade ao Paraíso.
A primeira regra (De Domino et de corpore eius – O Senhor e seu corpo que é a
cabeça) diz que tanto o Antigo como o Novo Testamento se referem a Cristo como
cabeça, e que a Igreja é como o corpo do Senhor. Esta primeira regra deu aos donatistas
a resposta à sua pretensão de uma duplicidade da Igreja – a sua e a dos pecadores – com
a afirmação fundamentada em textos bíblicos, de que a Igreja é o corpo do Senhor, que
é uno e estendido por todo o universo.
Essa regra, no entanto, não consegue responder sozinha ao problema do mal na
Igreja – a falsidade, o pecado. Para resolver essa questão a segunda regra diz: De
Domini corpore bipartito – o corpo do Senhor, a Igreja, é bipartida. Segundo Ticônio,
trigo e cinzas devem conviver juntos dentro da Igreja. Empregando este conselho ele
não só reafirmava a possibilidade de uma dupla Igreja, mas também qualquer tentativa
de eliminar dentro da única Igreja a “parte esquerda”.
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Este corpo único, composto por bons e maus, aparece em toda a Escritura,
Antigo e Novo Testamentos. Esta afirmação serve a Ticônio para iniciar a terceira regra
sobre as promessas e a Lei: de promissis et Lege. A Igreja, para o Africano, existe desde
o princípio, pois assim como o mundo foi feito em seis dias, assim o mundo espiritual,
que é a Igreja, foi se construindo ao longo de seis mil anos e será no sétimo dia, bendito
e eterno.
No seu Comentário ao Apocalipse, esta terceira regra estrutura praticamente
toda a linha que conduz à interpretação. O livro escrito por dentro e por fora (Ap. 5,1)
são os Testamentos, por fora o Antigo, por dentro o Novo – que estaria escondido no
primeiro. As duas Testemunhas (Ap 11) também são os dois Testamentos. Os
personagens e objetos vetero-testamentários, para além de sua realidade própria,
prefiguram personagem e objetos do Novo – Adão/Novo Adão; paraíso/novo paraíso, a
Igreja; Sodoma, Egito, Tiro, Babilônia/cidade do diabo, o corpus adversum. A
interpretação inscreve, portanto, a história humana no paradigma teológico da Queda: a
referência inatingível do discurso é a língua adâmica que se falou antes de Babel. O
instrumento de interpretação é a analogia
7
, segundo a qual as imagens são uma imitação
que participa em Deus através da expressão.
Esta ideia se completada pela quarta regra: de especie et genere. O ser humano
em uma pessoa, em um nome, em uma palavra, oculta o gênero, a totalidade. Por
exemplo, em Jerusalém está inclinada toda a Igreja, estendida agora ao mundo. As
coisas que sucedem podem referir-se a acontecimentos reais da Igreja, mas também a
acontecimentos espirituais.
A quinta regra é a de temporibus. Trata-se interpretar as referências da Escritura
ao tempo, a hora, dias, meses, anos, e, sobretudo, os números. Sobre esses, segundo
Ticônio, às vezes podemos entender no sentido que aparecem, mas frequentemente o
texto bíblico utiliza sinédoques, pelos quais se podem ter o todo pela parte, ou a parte
pelo todo. Ao número seis, por exemplo, o autor atribuiu as idades do mundo, quer dizer
6.000 anos. No transcurso do sexto dia, Cristo teria nascido, padecido e ressuscitado.
Com esta ideia, que se completa com a de que no batismo se realiza a primeira
ressurreição (gênero e espécie), o africano rechaça todo o milenarismo ao afirmar que,
desde a ressurreição de Cristo até o fim dos tempos, estamos vivendo os mil anos,
depois virá o sétimo dia, o descanso eterno.
A sexta regra é a de recapitulatione. Para o autor, os textos bíblicos seguem
uma ordem, como se um acontecimento fosse sequencial ao outro, mas, na realidade,
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acontecem ao mesmo tempo; e o que se sucede ao mesmo tempo, o divide em partes e
cada uma destas partes é todo o tempo. Assim (Gén 4 e 5; Lc 3) De Adão a Enoc, são
sete gerações, que é todo o tempo da transição da Igreja deste mundo para o outro; de
Adão até Noé, são dez gerações, que é todo o tempo de preparação da Igreja; de Noé a
Abraão, dez gerações, que é todo o tempo. Por fim, o tempo que Noé levou para
construir a arca é todo o tempo, até o final, em que se está construindo a Igreja.
