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Resumo
O curso de vida apresenta-se segmentado em diferentes
fases. Porém, nas três últimas décadas – pelo menos em
nível europeu – diversos estudos têm acentuado uma
crescente variabilidade na determinação das fronteiras
que as separam. No que respeita à juventude é certo que
continuam a ser valorizados determinados marcadores
de passagem para a chamada idade adulta, como é o
caso da obtenção de um emprego, do casamento ou do
nascimento do primeiro filho (European Social Survey
de 2006/2007). Entretanto, as trajectórias de vida
bloqueiam frequentemente encruzilhadas de impasse,
determinadas por variáveis societais, apesar de os
arranjos de transição cada vez mais se alinharem com
estratégias de autonomização, na esteira das teses da
individualização. Em sociedades de outrora, existiam
ritos de passagem que demarcavam, de modo preciso,
a transição dos jovens para a idade adulta. Hoje em
dia, muitos desses ritos desapareceram embora alguns
ainda sobrevivam. É o que acontece com a chamada
festa dos rapazes, rito de iniciação à idade adulta que
ocorre em muitas aldeias do nordeste de Portugal, onde
a identidade masculina é celebrada de forma festiva,
transgressora, orgiástica. Pesquisas etnográficas
sobre a festa dos rapazes sugerem-nos que a comple-
xidade do moderno não é redutível a manifestações
do passado despidas de suas novas valências signi-
ficativas. O objectivo deste artigo é, justamente, o de
discutir como um antigo rito de expressão localizada
se enfrenta a aragens da modernidade. A conclusão
entreabre portas para a possibilidade de, entre os
jovens, os ritos de passagem estarem a ceder lugar a
ritos de impasse.
Palavras-chave: Juventude; Curso de vida; Gerações;
Ritos de passagem; Ritos de impasse.
José Machado Pais
Doutorado em Sociologia. Investigador Coordenador do Instituto
de Ciências Socais da Universidade de Lisboa
Endereço: Av. Professor Aníbal Bettencourt, nº 9, 1600-189 Lisboa,
Portugal.
E-mail: machado.pais@ics.ul.pt
A Juventude como Fase de Vida: dos ritos de
passagem aos ritos de impasse
Youth as a Stage of Life: from rites of passage to rites of
impasse
Saúde Soc. São Paulo, v.18, n.3, p.371-381, 2009 371
Abstract
The course of life is segmented into different stages.
However, in the last three decades – at least as far as
Europe is concerned – many studies have highlighted
an increasing variability in the determination of the
frontiers that separate them. Regarding youth, some
markers of the passage to the so-called adult life
continue to be valued, like getting a job, marriage or
the birth of the first child (European Social Survey,
2006/2007). Nevertheless, life trajectories frequently
block impasse crossroads, which are determined by so-
cietal variables, although the transition arrangements
are becoming more and more aligned with autonomy
strategies, similarly to the individualization theses.
In former societies, there were rites of passage that
delimited, in a precise way, the youths’ transition to
adult life. Nowadays, many of these rites have disa-
ppeared, although some still exist. This is the case
of the so-called boys’ party, a rite of initiation to the
adult life that takes place in many towns in the Nor-
theast of Portugal, where the masculine identity is
celebrated in a festive, transgressive, orgiastic way.
Ethnographic research into the boys’ party suggests
that the complexity of the modern cannot be reduced
to manifestations of the past stripped of their new sig-
nificant validities. The aim of this paper is to discuss
how an old rite of localized expression faces the air
of modernity. The conclusion suggests the possibility
that, among youths, the rites of passage are giving way
to rites of impasse.
Keywords: Youth; Course of Life; Generations; Rites of
Passage; Rites of Impasse.
Fases de Vida e Marcadores de
Passagem
Sempre o curso de vida se apresentou segmentado em
diferentes fases. Aliás, sabemos que às diferentes fases
de vida se associa o conceito de geração demográfica
(Nunes, 1969, p. 75-93), reportada a um agregado estatís-
tico de indivíduos cujas idades se situam dentro de
certos limites. O problema que se coloca é o de como
estabelecer esses limites.
De facto, há uma grande variabilidade na determina-
ção das fronteiras entre as várias fases de vida, a ponto
de em algumas comunidades nem sequer fazer sentido a
contagem dos anos. Por exemplo, entre os Tuareg – tribo
nómada da Nigéria – não se contam os anos de vida. Se
um antropólogo se dirige a algum nativo da tribo questio-
nando-lhe a idade, o nativo poderá responder: «30 anos».
Se o antropólogo desconfia da veracidade da resposta,
sugerindo que o nativo aparenta ter mais idade, este
poderá responder-lhe, para o satisfazer: «Hum… talvez
tenha uns 100 anos». O que aqui está em causa não é uma
incapacidade de contagem, por parte dos Tuareg, mas
uma indiferença em relação ao cálculo dos anos de vida.
Nunca me esquecerei da lição que, um dia, um guia-mirim
de Olinda me deu a propósito da arbitrariedade das ida-
des. Quando o questionei sobre a sua idade e manifestei
a minha surpresa por um corpo tão franzino reivindicar
dezessete anos, ele esclareceu-me: «Sabe, senhor? Nós
aqui, em Olinda, apenas crescemos em idade», assim jus-
tificando o conjunto de privações por que passam jovens
da sua condição. Como quer que seja, a idade cronológica,
ao legitimar o acesso dos indivíduos a direitos e deveres
político-jurídicos, aparece como um importante marco
de passagem de uma a outra fase de vida.
