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territorium 18, 2011, 147-156
journal homepage: http://www.nicif.pt/riscos/Territorium/numeros_publicados
OS DESASTRES COMO INDÍCIOS DA VULNERABILIDADE DO SISTEMA NACIONAL DE DEFESA CIVIL:
O CASO BRASILEIRO*
Norma Valencio
Núcleo de Estudos e Pesquisas Sociais em Desastres e PPG em Sociologia, Universidade Federal de São Carlos – UFSCar
Programa de Pós Graduação em Ciências da Engenharia Ambiental, Universidade de São Paulo - USP
normaf@terra.com.br
Arthur Valencio
Núcleo de Estudos e Pesquisas Sociais em Desastres, Universidade Federal de São Carlos - UFSCar
Instituto de Física Gleb Wataghin, Univ. Estadual de Campinas - UNICAMP
arthur_valencio@terra.com.br
RESUMO
Este trabalho tem por objetivo analisar sociologicamente informações ofi ciais sobre os desastres mais freqüentes no
Brasil nos últimos sete anos (2003-2009). Pretende identifi car, a partir de cinco diferentes variáveis, a vulnerabilidade
institucional, isto é, a dimensão sociopolítica limitante do Sistema Nacional de Defesa Civil para lidar com os desastres.
Os resultados apontam que, em termos políticos, as autoridades permanecem despreparadas devido a ausência de uma
gestão estatal pautada numa ética de accountability.
Palavras chave: Desastres, Defesa Civil, Sociologia dos Desastres.
RESUMEN
Los desastres como indicio de la vulnerabilidad de lo Sistema Nacional de Defensa Civil: lo caso brasileño – Lo contenido
dese estudio és analizar sociologicamente las informaciones ofi ciales acerca de los desastres ocurridos en Brazil en los
últimos siete años (2003-2009). Lo propósito és identifi car, basándose en cinco diferentes variables, la vulnerabilidad
de institución, es decir, la dimensión sociopolítica límite de lo Sistema Nacional de Defensa Civil para trabajar con los
desastres. Los resultados apuntan qui, en términos políticos, las autoridades estan despreparadas debido a ausencia de
una gestión estatal apoyada en una ética de accountability.
Palabras clave: Desastres, Defensa Civil, Sociologia de los Desastres.
RESUMÉ
Les dèsastres comme signe apparent de vulnérabilité de le Système National de Défense Civile: le cas brésilien - La
fi nalité de ce étude est analyser sociologiquement las informaciones offi cieles sur les dèsastres plus fréquent au Brèsil
dans le dernière sept annès (2003-2009). Prétendre identifi er, à travers de cinq différent variables, le vunerabilité de
la institution, ou bien, la dimension socio-politique limite de le Système National de Défense Civile pour travailler
avec le désastre. Les résultes indiques, politiquement, qui las authorités son privé d´une gestion public réglé puor la
éthique du accountability.
Mots-clé: Dèsastres; Défense Civile; Sociologie di Dèsastres.
ABSTRACT
Disasters as a National Civil Defense System vulnerability: the brazilian case - This paper focuses, through a sociological
analysis, the offi cial data about the most frequent disasters in Brazil in the past seven years (2003-2009). It also intends
to identify, using fi ve different variables, the institutional vulnerability, which means, the socio-political dimensions
and limits of the National Civil Defense System to manage disasters. The results points, in political terms, that the
authorities remain unprepared due the absence of an accountability ethics.
Key words: Disasters, Civil Defense, Sociology of Disasters.
* O texto deste artigo corresponde à comunicação apresentada ao II Congresso Internacional de Riscos e VI Encontro Na-
cional, tendo sido submetido para revisão em 28-05-2010, tendo sido aceite para publicação em 30-07-2010.
Este artigo é parte integrante da Revista Territorium, n.º 18, 2011, ® RISCOS, ISBN: 0872- 8941.
RISCOS - Associação Portuguesa de Riscos, Prevenção e Segurança
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Introdução
Na Sociologia dos Desastres, os consensos seguem
mínimos acerca das características de seu objeto de
estudo. Entretanto, a reduzida convergência em torno do
conceito de desastre tem sido possível no que tange à três
aspectos, a saber: o entendimento do termo como algo
que reporta algo geográfi ca e temporalmente delimitado;
sua correspondência a um evento de conotação ruim e,
por fi m, sua concepção como um fenômeno de caráter
social ou, mais precisamente, apresentando uma
natureza disruptiva da estrutura e/ou do sistema social
(M.LINDELL & R.PERRY, 2004; E. QUARANTELLI, 2005). Daí, ser
possível derivar que a análise sociológica esteja muito
à vontade para debruçar-se sobre diferentes tessituras
sócio-históricas e sócio-espaciais, que apresentam
severas adversidades - agudas e crônicas, nas dimensões
objetivas e subjetivas da existência individual e coletiva
- e nisso identifi car aspectos variados de um desastre,
dos mais evidentes aos mais ocultos.
O âmbito midiático voltado para a busca de evidências
relacionadas a um desastre - e que contribue para a
construção do fenômeno no imaginário macrossocial
envolvente - costuma tomar como foco principal o
discurso perito voltado para o detalhamento do fator
de ameaça que impactou determinada localidade,
alguns aspectos dos danos materiais e prejuízos havidos
assim como testemunhos dos afetados graves, os quais,
nas primeiras horas, constatam o desfazimento de seu
mundo concreto e simbólico. Já no plano oculto ou
menos abordado, embora relevante, fi cam os aspectos
das insufi ciências e limitações do aparato institucional
de defesa civil para agir, tivesse sido idealmente na
redução dos riscos ou, ainda, para responder melhor no
contexto de destruição.
