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372 TERRAS I NDÍGENAS E UNIDADES DE CONSERVAÇÃO DA NATUREZA
Crônica de uma expropriação “ecológica”
(1988-1990)
A reivindicação do reconhecimento oficial dos direitos
territoriais Yanomami – cuja população é avaliada hoje no
Brasil em 13.600 pessoas(1) – foi objeto de uma persisten-
te campanha conduzida pela Comissão Pró-Yanomami
(CCPY) desde 1978.(2) Porém, em 1987, a área Yanoma-
mi foi invadida por dezenas de milhares de garimpeiros e
envolvida num catastrófico quadro de violências (agres-
sões armadas, casos de tortura e massacres), de degra-
dação ambiental (poluição e desestruturação do curso dos
rios, desmatamentos) e de calamidade sanitária (epide-
mias de malária, gripe e sarampo; doenças venéreas e
tuberculose). A ampla divulgação desses fatos dramáti-
cos na imprensa do mundo inteiro causou, no fim dos anos
1980, uma recrudescência da mobilização de entidades
não-governamentais, nacionais e internacionais, em fa-
vor da imediata desintrusão das terras Yanomami e de
sua demarcação na forma de uma área extensa e contí-
nua, também dedicada à preservação ambiental.(3)
Finalmente, em 10 de agosto de 1988 foi anunciada
em Brasília, pelo presidente da Funai, a elaboração de
uma portaria de delimitação das terras Yanomami. Esta
Portaria, de n° 160, foi por fim assinada em 13 de setem-
bro e, curiosamente, reformulada em 18 de novembro sob
forma da Portaria nº 250.(4) Na ocasião, o ministro do Inte-
rior apresentou essa medida como uma resposta à comu-
nidade nacional e internacional preocupada com a prote-
ção dos Yanomami e a preservação de seu habitat, bem
como uma realização histórica da política indigenista e
ambiental brasileira.(5)
A Terra Indígena Yanomami (TIY) na Portaria nº 160:
uma delimitação dúplice
A delimitação das terras Yanomami foi então divulgada
pela Funai numa campanha de mídia tão sensacionalista
Florestas Nacionais na Terra Indígena Yanomami – um cavalo
de Tróia ambiental?
Bruce Albert*
François-Michel Le Tourneau**
A CRIAÇÃO DE FLONAS RETALHANDO A TERRA YANOMAMI SEGUIU
O FORMATO DO PROJETO CALHA NORTE, QUE PREVIA, NO FINAL
DOS ANOS 1980, O NÃO RECONHECIMENTO FORMAL DAS TIS EM
EXTENSÃO CONTÍNUA NAS FRONTEIRAS DO PAÍS. ATENDIA AINDA
AOS INTERESSES MINERÁRIOS NA EXPLORAÇÃO DA ÁREA. APESAR
DA HOMOLOGAÇÃO DA TI EM ÁREA CONTÍNUA, AS FLONAS NÃO
FORAM FORMALMENTE REVOGADAS E CONTINUAM A REPRESENTAR
UMA AMEAÇA AOS DIREITOS DOS YANOMAMI.
quanto tendenciosa, afirmando que os Yanomami seriam
beneficiados com uma área de mais de 8 milhões de hec-
tares, “correspondendo a quatro vezes a superfície do
estado de Sergipe”. Entretanto, a divulgação da configu-
ração topográfica, bem como dos fundamentos jurídico-
administrativos efetivos dessa delimitação foram deixa-
dos na penumbra. Isso, em primeiro lugar, porque a área
de 8.216.925 ha supostamente concedida aos Yanomami
representava, em realidade, uma redução de 13% do ter-
ritório reconhecido como de ocupação deste grupo indí-
gena pela Funai desde 1985,(6) ainda assim excluindo do
seu perímetro várias comunidades indígenas. Em segun-
do lugar, porque essa área, longe de ser contínua, consti-
tuía-se num quebra-cabeça formado de 21 áreas separa-
das, regidas por regulamentos diferentes e, na maioria
dos casos, contraditórios ao reconhecimento dos direitos
territoriais Yanomami.
Longe de oferecer uma legalização efetiva das terras
Yanomami, a Portaria nº 160 propunha, portanto, um com-
* Antropólogo, pesquisador do IRD (Institut de Recherche pour le
Développement), vice-presidente da CCPY e colaborador
do ISA.
** Geógrafo, pesquisador do CNRS (Centre National de la Recherche
Scientifique), pesquisador visitante no CDS-UnB.
1 O censo do Distrito Sanitário Yanomami (Funasa-RR, julho de 2003) soma
14.044 pessoas, incluindo cerca de quatrocentos índios Ye’kuana estabeleci-
dos na Terra Indígena Yanomami (três aldeias ao longo dos rios Auaris e
Uraricoera, em Roraima).
2 Alguns projetos não-governamentais de demarcação parcial da área Yano-
mami já tinham sido elaborados no fim dos anos 1960. Ver Taylor & Ramos
(1979: 113-115).
3 Ver Ricardo (1991: 159-193).
4 Os textos destas Portarias (e todos os textos que marcaram o conturbado
processo de demarcação e homologação da TIY) podem ser consultados no
site da CCPY: www.proyanomami.org.br/doc_of/doc_oficiais.htm.
5 Correio Braziliense, 26/08/1988.
6 Portaria da Funai nº 1817/E, de 08/01/1985, que delimitava o território efeti-
vamente ocupado pelos Yanomami (9.419.108 ha) na perspectiva da criação
de um “Parque Indígena Yanomami”.
TERRAS INDÍGENAS E UNIDADES DE CONSERVAÇÃO DA NATUREZA 373
plexo arranjo territorial e administrativo cuja apresenta-
ção tão espetacular quanto ambígua visava sobretudo es-
camotear perante a opinião pública medidas altamente le-
sivas aos Yanomami. Esta duplicidade da Portaria nº 160
manifesta-se, principalmente, na superposição delibera-
da de várias figuras jurídicas indigenistas e ambientalis-
tas incompatíveis, permitindo uma “dupla leitura” dos di-
reitos territoriais reconhecidos aos Yanomami. Vejamos
brevemente as articulações principais deste trompe l’oeil
administrativo:
• O primeiro parágrafo (1º) da Portaria declara “de
posse permanente dos indígenas, para efeito de delimita-
ção, a Terra Indígena Yanomami (TIY), com superfície
aproximada de 8.216.925 ha” e define o seu perímetro.
Este parágrafo contém a única medida relativamente po-
sitiva do texto, reconhecendo legalmente a ocupação pelo
grupo da área que corresponde, aproximadamente, a seu
espaço territorial histórico.
• Entretanto, os parágrafos 2º e 3º da mesma Portaria
criam uma diferenciação administrativa e um retalhamento
territorial dentro da TIY, em contradição com o parágrafo
anterior que a declara, na sua totalidade, como posse in-
dígena permanente. A TIY encontra-se, assim, subdividi-
da num mosaico territorial composto de dois tipos de
áreas com funções antagônicas:
1) áreas regidas pelo Código Florestal de 1965 (ar-
tigo 5): duas Florestas Nacionais (Flonas de Rorai-
ma e do Amazonas) e um Parque Nacional (Parque
Nacional do Pico da Neblina, criado em 1979), num
total de 5.781.710 ha, ou seja, aproximadamente, 70%
da TIY;
2) áreas indígenas:(7) 19 áreas descontínuas incrusta-
das e dispersas nas Flonas e no Parque Nacional, sen-
do dez na Flona de Roraima, cinco na Flona do Ama-
zonas e quatro no Parque Nacional do Pico da Nebli-
na, num total de 2.435.215 ha, ou seja, de, aproxima-
damente, 30% da TIY.
