Content uploaded by Nevita Maria Pessoa de Aquino Franca Franca
Author content
All content in this area was uploaded by Nevita Maria Pessoa de Aquino Franca Franca on Oct 21, 2017
Content may be subject to copyright.
Content uploaded by Nevita Maria Pessoa de Aquino Franca Franca
Author content
All content in this area was uploaded by Nevita Maria Pessoa de Aquino Franca Franca on Oct 19, 2016
Content may be subject to copyright.
Periódico do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero e Direito
Centro de Ciências Jurídicas - Universidade Federal da Paraíba
Nº 02 - 2º Semestre de 2014
ISSN | 2179-7131 | http: http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/ged/index
177
Seção 05: Gênero, Sexualidade e Feminismo.
Limites entre a liberdade de expressão e o discurso do ódio: controvérsias em torno das
perspectivas norte-americana, alemã e brasileira
Nevita Maria Pessoa de Aquino Franca Luna
Gustavo Ferreira Santos
Resumo: O escopo do artigo foi analisar as
restrições de conteúdo à liberdade de
expressão, no caso do discurso do ódio.
Em um primeiro momento, abordou-se a
liberdade de expressão, delimitando seu
significado, conteúdo e propósito. Em
seguida, apontou-se o discurso do ódio
como elemento inibidor da liberdade de
expressão por ofender os membros das
minorias tradicionalmente discriminadas,
que estão em inferioridade numérica ou em
situação de subordinação cultural,
socioeconômica ou política.
Posteriormente, foram discutidos alguns
aspectos dos modelos norte-americano
(liberdade negativa) e alemão (liberdade
positiva), para mostrar que culturas
diversas, mas sensibilizadas com os
problemas das minorias, aportam soluções
jurídicas diferentes. Por último, verificou-
se uma aproximação do posicionamento da
corte brasileira com a doutrina alemã, a
partir da análise dos casos paradigmáticos
do editor Siegfried Ellwanger e da Escola
de Samba Unidos da Viradouro. O
posicionamento do Brasil, país
multicultural e formado por diferentes
etnias, pode orientar um novo processo de
defesa das minorias que, apesar de
envolver a colisão de direitos fundamentais
consagrados (dignidade, igualdade e
liberdade), ainda encontra barreiras
incompatíveis com a democracia pluralista
contemporânea. Ademais, o debate acerca
dos limites entre a liberdade de expressão e
o discurso do ódio ganha espaço nas
ciências jurídicas e deve ser instigado
porque, embora trate de um problema
antigo, algumas questões permanecem sem
contornos bem definidos.
Palavras chaves: Liberdade de expressão.
Discurso do ódio. Minorias. Preconceito.
Cultura.
Abstract: The scope of the article was to
analyze the content restrictions of freedom
of expression, in the case of hate speech.
At first, we dealt with the freedom of
expression, delimiting its meaning, content
and purpose. Then we pointed out the hate
speech as inhibitor element of freedom of
expression for offending members of
traditionally discriminated minorities, who
are outnumbered or in a situation of
cultural subordination, socioeconomic or
political. Later, some aspects of American
models (negative freedom) and German
(positive freedom) were discussed, to show
that different cultures, but sensitized to the
problems of minorities, they provide
different legal solutions. Finally, there was
an approximation of the position of the
Brazilian court with German doctrine,
from the analysis of the paradigmatic
cases: the editor Siegfried Ellwanger and
the Samba School ‘Unidos da Viradouro’.
The positioning of Brazil, multicultural
country and composed of different ethnic
groups, may guide a new process of
defending minorities, despite involving the
collision of fundamental rights (dignity,
iguality and freedom), barriers still finds
incompatible with the pluralist democracy
contemporary. Moreover, the debate about
the limits between freedom of expression
and hate speech gains space in legal
sciences and should be instigated because,
although it is an old problem, some issues
remain without well-defined contours.
Periódico do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero e Direito
Centro de Ciências Jurídicas - Universidade Federal da Paraíba
Nº 02 - 2º Semestre de 2014
ISSN | 2179-7131 | http: http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/ged/index
178
Keywords: Freedom of expression. Hate
speech. Minorities. Prejudice. Culture.
1. BREVE INTRODUÇÃO
HISTÓRICA: A LIBERDADE DE
EXPRESSÃO COMO DIREITO
FUNDAMENTAL
Os direitos humanos são uma
conquista bastante tardia na história da
humanidade, sendo firmados como
elementos jurídicos apenas com as
Revoluções Liberais do século XVIII,
momento em que a liberdade de expressão
se afirmou definitivamente e passou a
integrar as constituições liberais, bem
como convenções e tratados internacionais,
como direito fundamental.
A liberdade de expressão foi
expressa, pela primeira vez, em 1689, no
English Bill of Rights, um estatuto político
formulado no contexto da Revolução
Gloriosa que defendia os direitos dos
cidadãos britânicos. Em seguida, vários
outros documentos passaram a incorporar
em seus textos o direito à liberdade de
expressão, como os artigos 10 e 11 da
Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão:
Art. 10.º Ninguém pode ser
molestado por suas opiniões,
incluindo opiniões religiosas, desde
que sua manifestação não perturbe a
ordem pública estabelecida pela lei.
Art. 11.º A livre comunicação das
ideias e das opiniões é um dos mais
preciosos direitos do homem; todo
cidadão pode, portanto, falar,
escrever, imprimir livremente,
respondendo, todavia, pelos abusos
desta liberdade nos termos previstos
na lei.
No Brasil, desde a Constituição do
Império havia a garantia da liberdade de
expressão, o que foi preservado até a
Constituição de 1937. Já no período
conhecido como Estado Novo durante o
governo do presidente Vargas, o princípio
constitucional da liberdade de pensamento
desapareceu e foi adotada a censura como
meio de impedir a publicação ou a
reprodução de determinadas informações.
