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Monoparentalidade programada e reprodução assistida: da
“produção independente” à utilização de sêmen póst mortem
Julieta M. B. R. Quayle∗
Lia M. N. Dornelles*∗
Resumo
A utilização das técnicas de reprodução assistida vem possibilitando, nas últimas décadas, a realização da vontade de
exercer a parentalidade em diferentes contextos e situações, muito além da infertilidade. Aqui são elaboradas reexões
associadas à monoparentalidade buscada, não acidental, considerando contingências especícas, tais como a utiliza-
ção de sêmen post mortem e a denominada produção independente, seja em indivíduos hetero ou homossexuais. Tais
reexões são eliciadas em virtude da prática clínica à luz da revisão de literatura e debruçam-se sobre as condições
que favorecem essa busca, muitas vezes de caráter narcísico e que necessitam de uma escuta e uma interlocução
privilegiada no atendimento clínico.
Palavras-chave: monoparentalidade; parentalidade póstuma, reprodução assistida, narcisismo.
Orogrammed “Single” Parenthood and Human Assisted Reproduction: from the
“Independent Production” to the Utilization of Post Mortem Semen.
Abstract
In the last decades, the use of assisted reproduction techniques has favored the fulllment of parenthood desires in
different contexts and situations, beyond infertility itself. This paper discusses issues related to programmed single
parenthood eagerly sought in specic situations, such as the use of post mortem semen and the so-called “independent
production” among hetero and homosexual individuals. This reexion is brought by the authors’ clinical experience
and addresses the conditions that favor this perhaps narcissistic search, which needs a specialized hearing and ex-
change within the clinical context.
Keywords: single parenthood, posthumous parenthood, human assisted reproduction, narcissism.
* Trabalho apresentado no XVI Congresso Brasileiro de Reprodução Assistida, em 2012, em Guarujá, constituindo-se em um dos temas discutidos e aceitos
como base para a elaboração do “1º Consenso de Psicologia em Reprodução Assistida”. O propósito do grupo do Consenso foi nortear o trabalho dos
prossionais de saúde mental que atuam nesta área da psicologia da saúde.
** Doutora pela PUC-SP. Pesquisadora Pos-Doc no Departamento de Medicina Preventiva da FMUSP. E-mail: juquayle@gmail.com.
Copyright 2015 pelo Instituto Metodista de
Ensino Superior CGC 44.351.146/0001-57
Mudanças – Psicologia da Saúde,
23 (1), Jan.-Jun. 2015, 31-40p
Julieta M. B. R. Quayle & lia M. N. DoRNelles32
Mudanças – Psicologia da Saúde, 23 (1) 31-40, Jan.-Jun., 2015
Introdução
A constituição da família estendida e do núcleo fami-
liar na sociedade ocidental vem apresentando importantes
e signicativas modicações na pós-modernidade, dicul-
tando, inclusive, uma denição de “família” que seja aceita
por unanimidade. Observam-se importantes alterações em
múltiplas dimensões da estrutura e dinâmica da família,
“especialmente nas relações intergeracionais e de intimida-
des, caracterizadas pela maior expressão dos afetos e busca
de autonomia de seus membros, a embasar a construção
subjetiva individual” (Petrini, Alcântara, & Moreira, 2009).
A presença cada vez mais signicativa e acessível das
técnicas de reprodução humana assistida (RHA) também
desempenha importante papel nessa reconguração do
próprio conceito de família e das relações familiares.
Além disso, coloca em foco questões importantes relacio-
nadas à liação, maternidade, paternidade e parentalidade,
entre outros aspectos, com importantes repercussões nos
polos jurídico e psicossocial. Estruturações familiares di-
versicadas e decorrentes do uso da RHA hoje trazem ao
foco desenhos geracionais e relacionais antes impensados.
Tome-se, por exemplo, o momento em que se tem
uma avó desempenhando o papel de “útero de substitui-
ção” (ou “útero solidário”, como alguns preferem) para
sua lha histerectomizada, e colocando-se, ao mesmo
tempo, na representação fantasmática de uma dada famí-
lia, como mãe e como avó de uma mesma criança – não
apenas simbolicamente ou porque exerce um determinado
papel de cuidadora ou de autoridade, mas porque efeti-
vamente gestou sua neta/lha/descendente. Importantes
questões legais vinculam-se a essa situação e têm sido
objeto de aprofundadas discussões.
Entretanto, é importante ressaltar que não se trata,
aqui, somente de uma preocupação de caráter legal, de
uma gura jurídica, de direitos e deveres – sem querer
minimizar a importância dessas questões. Aqui é a própria
tessitura da constituição do sujeito e da família, com suas
origens e devires, que se transforma em foco e objetivo
e atrai nosso olhar.
Cumpre ressaltar que pôr essas questões em pauta é
tarefa fundamental para a psicologia. Alhures, se armou
que elas
se referem à constituição mesma da subjetividade nos
tempos pós-modernos. Referem-se à noção de limite,
(oni)potência, ordem, moralidade e legalidade, balizando
contingências e fantasias que põem em cheque nossas ca-
pacidades de elaboração, ordenação e superação. (Quayle,
2006, p. 11).
