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Maria Irene Aparício / Draft version
Working paper / CIHALCEP 2015
1
Cinema(s) da Memória: Sobre a Arte, as Paisagens Ibéricas e a Herança Cultural
[Cinema(s) of Memory: on Iberian landscapes, cultural heritage and art’s values]
Maria Irene Aparício, PhD1
Resumo
Esta comunicação consiste numa análise comparativa de dois filmes – O Processo do
Rei (João Mário Grilo, 1989, Portugal) e El Espíritu de la Colmena (Victor Erice,
Espanha, 1973) de um ponto de vista da mise en scène. Procura-se compreender o
modo como os estilos dos cineastas configuram – ainda que de formas diferentes –
uma mesma paisagem que é simultaneamente física, cultural e artística. Esta análise
será mediada pelo conceito de memória, mostrando como as memórias são
determinantes para a configuração de diferentes valores veiculados pelo filme e,
consequentemente, para uma mudança de paradigma do valor da arte.
Palavras-chave: Filme, cinema, práticas artísticas, valores, memória.
***
Abstract
In this paper an attempt will be made to understand how memory - and
memories -, assembled by movie pictures and noticed by spectators, become
decisive to shape different values in daily life. To accomplish this task we will
compare some sequences of the films O Processo do Rei (João Mário Grilo, 1989,
Portugal) and El Espíritu de la Colmena (Victor Erice, Spain, 1973). Moreover, this
is also a contribution to the comprehension of artistic practices – particularly film –,
and its decisive influence on changing the paradigm of art’s values.
Key words: Film, cinema, artistic practices, values, memory.
1 FCSH- Universidade Nova de Lisboa / Ifilnova - AeLab / FCT.
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1. Introdução: Paisagens, Artes, Memória(s), Valores
What now is clear and pain is, that neither things to come, nor past are. [...] there are
three times: a present of things past; a present of things present; and a present of things future.
For these three do exist in some sort, in the soul, but otherwhere do I not see them; present of
things past, memory; present of things present, sight; present of things future, expectation.
(Santo Agostinho, Séc. I)
Beyond the appreciable facts of their life we know but little of the bees. And the closer our
acquaintance becomes, the nearer is our ignorance brought to us of the depths of their real
existence; but such ignorance is better than the other kind, which is unconscious, and satisfied.
(Maurice Maeterlinck, 1901)
A presente reflexão é um exercício comparativo de dois filmes – O Processo do Rei
(João Mário Grilo, 1989, Portugal) e El Espíritu de la Colmena (Victor Erice, Espanha,
1973) – com vista à identificação e problematização de dinâmicas de criação
determinadas por formas e matérias comuns, como é o caso da(s) memória(s), da
história e das artes. Neste contexto, pretende-se: a) identificar um quadro analítico de
compreensão das imagens contemporâneas, enquanto matéria de investigação
primordial para a afirmação do estatuto pro-activo das práticas artísticas, nomeadamente
do cinema; b) entender o modo como, desde as últimas décadas do século XX, o cinema
português e espanhol se (re)encontram numa mesma “paisagem” marcada pela
encruzilhada epistemológica das Artes e das Humanidades; c) mostrar como os filmes
podem contribuir para a compreensão da relevância da axiologia nos tempos modernos,
nomeadamente face à (re)apresentação e reconfiguração de valores como o bem, o belo,
averdade, o sagrado, ou outros de ordem espiritual, que são, como se sabe, centrais
para a redefinição de fronteiras, cada vez mais ténues, entre artes e humanidades na
contemporaneidade.
Neste sentido, partindo de uma primeira hipótese – o cinema como alegoria,
mas também como “espaço diferente” ou, convocando o conceito de Foucault, como
heterotopia, neste caso das memórias –, veremos como algumas das imagens
contemporâneas da paisagem no cinema, enquanto formas específicas do filme, são
também memórias implícitas da história e da arte – como marcas de um tempo passado
–que contribuem para a mudança do paradigma dos valores, sublinhando o valor da
tradição, e deslocando o eixo de acção/reacção do processo estético para um “discurso”
poético e reflexivo das imagens, que é, também, ético, no traçado de contornos
pedagógicos essenciais e determinantes.