Embora socialmente reconhecidos, os marcadores
de passagem, não instituem, porém, uma colagem
dos indivíduos à idade induzida por efeito desses
marcadores (casamento, filhos, reforma do mercado
de trabalho, etc.). Os indivíduos acabam por recorrer
a manipulações da representação da idade através de
investimentos corporais: cirurgias estéticas, vestuário,
consumos culturais. Por outro lado, estudos recentes
sobre as gerações e os ciclos de vida têm mostrado
um claro esbatimento das fronteiras que separam as
diferentes gerações, de tal modo que já há referências
a gerações de fronteira ou gerações sanduíche, como
é o caso da que é constituída por jovens adultos (Pais,
2003, 2005). E isto acontece por várias razões.
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No caso dos jovens, temos assistido a uma cres-
cente reversibilidade das trajectórias para a vida
adulta (emprego/desemprego; casamento/divórcio;
abandono/retorno à escola ou família de origem), o
que me levou a propor o conceito de yoyogeneização
da condição juvenil (Pais, 2005). Na verdade, em so-
ciedades de outrora existiam ritos de passagem que
demarcavam, de modo preciso, a transição dos jovens
para a idade adulta, como os ritos de circuncisão. Mais
recentemente, o casamento e a obtenção de um traba-
lho constituíam momentos-chave para a aquisição do
estatuto de adulto. E até o cumprimento do serviço
militar – dizia-se – fazia de um rapaz um «homem».
Hoje em dia, são mais fluidos e descontínuos os traços
que delimitam as fronteiras entre as diferentes fases
de vida. Em relação à chamada terceira idade – para
além da qual já haverá uma quarta ou quinta, como
acontece com as caixas de velocidade dos automóveis
– não sabemos até que pronto as cirurgias plásticas ou
as descobertas terapêuticas de cunho revigorante não
provocarão um crescente retardamento do desfecho
anunciado por Simone de Beauvoir em seu livro Tous
les Hommes sont Mortels. Assistimos, deste modo,
a um prolongamento das fases de vida: hoje pode
ser-se jovem aos 29 anos ou mais enquanto que, em
contrapartida, uns 60 anos, bem conservados, não são
necessariamente um atributo de velhice.
Tempos houveram em que a juventude apostava
numa conversão rápida à idade adulta. Nos meios
aristocráticos do século XVIII, por exemplo, os jovens
procuravam imitar os velhos nas suas atitudes ancilo-
sadas, exibindo um ar permanentemente caduco – no
andar e no sentir. Havia uma socialização dos jovens
por antecipação da velhice. Essa socialização era vi-
sível na exibição de cabeças de neve em que perucas
esbranquiçadas encobriam a essência primaveril de
uma idade jovem – no esforço ou suposição de uns bens
experimentados 60 anos. Hoje acontece o contrário:
os mais velhos tudo fazem para se aparentarem mais
novos. Ou seja, a juventude passou a ser considerada
uma «geração vanguarda», um modelo de referência.
Longe vão também os tempos em que não se sabia
muito bem a que realidade correspondia o conceito
«nominal» de juventude. Apenas na segunda metade
do séc. XIX, Flaubert conseguiu criar um ideal tipo
de adolescente, através da personagem de Frédéric
Moreau (L’Éducation Sentimentale). Aliás, no liceu
de Rouen, Flaubert denotava algumas características
desse «idel-tipo», na sua qualidade de aluno dotado mas
indisciplinado – um tanto melancólico e sonhador, um
tanto extravagante. Mesmo em pleno século XX, ainda
havia alguma relutância em empregar o conceito de
juventude. Quando, em 1905, Sigmund Freud publi-
cou os «Três ensaios sobre a teoria da sexualidade»,
escrito pioneiro da literatura psicanalítica dedicada ao
estudo das mudanças psicológicas que acompanham
a puberdade, e embora existisse um capítulo dessa
obra inteiramente consagrado às «transformações da
puberdade», nem uma só vez é invocado o conceito de
juventude ou de adolescência. Nas concepções psica-
nalíticas de Freud, a adolescência ou a juventude não
existiam nem como classe de idade, nem como período
particular do desenvolvimento humano. Dora, a célebre
paciente de Freud – uma «jovem», diríamos hoje, pelos
seus 18 anos e pelas crises que manifestava – nunca foi
encarada por Freud como jovem ou adolescente.
Com o virar do século XIX, as fases de vida ganham
novas valências e relevâncias. A infância já antes se
havia inventado (Ariès, 1976). Posteriormente, desco-
bre-se a «idade bebé», em grande parte devido ao desen-
volvimento de novas práticas de saúde, de mudanças
ideológicas e culturais, de redefinições políticas do
operariado, etc. Em Portugal, para o período da I Re-
pública (1910-1926), é numerosa a produção literária
sobre educação infantil: O Gafanhoto, O Jornal dos
Pequeninos, Revista Infantil, Abc-zinho, O Carlitos, O
Bebé, Notícias Miudinho, Os Sportsinhos, O Pirilampo,
Raio de Sol, Pim-Pam-Pum, Riso Infantil, etc. (Marques,
1981, p. 311-313). A inícios do século XX, e mais reconhe-
cidamente entre as duas Grandes Guerras, a juventude
começa a adquirir visibilidade e, curiosamente, a
pretender-se visível pelos seus dotes físicos. É, deste
modo, que se reivindica uma «juventude sã», no meio
de debates em torno de métodos de ginástica racional,
moralizada, utilitária. Não é por acaso que, nesta época,
as instâncias do poder bradam a favor dos imperativos
da higiene, da defesa do vigor físico e da limpeza mo-
ral das classes laboriosas. Com efeito, com o aumento
das concentrações de proletariado, empolga-se todo
um discurso, por parte das instâncias do poder e da
ideologia dominante, no sentido de se assegurar uma
força de trabalho produtiva, livre de «prazeres fáceis»
e «degradantes». Uma «juventude sã» asseguraria um
tal desígnio. Foi esta representação de juventude que
se perfilou na ideologia dos regimes totalitários da
Europa da primeira metade do século XX.
