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Tradição em Continuidade: Multiplicidade e Ecoeficiência das Quintas da Terra Fria Transmontana

Authors:

Abstract

Com a consciência de que arquitectura enfrenta hoje novos desafios, particularmente na necessidade de encontrar respostas integradoras e integradas no meio socio-cultural e ambiental, esta investigação visa estimular o conhecimento de exemplares da arquitectura vernácula portuguesa até agora não documentados. Este património permanece uma importante fonte de informação, pelo seu apuramento experimental de décadas e, ao centrar o estudo nas fontes primárias, procurou-se uma interpretação mais próxima do seu significado, compreendendo os propósitos que levaram a estes modos de construir. Reconhecendo o efeito do desenho arquitectónico nos modos de vida e no ambiente, a investigação realizada e que aqui se apresenta propõe uma (re)leitura crítica da arquitetura vernácula transmontana, procurando estratégias que relacionem a arquitetura, o homem e o território, no sentido de uma maior sustentabilidade social, ambiental e económica que, simultaneamente, respeite a identidade local.
Contributos da arquitetura
vernácula portuguesa
para a sustentabilidade
do ambiente construído
seminário
Editores:
Ricardo Mateus, Jorge Fernandes, Luís Bragança, Manuela Almeida, Sandra Silva,
Paulo Mendonça, Helena Gervásio
Organização
53
Contributos da arquitetura vernácula portuguesa para a sustentabilidade do ambiente construído
Tradição em continuidade: multiplicidade
e ecoeficiência das quintas da terra fria
transmontana
Joana Gonçalves Ricardo Mateus Teresa Ferreira
[E.Arquitectura, Universidade do Minho] [Universidade do Minho] [Universidade do Minho]
arq.joanag@gmail.com
RESUMO
Com a consciência de que arquitectura enfrenta hoje novos desafios, particularmente na necessidade de
encontrar respostas integradoras e integradas no meio socio-cultural e ambiental, esta investigação
visa estimular o conhecimento de exemplares da arquitectura vernácula portuguesa até agora não
documentados. Este património permanece uma importante fonte de informação, pelo seu apuramento
experimental de décadas e, ao centrar o estudo nas fontes primárias, procurou-se uma interpretação
mais próxima do seu significado, compreendendo os propósitos que levaram a estes modos de construir.
Reconhecendo o efeito do desenho arquitectónico nos modos de vida e no ambiente, a investigação
realizada e que aqui se apresenta propõe uma (re)leitura crítica da arquitetura vernácula
transmontana, procurando estratégias que relacionem a arquitetura, o homem e o território, no sentido
de uma maior sustentabilidade social, ambiental e económica que, simultaneamente, respeite a
identidade local.
INTRODUÇÃO
A propósito do Inquérito à Arquitectura Popular em Portugal, em 1955, Nuno Teotónio Pereira
(1988) reconhece ter-se tratado “do último momento para registar um mundo prestes a desaparecer”.
Porém, os tipos menos comuns permaneceram por estudar, estando hoje ameaçados pelo esquecimento.
Este artigo apresenta uma investigação mais extensa (Gonçalves, 2014) que encontra alguns
elementos de exceção, as quintas da Terra Fria do Nordeste Transmontano, caraterizadas pela dispersão
num território associado ao povoamento concentrado. Pelo isolamento das redes de infraestruturas
constituem um desafio para soluções contemporâneas que visam a autossuficiência, permitindo a sua
continuidade. No entanto, estas devem antes de mais reconhecer as potencialidades já inscritas no lugar.
Através do mapeamento e levantamento de alguns exemplares, realizou-se uma análise tipológica focada
na influência dos modos de habitar e das estratégias de adequação ao meio nas soluções construtivas e
organização espacial.
Pretendeu-se estimular, através da leitura crítica deste património, um pensamento estratégico que
relacione a arquitetura, o homem e o território. A relação otimizada entre estes três fatores encontrada na
arquitetura vernáculo foi sendo abandonada, em favor de outras formas de construir menos sustentáveis
e mais confiantes na inesgotabilidade dos recursos. Porém, a tomada de consciência de que estes não são
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ilimitados sugere uma mudança de paradigma nos modelos de construção. Encontrar respostas para os
desafios do futuro exige um olhar sobre o passado, procurando estratégias alternativas para uma
arquitetura contemporânea mais sustentável, social, ambiental e economicamente que, simultaneamente,
assente nos valores identitários da comunidade.
Acreditando que “o valor da história é aquele que nos ensina algo sobre o futuro” (Jackson, 1984)
este artigo tem como objetivo principal divulgar estratégias vernáculas de adaptação ao meio da
arquitetura das quintas da Terra Fria do Nordeste Transmontano que podem ter uma reinterpretação
contemporânea.
METODOLOGIA
A metodologia do trabalho realizado incluiu mapeamento dos casos de estudo, levantamento
métrico, gráfico e fotográfico, ensaios higrotérmicos e entrevistas aos proprietários.
O mapeamento baseou-se essencialmente na observação in loco após o reconhecimento sobre a
cartografia militar e foi complementado pela recolha de informações junto da população local.
As avaliações objetivas in situ visaram a descrição espacial e construtiva e a caraterização dos
parâmetros físicos dos casos de estudo, sejam eles dimensionais ou higrotérmicos, através do
levantamento e monitorização.
A análise ao ambiente térmico através de monitorizações foi efetuada em 9 habitações, das quais
apenas 2 habitadas. Os ensaios cobriram duas estações climáticas arrefecimento (verão) e aquecimento
(inverno). O registo da temperatura e humidade foi efetuado com sensores Klimalogg Pro TFA, em
intervalos de 15 minutos e por períodos de 15 dias.
As avaliações subjetivas incluíram entrevistas semiestruturadas a proprietários e residentes,
permitindo registar os modos de habitar deste tipo de construções.
Dado o avançado estado de degradação, a grande maioria dos exemplares não se encontravam
habitados. A diversidade morfológica foi determinante, pois nenhum dos casos apresentava globalmente
todas as estratégias de adaptação às condições do meio identificadas em trabalhos anteriores (Vaz,
Ferreira, Luso, & Fernandes, 2013).
Não obstante esta diversidade evidenciaram-se características comuns que permitem identificar um
“tipo” de arquitetura que “já existia como resposta a um complexo de demandas ideológicas ou práticas
ligadas a uma determinada situação” (Argan, 2008).