Deve-se observar que a regulamentação e a destina-
ção das Unidades de Conservação em apreço, adminis-
tradas pelo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Flo-
restal (IBDF, órgão que antecedeu o Ibama, criado em
fevereiro 1989), eram, em vários aspectos, contraditórias
com o direito de usufruto exclusivo que caracteriza a pos-
se permanente das terras tradicionalmente ocupadas por
populações indígenas (art. 231, § 2º da Constituição). As
Flonas têm fins de uso econômico, como a comercializa-
ção de madeira, inconciliável com as formas indígenas
de ocupação e de uso do meio natural. Os Parques Naci-
onais são áreas de preservação integral e podem, assim,
impor restrições à exploração de certos recursos florísticos
ou faunísticos essenciais às atividades produtivas indíge-
nas. Além disso, no perímetro de ambas as unidades está
previsto o desenvolvimento de atividades turísticas ou
sociais, proibidas em área indígena.
A sobreposição legal e administrativa criada pela Por-
taria nº 160 revela-se, portanto, não apenas como uma
incoerência, mas como um dispositivo de expropriação
das terras Yanomami. A “dupla leitura” dos direitos territo-
riais indígenas que ela permite (totalidade da TIY ou 19
“áreas indígenas”) corresponde, de fato, a um plano insi-
dioso de desmembramento e redução progressiva do Ter-
ritório Indígena destinado a viabilizar a exploração dos
seus recursos naturais pela fronteira econômica regional.
Trata-se, assim, por meio da imposição de um processo
de sedentarização forçada e de dependência econômica,
de confinar gradativamente os Yanomami num arquipéla-
go de “áreas (“ilhas”) indígenas” diminutas e de, assim,
eliminar a possibilidade dessa população continuar a usar
as extensivas áreas tradicionalmente imprescindíveis à
sua mobilidade espacial e a suas atividades produtivas.
Nesse processo, as áreas do Território Indígena a serem
expropriadas passaram a ter o estatuto transitório de Área
de Proteção Ambiental, valorizando a imagem internacio-
nal do governo autor da medida, até poderem ser futura-
mente liberadas para diversas atividades econômicas (ex-
ploração de madeira, mineração, projetos de colonização).
O “arquipélago Yanomami” na Portaria nº 250:
uma expropriação explícita
Entretanto, a arquitetura do dispositivo de expropria-
ção embutido na Portaria nº 160 parece ter-se revelado
insuficiente para seus autores, que o reformularam dois
meses depois, promulgando uma nova versão da delimi-
tação das terras Yanomami na Portaria nº 250. Como no-
tamos, a Portaria nº 160, no seu primeiro parágrafo, reco-
nhecia a posse permanente dos Yanomami sobre 8.216.925
ha, ainda que fosse na perspectiva de sua redução em lon-
go prazo. A redação deste parágrafo deve ter sido consi-
derada como um fator de risco político, abrindo espaço a
recursos jurídicos, apoiados nas disposições da nova Cons-
tituição, contra a divisão interna da TIY e, em conseqüên-
cia, contra sua abertura oficial a atividades de mineração.
Em janeiro de 1989, o território Yanomami, estava in-
vadido por cerca de 40 mil garimpeiros disseminados no
curso superior dos principais tributários do rio Branco (rios
Catrimani, Ajarani, Apiaú, Mucajaí, Uraricaá, Uraricoera e
Parima, em Roraima) e no rio Cauaboris (Amazonas). Eram
consideráveis as pressões político-econômicas locais para
se obter do governo federal a “legalização” dessas inva-
sões nas áreas destinadas ao uso de cooperativas garim-
7 Tais como definidas, na época, pelo Decreto nº 94.946 de 23/09/1987.
374 TERRAS I NDÍGENAS E UNIDADES DE CONSERVAÇÃO DA NATUREZA
peiras dentro das faixas de Flonas recortadas nas terras
Yanomami.(8) Assim, a criação de uma TIY – mesmo inter-
namente esvaziada da maior parte de sua superfície – foi
considerada demasiadamente favorável para os índios
pela Associação dos Garimpeiros de Roraima.(9) A pres-
são do lobby garimpeiro foi, certamente, um fator impor-
tante na reformulação da Portaria nº 160, no sentido de
acelerar o processo de expropriação planejado no quadro
do Projeto Calha Norte(10) concebido, inicialmente, no in-
tuito de abrir de forma gradativa as terras Yanomami às
empresas de mineração industriais. Nessa época, além
de ocorrer uma maciça invasão garimpeira, 37% do terri-
tório Yanomami estava sob a ameaça de 27 alvarás e 363
requerimentos de autorização de pesquisa mineral regis-
tradas junto ao Departamento Nacional de Produção Mi-
neral (DNPM).(11)
Nesse contexto, é bastante significativo que a refe-
rência à posse permanente dos Yanomami sobre um ter-
ritório de 8.216.925 ha, que tanto serviu de vitrine à cam-
panha de divulgação do governo em agosto de 1988, te-
nha desaparecido na nova versão do texto. Os direitos
territoriais Yanomami foram então direta e explicitamente
restringidos, no parágrafo 1º da Portaria nº 250, às 19 “áre-
as indígenas” reduzidas e dispersas da Portaria anterior,
agora definidas como “terras tradicionalmente ocupadas
pelos indígenas Yanomami”.(12) Cercando apenas conjun-
tos de malocas plotadas durante um único levantamen-
to,(13) a delimitação das 19 “áreas indígenas” da Portaria
nº 250 deixava deliberadamente considerar as áreas efe-
tivamente ocupadas e usadas pelos Yanomami conforme
os imperativos de mobilidade de sua organização socio-
política e de seu sistema produtivo.(14) O conceito de “ter-
ras tradicionalmente ocupadas” foi, portanto, usado nesta
Portaria num sentido deturpado, a fim de burlar as dispo-
sições constitucionais relativas às TIs (art. 231, § 1°).
As áreas subtraídas do território Yanomami permane-
cem, na Portaria nº 250, registradas a título de Flonas,
nos mesmos moldes da Portaria nº 160 (com um pequeno
acréscimo da superfície da Flona do Amazonas: 1.573.100
ha). Entretanto, a garantia constitucional de uso exclusi-
vo dos recursos naturais ligada ao reconhecimento da
posse indígena sobre estas áreas, já enfraquecida na Por-
taria 160, é totalmente cancelada na Portaria nº 250 (pa-
rágrafo 4º). Tal garantia é, de fato, substituída por um mero
reconhecimento do “uso preferencial” concedido aos Ya-
nomami sobre os recursos naturais das Flonas, noção que
carece de qualquer fundamento jurídico. Além disso, defi-
ne-se que o desenvolvimento de atividades econômicas
nessas Flonas seria unicamente submetido à autorização
da Funai e do IBDF. Convém notar aqui que o IBDF ela-
borava, na época (setembro de 1988) , uma “Proposta de
regulamento das Flonas” que, além do objetivo econômi-
co tradicional deste tipo de Unidade de Conservação – a
exploração racional de produtos e subprodutos florestais
– incluía a exploração mineral.(15) Em abril de 1989, as
justificativas de um Decreto regulamentando as ativida-
des garimpeiras estipulava que “as atividades de minera-
ção não são incompatíveis com o conceito de Flona”.(16)
Em julho, uma lei dava ao Ibama, recém-sucessor do IBDF,
o poder de conceder autorizações de prospecção mineral
nas Unidades de Conservação sob sua jurisdição.(17) As-
sim, através desta série de medidas jurídicas e adminis-
trativas intrincadas, os 50% das terras Yanomami meta-
morfoseados em Flonas pela Portaria nº 250 poderiam
ser abertos ex officio às atividades de mineração a fim de
contornar outra disposição fundamental da nova Consti-
tuição: o imperativo de submeter a decisão de exploração
dos recursos minerais em Terras Indígenas ao Congresso
Nacional e aos povos indígenas envolvidos.(18)
Em resumo: a Portaria nº 250 anulou a criação da TI
Yanomami, mantendo apenas a configuração de sua divi-
são interna. O dispositivo de esbulho das terras Yanoma-
mi embutido nas suas disposições visava ser, assim, mui-
to mais direto que o previsto na Portaria anterior. O regis-
tro de grande parte do espaço territorial indígena expro-
priado sob a forma de pseudo-Unidades de Conservação
não era mais uma etapa intermediária no processo de ex-
propriação: ele já continha, em si, através da regulamen-
tação das Flonas, as condições desta expropriação.