A liberdade de expressão só ganhou força
novamente na atual Constituição Federal
1
,
promulgada em 5 de outubro de 1988, que
trouxe várias inovações em relação à
1
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem
distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes: IV - é livre a manifestação do
pensamento, sendo vedado o anonimato; V - é
assegurado o direito de resposta, proporcional ao
agravo, além da indenização por dano material,
moral ou à imagem; VI - é inviolável a liberdade de
consciência e de crença, sendo assegurado o livre
exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma
da lei, a proteção aos locais de culto e a suas
liturgias; VIII - ninguém será privado de direitos
por motivo de crença religiosa ou de convicção
filosófica ou política, salvo se as invocar para
eximir-se de obrigação legal a todos imposta e
recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada
em lei; IX - é livre a expressão da atividade
intelectual, artística, científica e de comunicação,
independentemente de censura ou licença;
Periódico do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero e Direito
Centro de Ciências Jurídicas - Universidade Federal da Paraíba
Nº 02 - 2º Semestre de 2014
ISSN | 2179-7131 | http: http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/ged/index
179
liberdade de manifestação do pensamento,
dando maior amplitude ao rol de direitos e
garantias individuais, vedando apenas o
anonimato como forma de evitar a
verbalização do discurso sem a devida
responsabilidade.
Em 1979, em uma conferência do
Instituto Internacional de Direitos
Humanos, o jurista tcheco-francês Karel
Vasak propôs uma classificação dos
direitos humanos em gerações, inspirado
no lema da Revolução Francesa
(Liberdade, Igualdade, Fraternidade). Os
direitos da primeira geração, em que está
inserida a liberdade de expressão, são
considerados direitos negativos, que se
esgotam num dever de abstenção do
Estado na esfera particular do indivíduo.
Trata-se de uma limitação para os poderes
públicos, erigida para que eles não tenham
como impedir nem coibir a manifestação
de quaisquer opiniões ou ideias.
Com efeito, a liberdade de expressão
é um direito fundamental dos indivíduos,
entendida como liberdade de consciência e
liberdade de crença, e está intrinsecamente
relacionada à livre manifestação de ideias,
opiniões, posições, pensamentos, de
interesse público ou não, provido de
importância e valor ou não, através de
qualquer meio de comunicação, não
podendo esse direito ser restringido por
ninguém. Em suma, a liberdade de
expressão só pode ser plenamente
garantida se os indivíduos tiverem a
possibilidade de manifestar seus pontos de
vista segundo suas convicções, seja na
esfera pública ou privada.
2. OBJETIVOS FUNDAMENTAIS DA
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
A liberdade de expressão destina-se
ao alcance de vários objetivos. Sem maior
aprofundamento e, ao mesmo tempo,
destituída de preocupação exaustiva, pode-
se apontar, com base em enumeração
especificada por Jónatas Machado (2002:
237-291), os seguintes: a) a procura da
verdade, b) o mercado livre das ideias, c) a
autodeterminação democrática, d) o
controle da atividade governativa e do
exercício do poder, e) o estabelecimento de
esfera aberta e pluralista de discurso
público, f) a garantia da diversidade de
opiniões, g) a acomodação de interesses
juntamente com a transformação pacífica
da sociedade, h) a promoção e expressão
da autonomia individual, i) a formação de
concepção multifuncional das liberdades
de comunicação.
Além dos objetivos expostos, a
liberdade de expressão tem um importante
papel no debate público e nas eleições,
uma vez que é necessária uma opinião
pública livre e informada como requisito
Periódico do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero e Direito
Centro de Ciências Jurídicas - Universidade Federal da Paraíba
Nº 02 - 2º Semestre de 2014
ISSN | 2179-7131 | http: http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/ged/index
180
legítimo para o exercício dos direitos
políticos. O controle dos poderes públicos
e a denúncia dos casos de corrupção dos
governantes são tarefas necessárias dos
meios de comunicação como um
compromisso do direito à informação e a
responsabilidade social da imprensa.
Com efeito, levando-se em
consideração a liberdade de consciência, o
exercício dos direitos políticos e o controle
dos poderes públicos, toda intervenção do
Estado para limitar a liberdade de
expressão, em sistemas democráticos, deve
ser vista como suspeita e exige uma
justificativa especial.
3. O DISCURSO DO ÓDIO COMO
ELEMENTO INIBIDOR DA
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
São vários os temas que suscitam o
debate público acerca da legitimidade da
intervenção estatal na liberdade de
expressão, entre eles o discurso do ódio, o
qual pode ser definido como toda
manifestação que denigra ou ofenda os
membros das minorias tradicionalmente
discriminadas, que estão em inferioridade
numérica ou em situação de subordinação
socioeconômica, política ou cultural. Em
outras palavras, o discurso do ódio se
compõe de todas as formas de expressão
que propagam, incitam, promovem ou
justificam o ódio racial, a xenofobia, a
homofobia, o antissemitismo e outras
formas de ódio baseadas na intolerância.
Sobre o tema, as principais
polêmicas são: o discurso ou as palavras
podem causar danos? Em que medida o
dano é quantificável? Toda ofensa é uma
incitação à violência? Qual deveria ser a
tolerância legal de expressões, ainda que
fossem repugnantes?
Tratam-se de perguntas difíceis
porque existem diversas concepções de
liberdade de expressão e a solução mais
adequada ao caso concreto varia segundo a
cultura jurídica de cada país. Mas, para
tentar responde-las, vamos apresentar
alguns aspectos das perspectivas norte-
americana, alemã e brasileira sobre o tema
e estabelecer quais são as justificativas dos
limites a um direito fundamental, em três
culturas jurídicas, que estão sensibilizadas
com os problemas das minorias, mas
aportam soluções diversas.
A seguir, veremos que o discurso do
ódio pode ser interpretado como um
conflito de direitos e os sucessivos casos
judiciais que serão apresentados oferecem
diferentes ponderações entre eles,
demostrando que só é possível interpretar
adequadamente as decisões judiciais
apelando-se aos fundamentos filosóficos
de cada modelo apresentado.