Ocorrências persistentes de um mesmo tipo de desastre -
associadas ao impacto de ameaças regulares e previsíveis,
incidindo sobre uma mesma localidade - são indícios fortes
de que, por trás da cena desoladora, há uma arquitetura
sociopolítica preocupante. Para antes da vulnerabilidade
social persistente, tais ocorrências apontariam a
presença de uma vulnerabilidade institucional de
defesa civil para lidar com os desafi os intrínsecos à sua
missão, dentre os quais, o de dominar, numa perspectiva
complexa e multiescalar, um conhecimento aprofundado
acerca das conexões socioambientais produtoras de
riscos múltiplos que derivam em tais desastres; o de
demonstrar uma efi ciente coordenação intersetorial,
envolvendo o meio público e o privado, para reduzir ou
mitigar os efeitos dos fatores ameaçantes freqüentes e,
por fi m, o de promover uma interação adequada com
a sociedade civil induzindo processos de resiliência
na vida cotidiana. Se tais desafi os não estão postos na
agenda institucional ou, se estando, não são vencidos
progressivamente e a contento, constatada está a fraca
refl exividade institucional. Uma autocrítica institucional
pálida leva à cristalização, ao invés de ao arejamento,
do discurso e das práticas de defesa civil, instaurando
a dissociação dessa fração do Estado com a sociedade
civil até o ponto em que a proteção ao cidadão, de fato,
desaparece, some de vista; embora, numa ambigüidade
aparente, a burocracia dos órgãos do setor, aumente.
Diante tal contexto, até mesmo um fator de ameaça
de baixa intensidade e magnitude causa sérios danos
humanos, materiais e ambientais. Portanto, atentar para
indícios de vulnerabilidade institucional de defesa civil,
nas práticas e visões dos órgãos competentes, é algo que
deva preceder ao atendimento puro e simples dos apelos
por mais verbas, mais equipamentos e mais funcionários
para a reconstrução no pós-impacto, pois haverá de ruir
e falhar, constantemente, tudo aquilo que escape de
sólidos compromissos sociopoliticos com a defesa da vida
e do bem-estar coletivo.
À moda da vertente construcionista, é oportuno
considerar que o discurso sobre o desastre visa gerar
providências nas entranhas no aparato burocrático
estatal. Porém, isso não signifi ca que se trata de algo
totalmente objetivado, uma realidade manifesta e de
descrição consensual, e tampouco que tais providências,
uma vez tomadas, cumpram o desiderato de reduzir a
vulnerabilidade daqueles em nome de quem a autoridade
de defesa civil se pronuncia. Tanto o desastre é uma
representação social, dentre outras, acerca da realidade
socioambiental, incluindo as que invisibilizam tal
realidade, quanto sua evocação pode intentar cumprir
propósitos distintos do auxílio aos que estão em risco ou
foram seriamente afetados.
No Brasil, o discurso ofi cial sobre o desastre, isto
é, a vocalização que o ente público faz sobre os
acontecimentos socioambientais no território sob a sua
jurisdição, versa evidentemente sobre a disrupção da
normalidade e o faz num intuito mobilizador. Na melhor
das hipóteses, tal discurso é proferido na expectativa
de incitamento à uma consciência coletiva solidária,
com concentração de esforços técnicos e voluntários no
suprimento de necessidades imediatas e na reconstrução
em prol de afetados. Embora isso, as providências
públicas, não raro, se esvainecem na morosidade
burocrática, solapando as iniciativas coletivas que buscam
reancorar as relações econômicas e extra-econômicas do
lugar. Na pior das hipóteses, o discurso ofi cial sobre o
desastre é instrumental ao projeto de poder de quem
o emite, sujeito este que distorce o seu compromisso
na função pública para agir como grupo de interesse,
visando o reforçamento fi nanceiro da máquina estatal
sob o seu controle e passível de desvio; é instrumental,
ainda, ao prestígio personalista dos heróis de ocasião
e ao atendimento aos lucros dos negócios dos setores
de abastecimento e construção que estão articulados
rapineiramente ao contratante estatal. Nesses casos,
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os desastres ganham alarde ofi cial e a comoção pública,
porém, os mais afetados podem permanecer na penúria.
Há, por fi m, situações nas quais o pronunciamento sobre
o desastre não é feito pelo ente ofi cial ou quem quer
que seja e a situação permanece olvidada, nas palavras e
práticas tanto estatais quanto da coletividade envolvente.
Ao deixar-se de prestar o auxílio devido aos grupos mais
fragilizados, as mazelas graves e extensivas destes são
vividas na invisibilidade social, sendo a omissão pública
um mecanismo que explicita discriminação e preconceito
e que poderia ser considerado como uma forma de
genocídio (cf. Z. BAUMAN, 1998).
No caso brasileiro, aquilo que se denomina como
modernidade incompleta (cf. J.S.MARTINS, 2002) e
modernização conservadora (cf. M.C.TAVARES, 1979) são
processos macrossociais explicativos não apenas da
recorrência dos mesmos tipos de desastres mas, também,
da lógica subjacente ao padrão de inefi cácia do ente
público para evitá-los. A modernidade incompleta torna
a cidadania inconclusa e, assim, o inchamento do aparato
burocrático estatal não corresponde e obstaculizar
a interlocução com parte da sociedade civil. Ocorre
dos agentes do Estado olvidarem, recorrentemente,
os princípios fundamentais da administração pública,
como o de probidade no trato da coisa pública, o de
impessoalidade e o da igualdade nas interações com o
cidadão; daí, tais agentes se entenderem livres tanto
para atuar sob uma ética corporativa - que se utiliza
do aparato público para instrumentalizar interesses
pessoais e de grupos técnicos no interior das repartições,
deslocados da preocupação com o bem comum – quanto
para endossar relações assimétricas que envolvem, dentre
outros, projetos territoriais que guardam diferentes
gradações de legalidade e legitimidade. A modernização
conservadora, por seu turno, se expressa no conteúdo
propriamente econômico dessas relações assimétricas.
Ilustrada está no forjamento de processos de apropriação
– privada, concentrada e excludente - do território e
de seus recursos, com o indispensável aval e apoio da
máquina estatal, do que derivam as relações contratuais
aviltantes aos trabalhadores e o descarte progressivo
destes pelo incremento de investimentos, culminando
na processual inviabilização da sua sobrevivência, losers
em que se tornam. Daí porque a paisagem da abundância
e da miséria explicam-se mutuamente, ante um Estado
impassível a ver a iniqüidade distributiva se refl etindo
no território e predispondo-o aos desastres. O processo
de urbano-industrialização dos últimos sessenta anos
deu-se a partir de acessos privilegiados à máquina
pública por alguns setores da sociedade brasileira, o
que corresponde à naturalização de uma racionalidade
estatal não includente e, portanto, balizadora de
práticas que dilaceram o espaço ao invés de integrá-
lo, além de suprimir os préstimos do serviço público
a uma parcela dos civis, o que mina a capacidade de
autoproteção destes, os quais serão os primeiros grupos
sociais afetados severamente nos desastres.