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Passando ao presente, um dos traços que mais carac-
teriza a actual condição juvenil é a situação de impasse
vivida por muitos jovens em relação ao seu futuro. Eles
até poderão galgar as fronteiras que, supostamente,
permitem a passagem simbólica da juventude para a
idade adulta; contudo – porque a precariedade pauta as
suas trajectórias de vida – muitos deles não conseguem
reunir condições de independência económica estável. E
não obstante, independentemente de as fronteiras entre
as várias fases de vida se encontrarem sujeitas a uma
crescente indeterminação, continuam a ser valorizados
determinados marcadores de passagem entre as várias
fases de vida, havendo um reconhecimento genérico
quanto às idades mínimas para se ter relações sexuais,
deixar a escola, casar ou ter filhos. De facto, segundo
dados recentes do European Social Survey1, há uma acei-
tação social de algumas normas etárias, nomeadamente
a idade considerada mais apropriada para a iniciação
sexual (entre os 16 e 18 anos), o acasalamento e o nas-
cimento do primeiro filho (entre os 20 e os 26 anos), a
saída de casa dos pais (antes dos 30 anos), a fecundidade
(até aos 45 anos) e a reforma (a partir dos 50 anos), em-
bora os inquiridos atribuam desigual importância aos
marcadores de passagem de uma a outra fase de vida.
Por exemplo, nos países nórdicos da Europa, onde mais
precocemente os jovens abandonam a casa dos pais, a
autonomia residencial é o indicador considerado mais
importante na passagem para a vida adulta.
As trajectórias de vida são singulares mas inscre-
vem-se em regularidades que têm marcas culturais.
As fases de vida – e as representações que delas se têm
– são uma clara expressão dessas regularidades. Se
existem fases de vida é porque se encontram sujeitas
a regularidades, embora cada indivíduo possa viver
singularmente o seu próprio curso de vida. Com efeito,
os arranjos de transição alinham-se cada vez mais com
estratégias de autonomização, na esteira das teses da
individualização (Beck e col., 1994; Beck e Beck-Gern-
sheim, 2002). O facto de o conceito de ciclo de vida ter
perdido terreno em relação ao de curso de vida sugere,
precisamente, que a repetição ritualista das etapas de
vida, característica da tradicional sucessão de gerações,
deu lugar a uma nova época onde cabe aos indivíduos
um papel mais activo na construção das suas trajectó-
rias (Mortimer e Shanahan, 2006). Em sociedades de
outrora, existiam ritos de passagem que demarcavam,
de modo preciso, a transição dos jovens para a idade
adulta. Hoje em dia, muitos desses ritos desapareceram
embora alguns ainda sobrevivam. Mas como é que so-
brevivem, de que forma e com que roupagens? É o que
de seguida veremos a partir de um estudo de caso que
toma por referencial de análise a festa dos rapazes,
antigo rito de iniciação à idade adulta que ainda ocorre
em muitas aldeias do nordeste de Portugal.
A Festa dos Rapazes
A festa dos rapazes toma lugar em dois ciclos: o ciclo
natalício, também designado ciclo dos doze dias,
cobrindo o período do Natal ao dia de Reis; e o ciclo
carnavalesco, correspondendo às antigas «bacanais»
de Março da época romana, em honra do deus Baco. Em
algumas aldeias transmontanas de Portugal, onde mais
frequentemente ocorre, a festa assume a denominação
do santo que o calendário litúrgico colocou nas festi-
vidades natalícias – Festa de Santo Estêvão – embora
também seja conhecida por Festa dos Caretos, dos
Chocalheiros ou dos Máscaras, dado o profuso recurso
que os jovens fazem de chocalhos e máscaras.
Os caretos, assim são designados os rapazes das más-
caras, são detentores de um poder descomunal, perseguin-
do toda a mulher que vislumbram, roubando alimentos,
apossando-se de bens que depois são resgatados em
leilões. Nos bailes de outrora interditavam a presença de
rapazes vindos de fora de aldeia e em peditórios exigiam-
lhes uma dádiva como se de um castigo se tratasse.
Embora em cada terra tenha as suas especificidades
– em algumas há lutas de cristãos e mouros – as festas
têm aspectos comuns, a começar pelas expressividades
visuais dos caretos que vestem trajes bizarramente
coloridos, com tecidos em lã grosseira (predominam
as tramas de cor vermelha), outrora colchas de fabrico
caseiro. As máscaras são feitas de couro, madeira, cor-
tiça ou folhetas de latão, pintadas com cores garridas
(vermelhas, pretas, amarelas ou verdes). Por vezes, re-
presentam configurações grotescas imitando animais
(bois, bodes ou serpentes).
Moças e mulheres são o alvo das loucuras dos care-
tos. Elas são perseguidas em correrias desordenadas
e, quando agarradas, são chocalhadas, em simulações
1 O European Social Survey é uma rede de investigação europeia dirigida ao estudo sistemático e comparativo dos valores e atitudes
sociais na Europa. Em 2006/2007, o Inquérito teve por objecto de estudo os Tempos da Vida e as Percepções de Bem-Estar em 23 Países
Europeus. A base de dados dos inquéritos desta rede de investigação é de livre acesso em: www.europeansocialsurvey.org
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de um acto sexual. Em contrapartida, as velhas são
desprezadas, sendo objecto de outro ritual, denomina-
do «serração da velhas» que tem lugar na quarta-feira
de cinzas. Elas são atazanadas e assuadas ao som de
chocalhos e batimento de latas:
Vamos serrar esta velha,
Que já não tem serventia,
A ver se bota a madeira
Para os calços duma pia (Cabral, 2004, p. 31)
Por tradição, a liderança da festa cabe aos rapazes
solteiros, cujo espírito de grupo é fomentado por provas
de resistência física, roubos simbólicos, peditórios e
ofertas a Santo Estêvão, considerado o seu patrono.