Periódico do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero e Direito
Centro de Ciências Jurídicas - Universidade Federal da Paraíba
Nº 02 - 2º Semestre de 2014
ISSN | 2179-7131 | http: http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/ged/index
181
4. O MODELO NORTE-
AMERICANO, A LIBERDADE
NEGATIVA E O MERCADO DAS
IDEIAS
O modelo norte-americano está
baseado na liberdade negativa e
corresponde à visão de mercado das ideias
elaborado pela jurisprudência da Suprema
Corte americana. Este tribunal outorgou
um papel prioritário à liberdade de
expressão, que deveria limitar sua
intervenção apenas aos casos de um perigo
claro e presente ou à ameaça de desordens
públicas. A visão da liberdade negativa
traduz-se na não interferência no âmbito
individual e, portanto, na ausência de
barreiras para seu exercício. Significa não
ser impedido por outras pessoas a fazer o
que se deseja fazer.
A perspectiva americana pode ser
sintetizada em sua Primeira Emenda
Constitucional, de 1791, segundo a qual,
“O Congresso não fará nenhuma lei que
restrinja a liberdade de expressão, ou da
imprensa”. Todavia, foi a jurisprudência
da Suprema Corte que mostrou de forma
mais clara o significado deste preceito
constitucional com a concepção do
mercado de ideias, que apareceu pela
primeira vez no voto divergente do Juiz
Oliver Wendell Holmes no caso Abrams
versus Estados Unidos (1919). Inclusive,
Richard Posner (2011:53) considera que
não existe voto mais eloquente na história
do direito norte-americano do que esse
voto divergente.
Segundo a visão de mercado das
ideias, não é papel do Estado proibir
ideias, ainda que alguém as considere
equivocadas, pois o melhor teste para a
verdade é a competição no mercado do
discurso. A livre circulação de ideias
permite que todos chequem suas opiniões.
Assim, a correção de uma ideia não
depende da consciência dos juízes e
jurados, mas da concorrência com outras
ideias. Os diferentes pontos de vista em
uma sociedade competem entre si em um
debate aberto e plural, no qual algumas
opiniões têm mais êxito do que outras,
dependendo do número de seguidores e da
qualidade dos seus argumentos.
O mercado das ideias propõe a não
intervenção estatal na determinação da
verdade ou falsidade dos argumentos, o
que supõe que o Estado deve ser neutro.
Trata-se de uma posição que enfatiza a
visão da liberdade negativa e que desconfia
da intervenção governamental em assuntos
de liberdade de expressão.
A procura da verdade como telos da
liberdade de expressão assinala que num
discurso aberto de ideias a verdade é mais
facilmente desvendada, enquanto que num
espaço onde há a carência de liberdade de
Periódico do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero e Direito
Centro de Ciências Jurídicas - Universidade Federal da Paraíba
Nº 02 - 2º Semestre de 2014
ISSN | 2179-7131 | http: http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/ged/index
182
expressão a verdade fica oprimida a uma
só opinião, que se impõe como verdadeira.
Se houver um debate livre e aberto, a
verdade tende a prevalecer.
Os pressupostos filosóficos
implícitos deste modelo, de acordo com
Stanley Ingber (1984:15), são: a) a verdade
é algo capaz de ser descoberta pelo
pensamento, a partir da pluralidade de
ideias; b) o poder da racionalidade dos
indivíduos pode separar a forma da
substância das posições competitivas que
se apresentam. No entanto, Ingber (1984,
p. 48), critica o mercado das ideias
afirmando ser ele mais um mito do que de
uma realidade, pois na prática se refletem
os pontos de vista convencionais sobre a
sociedade, a economia e a política; a
diversidade de perspectiva é inexistente e é
difícil sustentar que este mercado não sofre
interferência.
Todavia, Jónatas Machado
(2002:254) contesta grande parte dessas
críticas ao estabelecer que:
o mercado livre de ideias, a despeito
das suas imperfeiçoes, traduz os
valores fundamentais da
descentralização da produção e
difusão de ideias e da autonomia
individual na adesão ou no abandono
das mesmas, bem como na
estruturação dos procedimentos
comunicativos de acordo com o
princípio da persuasão, nos termos do
qual o Estado não pode suprimir um
discurso com base no facto de que o
mesmo tem a capacidade para
persuadir as pessoas.
A fundamentação teórica que
justifica a liberdade de expressão como
meio de se chegar à verdade encontra-se na
obra Sobre a Liberdade de Stuart Mill.
Aqui, o filósofo afirma que a liberdade de
expressão jamais deve ser restringida, pois
se o discurso for silenciado, e o mesmo for
verdadeiro, estaremos privados de
conhecer a verdade; se a opinião silenciada
for errada, pode haver nela, ainda assim,
uma porção de verdade; e se a opinião
estiver errada, será através do
enfrentamento de opiniões diversas que se
chegará ao conhecimento pleno da verdade
(RIBEIRO, 2012).
Nesta obra, Stuart Mill (1991:78)
também formula o princípio do dano a
terceiros, segundo o qual o único propósito
que justifica a intervenção da espécie
humana, coletiva ou individualmente, na
liberdade de ação é sua própria proteção.
Ou seja, o fim para que o poder possa ser
exercido legitimamente sobre qualquer
membro de uma comunidade civilizada,
contra sua vontade, é obstar que provoque
danos aos demais. Assim, o Estado só pode
intervir regulando as condutas que
prejudiquem danos a terceiros.
Em suma, a defesa do debate, o
contraste das ideias, a recusa da censura e
Periódico do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero e Direito
Centro de Ciências Jurídicas - Universidade Federal da Paraíba
Nº 02 - 2º Semestre de 2014
ISSN | 2179-7131 | http: http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/ged/index
183
a livre circulação do discurso são
necessários para que os indivíduos como
agentes morais possam decidir
autonomamente seus planos de vida. Logo,
no modelo norte-americano, a intervenção
estatal só se justificaria quando as ações
dos indivíduos provocassem danos aos
demais. Nesse ponto, um novo dilema se
instaura: quem e como se definem esses
danos?