Apesar de terem sido analisadas as 16 quintas selecionadas, apenas se apresentarão neste artigo os
resultados médios obtidos, num processo de geração de hipóteses, identificando os aspetos críticos mais
significativos deste tipo de arquitetura.
CONTEXTUALIZAÇÃO
Património Vernáculo
Em 1999 o Conselho Internacional dos Monumentos e Sítios reconhece o Património Vernáculo
como património digno de ser preservado. Na Carta do Património Vernáculo Construído, este é
entendido na sua continuidade no tempo e na relação indissociável com o território. Apesar do
reconhecimento tardio, várias pesquisas foram conduzidas em torno da cultura vernacular a partir do
século XIX, procurando o caráter autóctone das diferentes regiões, inspirando uma nova arquitetura
(Ferreira, 2009; 2013).
Em Portugal a procura do caráter nacional da arquitetura é também tema de reflexão, culminando
no mais importante trabalho de levantamento da Arquitetura Popular em Portugal, vulgarmente
conhecido como Inquérito (SNA, 1961), em meados dos anos 50.
No Nordeste Transmontano, o Inquérito foca-se nos modos de vida comunitários das aldeias
dominadas pela montanha e pelas culturas de sequeiro. A casa é “o último reduto da vida do indivíduo”
(SNA, 1961), mas surge como uma célula de uma unidade maior, a aldeia, que liga o individuo à
comunidade.
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Contributos da arquitetura vernácula portuguesa para a sustentabilidade do ambiente construído
ilimitados sugere uma mudança de paradigma nos modelos de construção. Encontrar respostas para os
desafios do futuro exige um olhar sobre o passado, procurando estratégias alternativas para uma
arquitetura contemporânea mais sustentável, social, ambiental e economicamente que, simultaneamente,
assente nos valores identitários da comunidade.
Acreditando que “o valor da história é aquele que nos ensina algo sobre o futuro” (Jackson, 1984)
este artigo tem como objetivo principal divulgar estratégias vernáculas de adaptação ao meio da
arquitetura das quintas da Terra Fria do Nordeste Transmontano que podem ter uma reinterpretação
contemporânea.
METODOLOGIA
A metodologia do trabalho realizado incluiu mapeamento dos casos de estudo, levantamento
métrico, gráfico e fotográfico, ensaios higrotérmicos e entrevistas aos proprietários.
O mapeamento baseou-se essencialmente na observação in loco após o reconhecimento sobre a
cartografia militar e foi complementado pela recolha de informações junto da população local.
As avaliações objetivas in situ visaram a descrição espacial e construtiva e a caraterização dos
parâmetros físicos dos casos de estudo, sejam eles dimensionais ou higrotérmicos, através do
levantamento e monitorização.
A análise ao ambiente térmico através de monitorizações foi efetuada em 9 habitações, das quais
apenas 2 habitadas. Os ensaios cobriram duas estações climáticas arrefecimento (verão) e aquecimento
(inverno). O registo da temperatura e humidade foi efetuado com sensores Klimalogg Pro TFA, em
intervalos de 15 minutos e por períodos de 15 dias.
As avaliações subjetivas incluíram entrevistas semiestruturadas a proprietários e residentes,
permitindo registar os modos de habitar deste tipo de construções.
Dado o avançado estado de degradação, a grande maioria dos exemplares não se encontravam
habitados. A diversidade morfológica foi determinante, pois nenhum dos casos apresentava globalmente
todas as estratégias de adaptação às condições do meio identificadas em trabalhos anteriores (Vaz,
Ferreira, Luso, & Fernandes, 2013).
Não obstante esta diversidade evidenciaram-se características comuns que permitem identificar um
“tipo” de arquitetura que “já existia como resposta a um complexo de demandas ideológicas ou práticas
ligadas a uma determinada situação” (Argan, 2008).
Apesar de terem sido analisadas as 16 quintas selecionadas, apenas se apresentarão neste artigo os
resultados médios obtidos, num processo de geração de hipóteses, identificando os aspetos críticos mais
significativos deste tipo de arquitetura.
CONTEXTUALIZAÇÃO
Património Vernáculo
Em 1999 o Conselho Internacional dos Monumentos e Sítios reconhece o Património Vernáculo
como património digno de ser preservado. Na Carta do Património Vernáculo Construído, este é
entendido na sua continuidade no tempo e na relação indissociável com o território. Apesar do
reconhecimento tardio, várias pesquisas foram conduzidas em torno da cultura vernacular a partir do
século XIX, procurando o caráter autóctone das diferentes regiões, inspirando uma nova arquitetura
(Ferreira, 2009; 2013).
Em Portugal a procura do caráter nacional da arquitetura é também tema de reflexão, culminando
no mais importante trabalho de levantamento da Arquitetura Popular em Portugal, vulgarmente
conhecido como Inquérito (SNA, 1961), em meados dos anos 50.
No Nordeste Transmontano, o Inquérito foca-se nos modos de vida comunitários das aldeias
dominadas pela montanha e pelas culturas de sequeiro. A casa é “o último reduto da vida do indivíduo”
(SNA, 1961), mas surge como uma célula de uma unidade maior, a aldeia, que liga o individuo à
comunidade.
Também os etnólogos Ernesto Veiga de Oliveira e Fernando Galhano (1992) empreenderam
diversos estudos sobre a arquitetura e os modos de vida tradicionais, tecendo importantes considerações
acerca dos aspetos espaciais e territoriais do habitar.
Passados mais de 60 anos a arquitetura enfrenta outros desafios, porém o processo metodológico do
Inquérito e os exemplares da arquitetura vernácula ainda não explorados permanecem como fontes que
justificam uma leitura atenta, baseada na experiência direta e na reconstrução dos processos de
pensamento por detrás das formas” (Curtis, 2012).
Paisagem
Reconhecendo a paisagem “como mediador entre a cultura e a envolvente” (Juan, 2013),
considerou-se como referência a definição proposta por Jackson (1984) por reunir, no mesmo conceito, a
paisagem como processo de transformação do meio pelo homem e reflexo dos seus modos de habitar,
identidade e cultura.
Tal como Corboz (2001) assume-se que a especificidade do lugar reside nas sucessivas
transformações que sofreu ao longo do tempo: a paisagem não deve ser entendida como algo permanente
e absoluto, mas como construção cultural que “junta sempre elementos dados pela natureza, pelo
costume e pela história, numa longa relação de continuidade” (Saldanha, 2008).