Dito isso, dissolve-se a aparente contradição de um
Estado que, sendo parte constituinte da sociedade e,
portanto, ideal e constitucionalmente compromissado
com o bem-estar geral, no plano concreto, induz
processos de territorialização e interações sociopolíticas
susceptíveis aos desastres. Como também dissolvida
está a contradição de um Estado que, formalizando a
instituição de defesa civil, nos seus respectivos níveis de
governo (federal, estadual e municipal), e constituindo
quadros técnicos, não defl agra um autoexame e nem
faz um mea culpa, mesmo ciente de que os desastres
estão em franca ascensão no espaço geopolítico da
nação. Por fi m, anula-se a contradição aparente entre
o alargamento do tecido institucional de defesa civil,
no Brasil, ampliado em contigente humano e recursos
materiais disponíveis, e a constatação pública do
incremento da vulnerabilidade sócio-espacial aos
eventos naturais ameaçantes, dentre outros.
A fi m de que as assertivas supra não fi quem ao sabor
das especulações, passa-se a examinar, a partir de
informações quantitativas e ofi ciais, cinco dentre as
mais relevantes variáveis no tema, quais sejam:
• A evolução numérica das ocorrências de desastres, no
Brasil, no período de 2003 a 2009;
• A evolução da afetação humana no nível nacional;
• A evolução da afetação humana e do número de
ocorrências nas cinco macrorregiões do país;
• Características demográfi cas dos municípios mais
susceptívies a ocorrências;
• Os tipos de desastres mais freqüentes, segundo o fator
de ameaça.
O conjunto dos resultados relacionados às variáveis
supra permitirá demonstrar, no caráter generalizante,
recorrente e incremental dos desastres, no Brasil, que há
indícios de que, aos desastres, precede a vulnerabilidade
institucional do Sistema Nacional de Defesa Civil (SINDEC)
a qual, por seu turno, expressa o teor do modelo de
desenvolvimento perverso adotado no país. Esse é o
desastre-mor a se enfrentar.
Os resultados quantitativos supra foram obtidos a partir
da sistematização, produzida pelos autores, em planilha
Excel, de aproximadamente treze mil informações
oriundas do acervo de dados ofi ciais da Secretaria
Nacional de Defesa Civil (SEDEC), vinculada ao Ministério
da Integração Nacional da República Federativa do
Brasil, e do Instituto Brasileiro de Geografi a e Estatísitica
(IBGE). Refere-se aos dados consolidados das portarias e
ocorrências de s.e. e e.c.p. disponibilizados na página
ofi cial da SEDEC, em 26 de janeiro de 2010, bem como
RISCOS - Associação Portuguesa de Riscos, Prevenção e Segurança
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aos dados de ocorrências de desastres notifi cados à SEDEC
e disponibilizados em sua página ofi cial nos dias 16 e
24 de fevereiro de 2010. Como um estudo exploratório,
está-se a lançar hipóteses para investigações futuras, de
natureza científi ca e técnica. Dentre elas, a de que há
problemas pontuais quanto à fi dedignidade de alguns dos
dados brutos, lançados pela SEDEC e relacionados a certos
municípios, comprovado por coincidências numéricas
que, legitimamente, colocam tais dados em suspeição.
Em que pese a corroboração futura de tal hipótese, a
análise qualitativa do evolutivo global dos desastres no
Brasil, aqui empreendida, não se altera e há que se ter
em mente que as eventuais falhas na emissão dos dados
que constituem a informação são parte constitutiva
de uma prática burocrática eventualmente descolada
do compromisso de um espelhamento mais rigoroso do
sofrimento social sob a sua jurisdição.
O desastre como fatalidade ou a explicação desprovida
de substância social
Nas últimas décadas, o debate no âmbito da teoria
sociológica contemporânea sobre o tema dos riscos
viu-se bifurcado entre os realistas, sobretudo com as
contribuições de U. Beck (1992), e os construcionistas,
tendo em M. DOUGLAS (1976; 1992) um de seus principais
expoentes. A Sociologia dos Desastres se favoreceu
amplamente desse debate. Um desastre, a rigor, implica na
concretização de um risco, estivesse ele ou não elencado
no rol dos que atemorizavam uma dada coletividade.
A disrupção daquilo que era entendido, até então, como
normalidade num dado contexto espaço-temporal,
defl agrando danos e perdas materiais, ambientais e
humanoas em monta superior à capacidade local de
resposta, é algo verifi cável em termos objetivos, no
mundo sensível. Mas há implicações do fato concreto
tanto na produção territorial e social da modernidade,
isto é, nos excessos, nas saturações e nos efeitos
indesejáveis que vimos assistir na concretização de fi xos
e fl uxos que associamos ao progresso quanto nas práticas
levadas a cabo por sistemas peritos intervenientes
nos elementos materiais da paisagem que compõem
aspectos fundamentais da realidade concreta, na qual
determinados sujeitos sociais ajustam e promovem a sua
existência cotidiana. Afi rma A. GIDDENS (1997) que, nas
relações sem rosto, típicas do atual estágio da modernidade
(modernidade tardia), a confi ança nas instituições,
públicas e privadas, se traduz na competência perita
para resolver os problemas pontuais para os quais tais
agentes se encontram pressupostamente qualifi cados.
Assim, embora os riscos que demandem equacionamento
sejam constantes, a rigor, nunca deveriam ser os
mesmos, pois a dinamicidade do meio socioambiental
exigiria competência institucional correspondente para,
no bojo de uma cultura de segurança, amainar a opinião
pública. É dizer: ‘algo está sob controle’, embora este
algo perfi le o passado recente e lance ao desfi ladeiro
das incertezas aquilo que está a passar sob os olhos do
presente, que dirá do futuro que se avizinha. ‘Daquele
mal não mais sofreremos’, eis no que se reduziu a
tranqüilidade coletiva em contexto de modernidade
tardia. E, se porventura, dentro de tal espírito, o sistema
perito falhe, a confi ança pública no mesmo decresce
ao ponto de exigir a sua renovação estrutural. Isso
esteve a passar em várias sociedades que criam que a
complexidade dos investimentos, traduzida em sinergia
dos riscos, trar-lhes-iam a correspondente atualização
das práticas das instituições voltadas para o controle
dos mesmos, gerando relativa segurança no conturbado
mundo em constante mudança. É bem verdade que se
trata, no imaginário social, de uma corrida em que as
instituições voltadas para a segurança andam a passo de
tartaruga; mas, ainda assim, mantendo o foco na lebre
o que, no caso, são os riscos cada vez mais complexos
que a intensifi cação do capital no espaço gera. No caso
brasileiro, a lebre está a léguas de distância e sequer a
tartaruga sabe de que competição se trata.