Antes de responder, vejamos alguns
casos polêmicos julgados pela Suprema
Corte Americana:
a. Caso Brandenburg (1969):
A Suprema Corte Americana anulou a
condenação de Clarence Brandenburg
(líder do ramo de Ohio do Ku Klux Klan),
apesar de suas alegações em rede de TV
sobre a supremacia da raça ariana. A Corte
fundamentou a absolvição do réu na
ausência de violência intencional, provável
e iminente do discurso contra negros e
judeus. Ora, mas o que é violência?
Parece-me que a Corte americana só
considerou a violência e os danos físicos,
não levando em conta a violência moral e
psíquica das vítimas do discurso, bem
como o direito à memória dos familiares
dos mortos nos campos de concentração.
b. Caso Skokie (1977): A
Suprema Corte Americana decidiu em
favor do Partido Nazista, revertendo a
decisão da Corte de Illinois, e autorizou
uma marcha nazista em bairro judeu. O
nazismo foi um aviltamento a todas
liberdades humanas, que se desenvolveu
em um meio que consentia o exercício da
liberdade, em especial, da liberdade de
reunião. E isso nos conduz a um novo
problema: até que ponto é legítimo dar
liberdade para quem ofende a liberdade?
Em que medida deve-se tolerar o
intolerante?
c. Caso RAV x City of St.
Paul (1992): A Suprema Corte Americana
anulou o julgamento que condenava alguns
adolescentes por queimar uma cruz no
Jardim de uma família negra afro-
americana. No contexto da sociedade
estadunidense, o ato de queimar cruzes
representa uma manifestação de ódio.
Então, no âmbito do conflito entre direitos
humanos fundamentais, até que ponto a
não interferência do Estado (liberdade
negativa) é eficaz para a proteção das
minorias?
d. Caso Cohen (1971): A
Suprema Corte Americana anulou a
decisão que condenou um sujeito chamado
Cohen por usar nos corredores de um
tribunal de justiça uma jaqueta com a
expressão “fuck the draft”. O fato
aconteceu em um agitado momento de
crítica à política bélica norte-americana
por ocasião da Guerra do Vietnã e a
punição tinha a premissa de que a
Periódico do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero e Direito
Centro de Ciências Jurídicas - Universidade Federal da Paraíba
Nº 02 - 2º Semestre de 2014
ISSN | 2179-7131 | http: http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/ged/index
184
agressiva frase incitaria distúrbios e
ameaçaria a paz. Nesse caso, a Suprema
Corte alegou que o Estado não tem o
direito de proibir o uso de palavras
ofensivas. Por que deixar, então, impune
os agressores do distúrbio gratuito da paz
de vítimas de grupos minoritários, como
negros e judeus?
Não existem outros danos relevantes,
relacionados ao discurso do ódio? Não são
sérios ataques à dignidade humana a
utilização de determinadas expressões? As
respostas a essas indagações, segundo a
filosofia americana, é que qualquer
discurso, por si mesmo, não produz dano,
ódio, violência ou intolerância. Porém,
nosso intuito não é oferecer soluções
conclusivas ao tema, mas provocar o
debate e o confronto de ideias, pois cada
resposta é um momento do questionamento
filosófico, é um degrau na busca da
verdade, que serve de suporte para a
construção de novas questões, mais
profundas e abrangentes.
Para Fuente (2010:105), aos olhos de
um jurista europeu, a regulação
estadunidense da liberdade de expressão é,
no mínimo, paradoxal, pois a Suprema
Corte ora se mostra neutra frente ao
racismo, ora se mostra parcial diante do
aborto, da escravatura e da obscenidade.
Os pilares do sistema se baseiam na
filosofia de Stuart Mill e no princípio de
danos a terceiros, em que o dano está
vinculado ao perigo de violência iminente.
5. O MODELO ALEMÃO, A
LIBERDADE POSITIVA E A
INTANGIBILIDADE DA
DIGNIDADE HUMANA
A história da ditadura nacional
socialista por Adolf Hitler claramente
influenciou na visão judicial que atribui
importância relativa à liberdade de
expressão, de modo que, no panorama das
constituições europeias do segundo pós-
guerra destaca-se, em particular, a
Grundgesetz (GG), ou seja, a Lei
Fundamental Alemã, de 1949, que já no
início do seu texto proclama solenemente a
inviolabilidade da dignidade humana:
Artigo 1
[Dignidade da pessoa humana –
Direitos humanos – Vinculação
jurídica dos direitos fundamentais]
(1) A dignidade da pessoa humana
intangível. Respeit-la e proteg-la
obrigação de todo o poder público.
(2) O povo alemão reconhece, por
isto, os direitos invioláveis e
inalienáveis da pessoa humana como
fundamento de toda comunidade
humana, da paz e da justiça no
mundo.
(3) Os direitos fundamentais,
discriminados a seguir, constituem
direitos diretamente aplicáveis e
vinculam os poderes legislativo,
executivo e judiciário.
Como se observa, no sistema jurídico
alemão, a liberdade de expressão não é o
Periódico do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero e Direito
Centro de Ciências Jurídicas - Universidade Federal da Paraíba
Nº 02 - 2º Semestre de 2014
ISSN | 2179-7131 | http: http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/ged/index
185
valor constitucional mais importante, esta
posição pertence à dignidade humana,
tratada como princípio constitucional
supremo e um direito fundamental.
Portanto, quando os casos apresentam fatos
nos quais a dignidade humana e a
liberdade de expressão colidem, esta deve
render-se para que a dignidade humana
prevaleça.
Além disso, Lei Fundamental Alemã
ressalta a conduta positiva do ente público
como garantidor da proteção à dignidade
humana: o Estado existe para o bem do
homem, e não o homem para o bem do
Estado. Em outras palavras, os indivíduos
requerem que o Estado tenha um papel
proativo para garantir as possibilidades de
realização de seus planos de vida. Isso não
significa que o modelo alemão seja
antidemocrático dentro do sistema
democrático. Mas pressupõe que a esfera
pública não tenha um discurso neutro, mas
seja definida em torno de valores baseados
em sua superioridade ética.