A conjugação destes elementos pode resultar de duas diferentes atitudes perante o território: a
paisagem política e a paisagem vernácula (Jackson, 1984). A primeira, criada deliberada e
artificialmente, expressa necessidades de relação com a comunidade. Já a paisagem vernácula “é o
resultado de uma lenta adaptação ao lugar, à topografia local, ao clima, ao solo e à gente”, evoluindo na
tentativa de “viver em harmonia com o mundo natural que nos rodeia” (Jackson, 1984).
Destas atitudes, resultam “obras do trabalho de muitas gerações, sistemas complexos em que se
conjugam a natureza e o interesse do homem” (Telles, 1998). De modo a evitar a perda da “capacidade
integradora, transformadora e interventiva”, Juan (2013) propõe uma metodologia de projeto que parte
da análise ao lugar, desvendando oportunidades e estimulando novos processos, transformações e
apropriações a partir do existente.
Sustentabilidade
Em 1987 o Relatório Brundtland define desenvolvimento sustentável como “o desenvolvimento
que satisfaz as necessidades atuais sem comprometer a capacidade das gerações futuras para
satisfazerem as suas próprias necessidades” (WCED, 1987).
Durante anos os modelos de construção, assentes na confiança na tecnologia e na inesgotabilidade
dos recursos conduziram à desvalorização da adaptação às especificidades locais. Na procura do
equilíbrio entre sustentabilidade ambiental, económica e social, ganham força soluções passivas ou de
baixa tecnologia, com um olhar mais atento à relação do desenho arquitetónico com o lugar, numa
“interpretação bioclimática” (Olgyay,1962), como acontecia na arquitetura vernácula, como se vê na
adaptação do diagrama de Behling (Fernandes, 2012). Ao conceber edifícios, deve privilegiar-se a forma
arquitetónica e os sistemas passivos na otimização da relação com o meio, apenas complementando as
necessidades por sistemas ativos.
Num contexto climático próximo do português, Cañas e Martín (2004) identificam estratégias
bioclimáticas da arquitetura vernácula espanhola, incentivando a sua integração em edifícios
contemporâneos. Em Portugal, a investigação de Fernandes (2012) apresenta uma sistematização das
estratégias identificadas nos Inquéritos e o projeto transfronteiriço BIOURB apresentou um inventário
das principais soluções construtivas bioclimáticas da arquitetura transmontana (Vaz, Ferreira, Luso, &
Fernandes, 2013).
A investigação realizada (Gonçalves, 2014) procurou analisar quantitativamente estas soluções mas
também compreender as particularidades dos casos de estudo na gestão dos recursos do território.
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QUINTAS DA TERRA FRIA DO NORDESTE TRANSMONTANO
A Cidade
O processo de mapeamento teve o intuito de analisar a relação entre a casa e o território,
compreendendo o que estimulou o seu desenvolvimento. Constatou-se que a quinta não é um objeto
arquitetónico isolado, mas um complexo sistema de relações entre o doméstico, o território e a
comunidade, num sistema gerador de paisagem.
Ao contrário da Terra Quente Transmontana, onde o clima de feição mediterrânica potencia a
monocultura de maior valor económico, a Terra Fria carateriza-se pelo clima de extremos: Inverno frio
habitualmente com temperaturas entre os 11ºC e os -11ºC - e Verão quente e seco, em média entre os
14ºC e os 29ºC (IPMA, 2013). Aqui predominam pequenos aglomerados rurais, assentes numa economia
agropecuária de subsistência, sempre na proximidade imediata da aldeia (SNA, 1961; Oliveira &
Galhano, 1992). No entanto, a presença de aglomerados de maior dimensão em que o comércio e os
serviços assumiam maior relevância, potenciou modos de ocupação do território em pequenas quintas
dispersas, produtoras de bens essenciais que abasteciam a cidade. Apesar disso, as produções
destinavam-se “predominantemente para autoconsumo” (Cepeda, 2002), refletindo a base económica
destas estruturas agropecuárias familiares de subsistência.
Apesar da dispersão e isolamento foi possível constatar uma maior concentração num raio de 5 Km
da cidade. No inventário as “Quintas dos arredores de Bragança” de meados dos anos 30, (Alves F. M.,
1938) referem-se cerca de 110 quintas; porém atualmente identificaram-se nesta cidade
aproximadamente 60, já que muitas entretanto desapareceram.
Verificou-se ainda um forte vínculo com a rede hidrográfica e uma concentração mais densa nos
vales entre os Rios Sabor e Fervença. A implantação destas quintas procurou terrenos irrigados,
essenciais à agricultura e viabilidade económica destas unidades (figura 1).
Os edifícios surgem habitualmente nas encostas orientadas entre sul e oeste, libertando as zonas de
vale, mais férteis e aptas para a agricultura, e tirando partido da exposição solar, tal como na Quinta de
Vale das Flores. Noutros casos a implantação aproveita zonas planálticas a meia-cota, ficando protegidos
pela encosta dos ventos dominantes e maximizando a exposição solar, como na Quinta de Campelo.
A paisagem enquanto transformação do meio manifesta-se também na forma como o suporte
geológico é apropriado em função das necessidades, no tipo de culturas e vegetação, mas também nas
pedreiras de xisto e barreiras, fornecendo as matérias-primas para subsequentes processos de
transformação.
Para além da manipulação da topografia, da vegetação e da água de modo a obter o maior
aproveitamento da terra, numa atitude claramente vernácula, verificou-se uma forte relação destas
quintas com a paisagem política (figura 1). O reconhecimento de um processo político de paisagem
seja a aglomeração da cidade ou os eixos viários que lhe permitiam comunicar com o exterior e a
necessidade (ou oportunidade) condicionou a implantação das quintas: o acesso diário ao mercado era a
razão da sua existência, numa relação de simbiose com a cidade.
A meio caminho entre a cidade e aldeias periféricas, as quintas dispunham ainda de uma maior
possibilidade de mão-de-obra para as campanhas agrícolas. A concentração e proximidade criava uma
economia de localização (Ohlin, 1933) que permitia a diminuição dos custos médios de produção, ao
partilharem inputs comuns: caminhos rurais, moinhos ou lagares. A proximidade permitia ainda a
mobilidade dos trabalhadores entre quintas e a prestação de serviços. Esta partilha comunitária promovia
a troca de conhecimentos de forma informal, contribuindo para que os processos tradicionais se tenham
mantido até meados do século XX.