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Convocamos então a ideia de espaços diferentes – imbricados –, que Michel
Foucault (1926-1984) designou por utopias e heterotopias (“Different Spaces”, 1967)
espaços esses mediados pela ideia de uma experiência à qual o filósofo atribui uma
imagem: o espelho. Ora, os filmes que aqui nos ocupam são espelhos de uma realidade
onde se entrelaçam a “verdade” da História, a “verosimilhança” dos mundos
imaginados e imaginários do cinema, o “belo” das artes, e até mesmo o “bem” ou o
“sagrado” dos mandamentos laicos ou religiosos, enquanto horizontes espirituais das
estórias e narrativas; são bem as superfícies reflectoras das memórias e das vivências,
quer dos seus criadores, quer dos seus espectadores, que o cinema apresenta e que
Foucault (1967) invoca:
“O espelho é afinal a utopia, na medida em que é um lugar sem espaço real.
Vejo-me no espelho, lá onde não estou, num espaço imaginário que se
instala virtualmente para além da superfície; [...] sou uma espécie de sombra
que me torna visível, que me permite ver-me num lugar do qual estou
ausente – um espelho utopia. Mas [o espelho] é também uma heterotopia, no
sentido em que existe realmente, e tem um efeito de retorno [da minha
imagem] ao lugar que ocupo. É graças ao espelho, que me descubro ausente
do lugar onde estou, uma vez que me vejo lá onde não estou.” (Foucault, p.
177-178)
Este cinema-espelho, ou forma-espelho, reversível e ambivalente, pode tornar visível o
que é invisível, mas também sedimentar, i.e. criar memórias a partir das «formas que
circulam entre a presciência e a vidência» (Aparício, 2013), induzindo complexas
reflexões sobre o ser, o pathos, o tempo [heterocronias] e a eternidade. São estas
memórias continuamente reconfiguradas a partir de dentro que instalam cineastas e
espectadores num mesmo regime do olhar, num mesmo espaço de intersecção entre o
real e o ficcional. Uma segunda conjectura releva da influência dos contextos sócio-
culturais e políticos globais nas práticas do cinema espanhol e português, a qual
permite, por sua vez, determinar algumas das consequências produtivas do cinema na
circulação e transferência de memórias e narrativas – artísticas, históricas, etc. –
amplificadas, antes e depois dos filmes, pelos dispositivos modernos de comunicação e
comemoração.
Efectivamente, nos filmes de Erice e Grilo, são os aspectos dos contextos
supracitados (e.g. culturais, políticos, etc.) que hierarquizam os três níveis específicos
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da mise en scène: a) as paisagens físicas (e.g. espaços interiores e exteriores,
geográficos ou mentais); b) as paisagens culturais (e.g. referências implícitas ou
explícitas à História ou às estórias); e, por último, aquelas que designaremos por c)
paisagens da arte, que traduzem e inscrevem o(s) universo(s) particular(es) do(s)
cineasta(s), através da citação ou incorporação formal de outras imagens, determinando,
finalmente, os limites da percepção do espectador. A nossa premissa inicial inclui,
portanto, três proposições: a) a criação de paisagens cinemáticas é demarcada pelas
memórias, quer dos criadores, quer dos (futuros) espectadores; b) o resultado do
supracitado processo criativo – voluntário ou involuntário – determina
fundamentalmente uma atitude crítica, não apenas perante o filme, mas uma valoração
deste em função das múltiplas intercepções das suas formas e narrativas com o mundo;
c) os valores do filme podem ser equacionados em função da sua eficácia sócio-política,
projectando o cinema num duplo sistema de ideias, propagandístico e pedagógico. Na
deliberação desta última, consideramos os sentidos originais e etimológicos dos
conceitos de propaganda (Do lat. propaganda, «coisas que devem ser propagadas», ger.
neut. pl. de propagáre, «propagar», que reenvia para a difusão de uma ideia), e
pedagogia (Do gr. paidagogía, «id.», que determina uma filosofia ou ciência da
educação, visando a definição dos seus fins e dos meios capazes de os realizar).
Assumimos ainda, implicitamente, que o processo criativo é partilhado – ainda que em
níveis diferentes – pelo(s) cineasta(s) e o(s) espectador(es) da(s) sua(s) obra(s), no
sentido em que, o primeiro constrói um mundo possível que contribui para a alteração
ou consolidação de um imaginário pessoal ou colectivo; ao segundo é dada a
possibilidade de reconfigurar as suas memórias, recriando, em simultâneo, as estórias
que alimentam a démarche cultural que caracteriza a sua contemporaneidade. O
resultado desta intersecção entre uma ideia, as respectivas imagens do cineasta e as
interpretações do espectador é, também ele, uma imagem duplamente criativa e
criadora de sentido, cuja ambivalência pode potenciar efeitos negativos ou positivos
das supracitadas dimensões propagandística e/ou pedagógica. Neste sentido, o método
que perseguimos num trabalho de reflexão sobre os filmes é menos o do crítico, e mais
o do teórico-espectador que, tal como o aprendiz de filósofo, indaga, ao mesmo tempo
que sucumbe ao fascínio das dobras da realidade inscritas nesse véu – uma heterotopia
da memória - que é o filme...