Caracterizando o republicanismo que
defenderia a justificação da liberdade de
expressão como a liberdade positiva, o
Estado ausente no liberalismo é substituído
por um Estado ativo. Nesse contexto,
coloca-se a questão sobre o que se deveria
fazer no caso Skokie, que tratava-se de
autorizar uma marcha nazista em um bairro
onde viviam judeus sobreviventes do
holocausto:
Os liberais sustentam que o
Estado deve ser neutro e respeitar as
opiniões que promovam seus cidadãos.
Proibir expressões ofensivas e impopulares
significa impor a alguns cidadãos os
valores dos outros e não respeitar a
capacidade de cada cidadão escolher e
expressar as suas próprias opiniões.
Os republicanos, ao contrário, vão
diferenciar em cada caso o conteúdo do
discurso, a natureza da causa e o valor
moral das comunidades locais cuja
integridade estava em jogo. Os neonazistas
promoveram o genocídio e o ódio. Por
isso, memórias compartilhadas de
sobreviventes do holocausto merece
deferência moral.
O conceito de liberdade de expressão
como liberdade positiva está localizado
dentro da cultura jurídica alemã. Para
mostrar as diferenças com a perspectiva
dos Estados Unidos, se analisará o Caso
Lüth, que, segundo o Tribunal
Constitucional Federal alemão, este foi o
caso fundamental para a interpretação das
liberdades de opinião.
Os fatos são os seguintes: Veit
Harlan, um diretor de cinema, trabalhou
em estreita colaboração com a máquina de
propaganda nazista. Ele produziu e dirigiu
uma série de filmes altamente ofensivos,
Periódico do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero e Direito
Centro de Ciências Jurídicas - Universidade Federal da Paraíba
Nº 02 - 2º Semestre de 2014
ISSN | 2179-7131 | http: http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/ged/index
186
incluindo o filme anti-semita “Jud Süss”,
em 1940. Apesar de sua colaboração ativa
com o governo nazista, os Aliados não o
consideravam culpado de crimes de guerra
por sua contribuição para o programa de
genocídio nazista. Após o fim da Segunda
Guerra Mundial, ele tentou voltar como
um grande diretor e, em 1950, escreveu e
dirigiu o filme "Amada Imortal"
(Unsterbliche Geliebte), que recebeu
elogios na Alemanha e no exterior.
Eric Lüth estava desgostoso com o
reaparecimento de Veit Harlan no mundo
do cinema como um ator legítimo e
organizou um boicote nacional do filme.
Os produtores e os distribuidores do filme
buscaram uma liminar contra o boicote em
uma disposição do Código Civil alemão
que previa uma reparação contra a pessoa
que "intencionalmente causar prejuízo a
outra pessoa de forma contrária aos bons
costumes”
2
.
Neste julgamento foi estabelecido
pela primeira vez que a Constituição não é
um documento de valores neutros, já que a
seção sobre Direitos Fundamentais
estabelece uma ordem objetiva de valores
que incide sobre a dignidade humana, que
deve considerada como uma decisão
2
Artigo 226 do código civil alemão (BGB): “§ 226
- Schikaneverbot: Die Ausübung eines Rechts ist
unzulässig, wenn sie nur den Zweck haben kann,
einem anderen Schaden zuzufügen”.
constitucional fundamental que afeta todas
as áreas do direito (público e privado)
3
.
Este valor é utilizado como critério
para medir e avaliar todas as ações nas
áreas do direito, seja no âmbito do
Legislativo, Executivo ou Judiciário.
Portanto, é claro que os direitos
fundamentais também influenciam o
desenvolvimento do direito privado. Esta
doutrina denominada Drittwirkung
assegura a eficácia dos direitos
fundamentais nas relações entre
particulares.
A Corte Constitucional alemã
percebeu e, a partir dele, desenvolveu
alguns conceitos que atualmente são as
vigas-mestras da teoria dos direitos
fundamentais, como por exemplo:
I. a dimensão objetiva dos direitos
fundamentais,
II.a eficácia horizontal dos direitos
fundamentais e
III.a necessidade de ponderação, em
caso de colisão de direitos.
Aqui no Brasil, esses fenômenos
chegaram ainda que com outras roupagens.
3
É importante mencionar também que a negação do
holocausto não é considerada manifestação do
pensamento possível. Para a Alemanha trata-se de
negação de fato ocorrido e não de mera expressão
do pensamento. Esse entendimento advém do
julgado da Corte Constitucional alemã de 1994, que
se posicionou contra a tese negacionista do
historiador David Irving sobre a não existência do
holocausto, como um dado histórico.
Periódico do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero e Direito
Centro de Ciências Jurídicas - Universidade Federal da Paraíba
Nº 02 - 2º Semestre de 2014
ISSN | 2179-7131 | http: http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/ged/index
187
Fala-se em constitucionalização do direito
privado, filtragem constitucional,
interpretação conforme os direitos
fundamentais etc.
6. A LIBERDADE DE EXPRESSÃO
NO CENÁRIO BRASILEIRO
Após conhecermos os entendimentos
da Suprema Corte Americana e do
Tribunal Constitucional Alemão, passemos
ao posicionamento do poder judiciário
brasileiro, em alguns casos polêmicos que
beiram a tênue fronteira entre liberdade de
expressão e o discurso do ódio.
6.1 O Caso Ellwanger: literatura e
nazismo
Em 17.09.2003, no HC 82.424/RS, o
Supremo Tribunal Federal orientou-se
segundo uma tradição germanista no caso
do livreiro brasileiro Siegfried Ellwanger
Casten, fundador da editora gaúcha
Revisão, que escreveu e publicou livros
disseminando e legitimando o ódio aos
judeus. Entre os principais livros editados
pela Revisão, destacam-se: “Holocausto:
Judeu ou Alemão?”, “Hitler: Culpado ou
Inocente?” e “O Plano Judaico de
Dominação Mundial: Os Protocolos dos
Sábios de Sião”.