Em fevereiro e março de 1989, o desmembramento
do território Yanomami promovido pela Portaria nº 250 foi
ratificado através de 21 Decretos presidenciais (19 “ilhas”
Yanomami incrustadas nas Flonas do Amazonas e de
Roraima).(19) Em janeiro e fevereiro de 1990, três reser-
8 Correio Braziliense e Folha de S. Paulo, 20/08/1988.
9 Folha de Boa Vista, 21/08/1988.
10 Ver Albert (1990: 116-127; 1992: 35-70).
11 Dados Cedi (Centro Ecumênico de Documentação e Informação) e Conage
(Coodernação Nacional dos Geólogos), 1988.
12 O conceito de “terras tradicionalmente ocupadas” tem sua origem no artigo
231, parágrafo 1º da Constituição de 1988. O texto constitucional especifica
que a noção de ocupação se refere não somente às terras habitadas pelos
índios, mas também às utilizadas para suas atividades produtivas, às im-
prescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-
estar e às necessárias à sua reprodução física e cultural segundo seus usos,
costumes e tradições.
13 Na realidade, nem mesmo inclui todas as áreas habitadas: pelo menos 23
malocas foram deixadas fora das “áreas indígenas”.
14 Ver Albert & Gomez (1997, Introdução).
15 Memorando nº 107 ao diretor do IBDF (06/09/1988, art. 1, § 3º).
16 Decreto nº 97.627 de 10/04/1989.
17 Lei nº 7.805 de 18/07/1989, art. 17.
18 Art. 49-XVI, 176 parágrafo 1º e 231 parágrafos 3º e 7º.
19 Decretos nº 97.512 a 97.530, de 17/02/1989 (criação de 19 “áreas indíge-
nas”), nº 97.545 e 97.546, de 01/03/1989 (criação de duas Flonas).
TERRAS INDÍGENAS E UNIDADES DE CONSERVAÇÃO DA NATUREZA 375
vas garimpeiras foram criadas na Flona de Roraima (Santa
Rosa-Uraricoera e Catrimani-Couto de Magalhães).(20)
A Flona de Roraima: hibernação e
ressurreição (1990-2003)
A era Collor: da pirotecnia à homologação da TIY
O governo Collor, empossado em março de 1990, re-
verteria progressivamente este quadro, num contexto de
crescente pressão da mídia mundial e dos bancos multi-
laterais credores do Brasil, indignados com a complacên-
cia do governo Sarney perante a dizimação dos Yanoma-
mi em decorrência da invasão e devastação de suas ter-
ras pelos garimpeiros.
O novo presidente visitou a área Yanomami no dia 24
de março de 1990 e anunciou, num grande evento de mídia,
a realização de um zoneamento econômico-ambiental da
Amazônia, a reformulação do Projeto Calha Norte e a or-
dem de dinamitar as pistas de pouso clandestinas dentro
da área Yanomami.(21) Nomeou ainda, como secretário na-
cional do Meio Ambiente, J. Lutzemberger, um militante
ambientalista internacionalmente reconhecido.
Apesar desses anúncios políticos de efeito, a situa-
ção sanitária dos Yanomami continuou a se agravar ao
longo do ano de 1990. As poucas pistas de garimpo dina-
mitadas em maio já tinham sido reabertas um mês de-
pois, enquanto isso se multiplicava a invasão da área in-
dígena em Roraima através de inúmeras trilhas ao longo
dos rios. Em julho, após uma visita à região, os procura-
dores J. R. Santoro e E. J. Aragão concluíram: “Os Yano-
mami estão em fase terminal”.(22) No mesmo mês, J.
Lutzemberger encaminhou ao presidente Collor uma ex-
posição de motivos (n° 45/90) solicitando a revogação dos
decretos de criação das Flonas e reservas garimpeiras
nas terras Yanomami e sua demarcação em área contí-
nua.(23) Nesse período, o Brasil estava sendo novamente
acusado pela ONU de graves violações dos direitos hu-
manos com respeito ao caso Yanomami (a primeira vez
tinha sido em 1988), o que motivou o então chanceler F.
Rezek a declarar na imprensa que o crescimento de tais
acusações tornava difícil “continuar a evitar que tenham
seguimento processual”.(24) Apesar da Polícia Federal e
Funai terem realizado, nos meses subseqüentes, algu-
mas operações de desintrusão de zonas de garimpo, a
situação continuava extremamente preocupante, motivan-
do o sub-procurador C. V. Muzzi a declarar, em outubro,
que havia nas terras Yanomami “índice de genocídio”.(25)
No mesmo mês, o presidente da Funai, C. Guerreiro, en-
caminhava ao ministro da Justiça, J. Passarinho, o proje-
to de criação de um “Parque Indígena Yanomami”, revo-
gando o desmembramento da Terra Indígena em 19 “ilhas”
e a criação de reserva garimpeira no seu perímetro. Pou-
co depois, J. Lutzemberger entregava à Presidência da
República minuta de Medida Provisória destinada a extin-
guir as Flonas das terras Yanomami.(26)
Entretanto, essas iniciativas ficariam sem efeito, em
razão da ambigüidade do governo Collor no gerenciamento
da questão Yanomami, que ficava entre a inércia em maté-
ria de redefinição territorial e algumas medidas concre-
tas, tão insuficientes quanto altamente divulgadas (ope-
rações de retiradas de garimpeiros e dinamitagem de pis-
tas clandestinas em maio e outubro de 1990 e abril de
1991). A continuidade da contaminação e das violências
exercidas pelos garimpeiros contra os Yanomami, bem
como a cumplicidade ativa das autoridades locais com a
situação de ilegalidade generalizada em Roraima leva-
ram finalmente o procurador geral da República, A. Jun-
queira, a pedir intervenção federal no estado em março
de 1991.(27)
No dia 8 de abril, o presidente Collor determina enfim
a criação de um Grupo de Trabalho a fim de reexaminar
os estudos já realizados sobre a TIY e definir uma nova
proposta de área indígena. Em 19 de abril, Dia do Índio,
assinava um Decreto (sem número) que declarava insub-
sistentes os 19 Decretos do governo Sarney homologan-
do o desmembramento das terras Yanomami, e determi-
nava uma revisão do seu processo demarcatório, o mes-
mo ato revogando as três Reservas Garimpeiras incrus-
tadas na área. No mesmo dia uma Portaria do Ministério
da Justiça (n° 173) interditava a área Yanomami por 180
dias. Em 2 de maio, duas Portarias de mesma fonte (n°s
223 e 224) determinavam o estudo de um novo modelo
de delimitação da Terra Indígena no mesmo prazo.(28)