Participam ainda em missas e nas loas, récitas públi-
cas também designadas de comédias ou colóquios, e
que se traduzem em versalhadas satíricas de críticas e
maldizeres a deslizes comportamentais ou a situações
caricatas da vida social.
As festas dos rapazes podem interpretar-se como
ritos de iniciação à virilidade, onde a identidade mas-
culina é celebrada de forma festiva, transgressora e
orgiástica. As máscaras garantem a clandestinidade
dessas práticas, encobrindo a identidade dos trans-
gressores. É neste reino de sociabilidades mascaradas
que se vai construindo a identidade masculina, feita
numa trama de cumplicidades que, mais tarde, se
prolongarão nas tabernas, nos cafés ou nas casas de
alterne (prostituição). Aliás, a festa dos rapazes é uma
oportunidade para que, afastando-se das «saias das
mães», se iniciem em vícios de homem.
Por vezes, são os próprios adultos que incentivam
as crianças a beber ou a fumar, num rito de iniciação
em que o limite de idade não para de baixar. Ou seja,
as crianças são socialmente pressionadas a uma inte-
gração precoce no grupo dos rapazes. Numa aldeia de
Mirandela o requisito mínimo é ter dois anos de idade
para se começar a fumar. Na festa dos Reis, a tradição
manda que fumem um maço de tabaco. Uma avó, em
entrevista recente a um jornal, manifestou orgulho no
seu neto de cinco anos: «Não é por ser meu neto, mas
tem muito jeito para pegar no cigarro, nem imagina!»
– e virando-se para ele: «Fuma lá, meu filho!» (Público,
7/1/2007). O rei da festa é obrigatoriamente um rapaz,
mas as moças já participam tranquilamente no baptis-
mo do tabaco, como se a tradição da festa se adaptasse a
uma relativa democratização nas relações de género.
Na descrição das festas, coloca-se o dilema de saber se
imputar o relato a uma tradição passada ou reinventada.
Aspectos formais do ritual repetem-se no decurso do
tempo. Porém, o seu significado não coincide no contexto
de um processo de folclorização ou «retradicionalização
festiva» (Godinho, 2006a, p. 52). Mas nem por isso a
compreensão do rito deixa de passar pela contemplação
do seu valor referencial. Os rituais tornar-se-iam vazios
se não existisse a magia representacional que os faz
simbolicamente eficazes. Eles persistem, embora novos
sentidos os justificam. Uma vez que a passagem do tempo
reforça os aspectos formais e repetitivos do rito, não é
descabido ancorá-los a uma tradição que, todavia, é o que
foi pela forma como é vista do presente. O passado é um
bom reservatório de acção para o presente, mas isso não
significa que no presente a tradição seja uma simples
reposição do passado.
Um dos momentos altos da festa dos rapazes é cons-
tituído pelas loas, repletas de ditos picantes e satíricos
que exploram inquietações sociais dos habitantes das
comunidades onde são apregoadas. Correntemente, as
loas fabricam casamentos improváveis, baralhando
hierarquias sociais, ricos a casarem com pobres, num
ritual de inversão de status (Turner, 1969). Estamos
perante uma paródia anarquizante da ordem que
se reforça na justa medida em que a anarquia é só
a brincar. Ninguém pode ficar sem casar – essa é a
mensagem latente que se retira das loas e que ressoa
em provérbios do tipo «não há panela sem testo, nem
penico sem tampa».
Outrora, a mulher não tinha grandes opções para
além do casamento. A condição de solteirona arrastava
o estigma de uma desvalorização – como feia, pobre,
ou de moral duvidosa. Também o homem solteiro era
motivo de murmúrios e fofocas. Se não casava ou não
tinha filhos tornava-se suspeito – como irresponsável,
estroina ou maricas. Para melhor apreender o espírito
das festas, deixemo-nos guiar pela sugestiva descrição
de um dos mais conceituados escritores transmonta-
nos contemporâneos:
«Em Grijó, conta-me a tia Micas, dois grupos de
rapazes, armados de embude (espécie de funil largo,
para projectarem melhor a voz) colocavam-se estra-
tegicamente em dois altos sobranceiros à aldeia – o
Cabeceiro e o Sagrado – e em jeito de diálogo burles-
co, recheado de oh-oh-oh’s e uh-uh-uh’s chocarreiros
e pausados, anunciavam os casamentos. É claro
que à moça mais catita da povoação destinavam os
meliantes o noivo mais mal-amado, e vice-versa; à
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mais desempenada o mais cambado, e vice-versa;
à mais rica o mais pobretanas, e vice-versa. Quanto
maior o contraste, maior o escárnio. E havia casa-
mentos que ofendiam, e desforços que se tiravam
por via deles.
- Ó compadre. Com quem habemos de casar a Rosa
do tio Américo? – perguntava, silabando bem, uma
voz cava, tornada ainda mais cava pelo embude.
A resposta vinha lenta, amplificada também pelo
embude e pelo silêncio da meia-noite:
- C’o Zé Parreira!
A desproporção era evidente, porque do lado de lá
respondiam em coro:
- Oh-oh-oh-oh!
E o rosário de casamentos prosseguia por este teor,
até não ficar rapariga solteira nem mulher viúva
por casar» (Cabral, 1991, p. 20-21).
Como se observa pela descrição, as loas tinham por
objectivo dar solução a um problema, o do casamento,
envolvendo disputas familiares na base de interessas
e conflitos económicos. Quem casa com quem? Quem
está à altura do pretendente? Quem merece uma moça
prendada?