As obras de Ellwanger, bem como de
sua editora, provocaram perplexidade e
inquietação na comunidade semita
brasileira por seu conteúdo racista e por
acusar os judeus de serem responsáveis
pelos mais diversos infortúnios da
humanidade, entre eles a eclosão da
Segunda Guerra Mundial.
No caso em comento, o Supremo
Tribunal Federal manteve a condenação do
editor, imposta pelo Tribunal de Justiça do
Rio Grande do Sul, por crime de racismo e,
por maioria de votos, o Plenário negou o
Habeas Corpus e acabou por repudiar o
discurso do ódio. A votação obteve o
seguinte placar:
ABSOLVIÇÃO:
deferimento do
habeas corpus,
inexistência de
racismo e liberdade
de expressão
irrestrita
CONDENAÇÃO:
denegação do habeas
corpus, existência de
discurso do ódio e
ponderação de valores
em caso de colisão de
direitos
Ministros: Moreira
Alves, Carlos Ayres
Britto e Marco
Aurélio
Ministros: Carlos Velloso,
Celso de Mello, Cezar
Peluso, Ellen Gracie,
Gilmar Mendes, Maurício
Corrêa, Nelson Jobim e
Sepúlveda Pertence
Alguns votos, eivados de diferentes
ideologias, merecem destaque, como os
dos Ministros Moreira Alves, Celso de
Melo, Gilmar Mendes, Carlos Velloso e
Ayres Britto. Vejamos:
O primeiro ministro a votar foi o
Moreira Alves, relator do processo, que
argumentou que do ponto de vista
Periódico do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero e Direito
Centro de Ciências Jurídicas - Universidade Federal da Paraíba
Nº 02 - 2º Semestre de 2014
ISSN | 2179-7131 | http: http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/ged/index
188
científico, os judeus não constituem uma
raça, indicando que tal constatação poderia
ser verificada em razão de dados físicos
como cor da pele, formato dos olhos,
textura do cabelo, etc. Portanto, em face da
inexistência de crime de racismo, entendeu
por deferir o pedido de habeas corpus e
justificar o discurso do ódio (BRASIL,
2003, p. 207-220).
O Ministro Celso de Melo, que votou
contrariamente ao habeas corpus, ponderou
que “aquele que ofende a dignidade
pessoal de qualquer ser humano,
especialmente quando movido por razões
de fundo racista, também atinge - e atinge
profundamente - a dignidade de todos e de
cada um de nós” (BRASIL, 2003:287-
310).
Em seguida, ao proferir seu voto, o
Ministro Gilmar Mendes discorreu sobre a
colisão entre direitos fundamentais: de um
lado a liberdade de expressão e de outro a
dignidade humana. Assim, utilizando-se do
princípio da proporcionalidade, também
votou pelo indeferimento do remédio
constitucional (BRASIL, 2003:312-346).
Nessa mesma linha, o Ministro Carlos
Velloso também entendeu que a liberdade
de expressão em momento algum pode se
sobrepor à dignidade da pessoa humana e
denegou o habeas corpus (BRASIL, 2003:
351-365).
O Ministro Carlos Ayres Britto,
seguindo o modelo estadunidense,
argumentou que a Liberdade de expressão
seria uma liberdade de hierarquia maior e,
portanto, excludente de qualquer limite. O
voto do ministro foi um tanto
contraditório, uma vez que ora reconhece
que Ellwanger deixa transparecer em suas
obras uma ideia preconceituosa acerca dos
judeus, ora alega a impossibilidade de ser
proibida a divulgação do pensamento.
Ainda, citando Douglas Chrstie, Ayres
Britto declara que “ninguém tem o
monopólio de apresentar o desenrolar de
fatos históricos. NUNCA deverá ser
silenciada uma discussão, a esse respeito,
por imposição de meios estatais.”
(BRASIL, 2003:562-564).
Ao final do julgamento, concluiu-se
que a liberdade de expressão não pode
servir de respaldo para manifestações
preconceituosas, nem incitar a violência e
a intolerância contra grupos humanos.
6.2 O Caso da Unidos da Viradouro:
samba e holocausto
Outro caso polêmico que merece
destaque é foi restrição da escola de samba
Unidos do Viradouro no carnaval carioca,
em 2008, de apresentar uma alegoria
alusiva às vítimas do holocausto e
mostrava uma pilha de corpos esquálidos e
Periódico do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero e Direito
Centro de Ciências Jurídicas - Universidade Federal da Paraíba
Nº 02 - 2º Semestre de 2014
ISSN | 2179-7131 | http: http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/ged/index
189
nus, onde desfilaria um destaque
fantasiado de Adolf Hitler. A proibição da
exibição do carro alegórico foi resultado de
uma ação judicial promovida no Tribunal
de Justiça do Rio de Janeiro pela
Federação Israelita do Rio de Janeiro
(FIERJ).
A escola não tinha a intenção de
questionar nem fortalecer a ideologia
pregada pelo holocausto, mas sim
demonstrar a brutalidade histórica desse
acontecimento, já que o tema da Unidos da
Viradouro naquele carnaval era "É de
arrepiar". O pedido da Federação Israelita
do Rio de Janeiro (FIERJ) foi reconhecido,
tendo a magistrada concedido liminar
impondo uma multa de 200 mil reais se a
escola de samba desfilasse com o carro na
Marquês de Sapucaí e ainda uma multa
adicional de 50 mil reais se houvesse
algum membro da escola com fantasias
que lembrassem a figura de Hitler
(MEYER-PFLUG, 2009:217-218).
É cerceamento de liberdade de
expressão impedir a banalização dos
eventos bárbaros e injustificados
praticados contra as minorias? É justo
privar o direito do artista de mostrar sua
obra, ainda que esta obra retrate o
morticínio de judeus, praticado na
Alemanha hitlerista? O holocausto trata de
assunto que deve ser escondido ou
esquecido?