O presente ensaio propõe-se a tecer considerações e
pensar o devir psicológico da monoparentalidade buscada
por meio de técnicas de reprodução humana, tendo como
referência a prática clínica e os aportes de alguns teóricos.
Famílias monoparentais
Para além das representações tradicionais da famí-
lia como um núcleo transgeracional, constituída pelos
progenitores e seus lhos biológicos, na atualidade os
paradigmas relativos à constituição e dinâmica familiar e
sua denição foram denitivamente quebrados e novos
estão em fase de construção. Além disso, podemos dizer
que esse redesenho da família cada vez mais é marcado
pelas relações afetivas e pelo desejo pessoal, em que a
presença do casal parental constituído ortodoxamente
não é uma condição sine qua non para que um determi-
nado grupo de indivíduos, independentemente de seu
tamanho e componentes, seja considerado uma família.
Nesse contexto, a família que conta com a presença de
um único genitor/responsável – monoparental – é uma
realidade consistente e em franco crescimento do ponto
de vista estatístico, inclusive no Brasil.
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geograa e
Estatística (IBGE, 2006), há uma década essa modalidade
de constituição familiar já representava aproximadamente
18,1% em nosso país, sendo maior sua prevalência em
grandes cidades.
Inicialmente, o termo “família monoparental” era
usado para indicar a situação de lares “dirigidos por um
só genitor”, geralmente como decorrência de viuvez
ou separação (Dandurant, 1997, apud Abrahão 2003).
Todavia, o uso de tal neologismo foi sendo rapidamente
estendido a outras situações, inclusive às condições de
“nascimentos extramatrimoniais” (Dandurant, 1997, apud
Abrahão 2003), quase como forma de dar um reconheci-
mento tácito à existência dessas constituições familiares.
Paulatinamente, o uso do termo acabou por estender-se
também a toda e qualquer condição em que exista pelo
menos um progenitor e pelo menos um lho.
Dito de outra forma,
Para além das famílias reconstituídas e “reformadas” em
situações de separação e novos casamentos/relações, as
relações familiares hoje derivam de casais pouco tradi-
cionais, constituídos por indivíduos do mesmo sexo e /
ou gênero, bem como por indivíduos que, isoladamente,
assumem a parentalidade. Essa parentalidade no singular
não é algo novo: decorre, muitas vezes, de perdas (os
períodos de guerras são fecundos em exemplos dessa
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organização familiar), de situações de separação ou
abandono. Tradicionalmente, essa monoparentalidade era
exercida pela gura feminina/ materna, em primeira ou
segunda geração (avós). (Quayle, 2009, p. 125).
Levy (2009) propõe que o termo família monoparental
seja utilizado para referir-se a constituições familiares
compostas por um pai ou uma mãe cuidando sozinho de
seus lhos, seja isso decorrente de separação do cônjuge,
viuvez ou parentalidade de indivíduos que jamais se ca-
saram – seja por meio da adoção ou pela popularmente
denominada “produção independente”. A ênfase aqui
acaba sendo colocada no “cuidado”, mais do que na
“gestação” ou na “gestão”, reexo deste século de tantas
mudanças e da primazia do afeto e do desejo nesse nosso
tempo marcado pelo narcisismo; mais que isso: não só
necessidade ou destino, mas escolha.
Da parceria à busca solitária: um percurso
particular
Usualmente vista como associada à gura feminina, a
própria denominação “produção independente” já preconi-
za uma inserção em importantes mudanças socioculturais
relacionadas ao papel da mulher e condições de gênero.
Tal inserção, reexo do empoderamento da mulher na
segunda metade do século XX, marca a possibilidade de
a mulher gerir suas próprias escolhas em um contexto
mais liberal e de lidar de maneira diferenciada com as
repercussões e o preconceito eventualmente associados a
essas opções; desdobramento paradoxalmente natural da
contracepção, a possibilidade de “controlar” a maternida-
de, que pode ser então exercida sem a presença da família
e do companheiro. Dessa forma, o que ca em evidência,
aqui, é que a parentalidade passa a poder ser escolhida,
buscada e vivenciada individualmente por essa mulher –
se não no que concerne à concepção, pelo menos em seu
exercício. Colorida por uma aura quase hippie, essa mono-
parentalidade questionava de forma direta a constituição
da família tradicional e dos papéis parentais, a necessidade
de um companheiro presente para o cuidado da prole e
a condição de vulnerabilidade feminina. Se, inicialmente,
essa monoparentalidade decorria quase que exclusivamente
da maternidade fora do casamento (buscada ou acidental),
vista com maior ou menor preconceito ou aceitação, cada
vez mais se encontrava uma situação que aqui poderíamos
denominar “programada”, uma vez que não decorria de
um “acidente de percurso”: era resultado da busca cons-
ciente e deliberada por uma prole, independentemente da
existência de um/a companheiro/a.
Aliás, em princípio, seria possível ir além: não se
trata de uma parentalidade exercida “independentemen-
te” de um partner, um parceiro/a; trata-se, claramente, da
exclusão dessa parceria, da opção pela independência e
pela caracterização de mais um “projeto de vida” a ser
perseguido e obtido individualmente, tendo em vista a
realização pessoal.