Finaliza com a sétima regra: de diabolo et corpore eius (do diabo e seu corpo).
Para o autor, retornando à primeira regra, dentro da Igreja há duas partes – o sul e o
norte. O Senhor reside no meio dia, onde brilha o sol, que é Cristo. Entretanto, o diabo
se assenta à esquerda, nos falsos irmãos. Estes são o homem velho e sua terra e
pertencem à Igreja, mas no mundo futuro, serão destruídos.
Temos que a proposta de Ticônio para leitura do texto bíblico – essa norma
exegética que propõe – e aqui se destaca o uso que faz do Apocalipse para organizar e
aplicar essas regras, responde à realidade de disputas dogmáticas pelas quais a Igreja, no
norte da África, estava passando naquele momento. Para o autor, essas normas fariam
frente aos conflitos políticos enfrentados a partir da seguinte afirmação: a Igreja, na
vontade do Senhor é uma, e não cabe a nós fazer a separação. Essa será a missão de
Deus: quando a Igreja se separar - a semelhança de Lot - ele salgará Sodoma e seus
habitantes:
[...] De nuevo em el Génesis está escrito: Cuando Dios aniquiló todas
las ciudades de alrededor, Dios se acordo de Abraham e hizo salir a
Lot de em médio de la devastación cuando Dios destruía las ciudades
em las que Lot habita. Acaso Lot no merecia ser liderado por su
própria justicia para que la Escritura diga: Se acordo Dios de Abraham
e hizo salir a Lot de um médio de la devastación? O acaso habitaba em
ciudades y no em uma ciudad para decir: Las ciudades em que
habitaba Lot? Pero se trata de la profecia de la separación futura. En
efecto, Dios, acordámdose de la promessa hecha a Abraham, sacó a
Lot de todas las ciudades de Sodoma, a las cuales el fuego llegará
desde el fuego de la Iglesia, que será sacada de em médio de ella
(LIVRO DE LAS REGRAS, VII, 18,2).
Em suas obras, é perceptível que este exegeta não se preocupou com temas
trinitários, nem cristológicos, sem dúvida, porque não constituía um problema sério ao
seu redor. Toda sua teologia se centra na Igreja, sendo considerado, portanto, um
eclesiólogo. Utilizou-se de textos bíblicos para argumentar e dar autoridade a sua
concepção de Igreja, interpretando-os segundo normas hermenêuticas – que, como já
mencionado, se conformam com as regras da interpretação alegóricas e tipológicas –
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que tem como base a ideia de que Deus, perfeição suprema, é a ordem: o homem
conhece a ordem, imitando a perfeição e expressando-a; as coisas recebem a ordem,
participando na analogia divina quando realiza na sua substância uma Lei que elas
mesmas não conhecem, mas que Ele imprime nelas.
Para Ticônio a Igreja era, por conseguinte, uma realidade única, que já havia
iniciado seu caminho no paraíso terreno, cuja meta era o Paraíso. Apesar de Orígenes já
ter desenvolvido a ideia do reino de mil anos como um acontecimento, esse autor inova
ao afirmar que, para ele, os mil anos não teriam lugar no espaço, nem no tempo, mas na
alma dos crentes.
Sua exegese fundamentava-se, essencialmente, a partir da ideia dos dois livros
escritos por Deus. Um deles seria o livro do universo visível, a Natureza, e o outro, a
Bíblia, quando Ele se dedicou às línguas e a escreveu em hebraico, grego e latim
(Escrituras). Cada um deles – Natureza e Bíblia – carregavam um sentido literal
manifesto e um sentido espiritual cifrado, tanto nas coisas quanto nas palavras. Por meio
da interpretação alegórica e, principalmente, tipológica, os comentaristas fariam ecoar
as vozes da Ausência. A forma como Ticônio tratou da relação entre Antigo e Novo
Testamentos atribuiu, portanto, condições de verdade para o primeiro, dentro da
comunidade cristã do Norte da África. Foi uma alternativa à rejeição gnóstica deste
material cultural, como sendo apenas um texto profano.