No referido país, quando um município decreta, e tem
reconhecido, nos níveis superiores do Sistema Nacional
de Defesa Civil (SINDEC), a sua situação de emergência
(s.e.) ou estado de calamidade Pública (e.c.p.), em última
instância, reconhece a sua vulnerabilidade institucional.
Ou seja, reconhece a sua incapacidade estrutural para
lidar com um evento que impactou deleteriamente
aquela jurisdição, engendrando a materialização de
danos e prejuízos aos cidadãos ali inseridos. Trata-se,
assim, de um indicador de falha no cumprimento do
contrato social relativo à organização e administração
pública do espaço das relações econômicas e extra-
econômicas territorializadas, o que fere dimensões de
confi ança coletiva que, às duras penas, precisariam ser
repactuadas, sempre em bases relacionais e materiais
mais precárias. Se tal repactuação não ocorre é devido
menos ao sentimento de indignação dos afetados na sua
relação com o Estado do que ao histórico de assimetria
que compõe o repertório de práticas de distanciamento
dos agentes públicos em relação à sua responsabilidade
no que concerne ao caos ali instituído (N. VALENCIO, 2009).
No Brasil, os processos de territorialização traduzem as
desigualdades sociais. As relações assimétricas sujeitam
todos aos desastres, embora os empobrecidos os
vivenciem mais intensamente. É certo que a sucessão de
perdas e danos, traduzida em intenso sofrimento social
para os grupos sociais economicamente mais vulneráveis,
tende a romper gradualmente com a subserviência
destes, ensejando que a injustiça social não seja mais
nominada como de responsabilidade das ‘chuvas’ e das
‘secas’. Há uma relutância crescente de tais grupos à
uma aceitação passiva da explicação tanto inspirada
em bases do cristianismo de denominação católica –
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que antropomorfi za os fenômenos hidrometeorólogicos
(São Pedro assim o quis) – quanto disciplinadora do
pensamento leigo para com as miudezas da explicação
das ciências naturais (com o milímetros da precipitação
pluviométrica, os kilômetros da velocidade do vento em
rajadas, e assim por diante). Em ambas as explicações,
o sistema perito em defesa civil não disporia de
controle sobre os fatores de ameaça e pouco haveria
a fazer para evitar calamidades. Tratar-se-ia daquilo
que se convencionou denominar como fatalidade e,
ao ente público, não caberia senão contabilizar os
prejuízos e/ou ampliar os meios técnicos e materiais
para aprofundar o conhecimento dos fenômenos
da natureza, sem que as providências cabíveis, nos
termos da compreensão da vulnerabilidade, adquiram
tratamento similar. A sucessão e ampliação dos desastres
dito naturais, além dos cenários de incremento dos
mesmos - vislumbrados, em termos globais, pelo quarto
relatório do Painel Intergovernamental de Mudança do
Clima-IPCC e decodifi cados, no plano governamental
nacional, majoritariamente pela expertise das ciências
atmosféricas - operam para incutir e garantir um viés
apolítico nas explicações hegemônicas acerca dos
fenômenos disruptivos essencialmente socioambientais.
Em que pese a importância das ciências atmosféricas para
estabelecer a compreensão de eventos potencialmente
adversos da natureza, o angariamento de um peso
desproporcional de seus argumentos frente à estrutura
e dinâmica da realidade sócio-espacial inviabiliza que o
tema dos desastres se apresente como propício para um
debruçar refl exivo e crítico sobre a simbiose da riqueza e
da pobreza na produção social das territorialidades cada
vez mais inseguras, imbricado no que está a incapacidade
de atuação do Estado.
Abrangência, incidência e conteúdo das portarias de
reconhecimento ofi cial dos desastres
O despreparo generalizado do poder executivo
municipal, visando à redução dos desastres, pode ser
examinado através (a) da quantidade de portarias de
situação de emergência (s.e.) e de estado de calamidade
pública (e.c.p.) emitidas no período 2003-2009, (b) da
reincidência da decretação de desastre no período
2003-2009 e (c) da a associação de tais desastres com
os eventos conhecidos, regulares e previsíveis de secas
e chuvas. Já os indicativos de que os demais níveis do
governo (estadual e nacional) não estão logrando êxito
nos esforços de contenção da vulnerabilidade são:
(e) a evolução percentual do número de portarias no
período 2003-2009, (f) a comparação do quantitativo
do período 2003-2009, e dos sub-períodos 2003-2006 e
2006-2009, com o total de municípios existentes no Brasil
e (g) a distribuição das portarias nos diferentes estados
da federação aos quais os municípios, em desastres
reconhecidos pelo ente federal, pertencem.
As portarias de situação de emergência (s.e.) e estado
de calamidade pública (e.c.p.) no período 2003-2009
totalizaram o número de 10.195, com média de 1.456,42
portarias ao ano. Tirante 5 ocorrências que não foram da
parte de autoridades municipais, tem-se 3.141 municípios
responsáveis por defl agrar 10.190 decretações de
desastres. Destes, 1.016 municípios o fi zeram, no período
supra, apenas uma única vez; reincidentes, em duas
ocorrências, foram 601 municípios; em três ocorrências,
481 municípios; de quatro a seis ocorrrências, 660
municípios; até chegar-se aos 383 municípios com sete
ou mais portarias emitidas no período 2003-2009 (33,35%
do total de portarias), ou seja, uma ou mais a cada ano,
o que denota tanto a ausência absoluta de resiliência
quanto um habitus burocrático para a comunicação
de tragédias. Os eventos de secas e chuvas são os que
predominam na informação ofi cial como causa da
decretação dos desastres. No período 2003-2006, das
5.777 portarias de reconhecimento de s.e. ou e.c.p.,
4.256 foram devido às secas e estiagens prolongadas e
1.517 devido às chuvas (Brasil, 2007), isto é, 99,93% do
total de portarias tratam de ameaças relacionadas ao
stress hídrico ou excesso de águas pluviais. No período
2006-2009, 3.628 portarias foram relacionadas às secas e
estiagens prolongadas e 1.711 portarias devido às chuvas,
somando 5.339 (98,88%) das 5.399 portarias do período.