Essa situação tem sido explorada pela mídia em
diferentes versões, de comédias a dramas, em literatura e
lmograa. Tanto o exorcismo dos demônios escondidos
como o preço da escolha aparecem de formas diferentes,
ilustrando aspectos conitivos especícos. Por exemplo,
temos, ainda em 1993, uma interessante comédia dirigida
por Benjamin e protagonizada por Whoopi Goldberg –
Made in America (Benjamin, 1993) –, que, em português,
recebeu o sugestivo nome Feita por encomenda , na qual
uma adolescente branca (Zoe) é levada a crer que é lha
do falecido marido de sua mãe negra (Sarah, papel de
Whoopi), até descobrir ser fruto de uma inseminação
articial buscada por sua mãe e de um erro do banco de
sêmen – uma vez que sua mãe havia solicitado um doador
negro. Ao descobrir seu pai biológico (um vendedor de
carros caucasiano), cam evidentes a trama e o segredo,
e, embora as coisas sejam tratadas com a leveza carac-
terística das comédias, evidencia-se que o preço que se
paga por esse tipo de escolha é importante. A diferença
se marca, o preço é pago, o segredo, descoberto.
Já em outras obras, o tom é lúgubre e dramático,
quando, por exemplo, irmãos acabam se apaixonando sem
saber de sua relação genética (não se pode aqui falar de
relação familiar), com claras referências à necessidade de
mudança dos padrões de conceituação do próprio para-
digma de família e de incesto. Recentemente, parodiando
a vida, uma obra explora a superutilização inescrupulosa
da doação de sêmen. Em Delivery man1 (Scott, 2013),
questiona-se, subliminarmente, a função paterna e suas
vicissitudes, deixando claro que a parentalidade vai mui-
to além da dimensão biológico-genética. Algo similar
ocorre em The kids are all right2 (Cholodenko, 2010), no
qual o doador de sêmen aproxima-se de uma família ho-
moafetiva. De fato, sempre teremos Pandora de plantão,
prestes a abrir, rápida e inadvertidamente, sua caixa e
deixar escapar os males que aigirão a humanidade – ou
a reprodução humana.
Ao se retomar o “divertido” título do lme estrela-
do por Goldberg, a palavra “encomenda”, do título em
português, salta aos olhos – e caracteriza muito bem o
1 No Brasil, recebeu o título De repente, pai.
2 No Brasil, recebeu o título Minhas mães e meu pai.
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tipo de ação/desejo/intenção subjacente à monoparen-
talidade programada. Encomenda, segundo o dicionário
Michaelis (Encomenda, 2009), é3: algo que se ordena,
algo que se deseja, que se pede “a propósito”, que exige
a participação de um “outro” para que se viabilize. Algo
feito “sob pedido” e “sob medida” para satisfazer aquele
que solicita. Uma “ordem”. Todavia, trata-se aqui de uma
ordenação diferenciada, de um tirar das mãos da natureza,
de um assenhorear-se do destino e do devir – pelo menos
potencialmente. Associa-se a uma tentativa de controle
e de manipulação em um contexto narcísico especíco.
Estranho? Não, simplesmente humano; “demasiadamente
humano”, diriam alguns.
Evidentemente, o “tiro pode sair pela culatra”, e
aquele que “encomenda” pode transformar-se em vítima
impotente do próprio desejo. Mas, a rigor e em princípio,
trata-se de um exercício de soberania. Soberania dividida,
talvez, mas com um tipo diferente de parceiro, pois, no
caso da RHA, entrega-se o corpo, simbolicamente, a um
terceiro/estranho para que o desejo realize-se. Interes-
sante contradição!
Essa monoparentalidade programada caracteriza-se,
então, pelo exercício da parentalidade buscada, desde o
início, não como um “prêmio de consolação” ou um
substitutivo vicário da família tradicional. Trata-se, aqui,
de um exercício claro da escolha pessoal exercitada, ora
por meio da adoção, ora por meio do recurso das técni-
cas de reprodução assistida, e que propõe importantes
questões do ponto de vista da psicologia, com dinâmicas
especícas e diferenciadas. Entre essas questões, salienta-
mos a importante repercussão dessa escolha no processo
de subjetivação dessa criança, seu locus na trama familiar
e as relações daí decorrentes.
Silva, Conceição e Peixoto (2007) recordam-nos
que o artigo 226,§ 4º, da Constituição Federal dene a
família monoparental como uma “comunidade formada
por qualquer dos pais e seus descendentes”, sem se ater
a delimitar ou referendar as situações que levaram à
presença de um único genitor. Do ponto de vista legal,
existe, portanto, suporte para a monoparentalidade, seja
ela originária de qualquer circunstância. Quando buscada,
ela se viabiliza por meio de três principais estratégias: a
adoção, a concepção buscada em um contexto não afetivo
(escolha de um “genitor” por suas características, ferti-
lização sem posterior contato), ou o recurso às técnicas
de reprodução assistida, em suas diferentes modalidades.
3 De acordo com o dicionário Michaelis (Encomenda, 2009): ato de encomen-
dar. Incumbência de fazer ou enviar; pedido, ordem. O que se encomenda.
Aquisição, compra. Coisa de que alguém toma a incumbência. Feitiço, man-
dinga De encomenda: a) a pedido, especialmente; b) como desejado, a propósito.