Portanto, ele respondeu à sua realidade social a partir, não necessariamente de
um método de exegese, mas da criação de condições narrativas que transformaram o
texto bíblico em uma obra aberta à realidade material da comunidade cristã na qual o
autor estava inserido. O ato do conhecimento é a interpretação capaz de desvendar a
Lei, mas mais do que isso, o que temos nessa experiência de interpretação é o
cruzamento de fragmentos dos textos do Antigo e do Novo Testamentos, apropriadas
pelo autor no sentido de construir uma narrativa que respondesse às questões
conflitantes entre os diversos grupos cristãos daquele momento.
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É preciso ter presente que o texto, seja de qual gênero de escrita for, deve ser
situado em relação aos modelos discursivos e delimitações intelectuais próprias de cada
situação de escrita e, portanto, a leitura que esse autor faz da Bíblia deve ser
historicamente situado em relação a toda tradição dessa sociedade no que se relaciona
com a cultura escrita; e é isso que marca o trabalho de um comentador dos textos
bíblicos, aqui representado na obra de Ticônio. A interpretação não é um exercício que
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se anula no próprio texto, pois a leitura ocorre dentro de um horizonte diferente do (mas
não fechado ao) horizonte no qual o texto a ser entendido foi originalmente composto.
Ler, interpretar, no contexto do autor, significou olhar para os textos bíblicos de
uma forma que eles se adaptassem culturalmente àquela comunidade cristã do Norte da
África, a ponto de serem aceitos por ela. Segundo Santo Agostinho: “O que quer que
apareça na Palavra divina que não diz respeito ao comportamento virtuoso ou à
verdadeira fé deve ser tomando como figurativo”. E o que isso significa que não seja
encarar a estranheza do texto bíblico, isto é, sua diferença cultural?
A Bíblia não é um artefato antigo sem relação orgânica com as sociedades que a
acolhe, ela existe historicamente. Há um constante diálogo entre essa obra e a história,
na qual a primeira é adaptada a novas situações e a segunda é influenciada pelo que seus
livros têm a dizer. Assim, é possível ver numa reflexão sobre a história da leitura dos
textos bíblicos, os conflitos culturais que estão em surdina, nas clivagens subterrâneas
criadas pelas maneiras diferentes, ou mesmo contraditórias, de ler esse arquivo
9
(entendido no sentido amplo de “campo de documentação pertinentes e disponíveis
sobre uma questão”). Segundo Pêcheux:
Seria do maior interesse reconstruir a história deste sistema diferencial
dos gestos de leitura subjacente, na construção do arquivo, no acesso
aos documentos e a maneira de apreendê-los, nas práticas silenciosas
da leitura “espontânea” reconstituíveis a partir de seus efeitos na
escritura: consistiria em marcar e reconhecer as evidências práticas
que organizam essas leituras, mergulhando a “leitura literal”
(enquanto apreensão-do-documento) numa “leitura” interpretativa –
que já é uma escritura. Assim começaria a se constituir um espaço
polêmico de ler, uma descrição do “trabalho do arquivo enquanto
relação do arquivo com ele-mesmo, em uma série de conjunturas,
trabalho da memória histórica em perpétuo confronto consigo mesma”
(PECHEUX, 2010, p. 51).
Não há dúvidas de que as regras propostas pelo autor para a compreensão da
Bíblia, no conjunto de todos os seus textos – e estes tidos como palavras do próprio
Deus -, quis criar um discurso linear, ou seja, o autor recorreu à literatura sacra para
estabelecer um consenso capaz de fazer frente aos conflitos e às divergências de
compreensão do sagrado. É preciso entender que a escrita é um mecanismo importante
de poder e que o monopólio sobre ela, acrescida à leitura, proporciona determinado
controle sociocultural por parte do grupo que o exerce. Sabemos que a interpretação
destes textos sagrados podia apoiar o governo específico de um bispo. Foi comum, por
exemplo, esse exercício de usá-los para defender ou opor-se a preceitos dogmáticos:
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E havia uma vantagem extra. Na Bíblia, Deus fala aos leitores
cristãos: como Cipriano lembrou a Donato, “em oração, tu falas com
Deus; Deus fala contigo quando lês as Escrituras” (Cipriano, Ad.