Prosseguiu durante os seis meses do reestudo o já
rotineiro cenário de pressões internacionais, operações
de desintrusão e reinvasões garimpeiras, propagação da
malária e assassinatos de Yanomami. Entretanto, foi pu-
blicado em 25 de julho o despacho do novo presidente da
Funai (nomeado em junho), S. Possuelo, e o parecer da
antropóloga do mesmo órgão, I. Rogedo, encaminhando
o projeto de delimitação contínua da TIY para análise e
aprovação do ministro da Justiça.(29) Finalmente, apesar
da forte oposição dos parlamentares de Roraima, do lobby
20 Decretos nºs 98.890 (de 25/01/1990); 98.959 e 98.960 (de 15/02/1990).
21 O Globo, 25/03/1990; Jornal do Brasil, 26/03/1990.
22 Folha de S. Paulo, 07/07/1990.
23 Folha de S. Paulo, 10/07/1990.
24 Folha de S. Paulo, 05/08/1990.
25 Folha de S. Paulo, 03/10/1990.
26 Ricardo (1991: 193).
27 Correio Braziliense, 21/03/1991. Ver também: Ricardo (1996: 217-243).
28 Ricardo (1996: 219-220).
29 Diário Oficial da União, 25/07/1991.
376 TERRAS I NDÍGENAS E UNIDADES DE CONSERVAÇÃO DA NATUREZA
garimpeiro e minerário e, mais ainda, de certos setores
do Exército, o ministro assinou em 15 de novembro de
1991 uma nova Portaria (n° 580) declarando como posse
permanente dos Yanomami um território contínuo de
9.419.108 ha, nos estados de Roraima e Amazonas. A TIY
foi finalmente homologada pelo presidente Collor em 25 de
maio de 1992 (Decreto sem número) na perspectiva da
iminente Conferência ECO-92 da ONU, no Rio de Janei-
ro, com uma superfície de 9.664.975,48 ha e perímetro
de 3.370 Km.
Porém, no meio da alegria de uns e dos protestos de
outros, uma notinha discordante e profética do programa
Povo Indígenas no Brasil do ISA (então Cedi) lembrava
sob o título “As Florestas Nacionais permanecem”, um
detalhe esquecido: “O conjunto de medidas oficiais não
anulou os decretos do ex-presidente Sarney que criaram
as Flonas de Roraima e do Amazonas nas terras Yano-
mami”.(30) Em meio da frenética guerra de pareceres, des-
pachos, portarias e decretos cercando a questão Yano-
mami desde o final dos anos 1980, a Medida Provisória
de 22 de outubro de 1990 apresentada por J. Lutzemberger
para extinguir as Flonas de Roraima e do Amazonas nun-
ca fora assinada pelo então presidente. O fato poderia
parecer irrisório, veremos, entretanto, que ele poderia, no
futuro, constituir uma séria ameaça à integridade da TIY.
2002 – a volta da Flona de Roraima
No contexto da nova Lei do Sistema Nacional de Uni-
dades de Conservação da Natureza (SNUC) e pouco an-
tes da promulgação de seu decreto de regulamentação,(31)
o Ibama parece ter decidido, em 2002, “ressuscitar” a Flona
de Roraiam, após mais de uma década de hibernação
burocrática. Para este fim, incluiu, em abril de 2002, va-
gas de analistas ambientais para essa Unidade em con-
curso público.(32) Os resultados foram promulgados em 1°
de julho, e os primeiros analistas recrutados para ativa-
ção desta Unidade foram empossados no fim daquele ano
(meados de novembro).
Esta iniciativa do Ibama suscitou uma imediata rea-
ção de surpresa e intensa preocupação entre as lideran-
ças Yanomami para as quais a criação da Flona de RR,
que consideravam definitivamente extinta com a homolo-
gação da TIY, lembrava o período trágico da invasão
garimpeira (o qual custou a vida de cerca de 15% do seu
povo), bem como da cumplicidade do governo Sarney e
do Projeto Calha Norte na tentativa de desmembrar seu
território tradicional.
Numa assembléia geral que reuniu 217 líderes na al-
deia de Waromapi, em 18 de fevereiro de 2003, os Yano-
mami aprovaram um documento que foi enviado (en-
tre outros destinatários) à ministra do Meio Ambiente re-
pudiando com veemência a reativação intempestiva da
Flona de RR.(33) Em 12 de março, Davi Kopenawa e dois
líderes da região de Ajarani entregaram pelo mesmo mo-
tivo uma carta ao gabinete do presidente do Ibama.(34) Os
representantes da CCPY, que acompanharam as lideran-
ças Yanomami na ocasião, entregaram também um estu-
do sobre o caso, lembrando o contexto histórico anti-indí-
gena subjacente à criação da Flona de RR, a firme oposi-
ção dos Yanomami à medida, tanto no passado quanto no
presente, e, finalmente, apresentaram uma proposta de
colaboração com o Ibama a fim de solucionar o impasse.
A proposta da CCPY consistia em pedir a revogação da
parcela da Flona de RR incidente na TIY e estudar o re-
manejamento e ampliação da área que esta Flona ocupa
fora dos limites da Terra Indígena a fim de criar uma zona
tampão ao longo do limite leste da área Yanomami:
“Neste caso, tratar-se-ia de propor a criação de
uma nova Unidade de Conservação (a definir em
estatuto e área) que abrange a antiga superfície
da Flona de RR situada fora da TIY (...) e prolongá-
la de modo a englobar, ao sul, uma vasta área in-
tocada limítrofe a TIY (...). A nova unidade assim
criada, ao contrário da Flona fantasma de RR, te-
ria a dupla vantagem de constituir uma efetiva zona
tampão, amenizando a degradação ambiental (des-
matamento e incêndios) no oeste de Roraima, e
de proteger os limites da TIY. A nova unidade com-
pensaria a anulação das Flonas do Calha Norte
(RR e AM) e teria grande apoio das lideranças
Yanomami e da opinião pública sensível a sua
causa.”
Desde então, a reivindicação dos Yanomami e a ini-
ciativa da CCPY nunca obtiveram resposta do Ibama, ape-
sar dos reiterados esforços de Davi Kopenawa e da CCPY
em estabelecer um diálogo direto com este órgão sobre o
tema. Ao contrário, em 22 de setembro de 2003, o Ibama
de Roraima resolveu convocar uma reunião para a cria-
ção do Conselho Deliberativo (CD) da Flona de RR. Além
de funcionários do Ibama de Roraima e da prefeitura lo-
cal (Alto Alegre), a reunião contava com uma forte repre-
sentação do setor madeireiro local, principal interessado
na ativação da Flona RR e na criação imediata do CD.