Desmascarando os arranjos patrimoniais que re-
gulam os casamentos, as loas promovem desfechos
caricaturais onde o contraste é a nota dominante e
hilariante. Os «ughs, ughs, ughs!» significam, no seu
coro, uma imposição colectiva de escárnio incitada
por uma espécie de consciência comum. A escolha do
local para a realização das loas não é acidental: o largo
principal da aldeia ou o adro da igreja.
Horas antes da pregação das loas, em algumas al-
deias, os caretos costumavam atiçar as moçoilas atiran-
do-lhes lama ou fustigando-as com «chuva de cinzas»,
palha, farinha, pele de coelho seca, bexiga de porco
fumada ou banho de formigas bravas. Desse modo, jus-
tificam a sua condição de atiradiços, ao mesmo tempo
que criavam um clima apropriado para as investidas
coloquiais contra as moças. Os arremessos têm vindo
a decair com o decorrer do tempo. Os rapazes preferem
agora transportar-se em motas, com elas fazendo cava-
linhos para impressionar ou assustar as moças.
O objectivo das loas é desmascararem, jocosamen-
te, as vivências da aldeia. Quando os jovens chegam à
idade namoradeira, o senso comum aconselha-os: «se
queres bem casar, teu igual vai procurar». Aliás, os pais
dos jovens também são admoestados pela sabedoria
popular: «casa teu filho com teu igual e de ti não dirão
mal». Ao proporem casamentos insólitos, provocan-
do risadas zombeteiras entre os assistentes, as loas
originam sanções sociais, colocando a descoberto o
subentendido. Ou seja, o mascarado detém o poder de
desmascarar consensos hipócritas baseados na incon-
veniência de acasalamentos mal amanhados, marcados
por disparidade de posses ou, metaforicamente, de
feitios. Os casamentos fabricados pelas loas exploram
sempre enlaces jocosos, feitos à revelia das moças e
respectivas famílias. Não raras vezes os rapazes se
vestem de mulher para melhor as ridicularizar.
As turbulências dos caretos instauram uma ordem,
uma espécie de arbítrio que procura contornar a incer-
teza e o imprevisto de um caos ao qual se contrapõe
essa ordem. A indefinição em relação a quem casa com
quem exige um ordenamento de acasalamento. Por isso
surgem as «loas». Porém, no contexto dos tempos que
correm, a ordem é ameaçada por novos desequilíbrios
sugeridos pelos novos reportórios das loas que, aliás,
se tornaram mais agressivas. Benjamim Pereira esta-
belece uma relação entre a maior agressividade verbal
das loas e a crescente fragilidade dos homens trans-
montanos no mercado matrimonial: «Essa é a maneira
que os homens têm, de certo modo, de retirarem alguma
compensação da sua posição fragilizada. Na verdade,
as mulheres vão estudar, os homens não. De repente, o
mercado matrimonial está a mudar. É nas loas que os
homens se desforram» (Farinha, 2007, p. 18-19). Ou seja,
as loas aparecem como uma oportunidade de desforra,
o avesso do forro de um novo tecido social marcado por
mudanças que se repercutem a nível das relações de
emparelhamento sexual e conjugal.
O contraste entre os elevados índices de endogamia
de outrora e as dificuldades que actualmente existem
de aparelhar os casais segundo o princípio da isogamia,
tem sido estudado por Paula Godinho (2006a) que dá
conta do embaraço que rapazes pouco escolarizados
têm – porque abandonaram a aldeia para trabalhar,
muitos deles na construção civil – de se relacionar com
moças bem mais escolarizadas e que os rejeitam por
não os verem como bons partidos (Almeida, 2006). Ou
seja, não faltam mulheres, faltam sim mulheres que
permitam a realização de casamentos isogâmicos (Go-
dinho, 2006b). Não espanta que nas loas se acentue o
caudal de críticas em relação a «quem namora fora da
terra». Tendo realizado prolongadas incursões etno-
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gráficas em Varge, Paula Godinho2 dá conta de como as
moças são violentamente atacadas por preferirem os
de fora. Os rapazes bem que se sentem atraídos pelas
moças que circulam à sua volta mas reconhecem que
não lhes podem chegar.
A Vera do Engenheiro
Não tem nada de novo
Quando mostra a cuequinha
Cega os rapazes do povo
Os rapazes do povo
A trazem encantada
Pica aqui e pica ali
E nenhum come nada
A deserção das moçoilas da terra para os braços
dos forasteiros é lamentada em muitas loas, suben-
tendendo-se que elas fogem da terra para conquistar
bons partidos que na terra não encontram. A lógica
das uniões interesseiras predomina em declamações
satíricas.
Em casa do ti Zé Grande
Já me cheira a chouriço
A sua Manuela
Vai casar com um suíço
[…]
A sua prima Mitó
De elegante aspecto
Tem o futuro nas mãos
Namora um arquitecto
[…]
A sua prima Joca
Não veio ao Natal
Ela anda a namorar
Um assistente social
As oportunidades de encontro através das moder-
nas tecnologias de comunicação são mais um factor
da modernidade que os rapazes lamentam, dado per-
mitirem que as conterrâneas entravem conhecimento
com os de fora, mesmo sem saírem da casa. Em con-
trapartida, por serem menos escolarizados, poucos
são os rapazes que dominam com sucesso essas novas
possibilidades de relacionamento.
A Sofia da Margarida
Com o calor derrete
Não vai para o jardim
Namora por Internet
Namora por Internet
Em correio digital
Agora está feliz
Tem um amante virtual
A violência retórica é relativamente tolerada, mes-
mo quando a indisponibilidade das moças reverte, por
vezes, na acusação de se entregarem a qualquer um.