O conjunto de municipalidades ora existentes no país é de
5.565. Conforme acima dissemos, no período 2003-2006,
5.777 municípios brasileiros tiveram o reconhecimento
de sua s.e. ou e.c.p. (Brasil, 2007); isso representa,
numericamente, pouco mais que a soma total dos
municípios brasileiros. É como se um Brasil inteiro e
um tanto a mais tivesse sofrido desastres. No período
de 2006-2009, as 5.399 portarias chegam à volta do
correspondente a quase um Brasil; e, assim, as 10.195
portarias no período dos últimos sete anos (2003-2009)
correspondem a dois Brasis destruídos em desastres que
ofi cialmente estão relacionados, predominantemente, à
água, demonstrando uma inefi ciência das práticas técnicas
para lidar com o stress hídrico ou com o excesso de águas
pluviais a ponto de causar extensivos danos econômicos e
extra-econômicos à coletividade. Ilustrativamente, vê-se
o município de Caridade, no estado do Ceará, aparecer no
período 2003-2009 com 16 portarias de reconhecimento de
desastre, 12 delas relacionadas às secas e 4 relacionadas
às chuvas; o município de Ibiaí, no estado de Minas Gerais,
com 10 portarias, sendo 6 delas relacionadas às secas e 4
relacionadas às chuvas; Palmitinho, estado do Rio Grande
do Sul, com 9 portarias, das quais 6 relacionam-se às
secas e estiagens prolongadas 3 às chuvas; e, por fi m,
Salete, no estado de Santa Catarina, com 7 portarias das
quais 4 associam-se às secas e estiagens prolongadas e 3
às chuvas.
Na distribuição por estados da federação, tem-se que,
RISCOS - Associação Portuguesa de Riscos, Prevenção e Segurança
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no ano de 2003, os três primeiros estados no ranking dos
municípios com portaria com reconhecimento de desastre
foram o de Minas Gerais (1.o lugar, com 315 portarias),
o da Paraíba (2.o lugar, com 274 portarias) e o do Rio
Grande do Sul (3.o lugar, com 129 portarias). No ano de
2006, as posições correspondentes couberam aos estados
do Ceará (1.o lugar, com 272 portarias), Santa Catarina
(2.o lugar, com 200 portarias) e, empatados, Minas Gerais
e Paraíba (3.o lugar, ambos com 92 portarias). E, no ano
de 2009, couberam, respectivamente, aos estados do Rio
Grande do Sul (1.o lugar, com 319 portarias), Ceará (2.o
lugar, com 172 portarias) e Santa Catarina (3.o lugar,
com 163 portarias). Assim, tanto estados da federação
considerados de maior desenvolvimento (como Santa
Catarina, Rio Grande do Sul e Minas Gerais), quanto de
menor desenvolvimento (como a Paraíba e o Ceará) são
líderes em desastres no período.
A vulnerabilidade social aos desastres: afetados em
geral, desalojados e desabrigados
No período 2007-2009, os desastres reconhecidos
ofi cialmente pela instância federal provocaram, segundo
as informações da SEDEC, a afetação de 11.942.804
pessoas. Em 2007, foram 2.745.677 de afetados,
chegando a 5.541.447, em 2009, num expressivo
aumento de 101,82%. Essa afetação ocorre tanto no que
concerne ao mundo público quanto privado, com perdas
e prejuízos no âmbito econômico e social.
Dentre os afetados, destacam-se os subgrupos de
desalojados e o de desabrigados, ambos caracterizados
por uma vulnerabilidade sócio-econômica precedente ao
evento dito ‘desastre’, a qual restringe as suas opções
de territorialidade. Da destruição ou danifi cação severa
da moradia à inviabilização de sua permanância no lugar
subjaz a vivência da perda de bens móveis de valor material
e simbólico. Todos esses são aspectos fundamentais para
defi nir, pelo lugar produzido, a trajetória social bem
como as bases cotidianas disponíveis para a elaboração
identitária do grupo; e donde, ainda, se antevê as agruras
pelas quais o grupo passará, tornando o contexto de pós-
-impacto propenso a elevar a sua vulnerabilidade social a
um patamar extremo.
Os desalojados constituem-se do grupo que conta
com o suporte de uma rede privada de relações para
obter um acolhimento provisório junto ao domicílio de
parentes, vizinhos e amigos; alternativamente, através
das providências do Estado, o grupo conta com o auxílio-
moradia que viabiliza a locação de curto prazo de um
imóvel outro para garantir a sua privacidade. Já os
desabrigados são aqueles cujas circunstâncias tornam
constatável a ausência de tal rede ou inviabilidade de
acessá-la, seja porque os agentes a quem o indivíduo
ou família iriam recorrer foram igualmente afetados
ou residem em localidades distantes ou, ainda, porque
tais agentes vivam em situação estrutural ou pontual
limitante e não possam prestar o auxílio devido.
A característica mais relevante de uma sociedade
historicamente desigual, e que deveria alçar o status de
obviedade não fosse pelo seu intencional obnubilamento
pelas elites econômicas e políticas, é que os laços que
integram indivíduos e famílias ao ponto da acolhida
privada, em quaisquer cirscunstâncias, são constituídos
intraclasse. O higienismo social, cujas bases, no Brasil,
foram forjadas na sociedade escravocrata e mantidas
generalizadamente ao longo do processo modernizador,
torna a solidariedade interclasses uma barreira
intransponível, mesmo nas circunstâncias de desastres.
Os desastres são ocasião na qual a relação fundada na
assimetria encontra na servidão dos empobrecidos -
que colocam os seus préstimos a serviço da restauração
dos pequenos aborrecimentos dos afl uentes, como a de
empurrar-lhes o veículo que encalha nos alagamentos -
a correspondência nas práticas benemerentes dos ricos,
que disponibilizam, para o atendimento aos mínimos
sociais dos desprovidos, e numa pretensa altivez, aquilo
que não mais lhes serve, ou não lhes fará falta, roubando
aos últimos os resquícios de sua dignidade: estes se vêem
compelidos ao aceite de roupas, colchões e cobertores
usados; de mantimentos de primeiríssima necessidade,
de gadgets ultrapassados e de semi-funcionamento.