As quintas desta região surgem assim da sobreposição de duas camadas, política e vernácula,
alicerçadas numa agricultura familiar de subsistência e na proximidade à cidade, garante de ligação do
homem à sociedade.
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Contributos da arquitetura vernácula portuguesa para a sustentabilidade do ambiente construído
QUINTAS DA TERRA FRIA DO NORDESTE TRANSMONTANO
A Cidade
O processo de mapeamento teve o intuito de analisar a relação entre a casa e o território,
compreendendo o que estimulou o seu desenvolvimento. Constatou-se que a quinta não é um objeto
arquitetónico isolado, mas um complexo sistema de relações entre o doméstico, o território e a
comunidade, num sistema gerador de paisagem.
Ao contrário da Terra Quente Transmontana, onde o clima de feição mediterrânica potencia a
monocultura de maior valor económico, a Terra Fria carateriza-se pelo clima de extremos: Inverno frio
habitualmente com temperaturas entre os 11ºC e os -11ºC - e Verão quente e seco, em média entre os
14ºC e os 29ºC (IPMA, 2013). Aqui predominam pequenos aglomerados rurais, assentes numa economia
agropecuária de subsistência, sempre na proximidade imediata da aldeia (SNA, 1961; Oliveira &
Galhano, 1992). No entanto, a presença de aglomerados de maior dimensão em que o comércio e os
serviços assumiam maior relevância, potenciou modos de ocupação do território em pequenas quintas
dispersas, produtoras de bens essenciais que abasteciam a cidade. Apesar disso, as produções
destinavam-se “predominantemente para autoconsumo” (Cepeda, 2002), refletindo a base económica
destas estruturas agropecuárias familiares de subsistência.
Apesar da dispersão e isolamento foi possível constatar uma maior concentração num raio de 5 Km
da cidade. No inventário as “Quintas dos arredores de Bragança” de meados dos anos 30, (Alves F. M.,
1938) referem-se cerca de 110 quintas; porém atualmente identificaram-se nesta cidade
aproximadamente 60, já que muitas entretanto desapareceram.
Verificou-se ainda um forte vínculo com a rede hidrográfica e uma concentração mais densa nos
vales entre os Rios Sabor e Fervença. A implantação destas quintas procurou terrenos irrigados,
essenciais à agricultura e viabilidade económica destas unidades (figura 1).
Os edifícios surgem habitualmente nas encostas orientadas entre sul e oeste, libertando as zonas de
vale, mais férteis e aptas para a agricultura, e tirando partido da exposição solar, tal como na Quinta de
Vale das Flores. Noutros casos a implantação aproveita zonas planálticas a meia-cota, ficando protegidos
pela encosta dos ventos dominantes e maximizando a exposição solar, como na Quinta de Campelo.
A paisagem enquanto transformação do meio manifesta-se também na forma como o suporte
geológico é apropriado em função das necessidades, no tipo de culturas e vegetação, mas também nas
pedreiras de xisto e barreiras, fornecendo as matérias-primas para subsequentes processos de
transformação.
Para além da manipulação da topografia, da vegetação e da água de modo a obter o maior
aproveitamento da terra, numa atitude claramente vernácula, verificou-se uma forte relação destas
quintas com a paisagem política (figura 1). O reconhecimento de um processo político de paisagem
seja a aglomeração da cidade ou os eixos viários que lhe permitiam comunicar com o exterior e a
necessidade (ou oportunidade) condicionou a implantação das quintas: o acesso diário ao mercado era a
razão da sua existência, numa relação de simbiose com a cidade.
A meio caminho entre a cidade e aldeias periféricas, as quintas dispunham ainda de uma maior
possibilidade de mão-de-obra para as campanhas agrícolas. A concentração e proximidade criava uma
economia de localização (Ohlin, 1933) que permitia a diminuição dos custos médios de produção, ao
partilharem inputs comuns: caminhos rurais, moinhos ou lagares. A proximidade permitia ainda a
mobilidade dos trabalhadores entre quintas e a prestação de serviços. Esta partilha comunitária promovia
a troca de conhecimentos de forma informal, contribuindo para que os processos tradicionais se tenham
mantido até meados do século XX.
As quintas desta região surgem assim da sobreposição de duas camadas, política e vernácula,
alicerçadas numa agricultura familiar de subsistência e na proximidade à cidade, garante de ligação do
homem à sociedade.
Figura 1 Mapeamento das Quintas de acordo com a paisagem vernácula e com a paisagem política
Figura 2 Quinta de São Lázaro, secção territorial: proximidade à linha de água, ao bosque e à horta
Figura 3 Casa da Pintora, Quinta do Ferro, Varanda da Quinta de Britelo e Quinta de Vale das Flores
Figura 4 Quinta do Cano num dia médio de verão e Quinta de Campelo num dia médio de inverno
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A Parcela
A quinta relaciona-se com o território também a uma escala doméstica, pela proximidade à fonte,
ao bosque, à horta ou à cortinha do gado (figura 2).
Mais do que uma unidade as quintas formavam sistemas agregadores de parcelas. Estes sistemas de
paisagem vernácula caraterizavam-se pelo uso utilitário da envolvente, pela heterogeneidade de usos e
pelo desprezo pelo espaço formal (Jackson, 1984) que se traduzia numa grande indefinição de limites. A
quinta era formada pela justaposição irregular, informal e até descontínua de parcelas. A ausência de
limites definidos permitia que esta se estendesse à medida das possibilidades e das necessidades, pois
mais importante do que a grande extensão era a complementaridade entre as parcelas e a multiplicidade
que ofereciam a nível funcional ou produtivo.
A relação entre a dimensão da família, a área total da quinta e o rendimento foi evidente: a quinta
de São Lázaro, onde trabalhavam em permanência 2 pessoas, ocupava menos de 5ha; na Quinta de
Campelo, com mais de 200ha, chegaram a trabalhar mais de 15 pessoas. No entanto estes são apenas
exemplos, não sendo possível estabelecer uma relação quantitativa entre a área média e a força de
trabalho.