Nesse encontro a posição do gerente executivo do
Ibama-RR foi, a todo o momento, ambígua: manifestan-
do, por um lado, respeito aparente à integridade da TIY
mas mostrando-se, por outro, apressado para a ativação
da Flona (valendo-se de setores de sua administração
30 Ricardo (1996: 220).
31 Lei n° 9.985 de 18/07/2000. Decreto n° 4.340 de 22/08/2002.
32 Edital n°1/2002 – Ibama, 03/04/2002.
33 Ver Boletim da CCPY n° 34 de fevereiro de 2003.
34 Ver Boletim da CCPY n° 35 de março de 2003.
TERRAS INDÍGENAS E UNIDADES DE CONSERVAÇÃO DA NATUREZA 377
reticentes a sua anulação), com o argumento de querer,
através desse meio, resguardar os 5% da área situados
fora da Terra Indígena, ameaçados pelo avanço da colo-
nização agrícola.(35)
Entretanto, na terceira reunião do gênero, o processo
de ativação da Flona de RR – manifestadamente acelera-
do por interesses locais, tanto por parte da representação
do órgão (verbas federais) quanto do setor madeireiro e
da prefeitura de Alto Alegre – foi abruptamente cancelado
através de um ofício da direção do Ibama (Brasília), seguin-
do uma solicitação do Ministério Público Federal (MPF):
“Em decorrência da existência de sobreposição Ter-
ra Indígena e Unidade de Conservação (...) está
sendo conduzido, pela Procuradoria Geral do
Ibama, análises sobre o assunto com o intuito de
orientar os procedimentos a serem adotados por
este Instituto (...) Em face dessa discussão e a não
finalização dessas análises, solicitamos que sejam
paralisados todos os processos referentes á cria-
ção do Conselho Consultivo da referente Flona, até
que haja por parte desse órgão, um posicionamento
oficial sobre a questão”.(36)
Em meados de 2003, em reunião com a Procuradoria
do Ibama e várias direções do órgão, o MPF já havia re-
querido que fossem oficialmente declarados sem efeito
os decretos de criação das Flonas de 1989 incidentes na
TIY (Flona de RR e do AM) e que estas Unidades sejam
definitivamente extintas. Três argumentos foram, na oca-
sião, levantados pelo MPF (na pessoa do sub-procurador
A. Veiga Rios) em favor dessa medida de anulação: 1) a
criação destas unidades pelo então Conselho de Segu-
rança Nacional que teve como propósito desmembrar ter-
ras de ocupação tradicional dos Yanomami e não fins de
proteção ambiental; 2) o reconhecimento judicial de que
as áreas recortadas pelas Flonas são de posse indígenas
nos autos de duas ações declaratórias propostas em 1989
(RR) e 1990 (AM) pelo MPF (também tendo sido objeto de
ação a nulidade dos decretos assinados pelo então presi-
dente J. Sarney criando as Flonas de RR e AM); 3) a de-
marcação e homologação da TIY em 1991-1992, confe-
rindo aos Yanomami a posse permanente e o uso exclusi-
vo do território coberto pelas Flonas em apreço.(37)
Apesar da argumentação do MPF não ter sido contes-
tada pelos representantes do Ibama na ocasião, o proce-
dimento de desconstituição das Flonas de RR e AM pare-
ce ter permanecido objeto de apreciações divergentes
entre os quadros do órgão. Assim, enquanto uma corren-
te, mais afinada com o MPF, favorece, sem ambigüida-
des, a opção pela declaração de nulidade do seu ato de
criação por vício de motivação e fundamentação jurídica,
outra, mais reticente quanto à anulação das unidades, pre-
ocupada em criar um precedente, parece querer protelar
a decisão, achando imprescindível a votação de uma lei
específica para o cancelamento dessas Unidades de Con-
servação.(38)
Nesse contexto, não se pode deixar de pensar que,
tanto o persistente silêncio oposto às reivindicações dos
Yanomami e da CCPY, quanto às intempestivas medidas
do Ibama local (talvez não totalmente desprovidas de apoio
federal), configuram uma forma de resistência difusa à
medida de pura e simples anulação. Até o presente (mar-
ço de 2004), nenhuma medida foi tomada pelo Ibama: a
Flona de RR voltou ao seu estado de hibernação e espe-
ra-se ainda o parecer da Procuradoria do órgão sobre o
processo de anulação das Flonas do Calha Norte na TIY,
parecer prometido ao MPF desde meados de 2003. As-
sim, após mais de 15 anos desde sua criação no âmbito
do Projeto Calha Norte, estas supostas Unidades de Con-
servação permanecem uma ameaça à integridade da TIY,
adormecida ou reativada ao sabor dos interesses contrá-
rios aos direitos territoriais indígenas.
Flona de RR, TIY e colonização agrícola
O avanço desorganizado da colonização agrícola no
oeste de Roraima constitui hoje um grave risco ambiental
(lembremos dos grandes incêndios de 1998 e 2003), tan-
to para a TIY quanto para a parte da Flona de RR não
incidente nela, a qual já foi parcialmente invadida por as-
sentamentos de colonos. Diante dessa situação, a CCPY
apresentou ao Ibama, em março de 2003, a proposta de
criação de uma nova Área de Proteção Ambiental tam-
pão, situada ao longo do limite leste da área indígena.
A fim de contextualizar e justificar a proposta da CCPY,
apresentamos a seguir um breve histórico do movimento
de colonização no oeste de Roraima, uma avaliação da
pressão fundiária local e de suas conseqüências ambien-
tais, bem como uma descrição das atuais interações en-
tre a frente pioneira, a Flona de RR e a TIY.
Histórico da colonização agrícola na região
Ajarani-Mucajaí
O processo de colonização agrícola em Roraima foi
iniciado em 1978,(39) no âmbito do então programa Polo-
roraima (parte do Polamazônia). Pretendia-se assentar co-
35 M. W. Oliveira, Relatório CCPY, 29/09/2003.
36 A. Hummel, Ibama, Memo/DIREF/517/03.
37 Os direitos territoriais constitucionais dos índios (art. 231, § 6) sendo feri-
dos pela posse do poder público sobre estas Unidades de Conservação.
38 Posição que se respalda nas disposições do capítulo VI, art. 225 § 3º da
Constituição Federal sobre Áreas Protegidas : “(...) espaços territoriais (...) a
serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas
somente através de lei (...)”.
39 Sobre estes assuntos, ver Barbosa (1993: 177-197); Barros (1994); Le
Tourneau & Droulers (2001: 550-570); Le Tourneau (2003:11-42).
378 TERRAS I NDÍGENAS E UNIDADES DE CONSERVAÇÃO DA NATUREZA
lonos a partir de dois eixos rodoviários principais (Perime-
tral Norte e BR-174), da mesma forma que ocorreu em
Rondônia ao longo da Transamazônica. Assim, vastas áre-
as foram divididas em lotes de 100 ha e distribuídas pelo
Incra, quase exclusivamente em áreas de floresta densa
da parte oeste e sul do estado (então Território Federal).
As áreas de lavrado já eram consideradas ocupadas e
produtivas.
No caso da Perimetral Norte, essa frente de coloniza-
ção penetrou em áreas de ocupação tradicional dos Ya-
nomami (subgrupo Yawaripë), cuja presença na região foi
registrada, até mesmo por técnicos do Incra, a partir do
km 35, na proximidade do rio Ajarani.(40) No entanto, fo-
ram concedidos indevidamente lotes até o km 50 da es-
trada. Seguindo o mesmo processo, foi aberto em 1979 o
projeto de colonização Apiaú com 1.500 lotes, ocupando
uma ampla área que abrange o vale do rio Mucajaí e as
terras cortadas pelas estradas BR-174 e Perimetral Nor-
te. Este projeto fazia parte também do “Distrito agropecu-
ário de Boa Vista”, elaborado em 1977 com área de 600
mil ha; distrito que, além de atingir as terras dos Yawaripë
do Ajarani, também estava se sobrepondo, na bacia do
rio Apiaú, às terras ocupadas pelos Yanomami até a dé-
cada anterior.(41)
A vontade demonstrada pelos governos militares da
época de expandir a colonização agrícola em Roraima
prosseguiu durante os anos 1980, mas com uma intensi-
dade menor em razão das dificuldades econômicas en-
frentadas pelo país. Foi assim criado pelo Incra o projeto
de assentamento Paredão (1987), com uma área de 165
mil ha, situado ao longo do rio Mucajaí, perto de uma ca-
choeira do mesmo nome, onde se projetava a construção
de uma hidrelétrica.