2. Paisagens físicas e projecções: lugar, representação, memória
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Em primeiro lugar comecemos por uma identificação de algumas paisagens físicas
destes filmes. Destacamos em ambos, dois tipos de paisagens geográficas relacionadas
com a mise en scène; no filme de Erice, as paisagens abertas da meseta castelhana, no
de Grilo, o montado alentejano. São planos gerais, horizontes baixos que favorecem a
percepção de uma distância que invoca o passado e o seu julgamento; espaços quase
sempre minimalistas e vazios, sem sombras, mas assombrados – ou o mesmo é dizer,
sem existência física mas com referentes reais –; “espelhos” que invocam memórias do
deserto ou da solidão da noite, pela cor e respectivas temperaturas. A cor do mel e sépia,
cálida em Erice; o azul frio da penumbra, em Grilo.
Na verdade, num como no outro, as paisagens físicas são pontes para as
paisagens interiores das personagens que as moldam – a paisagem interior de Ana (Ana
Torrent), o fascínio infantil e crente; ou o retrato da alma de D. Afonso VI (Carlos
Daniel), desencantado e céptico, aprisionado num corpo doente e enredado nas malhas
da História, na qual se joga o seu desafortunado destino. Em Erice, as sequências do
filme são, na sua maioria, construídas a partir de um olhar endógeno da personagem,
mesmo quando Ana se encontra no interior do próprio plano – Ana que se olha lá, onde
não está... Também em O Processo do Rei há um ponto de vista ambivalente,
fundamentalmente poético, que não está dentro nem fora do enquadramento. Significa
isto que o cinema constitui-se como operador do discurso indirecto livre, em que ambos
os cineastas assumem, retoricamente, a posição do sujeito-personagem na diegese. Em
última análise, são as suas experiências, nomeadamente as da arte e do conhecimento,
que dão corpo e forma às narrativas, e às suas imagens singulares. Propondo o cinema
como “língua escrita da realidade” Pier Paolo Pasolini (1922-1975) associara já essa
forma de discurso a uma outra, cinemática, que designaremos por “poético-
cinematográfica”. Para o autor,
“[...] o nascimento de uma tradição técnica da “língua da poesia” no cinema
está ligado a uma forma particular do Discurso Indirecto Livre
cinematográfico. § Mas antes de mais duas palavras para precisar o que
entendo [ele, Pasolini] por “Discurso Indirecto Livre”. § Trata-se, muito
simplesmente, da imersão do autor na alma da sua personagem e da adopção,
portanto, [...] não só da sua psicologia como da língua daquela. [...]”
(Pasolini, 1982, p. 144)
Não sendo um monólogo interior – discurso que pode traduzir as reminiscências e/ou
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vivências de um autor ou, em última análise, da sua geração, através da sua personagem,
–, o discurso indirecto livre, sendo mais naturalista, considera-o Pasolini um
“verdadeiro Discurso Directo sem aspas, implicando portanto, o uso da língua da
personagem [...], falando talvez uma linguagem inventada, para exprimir a sua própria
interpretação do mundo” (Pasolini, 1982, p. 144). Esta questão ilumina, por sua vez a
problematização dos usos criativos do POV no filme; subjectivo (e.g. em discurso
directo), objectivo (e.g. discurso indirecto) ou semi-subjectivo –, questões que fundam,
como se sabe, toda a teoria de Gilles Deleuze (1925-1995) a propósito do cinema e, em
particular, a imagem-movimento, a partir de descrições e assimilações que convocam
esta e outras ideias de Pasolini, bem como as teorias de Henri Bergson (1859-1941),
Sergei Eisenstein (1898-1948) e Jean Mitry (1907-1988). Nos anos 60 do século XX,
Mitry posicionara-se então entre os dois pólos clássicos de argumentação da teoria do
cinema: o realista e o formalista, usando argumentos realistas para diferenciar o
cinema das outras artes (nomeadamente da pintura e da literatura), mas invocando
também argumentos formalistas para redimir o cinema da sua suposta função de mera
representação da realidade. Neste sentido, a percepção surgia apenas como uma fase
necessária e preliminar na instituição da nova arte – aquela que Ricciotto Canudo
(1877-1923) estabelecera como a sétima, logo no início do século XX – e que opera a
tradução do real na sua apresentação, com evidente relação ao sistemas referenciais da