Com o aumento do rendimento, da família e da parcela, outros edifícios iam sendo integrados na
Quinta, suprindo necessidades de produção, habitação, armazenamento ou de comunidade. Para além
dos fornos, currais e palheiros, a quinta incluía frequentemente adegas, moinhos, pombais e capelas mas
esta não era uma condição essencial a cooperação com as quintas vizinhas demonstrou a importância
da complementaridade na gestão sábia dos recursos.
Apesar da heterogeneidade formal, este tipo de quintas tem em comum a proximidade à cidade e a
adaptação ao meio físico regime de ventos, exposição solar dominante, topografia e sobreposição com
a rede hidrográfica; a presença de uma ou várias hortas para subsistência e fornecimento do mercado
local; a criação de animais de trabalho ou para alimentação; a existência de pastos e a diversidade de
produção agrícola. A concentração de diversas funções programáticas essenciais para o funcionamento
da quinta, garantia que esta retirava do território o necessário à sua autossuficiência enquanto
comunidade.
A Casa
Estas quintas têm em comum a mesma atitude perante o território, partilhando formas de fazer,
habitar e representar a habitação, enquanto mediadora entre o homem e a natureza, que permitiram reuni-
las no mesmo tipo cultural (Croizé, Frey, & Pinon, 1991). Porém, a unidade do tipo é suscetível de ser
concretizada por distintas soluções formais (Barata Fernandes,1996.
Ao nível da composição formal da planta foi possível distinguir duas configurações base: quadrada
ou retangular, associadas a diferentes relações com a parcela. As casas de planta quadrada relacionam-se
habitualmente com propriedades agrícolas de menor dimensão, com exploração à renda e com condições
topográficas de difícil acesso. Esta morfologia caraterizava-se por uma organização espacial
simplificada, com todas as funções associadas num único edifício de dois pisos, parcialmente enterrado
até ao nível do sobrado. O piso térreo era normalmente ocupado por funções agrícolas, enquanto a
habitação ficava no piso superior. Porém não existem ligações verticais, exteriores ou interiores, entre
estes espaços, que são acedidos a diferentes cotas em diferentes fachadas, como acontece na Casa da
Pintora (figura 3). Usualmente esta morfologia não apresentava varandas, ainda que possam ser
encontradas em alterações posteriores.
As casas de planta retangular encontram-se normalmente em propriedades com maior rendimento e
dimensão, em que o regime de propriedade permitia e facilitava a expansão continuada. Apesar de se
verificar sempre uma adaptação da casa à topografia esta morfologia está associada a implantações em
zonas com declives pouco acentuados. Também nestes casos o piso superior era destinado
primordialmente a habitação mas o acesso era efetuado pela escada em pedra, que fazia parte da
composição do alçado, como se vê na Quinta do Ferro (figura 3). Esta morfologia era normalmente
marcada pela varanda no alçado principal, ainda que este não fosse um elemento indispensável ou
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Contributos da arquitetura vernácula portuguesa para a sustentabilidade do ambiente construído
A Parcela
A quinta relaciona-se com o território também a uma escala doméstica, pela proximidade à fonte,
ao bosque, à horta ou à cortinha do gado (figura 2).
Mais do que uma unidade as quintas formavam sistemas agregadores de parcelas. Estes sistemas de
paisagem vernácula caraterizavam-se pelo uso utilitário da envolvente, pela heterogeneidade de usos e
pelo desprezo pelo espaço formal (Jackson, 1984) que se traduzia numa grande indefinição de limites. A
quinta era formada pela justaposição irregular, informal e até descontínua de parcelas. A ausência de
limites definidos permitia que esta se estendesse à medida das possibilidades e das necessidades, pois
mais importante do que a grande extensão era a complementaridade entre as parcelas e a multiplicidade
que ofereciam a nível funcional ou produtivo.
A relação entre a dimensão da família, a área total da quinta e o rendimento foi evidente: a quinta
de São Lázaro, onde trabalhavam em permanência 2 pessoas, ocupava menos de 5ha; na Quinta de
Campelo, com mais de 200ha, chegaram a trabalhar mais de 15 pessoas. No entanto estes são apenas
exemplos, não sendo possível estabelecer uma relação quantitativa entre a área média e a força de
trabalho.
Com o aumento do rendimento, da família e da parcela, outros edifícios iam sendo integrados na
Quinta, suprindo necessidades de produção, habitação, armazenamento ou de comunidade. Para além
dos fornos, currais e palheiros, a quinta incluía frequentemente adegas, moinhos, pombais e capelas mas
esta não era uma condição essencial a cooperação com as quintas vizinhas demonstrou a importância
da complementaridade na gestão sábia dos recursos.
Apesar da heterogeneidade formal, este tipo de quintas tem em comum a proximidade à cidade e a
adaptação ao meio físico regime de ventos, exposição solar dominante, topografia e sobreposição com
a rede hidrográfica; a presença de uma ou várias hortas para subsistência e fornecimento do mercado
local; a criação de animais de trabalho ou para alimentação; a existência de pastos e a diversidade de
produção agrícola. A concentração de diversas funções programáticas essenciais para o funcionamento
da quinta, garantia que esta retirava do território o necessário à sua autossuficiência enquanto
comunidade.
A Casa
Estas quintas têm em comum a mesma atitude perante o território, partilhando formas de fazer,
habitar e representar a habitação, enquanto mediadora entre o homem e a natureza, que permitiram reuni-
las no mesmo tipo cultural (Croizé, Frey, & Pinon, 1991). Porém, a unidade do tipo é suscetível de ser
concretizada por distintas soluções formais (Barata Fernandes,1996.
Ao nível da composição formal da planta foi possível distinguir duas configurações base: quadrada
ou retangular, associadas a diferentes relações com a parcela. As casas de planta quadrada relacionam-se
habitualmente com propriedades agrícolas de menor dimensão, com exploração à renda e com condições
topográficas de difícil acesso. Esta morfologia caraterizava-se por uma organização espacial
simplificada, com todas as funções associadas num único edifício de dois pisos, parcialmente enterrado
até ao nível do sobrado. O piso térreo era normalmente ocupado por funções agrícolas, enquanto a
habitação ficava no piso superior. Porém não existem ligações verticais, exteriores ou interiores, entre
estes espaços, que são acedidos a diferentes cotas em diferentes fachadas, como acontece na Casa da
Pintora (figura 3). Usualmente esta morfologia não apresentava varandas, ainda que possam ser
encontradas em alterações posteriores.