6.3 O Caso Monteiro Lobato: letras e
discriminação
Atualmente, tramita no Supremo
Tribunal Federal o Mandado de Segurança
nº 30952, ação movida pelo Instituto de
Advocacia Racial e Ambiental (IARA)
contra a distribuição do livro “Caçadas de
Pedrinho”, de Monteiro Lobato, a escolas
públicas pelo Programa Nacional
Biblioteca na Escola (PNBE), do
Ministério da Educação. A alegação do
IARA é que passagens do livro são
racistas, como a que diz que Tia Nastácia
subiu em uma árvore como uma "macaca
de carvão". O STF ainda não se
posicionou, mas a polêmica já se instalou,
bem como opiniões divergentes que
transitam entre a censura, a liberdade de
expressão e o discurso do ódio.
7. ALGUMAS CONCLUSÕES SOBRE
A LIBERDADE DE EXPRESSÃO
A liberdade de expressão é a máxima
dentro das liberdades clássicas,
constituindo um direito de primeira
geração. É, em regra, um direito que exige
uma abstenção do Estado na sua tutela. No
entanto, o domínio da liberdade de
expressão não é um campo ilimitado nem
absoluto e pode ser restringido em nome
Periódico do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero e Direito
Centro de Ciências Jurídicas - Universidade Federal da Paraíba
Nº 02 - 2º Semestre de 2014
ISSN | 2179-7131 | http: http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/ged/index
190
da ponderação de outros bens jurídicos
igualmente expressivos. Todavia, qualquer
regulação à liberdade de expressão deve
ser realizada com cautela de modo a não
retroceder à censura.
O primeiro modelo da liberdade de
expressão como liberdade negativa se
caracteriza porque o Estado não deve
intervir em assuntos sobre a liberdade de
expressão e deve sair para o mercado de
ideias. Na liberdade negativa não há
interferência. A verdade ou falsidade de
ideias surgem a partir das ideias contras da
competição, e não das decisões judiciais. O
Estado deve ser neutro sobre o conteúdo da
expressão, o que tem sido levado a
considerar inconstitucional uma regulação
que só proíba opiniões e ações racistas.
A perspectiva estadunidense da
liberdade de expressão pode causar
perplexidade a partir de outras culturas
jurídicas, uma vez que a liberdade de
expressão não é apenas o direito
constitucional mais precioso, mas também
um dos seus símbolos culturais mais
importantes. A ênfase na não intervenção
estatal sobre a liberdade de expressão leva
alguns a considerá-la como um direito
absoluto. Com efeito, a Suprema Corte
Americana reconheceu alguns limites à
liberdade de expressão. A partir desta
perspectiva, de acordo com os princípios
de Stuart Mill, o Estado poderia regular
expressões que agridem, principalmente,
os membros de minorias que têm sido
tradicionalmente vilipendiadas.
Ademais, as manifestações de ódio,
quando colocado apenas no nível do
discurso, não produzem nenhum dano
significativa para a intervenção do Estado,
de acordo com a Suprema Corte. A
incitação ao ódio estaria permitida se não
envolver também uma incitação à
violência. Isso diferencia os Estados
Unidos em relação a outras democracias
que adotaram regulamentos restritivos
neste assunto.
Quanto ao segundo modelo que toma
a Alemanha após a Segunda Guerra
Mundial, observa-se nítida preocupação
com a regulação da Liberdade de
Expressão e a repercussão do discurso do
ódio. Sem dúvida, a liberdade de expressão
constitui direito fundamental, mas convive
com o princípio da dignidade humana a lhe
opor limites. É importante ressaltar
também que o princípio da dignidade
humana adquire valor máximo de
hierarquia no ordenamento jurídico alemão
consagrado no artigo 1º da Constituição
promulgada no pós-guerra. Dessa forma,
haverá sempre a ponderação de valores em
face de conflitos entre a liberdade de
expressão e outros direitos fundamentais.
Para os casos de violação de um direito
Periódico do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero e Direito
Centro de Ciências Jurídicas - Universidade Federal da Paraíba
Nº 02 - 2º Semestre de 2014
ISSN | 2179-7131 | http: http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/ged/index
191
constitucional, a solução se dará pelo
princípio da proporcionalidade.
Quanto ao Brasil, o número de ações
judiciais envolvendo a temática do
discurso do ódio ainda é pequeno, não por
ausência de discriminação, mas pelo fato
de que o preconceito, o racismo, a
homofobia e a xenofobia se manifestam de
modo implícito, velado, muitas vezes
revestidos de humor, o que assinala um
“discurso do ódio material, o que dificulta
o seu combate.
O país nunca tinha enfrentado uma
polêmica até o caso de Siegfried
Ellwanger. Para solucioná-lo, o Supremo
Tribunal Federal se valeu muito da
jurisprudência tanto dos tribunais
europeus, quanto dos tribunais americanos.
E, ao término do julgamento, a Corte
orientou-se segundo a tradição germanista,
contra o discurso do ódio, elaborando um
novo conceito de raça ao pressupor que
racismo é a perseguição a qualquer grupo
étnico, religioso, social ou cultural. A
importância do caso Ellwanger é servir de
paradigma para os processos posteriores,
como o caso da Escola de Samba Unidos
da Viradouro e dos livros de Monteiro
Lobato.
O posicionamento da corte brasileira
orienta um novo processo de defesa das
minorias e de combate ao preconceito que,
apesar de envolver a demarcação de
direitos fundamentais consagrados
(dignidade, igualdade e liberdade), ainda
encontra barreiras incompatíveis com a
democracia pluralista contemporânea.
Por fim, o debate acerca dos limites
entre a liberdade de expressão e o discurso
do ódio é relevante e ganha espaço nas
ciências jurídicas porque, embora trate de
um problema antigo, algumas questões
permanecem sem contornos bem definidos.