Donatum, 15.1). A citação de textos bíblicos levava a marca pessoal
do poder de um bispo: aqui, Agostinho é explícito. “Se ameaças forem
feitas, que seja a partir das Escrituras, ameaçando a futura retribuição,
que não sejamos nós os temidos por nosso poder pessoal, mas Deus
em nossas palavras” Agostinho, Epist. 25.55). Voltamos à vantagem
da impessoalidade que o texto sagrado também atribua aos visionários
cristãos. Os bispos não o comiam, mas, com certeza, usavam-no como
arma eficiente (FOX, 1998, p. 170).
Para Foucault é importante entender a relação dos discursos dentro das práticas
sociais e culturais. Eles, na forma como podemos ouvi-los/lê-los, sob a configuração de
texto, não são simples entrecruzamento de coisas e de palavras ou um conjunto de
signos (elementos significantes que remetem a conteúdos ou a representações), mas
práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam:
Certamente os discursos são feitos de signos: mas o que fazem é mais
que utilizar esses signos para designar coisas. É esse mais que os torna
irredutíveis à língua e ao ato da fala. É esse “mais” que é preciso fazer
aparecer e que é preciso descrever (FOUCAULT, 2008, p.55).
Assim, vê-se a necessidade de pensar que o discurso não tem apenas um sentido
ou uma verdade, mas uma história, ou seja, ele não escapa à historicidade. Não se
constitui, acima dos acontecimentos e, em um universo inalterável, uma estrutura
atemporal. Segundo Foucault é essencial interrogar o já dito no nível de sua existência,
da função enunciativa que nele se exerce, da formação discursiva a que pertence e do
sistema geral de arquivo de que faz parte (FOUCAULT, 2008, p. 149).
Isso nos leva a refletir sobre esse trabalho anônimo por meio do qual os
aparelhos de poder de nossas sociedades gerem as memórias coletivas. Na Alta Idade
Média este exercício do poder se fez por meio da institucionalização de uma divisão no
próprio corpo eclesiástico, no qual alguns deles eram autorizados a ler, falar e escrever
em seus nomes, como era o caso dos bispos (portadores de uma leitura e de uma obra
própria), e o conjunto de todos os outros, cujos gestos incansavelmente repetidos (de
cópias, transcrição, extração, classificação, indexação, codificação, etc.), constituíam
também uma leitura, mas uma leitura impondo ao sujeito-leitor seu apagamento por
meio da instituição que o empregava. Das funções do copista, Ireneu afirma:
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Tu transcreverás este livro, eu te conjuro, em nome de nosso Senhor
Jesus Cristo, e de sua volta gloriosa, na qual virá julgar os vivos e os
mortos: confronta o que tiveres copiado, e corrige-o com cuidado no
exemplar em que tiveres escrito. Transcreve também do mesmo modo
esta súplica e coloca-a em tua cópia (ARNS, 2007, p. 58).
Podemos ir mais longe nessa análise se pensarmos no fato de que até
praticamente o século XV – quando a leitura puramente visual e muda começou a ficar
mais acentuada –, a leitura era uma prática que pertencia a ordem pública e, portanto, o
controle do que se lia e das interpretação que eram possíveis ao texto, podiam ser
controladas de forma mais eficaz. Segundo Paul Zumthor:
[...] Nas épocas mais antigas, em que os livros eram lidos em voz alta,
geralmente diante de uma pluralidade de receptores que percebiam o
texto de ouvido, certa descida em profundidade na espessura do
discurso era, sem dúvida, mais difícil do que ela o é hoje: o controle
social, ainda a censura, limitava ainda mais eficazmente os efeitos [...]
(ZUMTHOR, 2007, p. 55).