As casas de planta retangular encontram-se normalmente em propriedades com maior rendimento e
dimensão, em que o regime de propriedade permitia e facilitava a expansão continuada. Apesar de se
verificar sempre uma adaptação da casa à topografia esta morfologia está associada a implantações em
zonas com declives pouco acentuados. Também nestes casos o piso superior era destinado
primordialmente a habitação mas o acesso era efetuado pela escada em pedra, que fazia parte da
composição do alçado, como se vê na Quinta do Ferro (figura 3). Esta morfologia era normalmente
marcada pela varanda no alçado principal, ainda que este não fosse um elemento indispensável ou
pudesse apresentar outras orientações.
Apesar da identificação destas morfologias base encontraram-se exemplares dificilmente
classificáveis, como a Quinta de Vale de Flores (figura 3), casa térrea, de matriz irregular que expressa a
preponderância dos requisitos pragmáticos e a evolução ao longo do tempo, permitindo sistematizar o
processo comum de apropriação e sobreposição que parece ter originado estas casas. A cozinha definida
por paredes em xisto formando um espaço quadrangular de pequena dimensão define a unidade cuja
replicação e expansão permitiu gerar a habitação. Num segundo momento, ter-se-ão construído as
paredes que delimitam o espaço de habitação, embora essa não tenha sido, necessariamente, a sua
primeira utilização. Ampliações sucessivas, num total de sete fases identificadas, foram definindo
espaços de despensa e armazenamento, palheiros e lojas, demonstrando crescimento da família e um
maior rendimento da propriedade agrícola.
A casa é uma entidade cambiante, amórfica e espontânea, construída, mantida e reconstruída de
modo contínuo pelos seus habitantes. Na ausência de distinção entre construtor e habitante, num
processo em que todos colaboravam nos períodos com menores tarefas agrícolas, as formas de construir
perpetuavam-se não só porque eram as únicas conhecidas passadas de geração em geração mas,
sobretudo, porque eram as únicas que utilizavam os recursos existentes no local, desde a pedra ao barro,
demonstrando-se que a quinta era autossuficiente também ao nível da construção.
A variedade formal exterior e a indefinição espacial interior resultavam da adaptação ao contexto
físico imediato: um declive mais ou menos acentuado, a exposição solar da encosta, a geologia mais ou
menos rochosa do lugar de implantação ou os ventos dominantes, determinavam a orientação solar do
edifício e do espaço de transição, os pés-direitos e a cota de enterramento das adegas, e mesmo o número
de vãos nas fachadas, como manifesta a parede cega a sudoeste na Quinta de Vale das Flores.
O reconhecimento da diversidade morfológica e funcional dos casos de estudo permitiu clarificar
que o tipo não deriva de um modelo formal imposto mas demonstra formas de resolver os mesmos
problemas do dia-a-dia, seja na relação com o programa ou a envolvente, contribuindo para a
compreensão dos modos de habitar nestas quintas, em que as necessidades práticas e de produção
sempre se sobrepunham às necessidades estéticas e de conforto dos ocupantes.
A Construção
Apesar da diversidade morfológica verificada foi possível identificar e analisar quantitativamente
algumas características mais comuns, que foram alvo de monitorização in situ no verão e no inverno.
Esta análise quantitativa permite relacionar transversalmente o contexto, a construção e a apropriação
dos espaços.
Constatou-se que a implantação do edifício aproveitando o declive do terreno permite tirar partido
da inércia térmica do solo e proteger o edifício das intempéries. A localização nas zonas mais enterradas
das funções associadas à conservação dos alimentos, como despensas e adegas, permitia tirar partido dos
níveis de humidade e temperatura estáveis, com amplitudes médias de 1.6ºC e humidades relativas na
ordem dos 76%. Estes espaços apresentaram durante o verão, as temperaturas mais frescas dos espaços
interiores e, durante o inverno temperaturas mais confortáveis do que os espaços não climatizados.
A estufa anexa revelou-se uma estratégia efetiva para proporcionar ganhos térmicos no interior, o
que pode nem sempre ser benéfico no desempenho térmico do edifício. Na Quinta do Marrão o
encerramento da varanda foi feito de forma muito rudimentar e a simplicidade da construção
condicionou os resultados, pois apesar de se verificar o efeito de estufa pretendido a ausência de
dispositivos de oclusão durante o verão e a excessiva ventilação durante o inverno não permitiam
otimizar os ganhos térmicos. Assim, o quarto atingiu temperaturas excessivamente elevadas durante o
verão, o que justifica o facto de a última moradora optar pela loja como espaço preferencial para a sesta,
durante a estação quente.
O arrefecimento evaporativo proporcionado pelo tanque na Quinta do Cano, associado à utilização
de ramada de sombreamento, tornava o espaço do pátio mais confortável durante os dias quentes e secos
de verão. Com menores oscilações e temperaturas máximas mais baixas, este tornava-se o lugar ideal
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para reuniões sociais e momentos de lazer (figura 4).
A cozinha da Quinta de Campelo, reflete claramente o porquê de este espaço ser o centro da casa,
já que durante o inverno apresentou as temperaturas mais elevadas, apesar das grandes oscilações de
temperatura causadas pela acentuada circulação de ar (figura 4). Neste espaço, os registos manifestaram
claramente os modos de habitar: a lareira é acesa às primeiras horas da manhã; a partir das 10h,
registam-se diariamente ligeiras descidas de temperatura, uma vez que os ocupantes se dedicam a outras
tarefas domésticas, no exterior ou noutras zonas da casa e à hora de jantar, a presença mais constante
junto do fogo permite um aumento das temperaturas até ao seu pico máximo, normalmente às 20h.
Todas as quintas tinham em comum a existência de espaços de transição orientados sejam pátios,
alpendres, varandas ou latadas de sombreamento. A varanda é a solução mais típica nesta região, mas a
análise dos casos de estudo demonstra que esta não é um elemento indispensável do tipo, sendo
frequentemente substituída por outras estratégias mais adequadas ao contexto imediato.
Independentemente da estratégia de transição aplicada estes espaços revelam-se efetivos reguladores de
temperatura atenuando as diferenças entre o exterior e o interior e apresentando desempenhos mais
estáveis. Assim, estes espaços eram zonas de estar e de convívio e pontos de relação visual com o
exterior, mas estavam também associados a tarefas domésticas como a secagem de cereais, frutas ou
plantas aromáticas.