Uma retomada mais acentuada da expansão da colo-
nização agrária em Roraima ocorreu durante os anos 1990,
em razão de dois fatores. O primeiro foi a criação, em
1992, do Instituto das Terras de Roraima (Iteraima), cujo
propósito era de desempenhar, em áreas federais repas-
sadas ao estado de Roraima, uma ação similar à do Incra
nas terras sob domínio federal. O Iteraima chegou assim
a criar suas próprias colônias agrícolas, bem como a ad-
ministrar as que lhe foram entregues pelo Incra (o projeto
Apiaú, por exemplo). A ação do Iteraima deve, sem dúvi-
da, ser relacionada com a mudança de estatuto político
de Roraima em 1988, passando de Território Federal a
estado da Federação. A distribuição de lotes de coloniza-
ção é, de fato, uma das mais clássicas estratégias de
criação de clientela eleitoral na Amazônia. O segundo in-
centivo da expansão da frente agrícola em Roraima nos
anos 1990 foi a retomada da política nacional de coloni-
zação e reforma agrária durante o primeiro mandato de
Fernando Henrique Cardoso (1995-1998). Nesse perío-
do, o Incra teve que cumprir altas metas de famílias as-
sentadas, passando a abrir numerosos projetos, especial-
mente na Amazônia. Em Roraima, foram, assim, criados
22 projetos, com cerca de 5.800 famílias assentadas, sen-
do seis projetos e 2.250 famílias na região em apreço.
Observa-se, no mapa 1, que os projetos abertos pelo Incra,
todos posteriores a 1990, se juntam às áreas de coloniza-
ção do Iteraima para formar um mosaico cobrindo quase
que completamente a região situada entre os rios Mucajaí
e Ajarani.
A situação atual
Uma avaliação precisa da situação atual dessa dinâ-
mica de colonização é difícil em função da escassez de
dados disponibilizados pelo Iteraima. Apenas algumas
fontes esparsas permitem ter uma idéia do número de
projetos administrados pelo órgão, mas permanecem mal
definidas tanto as datas de criação quanto a localização
de cada um. Apesar dessas limitações, tentamos a seguir
propor uma síntese das informações disponíveis.
A região em apreço abrange cinco municípios: Amajari,
Alto Alegre, Mucajaí, Iracema e Caracaraí. Como eviden-
cia o mapa 1, a pressão da colonização agrícola ao norte
do Uraricoera (Amajari) concentra-se, quase exclusiva-
mente, num projeto único e pouco ativo.(42) Os projetos
situados no município de Alto Alegre, entre os rios Mucajaí
e Uraricoera, são igualmente pouco dinâmicos. Assim,
pode-se considerar que o coração da colonização agríco-
la da região encontra-se entre os rios Mucajaí e Ajarani,
nos municípios de Mucajaí e Iracema, exatamente na área
da Flona de RR situada fora dos limites da TIY.(43)
O número de parcelas colonizadas perfaz um total de
aproximadamente 9.200 lotes, sendo quase 7 mil entre
os rios Mucajaí e Ajarani. Não dispondo de dados confiá-
veis sobre a superfície dos lotes distribuídos pelo Iteraima,
é difícil avaliar exatamente a área total abrangida por es-
tes assentamentos. Sabendo, entretanto, que vários des-
40 Ver o laudo antropológico de N. Farage (Unicamp) para a Justiça Federal
sobre a região do Ajarani (Processo 920001614-A, Walter Miranda Jr e ou-
tros, 2000).
41 Pescadores e caçadores locais, bem como missionários da Consolata fize-
ram os primeiros contatos com os Yanomami do Apiaú no começo dos anos
1950. No Ajarani estes contatos datam do começo dos anos 1960 (ver: “Os
primeiros contatos nas áreas Apiaú, Ajarani, Catrimani e Surucucus”, relató-
rio inédito do padre S. Sabatini, acompanhando fotos destes contatos
publicadas em Albert & Kopenawa [2003: 170-171]. Nos anos 1960 epidemi-
as e conflitos já tinham dizimado uma grande parte da população destas
regiões.
42 O projeto Trairão, hoje denominado Tepequém, com 370 lotes e setenta
agricultores residentes em 1997 (fonte Seplan de RR).
43 O município de Iracema tem por origem os mais antigos projetos de coloni-
zação e foi desmembrado do município de Caracaraí em 1994.
TERRAS INDÍGENAS E UNIDADES DE CONSERVAÇÃO DA NATUREZA 379
ses projetos têm por origem antigas áreas do Incra, aber-
tas numa época em que as parcelas atribuídas aos colo-
nos eram de 100 ha por família, e que, provavelmente, a
superfície deste lote padrão tenha diminuído pela metade
desde então, é possível propor uma estimativa de cerca
de 450 mil ha para a zona agrícola administrada pelo
Iteraima no oeste de Roraima. Essa estimativa se confirma
pelas medidas oriundas da análise de imagens de satélite
recentes da região. Assim, somando com os 332.500 ha
administrados pelo Incra, chegamos hoje a um total de
aproximadamente 800 mil ha ocupados pela colonização
agrícola na margem direita do rio Branco, dos quais pelo
menos 500 mil ha entre os rios Mucajaí e Ajarani.
A maioria dos projetos de colonização da região, se-
jam do Incra ou do Iteraima, enfrenta as mesmas dificul-
dades. Apesar de terem causado um vasto processo de
quadro 1 - Projetos de colonização sob
responsabilidade do Iteraima em 1997
44 São contadas aqui unicamente as áreas do município de Caracaraí locali-
zadas na margem direita do rio Branco. Estatísticas sobre o projeto não fo-
ram encontradas.
Fontes: Diagnóstico de Roraima, Seplan - Secretaria do Planejamento de RR apud
Iteraima, 1997.
Amajari 3 610 200
Alto Alegre 3 467 375
Mucajaí 6 2 857 1 410
Iracema 4 1 238 580
Caracaraí(44) 1??
Total 17 5 172 2 565
Município Nº de Nº de Agricultores
projetos lotes residentes
mapa 1
380 TERRAS I NDÍGENAS E UNIDADES DE CONSERVAÇÃO DA NATUREZA
Alto Alegre 1 165.000 1.375 650
Mucajaí 2 76.200 1.270 1.177
Iracema 4 91.259 1.367 1.036
Total 7 332.459 4.012 2.863
quadro 2 - Projetos de colonização sob
responsabilidade do Incra em 2002
desmatamento, não sustentaram um notável crescimen-
to da produção agrícola, nem deram origem a uma classe
dinâmica de pequenos produtores. Em geral, os projetos
evidenciam dois tipos de situações. De um lado, encon-
tram-se pequenos agricultores mantendo uma agricultura
de sobrevivência, seja morando ainda dentro dos seus
lotes ou seja morando na cidade e usando-os como me-
ros sítios. Do outro lado, acham-se fazendas constituídas
por pessoas mais capitalizadas – por exemplo graças aos
lucros do garimpo – a partir da compra de vários lotes.
Essas fazendas, bem como outras, criadas nos interstícios
dos assentamentos – às vezes por grilagem – são fre-
qüentemente responsáveis pelo uso indiscriminado de quei-
madas na limpeza de pastagens e por uma grande parte
do desmatamento da região.