A Graciete do Ti Noberto
Já perdeu a cabeça
Anda no tira e mete
Com o primeiro que apareça
A Ângela do Alberto
Redonda como as colheres
Já se cansou de homens
Agora gosta de mulheres
Ao proporem uma inversão da ordem estabelecida,
as loas que as máscaras apregoam mostram que o mun-
do parece ser outro quando visto de pernas para o ar, o
mesmo é dizer, quando é desmascarado pelo poder das
injúrias ou do sarcasmo. Porém, o mundo de pernas
para o ar apenas sugere a necessidade de o assentar nos
ordenamentos de que emana uma consciência colecti-
va, a que todos parecem subordinar-se, e cujas andas
determinam um imperativo de casamento («quando
se faz uma panela faz-se logo um testo para ela»); um
imperativo endogâmico («quem longe vai casar ou se
engana ou vai enganar») e um imperativo isogâmico
(«casar e compadrar, cada um com seu igual»).
Em outras regiões de Portugal, como em Lazarim
(Lamego), onde igualmente se verifica um êxodo das
moças para os braços dos forasteiros, elas próprias
os ridicularizam, conscientes do abandono em que
os deixam:
Vou falar de todos vós
Não estou com meias medidas
Com o tempo que esperais
Ficareis sem raparigas3
Elas nem sequer vos querem
E têm muita razão
Sois uns pobres coitados
Mas que grande desilusão
2 As loas a seguir referenciadas foram recenseadas por Paula Godinho, em Varge, no Natal de 2003. Quero agradecer-lhe o facto de me ter
disponibilizado estes seus achados etnográficos com a simpatia que a caracteriza.
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Quando encheis a cabeça
É só de fumo e de pinga
Afastais a raparigas
Só cheirais a catinga (Alves, 2006, p. 32).
Como vemos, os versos não são construídos ape-
nas para rimar mas também versam desequilíbrios
problemáticos no domínio dos relacionamentos entre
rapazes e moças, tendo em vista potenciais junções
matrimoniais. A situação de impasse vivida pelos ra-
pazes é reconhecida pelas moças («Com o tempo que
esperais/ Ficareis sem raparigas»).
Em muitas aldeias, a festa dos rapazes já não é feita
com os que nelas vivem mas com os que, tendo emigra-
do voltam à terra para a festa. Alguns – nomeadamente
os que saíram da aldeia para estudar – trazem amigos
para ver ou participar na festa como caretos. Outrora a
festa era da aldeia para a aldeia. De fora apenas vinha
o gaiteiro, tocador da gaita-de-foles, que agora tem
vindo a ser substituída por músicas reproduzidas em
modernas aparelhagens. Hoje em dia a festa é para os
forasteiros. Os diabos (caretos) «venderam a alma ao
turismo» (Raposo, 2006, p. 94). Em desfiles de caretos a
que assisti (Podence e Vinhais) fiquei com a impressão
que eram mais os forasteiros do que os da terra. Aliás,
estes, de garrafão na mão, oferecendo vinho a quem
passa, capricham em bem receber os de fora (Godinho,
1998, p. 253).
Por outro lado, as moçoilas mais rebeldes já se
mascaram, usurpando um direito outrora consignado
aos rapazes solteiros. O mesmo se tem passado com a
tradição dos pauliteiros. Entre 2002-2003, em Moga-
douro, surgiu o primeiro grupo de pauliteiras, formado
por oito audazes moças, contra as «vozes adversas»
dos que reclamavam ser a dança dos pauliteiros uma
dança masculina. Ante as vozes que clamavam pela
«honra da tradição», as moças reclamaram contra «o
desleixo» e a «desmotivação» dos rapazes, o «receio à
tradição não cumprida», o desinteresse dos rapazes,
que preferiam «uma boa partida de futebol à dança das
saias» (Mensageiro de Bragança, 27/10/2005).
Benjamim Pereira (1973), autor da conhecida obra
Máscaras Portuguesas, e um dos mais consagrados
estudiosos das máscaras transmontanas, afirmou
recentemente numa entrevista: «Eu lembro-me das
descrições que ouvi sobre a violência que adquiriam
as relações de domínio dos homens sobre as mulheres:
violência física, pegando-lhes certas partes do corpo,
quase que as possuíam, com reacções de repúdio for-
tíssimas das mulheres. Agora, essa violência não é
sequer simbólica, não existe. Pois se elas estão entre
os homens! […] Antes os campos estavam extremados
em masculino/feminino. Hoje, todos esses campos se
romperam» (Farinha, 2007, p. 18). Ou seja, as mulheres
subverteram o espaço simbólico de afirmação masculi-
na, outrora ritualizado em investidas sexuais: «Exibem
mesmo, com certa ostentividade, a coberto da máscara
e respectiva indumentária, uma postura de aparente
virilidade, com gestualidades e linguagens de franca
ousadia, confundindo-se com os demais mascarados
masculinos» (Pereira, 2006, p. 22). Embora as moças
mascaradas e as pauliteiras – que o corrector do di-
cionário de Português instalado no meu computador,
sublinha a vermelho, indicando que o substantivo
é masculino – não signifiquem propriamente «uma
revolução na ordem do género» (Almeida, 2006, p. 64)
indiciam claramente uma notória subversão da ordem
da tradição. Houve uma relativa democratização da fes-
ta (Raposo, 2006, p. 92), dada a uma menor rigidez na
distribuição de papéis entre grupos de género oposto:
homens de um lado, mulheres de outro.
Outrora, os chocalhos eram também usados para
sinalizar ocorrências insólitas que colidiam com a
consciência social das aldeias, perturbando-a. Se agora
os chocalhos não são tão usados, das duas uma: ou as
ocorrências insólitas diminuíram ou, mais provavel-
mente, perdeu-se o fulgor da consciência moral que
as condenava. Antigamente as chocalhadas faziam-se
nas bodas de casamentos das viúvas, estabelecendo
uma ruptura ruidosa e censória do evento. Esta repro-
vação social recorria a outros meios como o toque dos
sinos de finados. As chocalhadas marcavam também
presença junto da casa de alguma mulher apanhada
em adultério ou em vias disso. O objectivo das cho-
calhadas era mesmo o de escandalizar, o despertar
dos sentidos para realidades perversamente ocultas.