Acrescenta-se a isso, o fato de que a escritura esteve confinada até o ano mil a
alguns mosteiros e cortes reais propagando-se com extrema lentidão. Nesse mesmo
sentido ainda, o uso da escrita – entendida aqui como um produto cultural que tem sua
história, seu ritmo próprio de evolução (a textualidade tem os seus, assim como a
mentalidade escriturária) –, nos faz pensar que o texto traz a questão da autoridade da
materialidade do livro como centro do processo de recepção e tal artefato é caro e
escasso na Alta Idade Média, estando restrito a poucos grupos sociais.
Ainda sobre o assunto, o que designamos e praticamos como escritura (na
intenção ou como pressuposição de uma passagem impressa), tem uma distância imensa
do que é a experiência manuscrita. A cultura dos manuscritos permanece na
continuidade do oral (isso só foi interrompido pela imprensa). Sua produção introduziu
efetivamente, entre a mensagem a transmitir e seu receptor, filtros aos ruídos que
parasitavam na comunicação oral (ZUMTHOR, 2007, p. 55), porém é preciso pensar
também, que a oralidade, com os valores que notificava e conservava, tornou-se
explicitamente parte da interpretação dos textos contidos nos manuscritos.
As próprias técnicas de escrita deste período nos remetem à cultura oral, ao seu
nicho de autoridade e às suas práticas culturais e sociais. O termo latino para escrita
explica como funcionava a operação de escrever – dictare, dictitare. Os autores
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compunham mentalmente seus trabalhos e os ditava a um secretário que os anotavam
em tábuas com os estiletes. Posteriormente, o autor revisava e corrigia o texto, ou às
vezes, o autor fazia só o primeiro trabalho, passando diretamente os textos para as
tábuas, repetindo-o em voz alta. Esse trabalho era visto como um dom dado ao autor
pelo próprio Deus:
O emprego da palavra dictare para o Espirito Santo, como autor dos
livros sagrados, parece ter sentido um tanto especial: dictare quer,
nitidamente, dizer: ser o inspirador, o autor deles. Porém, mesmo
nesse caso, Agostinho distingue duas fases: ‘O espirito Santo não
apenas te dá essa solução, mas também as dita. O dom indica o
proprietário; o ditado, a transmissão das ideias em uma inspiração
(ARNS, 2007, p. 45).
Escrever exigia, portanto, esforço muscular considerável dos dedos, do pulso, da
vista, das costas: todo o corpo participava, incluindo a língua, pois se exigia a
pronúncia. Assim, podemos afirmar que o escrito, salvo exceções, formava-se por
contágio corporal a partir da voz, como o sopro divino da Criação, o que projeta no
próprio ato da escrita, ou melhor, do processo de produção da escritura e no escritor a
perspectiva de um poder divino e, portanto, digno de autoridade.
10
Por fim, fica de nossa análise a percepção de que a história da leitura da Bíblia,
dos seus comentários e interpretações está relacionada com a própria experiência
cultural, social e política na qual estas escrituras foram produzidas e consumidas. O
direito de ser “digno de abrir o selo”, notadamente, dá, em larga medida, ao grupo social
a quem este poder lhe é atribuído, um domínio que ultrapassa o poder sobre o sagrado,
alcançando no limite, o monopólio do próprio arquivo.
Referências Bibliográficas
ARNS, Dom Paulo Evaristo. A técnica do livro segundo São Jerônimo. São Paulo:
Cosac Naify, 2007.
BRUNS, Gerald L. Midraxe e alegoria: os inícios da interpretação escritural. In:
ALTER, Robert; KERMODE, Frank (org.). Guia Literário da Bíblia. São Paulo:
Editora da UNESP, 1997, p. 667-690.
CHARTIER, Roger. A história cultural. Entre práticas e representações. Lisboa: Difel,
1988.
DOCUMENTOS DE SU ENTORNO HISTÓRICO Y LITERARIO. Edición bilíngüe
preparada por J. G. Echegaray, A. del Campo y L. G. Freeman. II VOL. Madri: BAC,
2004, vol. II.
ECO, Umberto. Interpretação e Superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
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FOUCAULT, Michel. Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2008.
FOX, Robin Lane. Cultura escrita e poder nos primórdios do cristianismo. In:
BOWMAN, Alan K.; WOOLF, Greg (org.). Cultura escrita e poder no mundo antigo.
São Paulo: Ática, 1998, p. 154-182.