Ribas (2008) especica as principais técnicas de RHA
utilizadas nessas situações: a) inseminação intrauterina de
espermatozoides previamente recolhidos; b) a transferência
intratubária de gametas (Gift); c) a transferência intratubá-
ria de zigotos (Zift); d) fecundação in vitro (Fivete).
Entretanto, há que existir parâmetros para a reali-
zação desse desejo.
O Conselho Federal de Medicina publicou a Reso-
lução CFM nº 1957/2010 (CFM, 2011) com o objetivo
de pautar as normas éticas para a utilização das técnicas
de reprodução assistida a serem seguidas pelos médicos
especialistas em reprodução humana. Para Melo (s.d.),
essa resolução “era muito desejada e esperada tanto pe-
los médicos especialistas quanto por várias pessoas que
desejavam ser submetidas aos tratamentos”, mas que
encontravam obstáculos por não estarem contempladas
na antiga Resolução CFM nº 1358/1992 (CFM, 1992).
Em oposição ao que ocorria anteriormente, quando, em
princípio, somente casais “estáveis” ou “de fato” podiam
se submeter aos tratamentos de RHA, ele lembra que a
partir dessa nova conjunção de propostas
a reprodução assistida pode ser aplicada a qualquer pes-
soa capaz que esteja de acordo com a realização deste
procedimento. Desta forma, passa a contemplar a mulher
solteira que deseja “uma produção independente”, isto é,
ser mãe sem a necessidade (obrigatoriedade) de ter um
parceiro. Estas mulheres terão de recorrer à utilização de
sêmen proveniente de um banco. A doação ainda segue
como anônima, não podendo o ato ser realizado com a
ajuda de um amigo ou conhecido.
Aqui se tem, ainda, a possibilidade de extensão do
procedimento de RHA também a casais homoafetivos
(poder-se-ia dizer, inclusive, indivíduos homossexuais, em
relações homoafetivas ou não).
É sobre a monoparentalidade programada decorren-
te do uso de técnicas de RHA que se focarão doravante
nossas reexões.
Monoparentalidade programada e RHA:
repercussões e percursos
Ribas (2008) recorda-nos que
o direito à procriação, que permite a utilização das técnicas
de reprodução assistida pelas pessoas em geral […] é asse-
gurado pelo ordenamento político brasileiro e está intima-
mente relacionado à possibilidade de pessoas não vinculadas
a um parceiro, como mães solteiras, dela se utilizarem.
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Prossegue enfatizando que a monoparentalidade
“foi expressamente reconhecida na Constituição Federal
como espécie de família (art. 226, § 4º), […] não havendo
razões para se proibir a utilização de técnicas de repro-
dução assistida por pessoas não vinculadas ao casamento
ou à união estável” e que o uso de tais técnicas deve ser
permitido, inclusive, aos homossexuais. A autora reporta,
ainda, que cada vez mais o parâmetro da paternidade e
da maternidade genética, biológica, vem cedendo espaço
à parentalidade socioafetiva.
Para Abrahão (2003), embora não seja sempre con-
siderada com naturalidade, a monoparentalidade é um
ato consumado. É vista com reservas, mas incorporada,
inclusive, na legislação. Exemplo de visões divergentes é
a citação de Viana, que, apesar de defender a necessidade
de proteger os direitos legais dos lhos assim gerados e
cuidados, deixa transparecer uma visão mais tradicional
de família em sua argumentação:
o fato incontestável ao qual se rendeu nossa Constituição, é
que ao lado do casamento constituíram-se outras entidades
familiares, avultando das estatísticas o número de mulheres
e homens sem par, criando isoladamente seus lhos. […] A
monoparentalidade é, em verdade, antítese real da família natural.
(Viana, 2000, apud Abrahão, 2003, grifo nosso).
Olvida-se, assim, que a família humana é uma cria-
ção cultural.
Se, no passado, observava-se certa discriminação, ou
mesmo pena, em relação à monoparentalidade exercida
por genitores viúvos ou separados, hoje é a monopa-
rentalidade programada que enfrenta desafios e pode
provocar estranheza.
Ainda existem autores e legisladores que trafegam
na contramão dos tempos e defendem que somente em
famílias ortodoxamente constituídas deveria ser permitida
a utilização de técnicas de RHA. Wardle (apud Abrahão,
2003), por exemplo, enfatiza que
atualmente se tem irrefutável evidência empírica de que
a estrutura ou forma da família é de grande importância
para a felicidade individual e para a estabilidade social.
[…] a evidência é esmagadora de que essas “formas fa-
miliares” alternativas são arautos de grande sofrimento
para os indivíduos e causas de substancial desastre social
e econômico para as nações.
Nessa mesma linha de raciocínio, há vinte anos Leite
(1995, p. 336) afirmava que os recursos da RHA – no
caso, ele se referia, especicamente, à inseminação articial
– não teriam sido desenvolvidos para atender a “interesses
egoísticos de particulares, muito menos de grupos ou segmen-
tos de conduta excepcional na sociedade”, armando que tais
recursos deveriam ser direcionados a casais com relação
matrimonial estabelecida, pois esses, sim, apresentariam
a “natural intenção de ter prole” (grifos nossos).