A urgência dos pobres retira-lhes qualquer direito de
escolha e de preferência enquanto que, de outro lado,
é a oportunidade para a faxina dos ricos. Mantido nesses
termos, o desastre renova e reforça a segregação com
tonalidades de coesão social.
Ao longo do pós-impacto e quanto mais retarde
as providências de reconstrução, mais se assiste à
transformação de desalojados em desabrigados e vice-
versa. O desalojado torna-se desabrigado quando cessam
as condições de acolhida privada, no geral, devido à
perda (a) do ambiente de liberdade e intimidade da
família anfi triã ou (b) das condições materiais desta
para dar continuidade ao apoio aos acolhidos ou, ainda,
(c) decorrente da insufi ciência ou suspensão do valor
de auxílio-moradia fornecido pelo Estado para prover
o aluguel de um imóvel alternativo. A alteração da
condição de desabrigado para a de desalojado dá-
-se, sobretudo, quando o contexto de convivência e
suprimento dos mínimos vitais no abrigo provisório se
torna aquém do admissível aos valores, princípios e
necessidades psicossociais e materiais do indivíduo ou da
família, o que defl agra a busca de alternativas junto à
rede privada e na reivindicação exitosa junto ao Estado
para obter o auxílio-moradia (VALENCIO, 2009). Há, ainda,
a situação usual de desabrigados e desalojados que,
diante a imobilidade do ente público para reconstruir
moradias, retornam aos terrenos interditados e ali
refazerem parcamente seu teto visando a restituição de
territorium 18
153
sua privacidade – fundamento da saúde psicossocial - e
rearticularem seus meios de vida; e, por fi m, há os que
vivenciam o descaso absoluto dos gestores públicos com
os desabrigados e, assim, lhes é oferecido a total ruptura
da esperança. Em anomia, este grupo segue em migração,
sem moradia e sem perspectivas, perambulando pelas
cidades, como população em situação de rua.
No ano de 2003, os desalojados somaram 92.345
pessoas e os desabrigados 35.380, totalizando 127.725
pessoas em vulnerabilidade extrema por decorrência de
desastres (Brasil, 2007). Três anos após, em 2006, foram
70.655 desalojados e 61.365 desabrigados, num total
de 132.020 pessoas (Brasil, 2007). No ano de 2009, os
desalojados somaram 304.947 pessoas e os desabrigados
123.254, totalizando 428.201 pessoas. Observa-se que,
no comparativo dos anos de 2003 e 2006, o crescimento
do contingente em vulnerabilidade extrema pós-impacto
foi de 3,36 % e, no comparativo dos anos de 2006 e 2009,
o crescimento foi de 224,34%.
A dimensão regional de incidência dos desastres e da
afetação humana no período 2007-2009
O Brasil conta com cinco macrorregiões: Sul, Sudeste,
Centro-Oeste, Norte e Nordeste. No que concerne
à vulnerabilidade macrorregional, há três variáveis
considerar, a saber: (a) a evolução do número de
pessoas afetadas em cada macrorregião; (b) a variação
percentual da afetação humana por macrorregião e
(c) a representatividade percentual da macrorregião
no conjunto da afetação humana anual nacional. Ao
se analisar conjuntamente as variáveis (a) e (b), se
observa que apenas a região Centro-Oeste apresenta
uma curva descendente no número de pessoas afetadas
pelos desastres: inicia, o referido período, com 344.071
afetados e chega a 73.246, em 2009, resultando num
decréscimo de 78,71%. A região Sul, ao contrário,
apresenta uma signifi cativa curva ascendente que
inicia em 341.358 afetados, em 2007, para chegar
ao quantitativo de 1.956.536, em 2009, um aumento
de 473,16%. A região Nordeste e Norte apresentam,
respectivamente, no período, acréscimos do contingente
humano afetado em 124,90% e 151,52% (Fig. 1). Por fi m,
a região Sudeste, embora com uma relativa estabilização
no número de afetados no período, os apresenta na
considerável soma de, aproximadamente, um milhão de
pessoas: em 2007, foram 984.478 afetados; em 2008,
1.0323.05, e, em 2009, 1.028.843 afetados (Quadro I).
Fig. 1 - Variação percentual do número de afetados entre 2007-
2009, por macrorregião( Fonte: Dos autores, baseado em infor-
mações da SEDEC/MI)
No que concerne à representatividade percentual da
macrorregião no conjunto da afetação anual nacional,
é de notar que a macrorregião Nordeste mantém
relativamente estável, e elevada, sua participação nos
eventos de desastres, em torno de um terço de todas
as ocorrências do período 2007-2009. Isso indica uma
vulnerabilidade persistente, de caráter estrutural, que
parte de 838.589 pessoas para chegar ao patamar de
1.886.018, num acréscimo de um milhão de pessoas em
apenas dois anos. A macrorregião Sul, por seu turno,
vem crescendo em sua participação a mais de 10 pontos
percentuais a cada ano, partindo de 12,43% no total
de afetação, no ano de 2007, para chegar a 35,31% em
2009, numa vulnerabilidade em ritmo crescente. Em
2007, a afetação do Sul era inferior à do Nordeste em
497.231 pessoas e, em 2009, se torna superior em 70.518
pessoas (QUADRO I).
QUADRO I – Distribuição macrorregional dos afetados em desastres, período 2007-2009
Região Afetados em 2007 Afetados em 2008 Afetados em 2009
N % relativo ao ano N % relativo ao ano N % relativo ao ano
Centro-Oeste 344.071 12,53 224.979 6,15 73.246 1,32
Nordeste 838.589 30,54 1.157.608 31,67 1.886.018 34,03
Norte 237.181 8,64 374.952 10,26 596.801 10,77
Sudeste 984.478 35,86 1.032.305 28,24 1.028.846 18,57
Sul 341.358 12,43 865.836 23,68 1.956.536 35,31
TOTAL 2.745.677 3.655.680 5.541.447
Fonte: Os autores, baseado em informações da SEDEC/MI
-200,00%
-100,00%
0,00%
100,00%
200,00%
300,00%
400,00%
500,00%
600,00%
Centro-oesteNordesteNorteSudesteSul
Macrorregião
RISCOS - Associação Portuguesa de Riscos, Prevenção e Segurança
154
A afetação humana nos desastres pelo recorte do porte
municipal
No período 2007-2009, observa-se que todos os sete
estratos de porte municipal - defi nidos pelo Instituto
Brasileiro de Geografi a e Estatística (IBGE) a partir de
critérios demográfi cos - apresentaram crescimento
no número de afetados em desastres. Os sete estratos
referidos são:
• municípios de até 5.000 habitantes;
• municípios de 5.001 a 10.000 habitantes;
• municípios de 10.001 a 20.000 habitantes;
• municípios de 20.001 a 50.000 habitantes;
• municípios de 50.001 a 100.000 habitantes;
• municípios de 100.001 a 500.000 habitantes; e
• municípios acima de 500.000 habitantes.