Sentidos disputados pelas sonoridades dos chocalhos
e pelos cheiros libertos de queimadas feitas à porta
da adúltera. No entanto, as chocalhadas mostravam
o lado insidioso dessa consciência moral, pois só as
mulheres apanhadas em deslize eram moralmente
fustigadas, os homens – parceiros óbvios dos deslizes
– passavam imunes.
3 Em Portugal, o termo rapariga é equivalente ao de moça, pois não tem a conotação que circula no Brasil.
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O relacionamento conjugal era caricaturado noutra
performance que envolvia carochos e belhas. A belha,
suposta mulher do carocho, apregoava lamúrias, quei-
xumes e lamentos culpabilizando o seu «malvado»
carocho pela má vida que levava. De que se queixava
em concreto? Dos «maus-tratos» a que o carocho a sub-
metia e do número exorbitante de filhos que a forçou
a gerar e criar. Nas loas, a vida das mulheres casadas
ainda é representada como um enclausuramento: «Já
te vais moça pimpona/ Para a vida de casados/ Para a
vida da tristeza / P’ra sorte dos desgraçados».
A sorte dos carochos é – e ainda continua a ser,
embora de forma mais aligeirada – o azar das belhas.
Pesquisas etnográficas realizadas em Trás-os-Montes
enfatizam a distintividade de carácter entre homens e
mulheres, embora a cara do carácter seja uma máscara
que encobre as socializações que trabalham esse mesmo
carácter – que nada tem de inato. Desde o ritual do pri-
meiro banho dos recém-nascidos era habitual jogar-se
a água do banho para o quintal, no caso dos rapazes; e
para a lareira no caso das meninas. Desse modo, o ritual
demarcava, logo à nascença, distintas territorialidades
de género – a rua e a casa – consagrando o adágio: «Do
homem a praça, da mulher a casa». No entanto, na actu-
alidade, o adágio perdeu força de presságio. As jovens
já não se vêem confinadas à casa; elas saem de casa,
frequentam cafés e discotecas, as suas trajectórias
escolares são mais alongadas do que as dos rapazes.
Por isso mesmo, o ritual da festa dos rapazes ganhou
novas configurações. Devidamente mascaradas, as
moças apoderaram-se do ritual que, segundo a tradição,
era exclusivo dos rapazes. Elas aparecem a chocalhar-se
umas às outras e, na brincadeira, também chocalham
rapazes e forasteiros. O que vemos nestas mudanças?
Que o passado é um bom reservatório do presente mas
isso não significa que no presente a tradição seja uma
simples reposição do passado. Mais, a análise de con-
teúdo das loas sugere a situação de impasse vivida no
grupo dos rapazes por via de uma maior valorização das
moças no mercado matrimonial: por efeito de uma maior
escolarização, elas rejeitam os seus conterrâneos para
se casarem com os de fora da sua terra de origem.
Conclusões
Vimos, de acordo com os dados do European Social
Survey, que as idades normativas que demarcam as
diferentes fases de vida mantêm alguma estabilidade;
não variam muito com a idade dos respondentes ao
Inquérito. Porém, se há idades normativas para se ser
«jovem», «adulto» ou «idoso» e se há um reconheci-
mento social dos marcadores de passagem de uma a
outra fase de vida, também é certo que a realidade dos
factos questiona as normas que os tentam regular.
Assim, um idoso que se reforme pode, por necessidade
de sobrevivência ou outras, continuar a exercer uma
actividade profissional; da mesma forma, um jovem
que por efeito de uma inserção profissional ou de
um casamento passa normativamente à condição de
adulto, pode, a qualquer momento, divorciar-se ou
ver-se no desemprego, retornando à condição de filho
economicamente dependente dos pais.
A relativa desestabilização das fronteiras que
separam as diferentes fases de vida levou-nos ao
questionamento de um antigo rito de passagem para
a idade adulta que ainda vigora no nordeste de Por-
tugal – a festa dos rapazes. A pesquisa etnográfica
do rito permitiu-nos questionar o mito da tradição
ao incitar-nos a descobrir como o rito evoluiu – e ele
próprio se transformou – de contextos comunitários e
tradicionais a contextos societários e modernizados.
Jack Goody (1977) criticou o alcance heurístico do uso
do conceito de ritual pelo facto de fraquejar em nos
fornecer chaves interpretativas de acesso aos valores,
nomeadamente por efeito do mascaramento do eu in-
dividual submergido aos convencionalismos sociais.
Contudo, a forma como estes convencionalismos são
manipulados dá-nos uma preciosa chave interpretativa
sobre o terreno social que dá guarida aos valores e à
mudança de um e de outros.
O que verificámos é que a festa dos rapazes continua
a apresentar-se como um ritual comunitário mas, na
verdade, apresenta-se crescentemente participado por
forasteiros, turistas na maior parte dos casos. Embora
estes sejam bem-vindos – pois contribuem para o reco-
nhecimento da tradição – a participação das moças nas
investidas dos chocalhos é uma excentricidade que não
colhe plena adesão comunitária, pois vai contra à tradi-
ção. Os mais velhos criticam os mais novos por só quere-
rem discotecas e não cumprirem a tradição a rigor.