linguagem e da psicologia. Mitry propõe o cinema como um regime de semi-
subjectibvidade escapando à polarização do olhar objectivo / subjectivo, já que para o
autor o filme pode incorporar uma dupla perspectiva – psicológica e estética – sendo a
percepção quasi-natural do cinema o que justamente o poderia diferenciar das outras
formas de arte. É ainda pela dedução de construção da imagem a partir da dialéctica
olho-mente que Mitry percebe, também, as diferenças cruciais entre a vulgar percepção
visual e a dimensão que se pode, talvez, designar por percepção cinemática. O
dispositivo cinematográfico – invenção da ciência, mas também, objecto de
entretenimento, permitiria ver da mesma forma, mas também ver diferente; ver mais
longe e em profundidade; ver o invisível e o informe, o homem e a alma. Deste modo, o
cinema é um desafio para os espectadores confinados aos seus horizontes de
familiaridade relativamente ao mundo e às suas formas. As diferenças de percepção,
inauguradas pela pintura e elevadas a um expoente máximo da imaginação pelo cinema,
permitem distanciá-lo de uma mera representação da experiência visual, ao mesmo
tempo que redime o seu pecado original. Esta relação fundamental entre imagem
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fílmica, arte e percepção está, mais do que nunca, no centro do debate em torno do
cinema contemporâneo, destacando-se as divergências entre os seguidores de: a) uma
perspectiva realista [e.g. André Bazin (1918-1958) na senda de Henri Bergson e Jean-
Paul Sartre (1905-1980) e, também, Siegfried Kracauer (1889-1966) que considera o
cinema do ponto de vista da percepção, algo muito idêntico à realidade...], instaurado o
aparelho visual como receptor privilegiado de uma imagem que existe já na realidade;
b) uma tradição formalista tributária da Gestalt, que destaca a função de construção das
imagens. Todas estas questões constituem as premissas essenciais para a compreensão
de uma matriz estilística comum aos dois filmes em análise, na medida em que é através
das diferenças entre as paisagens reais e as suas projecções nas formas e narrativas que
os cineastas singularizam o processo criativo.
3. “Érase una vez..” um Rei..., eternidade, futuro.
El Espíritu de la Colmena é a primeira longa-metragem de Victor Erice. Realizado em
1973, várias décadas depois da traumática Guerra Civil Espanhola (1936-1939), que
conta entre os seus sangrentos eventos o bombardeamento de Guernica pelos falangistas
apoiados por aviões italianos e alemães, o filme é, incondicionalmente, um traço das
memórias, fantasmas e reminiscências do seu criador, que cresceu e viveu sob o regime
do ditador Francisco Franco (1892-1975), entre 1939 e 1975. A diegese situa-se em
1940, algures na meseta castelhana, cerca de um ano depois da referida guerra, e da
subida ao poder do ditador (1939). O filme inicia-se com a chegada do cinema a uma
aldeia isolada, e a respectiva projecção do filme Frankenstein de James Whale (USA,
1931) que se institui, assim, como matriz cultural e política do filme. É preciso dizer
que a aldeia onde tudo se passa, no tempo em que se passa (1940), não conhece o
cinema, pelo que o “monstro” que a assola não poderia ser jamais o de Frankenstein.
Esse só chegará ali pela mão de Erice e as imagens do seu filme, em 1973, forma subtil,
mas eficaz que o cineasta encontra para falar de “monstros” bem mais reais... o medo, a
violência, o fascismo. Erice dirá, por diversas vezes, do monstro de Whale, que é
imagem original enquanto experiência primeira do cinema pelo espectador; a imagem
do encontro entre a criança e o (seu) monstro, que alicerça o filme de Erice sobre dois
poderosos pilares fundamentais da existência – as feridas da vida e as vicissitudes da
morte – contada a partir das suas próprias pegadas e impressões. Não sendo um filme
sobre a finitude, é no movimento de interrogação dos seus limites que se inscreve a
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narrativa do filme. Em Espíritu de la Colmena, a câmara não instala um ponto de vista
objectivo, nem tão pouco um olhar subjectivo, mas determina um trajecto semi-
subjectivo, comprometido com os corpos, mas também com as almas, e, sem dúvida,
com o “espírito da colmeia” à qual todos nós, espectadores do futuro, pertencemos...