Claramente, aqui se evidencia a sobreposição de
questões morais às cientícas. É sabido que “motivos ego-
ísticos” não são exclusividade de modelos familiares pouco
ortodoxos ou de comportamentos que não são maioria.
É fato que a solidão no exercício da parentalidade
pode ocorrer por escolha do indivíduo, como decorrên-
cia de “opções reprodutivas de mulheres que recorrem
à RHA para constituição de seu núcleo familiar, inde-
pendentemente da existência de qualquer laço afetivo,
civil ou nanceiro com um genitor potencial” (Quayle,
2009). Mas como é vista essa escolha? Como pode ela
ser compreendida? Quais são seus riscos?
Cumpre aqui colocar em questão algumas dessas
proposições, uma vez que elas indiretamente decorrem e
reportam-se a aspectos psicológicos importantes presentes
na parentalidade; aspectos esses que devem ser tomados
em consideração por prossionais de saúde que traba-
lham nessa área e que aqui se encontram contaminados
por uma dimensão moralista que ultrapassa seu escopo.
Inicialmente, existe a proposição de que “alternati-
vo”, o que escapa à norma, o que não se situa no primei-
ro desvio padrão da curva normal, deva ser descartado
como inadequado e potencialmente perigoso. A asso-
ciação entre a “margem” e a inadequação está presente
em nosso imaginário – a palavra “marginalidade” e sua
conotação são exemplos disso. Todavia, não decorre daí
que toda e qualquer forma de anormalidade estatística é
necessariamente patológica ou inadequada, devendo ser
banida e exorcizada. De fato, são os marginais, em certo
sentido, os que “estão fora da média”, os que, por vezes,
se sobressaem em diferentes campos (das ciências às
artes, da losoa à literatura, dos esportes à cultura), os
grandes responsáveis pelos avanços tecnológicos, morais,
e mesmo éticos de nossa espécie.
Corolário importante: nem sempre a maioria está
correta, nem sempre suas proposições são as melhores.
A História lembra-nos de inúmero exemplos em que a
maioria não estava com a razão. No mínimo, suas arma-
ções (as da maioria) não devem ser vistas como únicas,
ou as únicas corretas. Se é verdadeiro que o diferente,
por vezes, assusta, fascina e afasta, favorecendo um olhar
preconceituoso, também o é que se pode tentar outra
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aproximação, tendo como tomada de perspectiva o olhar
e a posição desse outro, desse “diferente”. A legitimação
nem sempre pode ser proposta ou obtida a partir da
maioria e do “pré-conceito”
Outro importante aspecto implícito nas afirma-
ções de Leite (1995) e de Wardle (apud Abrahão, 2003)
refere-se ao fato de que o sofrimento, mais facilmente,
se vincula à diferença, e que a norma seria um salvo-
-conduto para sua ausência. Não é assim com as forma-
ções familiares. Se, por um lado, a diferença, até pelos
olhares e atitudes que provoca, frequentemente se associa
a certo sofrimento psíquico, vinculando sentimentos de
não pertencimento e exclusão, por outro é fato sabido
que a família tradicional está longe de ser um porto se-
guro e um locus de prazer e realização. Ainda, imbricada
nas referidas armações ca a ilação de que existiriam
formas mais ou menos “legítimas” no que concerne ao
processo de concepção: algumas se vinculariam à “na-
tural intenção de ter prole”, sendo a família nuclear, tal
como a conhecemos, “a” forma natural de organização.
Paradoxalmente, chama-se para a discussão a questão da
“naturalização” de um processo eminentemente cultural
e social, no bojo mesmo de sua mecanização tecnológica.
Ainda mais complicado do que isso: traz como pres-
suposto que existe uma “natural intenção” associada à
reprodução humana – aspecto que em diferentes teorias
recebeu nomes distintos, mas que acaba, frequentemente,
sendo chamado de “instinto”, “instinto materno”.
Uma discussão aprofundada desse tema escapa ao
escopo desse trabalho, mas é importante retomar aqui o
fato de que essa “naturalização” propõe uma contradição,
em termos: se se trata de algo natural e instintivo (o que
já está em discussão pelo menos nos últimos cinquenta
anos em nossa sociedade ocidental), não haveria justica-
tiva para que a parentalidade (exercida individualmente ou
por casais) fosse negada a priori para esse ou aquele indi-
víduo, arbitrariamente. Se, por outro lado, a parentalidade
estabelece-se e funda-se de forma contingencial (em cima,
é verdade, de funções biológicas que a viabilizam), tradu-
zindo o desenho do desejo de indivíduos e casais, então,
da mesma forma, não há justicativa, nesse contexto, para
que as técnicas de RHA sejam consideradas “tabus” para
os que se situam à margem da normalidade estatística.
Por último, classicar pejorativamente como “egoís-
ticas” as demandas de indivíduos que desejam ter lhos
fora do núcleo familiar tradicional é tomar o senso comum
como referência, ignorando a realidade psíquica. Para
além das noções de altruísmo e egoísmo que permeiam o
imaginário social, há que se convir que o projeto/desejo/
vontade de gerar/gestar/ter/criar um lho/prole é, antes
de tudo, um projeto que toma o ego/eu como referência.
Pode ser considerado egossintônico ou egodistônico,
coerente ou alienado desse ego, mas o toma como pres-
suposto e referência de análise; egoico, portanto.