De qualquer maneira, a discrepância entre o número
de lotes dos projetos e o número de agricultores residen-
tes evidente no quadro 1 dá uma boa idéia do fracasso da
implementação de uma agricultura de pequenos produto-
res pelo Iteraima. De acordo com as pesquisas realizadas
in loco, a situação das áreas do Incra é muito semelhante
e, por isso, o órgão tem tido, entre 2000 e 2003, mais uma
política voltada à ocupação dos lotes abandonados do que
à abertura de novos projetos.
O desmatamento na região Ajarani-Mucajaí
A região Ajarani-Mucajaí caracteriza-se pela presen-
ça de uma floresta de transição entre o “lavrado” – cerra-
dos característicos da região que se estende de Boa Vista
até a fronteira com a Venezuela – e a floresta tropical
densa encontrada mais ao oeste. Constitui uma faixa sul-
norte, descontínua, de aproximadamente 1,6 milhões de
ha (16.000 km2), com uma largura variando entre 110 Km
na altura de Mucajaí e 25 km na altura de Alto Alegre.(45)
A floresta de transição tem características que a dife-
renciam das demais áreas de floresta do estado, sendo
composta de mata mais baixa, com uma presença impor-
tante de palmeiras. Tendo uma sensibilidade importante à
seca, essa vegetação de transição apresenta uma vulne-
rabilidade maior aos incêndios. Foi principalmente nessa
região que os incêndios de 1998 e 2003 no estado de
Roraima causaram a devastação de áreas florestais con-
Fonte: Incra, 2002
Município Nº de Área Capacidade Famílias
projetos (ha) prevista assentadas
sideráveis, em grande parte por causa do desmatamento
e do uso do fogo nos projetos de colonização. É também
nessa área que se concentra a maior pressão da coloni-
zação agrícola.
Usando um levantamento do Inpe,(46) pudemos calcu-
lar em 198.500 ha a área desmatada nesta faixa de flo-
resta de transição nos municípios de Alto Alegre, Mucajaí
e Iracema e em 19.500 ha na área de floresta densa vizi-
nha, a maior parte desta última sendo situada nos arredo-
res da serra do Mucajaí, ilha de floresta densa incrustada
na região de floresta de transição.(47) De modo geral, o
desmatamento encontra-se concentrado numa faixa de
aproximadamente 75 km de largura a partir de uma linha
juntando as cidades de Caracaraí, Mucajaí e Alto Alegre.
Tais números poderiam deixar pensar que o nível de
desmatamento da área de colonização agrícola citado aci-
ma é bastante baixo, sendo uma taxa de desmatamento
próxima de 30% da área. Entretanto, vários fatos contra-
dizem, infelizmente, essa análise otimista. Em primeiro
lugar, deve-se notar que os projetos de colonização da
região são recentes: grande parte deles foi criada durante
os anos 1990. Os lotes que os compõem estão em pro-
cesso de desmatamento, o que explica em parte a gravi-
dade atual do problema dos incêndios. Os dados do Inpe
já citados indicam que de 2000 até 2001, mais de 15 mil
ha foram desmatados, o que representa um ritmo de des-
florestamento bastante rápido.
Além disso, a área afetada representa só uma peque-
na parte dos danos ambientais acarretados pela coloniza-
ção agrícola. Assim, a nossa estimativa só contabilizou
áreas abertas, geralmente para pasto. Porém, como sa-
bemos, a região foi devastada duas vezes por grandes
incêndios nos últimos anos e continua sendo afetada anu-
almente por fogos menores, ligados à limpeza das pasta-
gens ou à abertura de novas roças. Em conseqüência dis-
so, as áreas que ainda apresentam uma resposta espectral
de floresta nas imagens de satélite são muitas vezes com-
postas de árvores semimortas, invadidas por cipós e pal-
meiras resistentes ao fogo. A diversidade ecológica da
vegetação primária destas zonas foi irremediavelmente
perdida, bem como suas possibilidades de regeneração
natural pois os incêndios, a maioria deles rasteiros, têm
matado os brotos, as plantas jovens e uma parte das se-
45 Silva (1997: 400-416).
46 Usando os arquivos georreferenciados do Prodes (Monitoramento da Flo-
resta Amazônica Brasileira por Satélite – Projeto de Estimativa de Desflores-
tamento da Amazônia) digital, ano 2001.
47 Nota-se também dentro desse total uma superfície significativa localizada
ao longo da estrada Perimetral Norte, hoje abandonada: os rastros do cantei-
ro de obras, mesmo depois de trinta anos, ainda permanecem descobertos,
ilustrando a lentidão da regeneração natural.
TERRAS INDÍGENAS E UNIDADES DE CONSERVAÇÃO DA NATUREZA 381
48 Essa estimativa incluiu toda a faixa de floresta entre o lavrado e o limite da
TIY.
49 Ambas áreas (resto da Flona-RR ainda resgatável e “golfo” de floresta ao
sul) são alvo da proposta feita pela CCPY ao Ibama para a criação de uma
nova Unidade de Conservação, a fim de amenizar o impacto da colonização
agrícola no limite leste da TIY.
mentes contidas no solo. As conseqüências dos incêndios
sobre a fauna também têm sido graves, limitando drasti-
camente o número de animais capazes de disseminar
sementes.
A colonização agrícola e a Flona de RR
Se, como vimos, a Flona de RR foi criada, antes de
tudo, com o propósito de encobrir uma redução drástica
da TIY, abrindo a maior parte de sua superfície à explora-
ção mineral e madeireira, é também óbvio que foi dese-
nhada para favorecer o avanço da colonização agrícola
na região. Assim, seu perímetro recortado (ver mapa 1)
deixava sem proteção duas pontas profundamente incrus-
tadas na floresta tropical densa do oeste de Roraima e,
conseqüentemente, no território Yanomami: uma na re-
gião do Uraricoera, a outra na altura do projeto Apiaú.
Estas duas entradas teriam permitido, em longo prazo, a
penetração da fronteira agrícola até praticamente o pie-
monte da Serra das Surucucus. Como primeiro passo
dessa estratégia, o Projeto Paredão, com 165 mil ha, foi
criado em 1987 numa área situada muito mais ao oeste
do que os outros projetos de colonização, encostado nos
limites da Flona-RR. Entretanto, a relativa fraqueza da
dinâmica de colonização em Roraima e o curto tempo de
ativação política da Flona-RR, entre o fim do governo
Sarney e o começo do governo Collor, fizeram com que
não houvesse outras iniciativas de articulação de projetos
de colonização nos contornos desta Unidade. De fato, com
a homologação da TIY em 1992 o limite final da área pro-
tegida no oeste de Roraima passou a situar-se bem mais
a leste do que o limite da Flona-RR, deixando, mesmo
assim, mais de 2,5 milhões de ha de florestas,(48) de tran-
sição ou densa, à disposição das atividades agrícolas nesta
região.
Na medida em que a Flona de RR era supostamente
parte de um esquema de proteção das terras Yanomami e
que, de fato, cobria territórios desse grupo indígena rei-
vindicados pela Funai, teria sido normal a homologação
contínua da área Yanomami abranger toda a superfície
da Flona de RR. Entretanto, somente 95% da superfície
dessa unidade acabou incluída na TIY, excluindo a con-
fluência dos rios Mucajaí e Apiaú.
Finalmente, a situação criada nessa região depois da
homologação da TIY é bastante estranha. De fato, a área
da Flona de RR tinha sido estendida até a confluência
Mucajaí-Apiaú para constituir uma zona tampão de apro-
ximadamente 20 km de largura ao redor de uma das ilhas
Yanomami da delimitação de 1988, denominada “área in-
dígena Mucajaí” (“3” no mapa 2). Com a escolha pela Funai
de um traçado mais a oeste para o limite da TIY (prova-
velmente tomando em conta a pressão fundiária e as in-
vasões oriundas da área de colonização do projeto Apiaú
– “1” no mapa 2), criaram-se duas situações anômalas.