Ainda que não dispondo de isolamento térmico e mantendo taxas de ventilação elevadas, seja pela
composição do telhado ou do sobrado, pelas caixilharias pouco estanques ou mesmo pela ausência
destas, todos os casos monitorizados apresentaram perfis de temperatura estáveis nos compartimentos
interiores, sobretudo se comparados com as oscilações no exterior. Para isso contribuem as espessas
paredes de xisto, devido à elevada massa térmica, retendo o calor e libertando-o ao longo do período
mais frio do dia, tal como se verificou pelos desfasamentos dos picos de temperatura no exterior e no
interior, em média superior a 2 horas. Apesar disso, as temperaturas permaneceram abaixo dos níveis de
conforto durante o inverno, já que a maioria dos casos não se encontrar habitado nem em bom estado de
conservação. Porém, durante o verão facilmente se encontram dentro dos parâmetros de conforto sem
necessidade de recorrer a sistemas ativos de arrefecimento.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sistematizando algumas respostas aos problemas do quotidiano, na adaptação ao meio físico e
sociocultural, encontradas neste tipo de arquitetura, retém-se da primeira etapa a Cidade - a paisagem
como resultado do balanço entre o território e a sociedade; se a adaptação ao meio físico é uma
característica intrínseca à arquitetura vernácula, a relação de simbiose entre estas quintas e a cidade é
uma excecionalidade. Da segunda etapa a Parcela retém-se a importância da multiplicidade, seja
produtiva ou de equipamentos, como condição indispensável para a autossuficiência destas estruturas
enquanto comunidades. Da terceira etapa a Casa salienta-se a flexibilidade desta arquitetura, aberta e
evolutiva, respondendo de forma direta às necessidades e possibilitando infindáveis apropriações, num
processo participativo em que todos tomavam parte. Por fim, na quarta etapa a Construção verificou-
se uma tendência para a permanência dos modos de construir tradicionais, sobretudo por serem os que
utilizavam os recursos existentes no local, corroborando a autossuficiência identificada na Parcela.
Verificou-se que estas quintas representam a identidade de uma comunidade, apresentando traços
comuns que traduzem formas de construir, conceções do tempo e modos de vida partilhados. Este
Património “inclui [as] transformações necessárias e uma contínua adaptação” (ICOMOS, 1999), como
se verificou ao nível da parcela, com os limites indefinidos, mas também da casa, sujeita a processos de
reconstrução continuados. Tentar proteger este património através da estagnação em projetos
anacrónicos revela desconhecimento do seu significado e contribui para o seu desaparecimento, por não
permitir que responda a novas necessidades.
O desaparecimento destas estruturas deve-se essencialmente a razões políticas, como a perda de
competitividade da agricultura nos mercados globais e o abandono da ideia de comunidade em favor do
individualismo. A sua reativação depende essencialmente de uma mudança de mentalidade, que permita
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Contributos da arquitetura vernácula portuguesa para a sustentabilidade do ambiente construído
para reuniões sociais e momentos de lazer (figura 4).
A cozinha da Quinta de Campelo, reflete claramente o porquê de este espaço ser o centro da casa,
já que durante o inverno apresentou as temperaturas mais elevadas, apesar das grandes oscilações de
temperatura causadas pela acentuada circulação de ar (figura 4). Neste espaço, os registos manifestaram
claramente os modos de habitar: a lareira é acesa às primeiras horas da manhã; a partir das 10h,
registam-se diariamente ligeiras descidas de temperatura, uma vez que os ocupantes se dedicam a outras
tarefas domésticas, no exterior ou noutras zonas da casa e à hora de jantar, a presença mais constante
junto do fogo permite um aumento das temperaturas até ao seu pico máximo, normalmente às 20h.
Todas as quintas tinham em comum a existência de espaços de transição orientados sejam pátios,
alpendres, varandas ou latadas de sombreamento. A varanda é a solução mais típica nesta região, mas a
análise dos casos de estudo demonstra que esta não é um elemento indispensável do tipo, sendo
frequentemente substituída por outras estratégias mais adequadas ao contexto imediato.
Independentemente da estratégia de transição aplicada estes espaços revelam-se efetivos reguladores de
temperatura atenuando as diferenças entre o exterior e o interior e apresentando desempenhos mais
estáveis. Assim, estes espaços eram zonas de estar e de convívio e pontos de relação visual com o
exterior, mas estavam também associados a tarefas domésticas como a secagem de cereais, frutas ou
plantas aromáticas.
Ainda que não dispondo de isolamento térmico e mantendo taxas de ventilação elevadas, seja pela
composição do telhado ou do sobrado, pelas caixilharias pouco estanques ou mesmo pela ausência
destas, todos os casos monitorizados apresentaram perfis de temperatura estáveis nos compartimentos
interiores, sobretudo se comparados com as oscilações no exterior. Para isso contribuem as espessas
paredes de xisto, devido à elevada massa térmica, retendo o calor e libertando-o ao longo do período
mais frio do dia, tal como se verificou pelos desfasamentos dos picos de temperatura no exterior e no
interior, em média superior a 2 horas. Apesar disso, as temperaturas permaneceram abaixo dos níveis de
conforto durante o inverno, já que a maioria dos casos não se encontrar habitado nem em bom estado de
conservação. Porém, durante o verão facilmente se encontram dentro dos parâmetros de conforto sem
necessidade de recorrer a sistemas ativos de arrefecimento.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sistematizando algumas respostas aos problemas do quotidiano, na adaptação ao meio físico e
sociocultural, encontradas neste tipo de arquitetura, retém-se da primeira etapa a Cidade - a paisagem
como resultado do balanço entre o território e a sociedade; se a adaptação ao meio físico é uma
característica intrínseca à arquitetura vernácula, a relação de simbiose entre estas quintas e a cidade é
uma excecionalidade. Da segunda etapa a Parcela retém-se a importância da multiplicidade, seja
produtiva ou de equipamentos, como condição indispensável para a autossuficiência destas estruturas
enquanto comunidades. Da terceira etapa a Casa salienta-se a flexibilidade desta arquitetura, aberta e
evolutiva, respondendo de forma direta às necessidades e possibilitando infindáveis apropriações, num
processo participativo em que todos tomavam parte. Por fim, na quarta etapa a Construção verificou-
se uma tendência para a permanência dos modos de construir tradicionais, sobretudo por serem os que
utilizavam os recursos existentes no local, corroborando a autossuficiência identificada na Parcela.