Esse parece ser um crivo importante a partir de
onde a questão da parentalidade pode ser abordada pelo
prossional de saúde, especialmente o prossional de
saúde mental que trabalha nesse contexto.
Ora, direis, ouvir estrelas,
Certo, perdeste o senso
[…] que sentido tem o que dizem quando estão contigo?
(Bilac, 1888)
À primeira vista, conseguir realizar o planejado, o
que se busca, o que se crê desejar, deveria ser sempre
simples e facilitador de bem-estar e qualidade de vida.
Sabem os analistas que o desejo tem muitos desenhos,
sobrepostos e antagônicos, e que estes permeiam nossas
escolhas. A escuta e a interlocução cuidadosa fazem-se
necessárias em várias situações do devir humano, mas
especialmente no contexto da RHA.
Isso é primordial, tanto no que concerne a indivídu-
os como a casais, em suas diferentes congurações, que
procuram abordagens várias em RHA para a realização do
anseio de parentalidade. Nesse contexto, a oferta de uma
escuta e de uma interlocução diferenciadas é fundamental
para que haja um mínimo de sintonia entre o plano e a
ação, o desejo e a vontade. Embora essa sintonia não seja
a garantia de que o processo ocorrerá de forma tranquila,
do ponto de vista emocional pode estabelecer a base de
sustentação necessária, não só para o enfrentamento do
processo de RHA, mas também para o exercício da pa-
rentalidade e o processo de subjetivação da(s) criança(s)
que vier(em) a caminho.
Pacheco (2012) lembra que
a monoparentalidade programada merece especial estudo,
tendo em vista que é a constituição de um núcleo familiar
monoparental por um ato de vontade unilateral da mulher
e do homem modernos, ou seja, eles planejam e querem
sozinhos formar sua própria família sem a presença do
parceiro ou parceira.
O que dizem essas estrelas?
Do ponto de vista da saúde, nem sempre quem
busca RHA no contexto da monoparentalidade é um
indivíduo estéril ou infértil, de forma diferente da que
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usualmente ocorre na parentalidade compartilhada. Aliás,
geralmente a infertilidade não é um problema. É funda-
mental que essas condições sejam olhadas com cuidado
pela psicologia, no sentido de contextualizar a demanda
e proporcionar uma interlocução profícua.
A psicologia deve se debruçar para compreender
esse novo desenho do desejo, travestido em planejamento
e vontade, tendo como referência o sujeito que busca a
RHA. Isso passa pela questão do narcisismo e sua relação
com o processo reprodutivo.
Ribeiro interroga:
Anal, por que é importante gerar um lho? Por que é
tão dramático quando um casal se vê impossibilitado de
realizar esse desejo? A situação de infertilidade parece
promover e/ou reativar uma profunda ferida narcísica nos
casais, revelada por intensos sentimentos de inferioridade
e de vergonha diante dos outros. A baixa auto-estima, que
geralmente encontramos nos casais inférteis, é decorrente
de uma ferida narcísica. Freud [Introdução ao Narcisis-
mo, 1914] articula: “Tudo o que uma pessoa possui ou
realiza, todo remanescente do sentimento primitivo de
onipotência que sua experiência tenha conrmado, ajuda-a
a aumentar sua auto-estima […] devemos reconhecer que
a auto-estima depende intimamente da libido narcisista.
… ”. (2006, p. 91).
Embora direcionada inicialmente à parentalidade
compartilhada, esse questionamento faz sentido em re-
lação à monoparentalidade programada.
Por que é tão importante gerar um lho? Por que é
tão dramático lidar com as limitações e vicissitudes im-
postas, ora pela sociedade, ora pela infertilidade, ora pela
ausência de um parceiro com quem se possa partilhar o
projeto de um lho?
Aqui se fala de desejo e o quanto ele se “linka” ao
sujeito, o quanto ele o traduz, o quanto ele “é” o próprio
sujeito. É nesse contexto que se pode compreender a
existência de uma ferida narcísica importante (poder-se-ia
dizer que, em alguns contextos, é quase uma “mutilação”)
em relação ao interdito para a procriação, seja ele pro-
posto pelas limitações pessoais, biológicas (infertilidade,
esterilidade), seja ele proposto pela sociedade, sua mo-
ralidade, seus costumes.
É fundamental que se contextualize o fato (teórico
e clínico) de que o narcisismo não é, necessariamente,
associado a patologia (ou a “egoísmo”, como quer o
senso comum). Para Freud (apud Ribeiro, 2006), longe
de associar-se ao campo das perversões, o narcisismo
constitui um complemento do instinto de preservação
inerente às criaturas vivas e parte integrante do processo
de desenvolvimento psíquico e de subjetivação. Nessa
conguração, o desejo (narcísico) por um lho pode se
constituir fantasmaticamente na possibilidade de trans-
cendência da nitude e da mortalidade, vertente positiva
e erótica (de Eros) no narcisismo. Sua impossibilidade é
uma ferida de difícil cicatrização ou superação. Difícil, mas
não impossível, e é essa possibilidade que, eventualmente,
para alguns indivíduos, as técnicas de RHA ofertam.