Temos, de um lado, 5% da Flona de RR fora da TIY
(“4” no mapa 2), única parte da qual, de fato, o Ibama era
responsável em termo de gestão e proteção. Temos, do
outro, a ponta leste da ex-“Área Indígena Mucajaí”, que
não foi incorporada à TIY (“3”) e, tampouco, posteriormente
incluída na Flona. Passou então a constituir uma “ilha” de
aproximadamente 16.500 ha sem nenhum tipo de prote-
ção legal (pela Funai ou pelo Ibama) incrustada na área
da Flona de RR não incidente na TIY (“3” no mapa 2).
Em todo caso, esta anomalia geográfico-administrati-
va não faz muita diferença no contexto da evolução geral
da zona, sendo que o Incra criou em 1996 dois projetos
de assentamento (Samaúma e Vila Nova, com um total
de 76.200 ha) exatamente no espaço da Flona de RR fora
da TIY e de sua “ilha” sem proteção. Apesar de protesto
formal do Ibama, os dois projetos começaram a ser im-
plementados, inviabilizando em grande parte a função de
proteção ambiental da Flona na região. Assim, dos 141
mil ha da Flona não incidentes na TIY, somente cerca da
metade ainda escapa ao avanço da colonização agrícola,
sendo, porém, cada vez mais invadida por madeireiros
da região. Finalmente, em decorrência da homologação
da TIY, ao sul, os colonos assentados entre os km 35 e 50
da Perimetral Norte (região de Ajarani) viram sua indevida
presença em Terras Indígenas juridicamente sancionada,
sendo que o traçado da TIY de 1991/92 resgatou, em par-
te, o território do subgrupo Yawaripë (“2” no mapa 2).
Uma possível reorganização fundiária?
Até 2003, a situação fundiária da região limítrofe a
TIY permanecia a seguinte: ao norte, um resto da Flona
de RR, em parte invadido pelo Incra e em outra parte
afetado pela entrada ilegal de madeireiros (“3” e “4” no
mapa 2); no centro, um grande “golfo” de floresta densa
de mais ou menos 250 mil ha (“5” no mapa 2) incrustado
na área indígena, limitado a leste pela zona de coloniza-
ção e cada vez mais ameaçado pela pressão fundiária
local;(49) ao sul, colonos e fazendas instaladas dentro da
TIY (“2” no mapa 2). Entretanto, em 2004, a perspectiva
de repasses de terras do Incra para outras administrações
(Funai, Ibama), o surgimento de uma invasão de sem-
terra perto da vila agrícola de Campos Novos, bem como
as pressões políticas dos Yanomami estão se conjugando
382 TERRAS I NDÍGENAS E UNIDADES DE CONSERVAÇÃO DA NATUREZA
para abrir caminho a possíveis mudanças fundiárias na
região.
Iniciou-se, em primeiro lugar, um diálogo entre o Incra
e o Ibama sobre a indenização da invasão da Flona de
RR pelos projetos de colonização. Nesse contexto, o pri-
meiro se dispôs a repassar para o segundo, a título com-
pensatório, uma área de aproximadamente 100 mil ha da
reserva florestal do Projeto Paredão, praticamente into-
cada. Não se sabe ainda se esta negociação terá um des-
fecho positivo. Além disso, a fim de sanear a situação
fundiária de suas glebas, o Incra resolveu intervir no sul
da área incrustada dentro da TIY (“5” no mapa 2), próxi-
ma ao rio Ajarani, na qual relatórios recentes já apontam
invasões de madeireiros locais.(50) O órgão decidiu criar
um projeto de assentamento (Ajarani, 127 mil ha)(51) na
metade norte da área (ver mapa 1), projeto cuja cota legal
de reserva florestal por lote seria conservada em bloco e
seria constituída como zona tampão na beira da TIY. A
outra metade da área, situada ao sul, deveria ser repas-
sada ao Ibama para criação de uma nova UC. Finalmen-
te, uma parte dos colonos da região de Ajarani, indevida-
mente assentados na TIY, estão a ponto de serem indeni-
zados pela Funai e deslocados, o que enfraqueceria a
posição dos poucos fazendeiros locais que ainda insistem
em contestar na Justiça os limites da TIY.(52)
Assistimos hoje, portanto, a um verdadeiro processo
de consolidação fundiária da região circunvizinha ao tra-
çado leste da Flona de RR, o qual deveria desembocar,
idealmente, na constituição de um cinto de Unidades de
Conservação(53) ao longo de boa parte da divisa leste da
Terra Indígena. Obviamente, esta situação potencialmen-
te ideal não está, nem de longe, assegurada. De um lado,
os repasses de terras do Incra para o Ibama dependem
de negociações políticas entre duas administrações fede-
rais e seu resultado é dificilmente previsível. Do outro lado,
é quase certo que os interesses políticos locais vão, em
Roraima, se opor com toda força ao “congelamento” fe-
deral de mais terras no estado, pleiteando, ao contrário,
as terras vizinhas da TIY em benefício do Iteraima.(54) En-
fim, sem controle efetivo, essas áreas ambientais sofre-
rão, sem dúvida, uma forte pressão dos madeireiros, e
serão, assim, ainda mais vulneráveis aos incêndios oriun-
dos dos projetos de colonização. Sem real mobilização
política para sustentar uma solução de zoneamento raci-
onal na região é de se temer, assim, que o “cinto de prote-
ção” ideal que descrevemos acima seja submerso pela
exploração madeireira e a colonização selvagem, abrin-
do caminho em direção a TIY para a devastação ambien-
tal. O mapa 3, ao lado, já nos mostra que premissas deste
cenário pessimista estão se delineando: focos de incên-
dio foram registrados pelo Programa de Prevenção e Con-
trole de Queimadas e Incêndios Florestais na Amazônia
Legal (Proarco) em quase todos os componentes da zona
tampão ideal descrita acima.
Agradecimentos
Os autores agradecem a Helder Ferreira, André Lima, Fany Ricardo,
Marcos Wesley Oliveira, Aurélio Veiga Rios e Jô Cardoso de Oliveira
por suas informações e comentários.
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50 Informações de campo levantadas pela CCPY em março 2004 evidenciam
a ação de grileiros e madeireiros nessa região, inclusive com incursões den-
tro da TIY, na vizinhança de Ajarani.
51 Portaria nº 18 de 3/11/2003, Ibama; Ministério do Desenvolvimento Agrário.
52 Decisão Funai n°1.070, publicada no DOU de 17/11/2003, p. 17. Ver tam-
bém Boletim CCPY n° 35 (março de 2003).
53 Do sul ao norte: área repassada pelo Incra ao Ibama, Reserva Florestal do
projeto Ajarani, resto da Flona-RR e Reserva Florestal do projeto Paredão
repassada ao Ibama, Ilha de Maracá.
54 O Iteraima já coloca essas terras, agrupadas na “Gleba Caracaraí” na sua
lista de glebas prioritárias a serem repassadas do governo federal para o
estado de Roraima, como comprova o seu site (www.iteraima.rr.gov.br) ou
documentos da Seplan-RR (PPA 2000-2003, Perfil de Roraima).
TERRAS INDÍGENAS E UNIDADES DE CONSERVAÇÃO DA NATUREZA 383
mapa 2
mapa 3