O crescimento percentual de afetados nos municípios
de pequeno porte foi signifi cativamente maior do que o
observado nos municípios de maior porte. Os municípios
em estratos de até 5.000 habitantes, de 5.001 a
10.000 habitantes e de 10.001 até 20.000 habitantes,
considerados como municípios de pequeno porte,
obtiveram crescimentos respectivos de 343,81%, 125,24%
e 309,66% do número de pessoas afetadas por desastres
em sua jurisdição de 2003 a 2009. Tais valores parecem
ainda mais preocupantes ao serem comparados com os
de municípios de classifi cações de 100.001 a 500.000
habitantes e acima de 500.000 habitantes, considerados
de grande porte, que tiveram crescimentos respectivos
de 8,67% e 25,25% no número de afetados por desastres.
Os municípios de médio porte, ou seja, os municípios
situados nos estratos de 20.001 a 50.000 habitantes e
de 50.001 a 100.000 habitantes, tiveram respectivos
crescimentos de 160,60% e 61,35% na afetação humana,
o que se coloca entre os extremos mencionados
anteriormente (QUADRO II e Fig. 2). É lícito indagar
que o contingente humano incrementado no conjunto
de municípios de maior porte seria hipoteticamente
superior tanto ao conjunto do contingente incrementado
dos municípios de menor porte quanto do conjunto dos
municípios de médio porte. No entanto, no ano de 2009,
o conjunto dos municípios de menor porte apresentou
2.428.308 de pessoas afetadas no seu todo, o conjunto
de médio porte, 2.273.155 afetados, enquanto o
conjunto dos municípios de grande porte apresentou
839.984 afetados.
Fig. 2 - Variação percentual do número de afetados entre 2007
e 2009 por porte dos municípios (Fonte: Dos autores, a partir de
informações de ocorrências da SEDEC/MI e da classifi cação de
porte municipal da FIBGE).
Por fi m, há que se advertir que, na criação da Política
Nacional de Defesa Civil (PNDC), em meados da década
de 1990, foi implantado o CODAR (Código de Desastres,
Ameaças e Riscos). Mas, o SINDEC descuidou do uso
rigoroso do código que tipifi ca o desastre em diferentes
categorias e, por conta desse descuido, cada órgão
de defesa civil se sente à vontade para caracterizar o
desastre da localidade com denominações próprias, o
que difi culta que essa informação seja passível de uma
análise evolutiva e comparativa adequada, tanto no
que concerne a trajetória de desastres numa mesma
localidade, quanto no que diz respeito a este evento
numa perspectiva regional e nacional, o que exigiu dos
autores a análise e ajustamento de cada um dos mais
Quadro II – Distribuição dos afetados em desastres, por porte do município de inserção, período 2007-2009
Porte Afetados em 2007 Afetados em 2008 Afetados em 2009
N % relativo
ao ano
N% relativo ao
ano
N % relativo ao
ano
Até 5000 habitantes 115.641 4,21 175.933 4,81 513.222 9,26
5001 a 10000 habitantes 298.914 10,89 374.729 10,25 673.285 12,15
10001 a 20000 habitantes 303.132 11,04 615.212 16,83 1.241.801 22,41
20001 a 50000 habitantes 639.046 23,37 950.088 25,99 1.665.343 30,05
50001 a 100000 habitantes 376.710 13,72 373.832 10,23 607.812 10,97
100000 a 500000 habitantes 660.794 24,07 1.110.180 30,37 718.102 12,96
Acima de 500000 habitantes 97.310 3,54 55.706 1,52 121.882 2,20
Sem porte – Ocorrências
notifi cadas pelos governos
estaduais
254.130 9,26 0 0 0 0
TOTAL 2.745.677 3.655.680 5.541.447
Fonte: Dos autores, a partir de informações de ocorrências da SEDEC/MI e da classifi cação de porte municipal da FIBGE
0,00%
50,00%
100,00%
150,00%
200,00%
250,00%
300,00%
350,00%
400,00%
Até 5.000
habitantes5.001 a 10.000
habitantes10.001 a 20.000
habitantes20.001 a 50.000
habitantes50.001 a 100.000
habitantes100.001 a 500.000
habitantesAcima de 500.000
habitantes
Porte dos municípios
territorium 18
155
de 10 mil casos de portarias sobre as quais esse estudo
se debruçou. Por vezes, são os códigos dos municípios
os imprecisos, mas que deveriam estar ajustados de
acordo com o que lhes atribui o IBGE. Uma vez que
haja o descuido do gestor na utilização de um código
instituído na própria PNDC e no IBGE, isso aponta para
riscos em relação à coleta e transcrição do dado fi nal,
comprometendo a fi dedignidade do documento frente
à realidade concreta que está sendo representada. É
de notar que tal documento, denominado Avaliação de
Danos (AVADAN) é base para o reconhecimento daquela
situação de emergência ou estado de calamidade
pública na forma da portaria do Ministério da Integração
Nacional. Tal observação é pertinente quando, ao se
analisar as informações, deparamo-nos com casos como
o do município de Barra, no estado da Bahia, com duas
portarias, uma relativa à enchente e outra relativa à
seca, ambas, no ano de 2007, com a coincidência no
número de 2.000 afetados; ou, ainda, no município de
Ibotirama, também no estado da Bahia, no ano de 2007,
com uma portaria reportando seca e outra portaria
reportando enchentes e igualmente com 2.000 afetados;
e, ainda no estado da Bahia, o município de Sítio do
Mato, que nos anos de 2007 e 2008, apresentou duas
portarias relacionadas à erosão fl uvial com 723 afetados,
suscitando tanto a suspeita de que a informação não
é condigna à realidade social, que é dinâmica, quanto
que o gestor, na instância mais elevada (nacional), não
cumpre o seu papel de zelar pela acurácia da informação
que é a fonte tanto de liberação de processos licitatórios
(isto é, foge de muitos dos mecanismos de controle
social no uso dos recursos públicos na contratação de
serviços para o ente público) quanto para obtenção de
verbas públicas suplementares. Ou seja, a informação
eventualmente pouco veraz pode corresponder a um
conjunto de práticas políticas pouco comprometidas com
lisura no uso da máquina pública.