Ribeiro, em seu estudo sobre o narcisismo na RHA
em casais inférteis, relembra que
o desejo de imortalidade do Eu, quando predominam
Eros e o narcisismo de vida, reconhece limites, sendo
possível encontrar satisfação e prazer dentro de obje-
tivos modestos, ou seja, diversos dos onipotentemente
sonhados – estamos no campo dos prazeres possíveis,
dos lhos possíveis. (2006, p. 94).
Em relação aos casais, essa acaba por ser uma pro-
posta partilhada e sustentada, inclusive vicariamente, pela
própria relação e sentimento de pertencimento. Nesse
processo, lutos são elaborados, tanto em relação àquilo
que não se pode transmitir eventualmente (nossa herança
genética) como em relação àquilo que não se consegue
ter (um lho biológico) ou ser (mãe/pai “natural”). É
de supor que, à semelhança desse processo partilhado,
muitas das vivências individuais de pessoas que procuram
a RHA em um projeto individual (leia-se “monoparental”)
vinculam-se a esse narcisismo de vida, possibilitando a
elaboração de diferentes lutos – inclusive aqueles even-
tualmente direcionados às lacunas afetivo-relacionais.
Todavia, essa não é necessariamente uma conclusão direta
e onipresente. É necessário tentar traçar o desenho desse
desejo em indivíduos que buscam a monoparentalidade
programada em um processo de interlocução diferencia-
do, em que seja possível descartar a predominância do
narcisismo negativo e da pulsão de morte.
Desta forma, de maneira semelhante àquela que
ocorre na assim denominada “avaliação” de casais candi-
datos à RHA – que, a rigor, é uma interlocução, um pro-
cesso de troca diferenciada em que não existe um poder
de interdito do prossional de saúde –, indivíduos com
projetos de monoparentalidade deveriam usufruir dessa
situação privilegiada, na qual a compreensão da demanda
fosse prioritária e a articulação desta com o desejo/von-
tade, um dos objetivos. Assim, buscar compreender se a
demanda pauta-se em uma postura psicótica de alienação
Julieta M. B. R. Quayle & lia M. N. DoRNelles38
Mudanças – Psicologia da Saúde, 23 (1) 31-40, Jan.-Jun., 2015
e negação da realidade é fundamental para o sucesso do
tratamento e para o processo de subjetivação do lho
que poderá vir em seguida. Ainda, a própria construção
do papel parental precisa estar alicerçada em elaborações
fundadas na realidade e no desejo.
A monoparentalidade post mortem
Situação especial, entretanto, acaba sendo colocada
quando essa demanda de monoparentalidade é trazida no
contexto da perda de um companheiro/a.
A monoparentalidade póstuma, ou reprodução pós-
tuma, é uma gura jurídica bastante discutida em virtude
de suas importantes repercussões no âmbito do direito
da família, com relevantes consequências em relação ao
reconhecimento de liação, herança e patrimônio dos
indivíduos e das famílias. Não existe unanimidade em
relação ao tema, sendo, entretanto reconhecida a neces-
sidade de que o/a falecido/a tenha, em algum momento,
deixado registrada sua anuência para a utilização de seu
material genético (geralmente sêmen) para ns reprodu-
tivos e com um companheiro em particular.
Ueda, Kushi, Nakatsuka, et al. (2008) relatam que
em seu estudo, conduzido com 3.719 respondentes, em
32 centros universitários, encontraram 60% de opiniões
favoráveis à reprodução póstuma; posições que, estatis-
ticamente, se correlacionavam positivamente à aprovação
do processo de RHA, a posições mais liberais e que va-
lorizavam a autodeterminação, bem como à existência de
laços familiares importantes. Visões mais tradicionais de
família tendiam a associar-se à desaprovação do processo,
particularmente em virtude de sua articialidade e das
potenciais consequências legais.
No Brasil, a jurisprudência sobre o tema esclarece
que o fundamental é que haja concordância explícita
quanto à utilização do sêmen, preferencialmente deixada
por escrito. Do ponto de vista da ética e da bioética, é
fundamental que se pesquise e se estabeleça, na medida
do possível, o quanto o procedimento vai ao encontro
ou de encontro aos desejos e determinações do indivíduo
que faleceu. Entretanto, do ponto de vista psicológico e
de saúde mental, o essencial é que se busque compreen-
der a que demanda a solicitação de uma reprodução pós-
tuma pretende responder, que lacuna pretende preencher,
que espaço poderá ser ocupado pela criança por nascer.
Essa “orfandade programada” ocupa um locus na tessitura
e na rede familiar mais ampla, mesmo se pensada sob a
ótica daquele que apresenta a demanda. Mesmo quando
existe a expressa autorização do “dono” do material ge-
nético para sua utilização, mesmo quando seu desejo de
ter um lho a qualquer custo foi claramente expresso, é
mister que se compreenda as contingências sob as quais
o processo de subjetivação dessa criança começa, sua
missão, sua história. Ela tem, talvez, já por roteiro de
vida, que substituir o morto, preencher a lacuna por ele
deixada? Corresponde a uma negação maníaca da morte?