Uma solução para o fim do preconceito
seria a construção de políticas que
garantam efetivamente o acesso às mídias
e aos meios de comunicação das minorias
vítimas de discriminação em nossa
sociedade, de modo que as diferentes
etnias, religiões, culturas e gêneros,
estejam de fato representadas, pois ao
assegurar voz e visibilidade a esses grupos
é que se ergue uma sociedade igualitária,
plural e desprovida de qualquer forma de
intolerância.
Bibliografia
ALEMANHA. Código Civil Alemão
(1900). Bürgerliches Gesetzbuch:
promulgado em 1 º de janeiro de 1900.
Disponível em:
<http://www.ligiera.com.br/codigos/cc_ale
mao_(em_alemao).pdf> Último acesso em:
11/08/2014.
Periódico do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero e Direito
Centro de Ciências Jurídicas - Universidade Federal da Paraíba
Nº 02 - 2º Semestre de 2014
ISSN | 2179-7131 | http: http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/ged/index
192
ALEMANHA. Constituição (1949). Lei
Fundamental da República Federal da
Alemanha: promulgada em 23 de maio
de 1949. Disponível em:
<https://www.btg-
bestellservice.de/pdf/80208000.pdf>
Último acesso em: 20/08/2014.
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet (org.). A
liberdade de expressão na
jurisprudência do STF. Brasília: IDP,
2012.
BRASIL. Constituição (1988).
Constituição da República Federativa
do Brasil: promulgada em 5 de outubro
de 1988. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/con
stituicao/constituicaocompilado.htm>.
Último acesso em: 20/08/2014.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal.
Habeas Corpus 82.424-2/RS. Paciente:
Siegfried Ellwanger. Impetrante: Werner
Cantalício João Becker. Coator: Superior
Tribunal de Justiça. Relator: Ministro
Moreira Alves. Brasília, 2003.
BRUGGER, Winfried. Proibição ou
proteção do discurso do ódio? Algumas
observações sobre o direito alemão e o
americano. Revista de Direito Público,
Brasília, v. 15, n. 117, jan.-mar. 2007.
CRUZ, Natália dos Reis. O integralismo e
a questão racial. A intolerância como
princípio. Niterói: Universidade Federal
Fluminense, 2004. Disponível em:
<http://www.bdtd.ndc.uff.br/tde_busca/arq
uivo.php?codArquivo=2187> Último
acesso em: 12/08/2014.
FISS, Owen M. A Ironia da liberdade de
expressão: Estado, regulação e
diversidade na esfera pública. Rio de
Janeiro: Renovar, 2005.
FISS, Owen M. Free Speech and Social
Structure. Iowa Law Review. N. 71,
1986.
FREITAS, Riva Sobrado de; CASTRO,
Matheus Felipe de. Liberdade de
Expressão e Discurso do Ódio: um exame
sobre as possíveis limitações à liberdade de
expressão. Revista Seqüência.
Florianópolis, UFSC, Volume 34, nº 66,
2013.
FUENTE, Oscar Pérez de la. Libertad de
expresión y el caso del lenguaje del odio.
Una aproximación desde la perspectiva
norteamericana y la perspectiva
alemana. CEFD - Cuadernos Electrónicos
de Filosofía del Derecho. N. 21, 2010.
GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes.
Direito nos Estados Unidos. Barueri:
Manole, 2004.
INGBER, Stanley. Marketplace of ideias:
A legitimizing myth. Duke law jornal,
vol. 1984, número 1, p. 1-91.
LAFER, Celso. A internacionalização
dos direitos humanos. Constituição,
racismo e relações internacionais.
Barueri: Manole, 2005.
Periódico do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero e Direito
Centro de Ciências Jurídicas - Universidade Federal da Paraíba
Nº 02 - 2º Semestre de 2014
ISSN | 2179-7131 | http: http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/ged/index
193
Gisele Machado Alecrim:
Graduada em Direito pela UFCG. Advogada.
Eduardo Pordeus Silva:
Doutor em ciências sociais (UFRN). Mestre
em Direito (UFPB). Professor do
CCJS/UFCG.
Jailton Macena de Araújo:
Doutorando e Mestre em Ciências Jurídicas
pela UFPB. Professor do Curso de Direito da
UFCG. Advogado.
MACHADO, Jónatas E. M. Liberdade de
expressão: dimensões constitucionais da
esfera pública no sistema social.
Coimbra: Coimbra Editora, 2002.
MACHADO, Maria Costa Neves.
Liberdade de expressão e restrições de
conteúdo análise do caso Ellwanger em
diálogo com o pensamento de Celso Lafer.
Revista dos Tribunais, vol. 931, 2013.
MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO,
Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito
Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2012.
MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro.
Liberdade de Expressão e Discurso do
Ódio. São Paulo: RT, 2009.
MILL, John Stuart. Sobre la libertad.
Madrid: Centro de Publicaciones
Ministerio de Trabajo y Seguridad Social,
1991.
POSNER, Richard. Fronteiras da teoria
do direito. São Paulo: editora WMF
Martins Fontes, 2011.
RIBEIRO, Raisa. Duarte da Silva. O
discurso de incitamento ao ódio e a
negação do holocausto: restrições à
liberdade de expressão? Universidade de
Coimbra. Trabalho final de Pós-Graduação
em Direitos Humanos, 2012. Disponível
em:
<www.fd.uc.pt/igc/pdf/papers/RaisaDuarte
SilvaRibeiro.pdf> Último acesso em:
11/08/2014.
SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos
Direitos Fundamentais na Constituição
de 1988. Uma Teoria Geral dos Direitos
Fundamentais na Perspectiva
Constitucional. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2012.
Nevita Maria Pessoa de Aquino Franca
Luna:
Advogada e Doutoranda em Direito no
Programa de Pós-Graduação em Direito
da Universidade Federal de Pernambuco.
Gustavo Ferreira Santos:
Doutor em Direito pela UFPE e Professor
Adjunto da Universidade Federal de
Pernambuco.