Verificou-se que estas quintas representam a identidade de uma comunidade, apresentando traços
comuns que traduzem formas de construir, conceções do tempo e modos de vida partilhados. Este
Património “inclui [as] transformações necessárias e uma contínua adaptação” (ICOMOS, 1999), como
se verificou ao nível da parcela, com os limites indefinidos, mas também da casa, sujeita a processos de
reconstrução continuados. Tentar proteger este património através da estagnação em projetos
anacrónicos revela desconhecimento do seu significado e contribui para o seu desaparecimento, por não
permitir que responda a novas necessidades.
O desaparecimento destas estruturas deve-se essencialmente a razões políticas, como a perda de
competitividade da agricultura nos mercados globais e o abandono da ideia de comunidade em favor do
individualismo. A sua reativação depende essencialmente de uma mudança de mentalidade, que permita
tirar partido das oportunidades do lugar, em estratégias integradas que reinterpretem o sistema de
relações identificado neste levantamento. A cooperação em rede e a partilha de inputs comuns e a
criação de novas dinâmicas de mercado, estimulando modos de vida locais, oferecem uma resposta à
problemática levantada por Kunstler (2004) - “A era da salada Caesar que percorre cinco mil
quilómetros está a chegar ao fim.
O estudo dos modos de vida, transversais a todas as escalas analisadas, demonstrou que “a
construção per si é apenas uma parte do processo da construção sustentável” (Mateus, 2009). Durante o
seu longo período de atividade, estas quintas foram sustentáveis do ponto de vista definido pela WCED
(1987): satisfaziam as necessidades daquele momento, dentro dos limites da própria quinta, sem
comprometer as necessidades das gerações futuras. Esta abordagem permitiu valorizar não apenas o
edifício mas as diferentes estruturas e infraestruturas construídas pelo homem (dos caminhos à
manipulação da água), a utilização racional dos recursos naturais, a gestão apropriada do território e
sobretudo os modos de vida que permitiam a continuidade dos processos.
Do ponto de vista da construção, ainda que reconhecendo que as necessidades mudaram e que as
exigências de conforto são hoje superiores, as monitorizações in-situ nos edifícios revelaram-nos
adequados ao contexto climático: um bom comportamento higrotérmico durante a estação quente e um
desempenho estável durante a estação fria que, ainda que exigindo o recurso complementar a sistemas
ativos de aquecimento, poderia conseguir temperaturas confortáveis com reduzido consumo energético.
Para além disso, evidenciaram as mais-valias de algumas estratégias de adequação ao meio, como a
climatização geotérmica, o arrefecimento evaporativo ou os espaços de transição orientados, que
oferecem novas oportunidades à arquitetura contemporânea.
Pelo seu isolamento das redes de infraestruturas, que pode ter contribuído para o abandono, torna-
se particularmente pertinente que as intervenções contemporâneas visem a continuidade dos processos
de autossuficiência identificados, reconheçam as suas fragilidades e procurem complementá-las através
de uma reinterpretação contemporânea ensaiando soluções que valorizem estratégias bioclimáticas de
adaptação ao contexto para a redução dos consumos energéticos, como os edifícios ZEB (zero energy
buildings) ou WEFI (water, energy and food almost independent buildings).
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Contributos da arquitetura vernácula portuguesa para a sustentabilidade do ambiente construído
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Conference Paper
A arquitectura vernacular caracteriza-se por materializar formalmente uma pluralidade de condicionalismos – geográficos, climáticos e económicos – dos locais onde se insere. Estas implicações traduzem-se na diferenciação regional das estratégias usadas para mitigar os efeitos do clima. Apesar das condições de conforto destas construções não se enquadrarem nos parâmetros actuais, as estratégias adoptadas apresentam potencial de evolução e adaptação à contemporaneidade. Na altura, a fragilidade económica de grande parte das fam'ilias levava à adopção de soluções pragmáticas e de profunda racionalização dos recursos dispon'iveis. O abandono destas abordagens arquitectónicas em detrimento de uma arquitectura universal baseada em materiais industriais, desarraigada do seu meio, levou a um tipo de construção muito dependente de energia para se garantirem os requisitos de conforto dos ocupantes. Num momento de viragem, promovido pelos actuais contextos ambiental e económico, em que se procuram formas de energia mais limpas e edif'icios mais eficientes, é pertinente voltar ao passado para estudar e compreender estas formas de construção intr'insecas ao lugar, com o intuito de adaptar e desenvolver as suas mais-valias na descoberta das formas do futuro.
Article
The objective of the study is to set the bases of bioclimatic construction by learning from the traditional construction. The research is focused in the information obtained from the classical authors of Spanish vernacular architecture. The aim of this paper is to determine the design strategies used in vernacular constructions to adapt them to the environment. The results of the study can be used in two different forms: (1) to make a proposal for the recovery of vernacular constructions with peculiar bioclimatic strategies; (2) to translate some of the bioclimatic strategies used in vernacular constructions to the present ones.
Article
The main purpose of a residential building is to provide a comfortable environment for human activities. Nowadays this objective is the responsible for the consumption of more than 40% of total energy demand in European Union. The construction sector in Spain has been in rapid growth in the last decades, yet there exists many abandoned buildings in rural areas. In this article we try to analyze the environmental advantages of reuse abandoned rural buildings. Due to their thick exterior walls of high thermal inertia, the indoor environment inside them can be comfortable with less energy consumption than new buildings. Here we show the monitoring results of three different houses, two traditional and one modern building, constructed of different building materials. The aim of this work is to analyze and compare the thermal behaviour of existing constructive solutions in a Spanish district, not to improve them. The field test results show better indoor conditions inside the traditional houses. In summer, thermal comfort is achieved with no energy supply inside traditional houses but not inside the modern one. In winter, the indoor environment is more stable inside the traditional houses, however none of them were able to provide thermal comfort naturally. In the case studied, the only inhabitant of a small village lives in a prefabricated wooden house, and it is demonstrated that the indoor conditions of traditional houses in the same location are of higher quality.
Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança
  • F M Alves
Alves, F. M. (1938). Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança (1982 ed.). Bragança: Museu Abade de Baçal.
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Argan, G. C. (2008). Sobre a tipologia em arquitetura. Em K. Nesbitt, Uma nova agenda para a arquitetura (pp. 268-274). São Paulo: Cosac Naify.