O que leva uma mulher a querer/desejar engravidar de
seu companheiro morto?4
Visto dessa forma, isso implica traçar, também, a his-
tória da demanda trazida pelo potencial usuário de repro-
dução póstuma: ocorre num contexto em que um casal já
tentava a RHA como forma de ter acesso à parentalidade,
tendo sido o processo rompido por um acidente? Ocorre
após a luta contra uma doença? Ocorre em virtude de uma
fatalidade, existindo a possibilidade de recolher material
genético do indivíduo morto? Como essas questões são
tratadas pelo/a usuário/a? Como ele/a as sustenta?
Não existem repostas prontas nem fáceis. A postura
ética e consequente demanda reexão, cuidado, pesquisa.
Claramente, quanto mais avançamos do ponto de vista da
tecnologia, mais nos arriscamos a reproduzir o Admirável
mundo novo, o Brave new world, de Aldous Huxley (1932),
em que, em um futuro hipotético e distópico, as pessoas,
plenamente condicionadas do ponto de vista biológico e
psicológico, vivem em harmonia em uma sociedade orga-
nizada em castas, na qual a ética prossional e religiosa,
bem como os valores morais, foram deixados para trás.
Mas, também, a cada passo, cada vez mais, ampliamos
nosso potencial de realização pessoal de busca de prazer
e felicidade, que pode ser, ou não, consequente, ética e
responsável. Cada passo aproxima-nos de realizarmos
nosso potencial como humanos – pois, não nos engane-
mos, o uso da tecnologia e da cultura também é o que
nos faz humanos, desde o nascer dos tempos. Corações,
mentes e “mãos”. Como os usamos e com que objetivos.
Onde, então, traçar a linha divisória?
A lei e a moral irão, certamente, desenhar as frontei-
ras a cada desao que se propuser, a cada nova potencia-
lidade que se concretize. Para a psicologia, a questão é de
outra ordem: cumpre-lhe não se negar a fazer as questões
fundamentais que podem nortear os indivíduos em seu
processo decisório, incluindo, aqui, todos os envolvidos
no processo: prossionais e usuários dos serviços5.
4 Evidentemente, questões deste tipo precisam ser feitas nas situações menos
comuns em que se pensar na utilização de embriões de casais falecidos ou
de óvulos de uma mulher que fazia RHA. As questões devem ser ampla-
mente discutidas com os “sobreviventes”.
5 Embora não diretamente abordado aqui, é fundamental a interlocução da
equipe com o usuário, para que as decisões de um dado grupo de pro-
ssionais não seja ditado por “crenças” ou por problemas pessoais não
resolvidos, mas pela busca do melhor atendimento a um indivíduo, dentro
de suas necessidades e possibilidades.
Mudanças – Psicologia da Saúde, 23 (1) 31-40, Jan.-Jun., 2015
Monoparentalidade prograMada e reprodução assistida 39
Angelo, Moretto e Lucia (2009) pontuam que nem
sempre ser mãe tem o mesmo significado para dife-
rentes indivíduos ou diferentes campos de saber. Jessie
Bernard usou a expressão “Mother is a role, women are
human beings”6 para lembrar-nos da contingencialidade
da própria maternidade. Para a psicanálise e para a área
biomédica, essa signicação difere sobremaneira. Aqui
é fundamental lembrar que “buscar uma gestação” não
representa, necessariamente, querer /desejar um lho:
A experiência clínica com mulheres ditas inférteis […]
indica que a demanda pela gestação pode não correspon-
der, necessariamente, à demanda de ser mãe. […] ser mãe
é ocupar um lugar psíquico, ainda que a gestação possa
ser crucial para a construção da função materna; que a
impossibilidade de ser mãe pode estar relacionada com
a diculdade de ter lhos; e que a atenção a elementos
inconscientes diminui o risco do nascimento dos lhos
da Ciência. (Angelo, et al., 2009)
Planejar e buscar nem sempre traduzem o desejo.
Quiçá, a vontade. Mais do que isso, pensando a mono-
parentalidade programada, é fundamental pontuar que,
para a psicanálise, “o que forma a família é a presença
do desejo, dos investimentos parentais […], condições
fundamentais para a “inscrição da criança na filiação
simbólica, na linhagem parental” (Monteiro, 2011, p 98).
Essa inscrição é permeada de sentido e marca o processo
de subjetivação.
Poder-se-ia acrescentar, aqui, que a atenção a aspec-
tos não conscientes – ao desenho do desejo – diminui,
sim, o risco do nascimento de filhos que não tenham
outra liação que a ciência.
Mas, talvez, desejar isso seja desejar demais
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Submetido em: 7-3-2014
Aceito em: 14-8-2015
Julieta M. B. R. Quayle & lia M. N. DoRNelles40
Mudanças – Psicologia da Saúde, 23 (1) 31-40, Jan.-Jun., 2015
Apêndice
Ouvir Estrelas
Olavo Bilac
Ora (direis) ouvir estrelas!
Certo, perdeste o senso!
E eu vos direi, no entanto
Que, para ouvi-las,
muitas vezes desperto
E abro as janelas, pálido de espanto.
E conversamos toda a noite,
enquanto a Via láctea, como um pálio aberto,
Cintila.
E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.
Direis agora: “Tresloucado amigo!
Que conversas com elas?
Que sentido tem o que dizem,
quando estão contigo?”
E eu vos direi:
“Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas”.