Já Eisenstadt (1976, p. 32) alertava para o facto de en-
tre as gerações se desenvolverem tensões em torno das
quais se podem produzir «mecanismos de ajustamento»
ou, pelo contrário, «grupos anormativos». Na festa dos
rapazes, os mecanismos de ajustamento são, todavia,
os que permitem que a tradição se mantenha, apesar de
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esta já não ser o que era. A anormatividade surge a outro
nível – ao das expectativas de transição para a vida adul-
ta (Bauman, 2008). Para muitos jovens, as dificuldades
de emprego e o desequilíbrio no mercado matrimonial
geram problemáticas situações de impasse.
É neste contexto que se abre uma pista de reflexão – a
desenvolver em futuras pesquisas – para o entendimento
de alguns comportamentos juvenis da contemporanei-
dade que talvez possam ser discutidos a partir de um
novo conceito, o de ritos de impasse. Os ritos de impasse
aparecem associados a situações de anomia, quando
necessidades essenciais de segurança e auto-estima
não se satisfazem ou quando sentimentos de pertença
identitária se fragilizam. Se essas exigências vitais
se frustram, surge uma propensão para a indolência,
traduzida em alienação social. A anomia pode originar
condutas violentas, envolvendo pessoas incapazes de
vislumbrar um futuro, como acontece com alguns jovens
ou minorias marginalizadas (Marcos, 1995, p. 199).
Um exemplo destes ritos de impasse pode ser o das
recentes manifestações dos jovens gregos, em Atenas.
Se é certo que a conhecida adesão dos gregos aos pro-
testos sociais faz parte de uma herança da Atenas de
Péricles (The Economist, de 13-12-2008), essas manifes-
tações poderiam constituir um reflexo dessa herança.
No entanto, o fenómeno é bem mais complexo. Desde
logo, não é certo que todos os jovens que têm participa-
do nessas manifestações sejam movidos pelas mesmas
motivações. Para aqueles que escreveram nas paredes
do metropolitano «Alexi, estas noites são em tua memó-
ria» podemos estar perante uma solidariedade românti-
ca traduzida num ajuste de contas; para outros jovens,
com simpatias anarquistas, a trágica morte de Alexi
poderá ter reforçado credos político-ideológicos. Como
quer que seja, tais protestos não podem ser alheados
do descontentamento provocado pela incompetência e
corrupção dos últimos governos gregos.
Theda Skocpol (1985) mostra-nos claramente que
as revoluções e os movimentos sociais se explicam
por conjugações de factores contextuais com aconteci-
mentos inesperados ou fortuitos. No caso dos recentes
protestos juvenis ocorridos na Grécia, os factores de
contexto não são de menosprezar. Não nos podemos
esquecer que, na Grécia, no último Verão, morreram
67 pessoas em fogos incontrolados pelo Governo; os
escândalos de corrupção económica avolumaram-se;
o sistema de ensino degradou-se; o desemprego juve-
nil atingiu cerca de 25%, o mais elevado da Europa.
Muitos jovens gregos – à semelhança do que acontece
com outros jovens europeus – vivem uma descrença
em relação ao futuro. Fazem parte de uma geração
desesperançada, desesperada, frustrada.
A morte de Alexandros foi a fervura que fez saltar
a tampa de um caldeirão de descontentamentos. A
cobertura dos media, dando visibilidade aos protestos
dos jovens, ajudou a recrudescer o seu protagonismo,
fazendo-os sentir como actores de uma telenovela. A ex-
citação provocada pelos confrontos não pode ser descar-
tada, dada a dimensão lúdica e guerreira dos mesmos:
bombas artesanais contra gás lacrimogéneo da polícia,
carros incendiados, ataques a esquadras, vandalização
de estabelecimentos públicos, estilhaçamento de mon-
tras com decorações natalícias apelando ao consumo
em tempos de crise… enfim, comportamentos críticos
de «grupos anormativos» (Eisenstadt, 1976, p. 32).
Tais tumultos não são indissociáveis de novas iden-
tidades culturais, na base de cumplicidades e solidarie-
dades grupais reguladas por doses variáveis de razão e
emoção. À razão aparentemente invocada como factor
desencadeador do movimento – a morte de um estudante
por um polícia – segue-se uma turbulência que escapa à
ordem da racionalidade. O que prevalece é uma ideolo-
gização de motivações fermentada por frustrações. Ou
seja, o pano de fundo parece ser tecido por urdiduras de
descontentamento, em encruzilhadas de impasse.
Há quem veja nestes tumultos juvenis um regresso
à concepção medieval da cidade, segmentada em micro-
cosmos de poder autóctone (Eco, 1973). Assim poderão
ser lidos os movimentos estudantis de Berkeley, em
1964 ou, mais recentemente, os dos jovens imigrantes
dos subúrbios de Paris, ambos actuando como redutos
de resistência aos poderes instituídos. Se o alarmismo
não é infundado (e não parece que o seja) nem o ca-
tastrofismo excessivo (como parece que o é), importa
que tais fenómenos sejam olhados e analisados com
rigor, longe das tentações de etiquetagem que nos
levariam a tomar esses jovens simplesmente como
vândalos ou heróis. Provavelmente, estamos perante
ritos de impasse que acabam por preencher vazios de
trocas simbólicas e ritualísticas que, em sociedades
tradicionais, constituíam modelos consistentes de
construção da identidade juvenil, inscrita em pro-
cessos concertados de transição para a vida adulta.
Tais ritos de impasse envolvem jovens para os quais
o futuro é ameaçador, daí que apostem em diferentes
estratégias: ora vivendo o presente menosprezando o
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futuro; ora tacteando oportunidades, numa lógica de
«para o que der e vier». De facto, umas vezes os riscos
criam oportunidades, outras vezes geram situações
de impasse, sujeitas a novas ritualizações. O impasse
é tanto mais desconcertante quanto é certo que, como
vimos, a nível das representações sociais continuam a
persistir normatividades etárias, isto é, idades consi-
deradas ideais para se darem determinados «passos»
ao longo do curso de vida.
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