FRANCO JUNIOR, Hilário. Os três dedos de Adão. Ensaios de mitologia medieval.
São Paulo: Edusc, 2010.
HANSEN, João Adolfo. Alegoria. Construção e interpretação da metáfora. Campinas:
Editora UNICAMP; São Paulo: Hedra, 2006.
SIMONETTI, M. Exegesse Patrística. In: Dicionário Patrístico e de Antiguidades
Tardias. São Paulo: Vozes, Paulus, 2002, p. 551-555.
TICONIO. Livro de las reglas. Edición Bilíngüe preparada por Juan José Ayán Calvo.
Madri: Editorial Cidade Nueva, 2009.
ZUMTHOR, Paul. Introdução a poesia oral. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010.
______. La letra y la voz. De la “literatura” Medieval. Madri: Catedra, 1989.
______. Performance, recepção, leitura. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
Notas
1
Para Umberto Eco: “Qualquer texto, pretendendo afirmar algo unívoco, é um universo abordado, isto é,
a obra de um Demiurgo desastrado (que tentou dizer que “isso é isso” e fez surgir, ao contrário, uma
cadeira ininterrupta de transferências, em que “isso” não é “isso)” (ECO, 2012, p.45).
2
Longe de ser uniforme, o conceito de escritura, pode nos informar muitas das técnicas, das atitudes e das
condutas diversas sobre a escrita, segundo as épocas, os lugares e os contextos em que ocorre. Paul
Zumthor afirma que até o humanismo, a sociedade europeia ainda não interiorizou verdadeiramente o
conhecimento e a prática da escritura. Segundo este autor: “[...] a escritura no se confunde con el
propósito, ni siquiere com la aptitud para hacer del mensaje um texto. Tiene su história, su ritmo próprio
de evolución; a textualidade tiene los suyos, así como las mentalidades escriturarias. Ningún sincronismo
vincula rigorosamente esos devenires; siempre existe uma diferencia, más o menos sensible, según las
zonas sociales observadas” (ZUMTHOR, 1989, p.116).
3
Segundo Umberto Eco: “[...] O hermetismo do século II, por outro lado, está em busca de uma verdade
que não conhecem e tudo quanto possui são livros. Portanto, imagina ou espera que cada livro contenha
uma centelha da verdade e que eles sirvam para confirmar-se mutuamente. Nesta dimensão sincrética, um
dos princípios dos modelos racionalistas gregos, o do terceiro excluído, entra em crise. É possível muitas
coisas serem verdadeiras ao mesmo tempo, mesmo que se contradigam. Mas, se os livros falam a
verdade, mesmo quando se contradizem, então cada uma de suas palavras dever ser uma alusão, uma
alegoria [...].” (ECO, 2010, p. 35).
4
Para Umberto Eco o universo é entendido pelos homens e mulheres desse período como uma grande
parede de espelhos, onde cada objeto individual reflete e significa todos os outros: “Só é possível falar de
simpatia e semelhança universa se, ao mesmo tempo, o princípio de não-contradição é rejeitado. A
simpatia universal é ocasionada por uma emanação divina no mundo, mas na origem da emanação está o
Um incognoscível, que é a sede da própria contradição. O pensamento cristão neoplatônico tentará
explicar que não podemos definir Deus em termos muito precisos por causa da inadequação de nossa
língua. O pensamento hermético afirma que nossa língua, quanto mais é ambígua e polivalente, e quanto
mais usa símbolos e metáforas, tanto mais é particularmente adequada para nomear a Unidade onde
ocorre a coincidência dos opostos. Mas, onde a coincidência dos opostos triunfa, o princípio de identidade
entra em colapso. Consequentemente, a interpretação é indefinida. A tentativa de procurar um significado
final inatingível leva à aceitação de uma interminável oscilação ou deslocamento do significado[...]”
(ECO, 2010, p. 36).
5
Segundo João Adolfo Hansen (2006) a Idade Média entendeu tipologia como uma semântica de
realidades, espécie particular e propriamente cristã da alegoria: ela é “alegoria factual” (HANSEN, 2006,
p. 104).