Conclusões
Conforme dito ao início, portarias de reconhecimento de
desastres são atos da administração pública brasileira,
na instância federal, que, para o propósito dessa
investigação sociológica, foram tomadas como registros
ofi ciais que indicam a magnitude das falhas de gestão
pública de riscos e de desastres que estão a ocorrer nos
três níveis de governo (municipal, estadual e federal).
A portaria em si indica que, se o desastre ocorreu, o
nível local não se estava adequadamente prevenido,
preparado, nem capaz de proceder autonomamente à
resposta e à reconstrução e, com a reicidência de 2/3
dos municípios em comunicar o desastre (s.e. ou e.c.p.)
no período estudado (2003-2009), lança-se as hipóteses
de que (a) o apoio solicitado às instâncias superiores
não é recebido, (b) é recebido (em termos materiais,
fi nanceiros e técnicos), porém insufi ciente para dotar
a localidade de resiliência e (c) o habitus burocrático
de solicitação e atendimento às demandas é um novo
mecanismo de agenciamento de que utilizam grupos de
interesse à frente da máquina pública.
É um fenômeno sociopolítico de singular expressão a
proliferação de decretos municipais que ensejam as
portarias ministeriais de reconhecimento de desastres,
(a) abrangendo todo o país, incluindo estados da
federação de maior e menor desenvolvimento econômico;
(b) compondo uma afetação média anual de 1/4 do
conjunto dos municípios brasileiros; (c)reportando a
necessidade reiterada de atendimento a determinadas
municipalidades; (d)referindo-se, em curto período, a
tais municipalidades a partir da impactação sistemática
do mesmo fator de ameaça, o qual guarda características
de regularidade e previsibilidade; e, por fi m, (e) com
correspondente elevação do número de afetados e
recrudescimento da vulnerabilidade dos empobrecidos.
Frente a tal fenômeno, seria de supor que não coubesse,
aos governantes e à sociedade civil, num contexto
pleno de Estado Democrático de Direito, qualquer
tranqüilidade. Se as ameaças não são surpreendentes, e
os desastres tornam-se normais, há que se indagar: ‘de
que normalidade se está falando?!’ ‘A que permite a
manutenção da vulnerabilidade’, é a evidente a resposta.
Se a modernidade não fosse cá inconclusa, algo estaria a
mover-se no sentido inverso ao constatável descalabro,
fosse por requerimento, pertinaz e endógeno, das
autoridades da instituição envolvida, fosse por salutar
pressão social dos que vêem a sua cidadania, constituída
territorialmente, cada vez mais ameaçada. Entretanto,
no Brasil, vai-se aquém na modernidade nas instituições
públicas bem como na garantia da cidadania, o que são
aspectos mutuamente explicáveis.
As características supra revelam, no seu conjunto,
indícios de grave falha institucional do Sistema Nacional
de Defesa Civil. Remete, primeiramente, para uma
articulação entrópica em termos multiescalares. Quanto
mais avançam os relacionamentos entre as instâncias,
mais os desastres ocorrem. Em segundo lugar, remete
à incapacidade de ação transversal da instituição,
pois seria da natureza da defesa civil participar
ativamente na composição e recomposição das políticas
setoriais atinentes aos processos territoriais passíveis
de disrupção. Em terceiro lugar, porque claramente
descura no atendimento dos grupos mais fragilizados
(desabrigados e desalojados), ampliando a distância dos
mesmos ao acesso dos direitos fundamentais da pessoa
humana. Em quarto, porque testifi ca a ausência de
refl exividade institucional, que é atributo sine qua non
das instituições que querem se passar por modernas. Não
há evidências documentais de uma dinâmica institucional
de autodepuração, que leve a uma cabal superação da
prática socioambiental de disseminação dos desastres.
RISCOS - Associação Portuguesa de Riscos, Prevenção e Segurança
156
Mas há abundância de indícios no sentido oposto, que
são: a naturalização das comunicações burocráticas
das destruições e perdas coletivas; a cartorialização
e banalização das tragédias; o aprofundamento do
sofrimento social dos afetados e a supressão de sua
dignidade mínima; a pouca acessibilidade aos dados e
reduzida preocupação com a fi dedignidade dos mesmos,
fugindo ao rigor da padronização na caracterização
do desastre mediante utilização de código instaurado
na Política Nacional de Defesa Civil (CODAR), o qual
favoreceria análises comparativas; assim procedendo,
vem difi cultar a tarefa científi ca e do planejamento de
Estado no tema; e, por fi m, mas não menos importante,
no afrontamento das práticas institucionais ao
compromisso republicano para com o reforçamento da
identidade denominada humana, que é suportado pela
crescente melhoria da qualidade das relações sócio-
espaciais e sociopolíticas.
Logo, o que está evidenciado, é a ausência institucional
de uma ética de accountability, o que signifi ca que
tanto as autoridades encontram-se estruturalmente
despreparadas para interagir com a sociedade visando
prestar contas sobre as estratégias que visem reduzir
os desastres ou mitigiar os danos e prejuízos quanto
indica que não há fl uxos de entrada no Sistema para
apreciar e difundir planos alternativos que a sociedade
eventualmente se lhe ofereça. Quando proteger a
integridade pessoal e material do cidadão e seus
meios de vida torna-se um objetivo secundário, a
gestão pública de feições patrimonialistas favorece a
persistência e a intensifi cação da vulnerabilidade dos
empobrecidos, estejam eles nos rincões do país ou nas
bordas períféricas das cidades.
O fulcro do problema, portanto, não são as chuvas ou
as secas, mas como o Estado produz suas relação com
a sociedade para enfrentar (ou não) tais fatores da
natureza. Se ocorre, entretanto, do meio institucional de
defesa civil fugir das discussões sobre as questões supra,
não é porque as mesmas não sejam relevantes, mas
pelo seu justo oposto: são cabais e cujo enfrentamento
é passível de dissipar ambiciosos projetos de poder ora
constituídos em torno do controle de frações do Estado
no referido tema.
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