Em um país profundamente marcado pela diversidade étnica e cultural, a coexistência de múltiplos sistemas normativos sempre se estabeleceu de maneira tensa e desigual, sendo historicamente subordinada à hegemonia de um modelo jurídico estatal de matriz colonial. Assim, torna-se imprescindível refletir sobre as possibilidades de reconhecimento e valorização dos sistemas normativos indígenas, que expressam, de forma legítima, modos próprios de organização social, resolução de conflitos e produção de justiça. Desse modo, este estudo tem como objeto a análise das práticas jurídicas tradicionais dos povos indígenas brasileiros, bem como das tensões e contradições que emergem quando tais sistemas são confrontados com o direito estatal, ainda fortemente ancorado em paradigmas monoculturais. Além disso, busca-se compreender os desafios institucionais, políticos e epistemológicos para a construção de um modelo de justiça pluralista, que seja capaz de acolher, com respeito e legitimidade, os direitos coletivos e as epistemologias jurídicas indígenas. O objetivo, portanto, é refletir criticamente sobre os caminhos possíveis para a descolonização da justiça no Brasil, a fim de que se reconheça, de forma plena, a autonomia normativa dos povos originários. Em outras palavras, pretende-se evidenciar como a justiça, enquanto prática social e política, pode ser resignificada para além das fronteiras do positivismo jurídico ocidental, abrindo-se para o diálogo intercultural e para a ecologia de saberes. A partir dessas considerações, coloca-se como pergunta norteadora: como o Estado brasileiro pode, de fato, descolonizar sua estrutura jurídica, reconhecendo e respeitando os sistemas normativos indígenas, sem, contudo, submetê-los aos filtros assimilacionistas e homogeneizantes do direito oficial? Teoricamente, fizemos uso dos trabalhos de Almeida (2008; 2013), Borrows (2010; 2016; 2019), Cunha (1998; 2013; 2016; 2018), Dallari (1988), Dussel (1982; 2000), Guevara Gil et al. (2021), Kymlicka (1995; 2001), Marés (2013), Quijano (1992; 2000), Roach e Borrows (2019), Santos (2002; 2014; 2016; 2017; 2020), Silva (2008; 2016), Tully (1995), Walsh (2005; 2019), Wagner (2004; 2013), Estatuto do Índio (1973), entre outros. A pesquisa é de cunho qualitativa (Minayo, 2007), bibliográfica e descritiva (Gil, 2008) e com o viés analítico compreensivo (Weber, 1948). Os achados revelaram que os sistemas normativos indígenas, apesar de juridicamente marginalizados, seguem exercendo papel fundamental na mediação de conflitos, na organização social e na produção de justiça em suas comunidades. Observou-se que tais sistemas são baseados em valores como coletividade, oralidade, espiritualidade e territorialidade, o que os distancia do modelo jurídico ocidental centrado na norma escrita e no individualismo. Além disso, ficou evidente que o direito estatal, ao desconsiderar essas formas plurais de justiça, perpetua um colonialismo jurídico que nega o reconhecimento pleno da autonomia indígena. Por fim, identificaram-se experiências concretas de articulação intercultural que apontam caminhos viáveis para um pluralismo jurídico radical e respeitoso.