6
Na operação figural há, assim, um duplo percurso, prospectivo e retrospectivo. Movimento prospectivo
da interpretação, a vida humana prefigura no tempo sua existência mais plena no Além. Pelo movimento
retrospectivo, é o Além que dá o sentido próprio para o mundo terreno figurado, de modo que os dois
movimentos se encontram, circularidade característica do mito (HANSEM, 2006, p. 108).
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7
Hilário Franco Junior nos alerta para o fato de que o pensamento analógico estava presente nessa
sociedade: “[...] Como indica a etimologia da palavra grega (ana, “por meio de”, legein, “assemelhar”),
analogia é “proporção matemática” (identidade entre as relações que unem os termos de dois ou mais
conjunto) e “correspondência” (semelhança entre domínio heterogêneos possibilitada pela percepção de
certa unidade entre eles). É isomorfismo que leva à transferência de propriedade de algo conhecido para
outro menos conhecido, isto é, gera conhecimento conectado com outro, e não apenas cumulativo. Logo,
pensamento analógico é método extensivo que depende mais das propriedades sintáxicas do
conhecimento do que de seu conteúdo específico. Ele busca similitudes entre seres, coisas e fenômenos,
todos articulados em uma totalidade que os ultrapassa e é comum a cada elemento. Tais pontos estruturais
presentes em todo componente do universo decorrem, desta perspectiva, de uma realização primordial, de
uma unidade básico de tudo, escalonada por semelhanças dos termos análogos entre si e por referência
deles ao termo primeiro, ao protótipo” (FRANCO JUNIOR, 2010, p. 97).
8
Segundo Chartier a relação do texto com o real constrói-se segundo modelos discursivos e delimitações
intelectuais próprias de cada situação de escrita: “[...] Contra a concepção, cara aos historiadores da
literatura ou da filosofia, segundo a qual o sentido de um texto nele se encontraria escondido como pérola
em ostra (sendo a crítica, desde logo, a operação que traz à luz do dia esse sentido oculto), é necessário
relembrar que todo o texto é o produto de uma leitura, uma construção do seu leitor: “este não toma nem
o lugar do autor nem um lugar de autor”. Inventa nos textos uma coisa diferente daquilo que era a
intenção deles. Separa-os da sua origem (perdida ou acessória). Combina os seus fragmentos e cria o
desconhecido no espaço organizado pela capacidade que eles possuem de permitir uma pluralidade
indefinida de significações” (CHARTIER, 1988, p. 61).
9
Foucault propõe a compreensão do conceito de arquivo não como: “[...] a soma de todos os textos que
uma cultura guardou em seu poder, como documentos de seu próprio passado, ou como testemunho da
identidade mantida; não entendo, tampouco, as instituições que, em determinada sociedade permitem
registrar e conservar os discursos de que se quer ter lembrança e manter a livre disposição. Trata-se antes,
e ao contrário, do que faz com que tantas coisas ditas por tantos homens, há tantos milênios, não tenham
surgido apenas segundo as leis do pensamento, ou apenas segundo o jogo das circunstâncias, que não
sejam simplesmente a sinalização, no nível das performances verbais [...]; mas que tenham aparecido
graças a todo um jogo de relações que caracterizam particularmente o nível discursivo; que em lugar de
serem figuras adventícias e como que inseridas, um pouco ao acaso, em processos mudos, nasçam
segundo regularidades específicas [...]” (FOUCAULT, 2008, p. 146).
10
Uma vez agarrada à materialidade do papel, ou seja, uma vez presa a superfície do texto, a escritura
vence o tempo. Retrocesso de um vasto espaço de memória em benefício do arquivo: gramatização da
língua vulgar, e como consequência, dissociação de um código oral do código escrito. O resultado
segundo Paul Zumthor: “[...] é a maneabilidade perfeita do texto [...]. Eu leio, divido, junto, desço ou
subo à vontade o seu percurso. Ele se apresenta, na pedra ou na folhar de papel, como um todo e é assim
perceptível. Quaisquer que sejam as falhas, as dissimulações (literariamente, os mascaramentos) que a
mensagem comporte, uma percepção global torna-se desse modo possível: em tendência, sintética, logo
abstrata” (ZUMTHOR, 2010, p. 41).
Artigo recebido em 28/10/2013. Aprovado em 10/12/2013.