Isto significa, em última análise, que as imagens não incorporam apenas os olhares da
personagens, não são, também, simples “olhares exteriores”, mas instalam o espectador
num poderoso intervalo criativo, ao permitirem-lhe construir, com a personagem, a sua
própria paisagem interior, caminhado com ela pelos espaços físicos que se transmutam
em espaços outros – utopias, heterotopias... – que invocam, por vezes, uma visão
profundamente poética das paisagens da alma, mas também, uma inquietação política.
Vejam-se, por exemplo, os planos do interior dos corredores, o plano perspéctico da
linha de caminho de ferro com Ana a “a encarnar” a personagem de Buster Keaton, ou o
plano do guerrilheiro morto – Cristo de Mantegna – que é, simultaneamente, a morte
mas também a celebração da pintura sob o altar do cinema. Estes planos são loci
agostinianos, restauros de um passado marcado pela História e as Artes visuais, e pelo
som, através dos diálogos de Frankenstein e das melodias de outrora. A matriz do
espaço e do tempo do filme revela-se indissociável de uma História Universal das
Artes, num movimento de celebração, que é também julgamento da História dos
Homens.
Aos fantasmas das estórias de Erice, numa infância dominada pelo
silenciamento das vozes e o estrangulamento das diferenças culturais e políticas, o filme
O Processo do Rei, realizado em 1989 por João Mário Grilo, opõe os fantasmas da
História, ao invocar os seus processos cruciais de sucessão e exercício do poder. O que
releva das suas imagens primorosamente construídas a partir dos registos documentais
da História, mas também das subtis memórias da Arte e da Cultura, é um processo de
julgamento que, paralelamente ao processo do rei, acaba por decorrer na sala de cinema.
Este processo de inquirição sobre o passado diegético que o constitui, e o futuro que ele
efectivamente nos legou é, na verdade, um dos contributos mais evidentes do cinema
para a cena contemporânea do tribunal, popular ou erudito, da arte e da cultura. Tal
como Erice – que regista o contributo do cinema na criação e redefinição de imaginários
individuais ou colectivos –, também Grilo inscreve o processo do rei num movimento
bem mais vasto de pedagogia da arte, ao trazer à presença, as atmosferas e composições
da vida quotidiana – os imponderáveis da História – que só a Arte pode transportar para
o futuro; as naturezas mortas, as cenas íntimas e vulgares da vida quotidiana – até
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mesmo as de um rei... –, os gestos que se perderam na formalidade da escrita dos
documentos (e.g. o movimento inquietante do corpo do rei ao deslocar-se, por
exemplo), a ambivalência do sentido das palavras proferidas, que negam quando os seus
sujeitos pretendem afirmar... Num certo sentido, podemos talvez dizer, que tanto a
fantasia (Do gr. phantasía, «id.», pelo lat. phantasìa-, «aparição; visão») realista das
imagens e dos monólogos de Erice, como a ironia(Do gr. eironeía, «interrogação», pelo
lat. ironía-, «ironia») dos gestos e dos diálogos de Grilo, são tributários de um horizonte
histórico e cultural – um desejo de futuro –, que é comum aos dois cineastas, ou não
fora a península ibérica tantas vezes impelida à resolução de alianças ou conflitos
mútuos que marcaram indelevelmente o seu futuro, nosso presente.
4. Paisagem artística: alma, poesia, resistência
Há, deste modo, nesta e noutras relações do cinema com a paisagem física do mundo e o
espaço etéreo e espiritual da arte, uma convocação ambígua e ambivalente das viagens
épicas ou trágicas da História – sejam elas a guerra civil espanhola, a ditadura
franquista, o malogrado reinado de D. Afonso VI, que foi cativo no Paço de Sintra,
entre 1674 e 1683, os processos inquisitórios, os jogos de poder e os da alcova, etc. –;
bem como a celebração de obras e figuras reminiscentes da Arte e do Cinema,
nomeadamente a “commedia dell'arte”, os madrigais (Sécs. XIII, XIV, XVI), os
tableaux vivants, Josefa de Óbidos (1630-1684), Chardin (1699-1779), Tiziano
(1488/1490-1576), Andrea Mantegna (1431-1506), Diego Velázquez (1599-1660),
Rembrandt van Rijn (1606-1669), Johannes Vermeer (1632-1675), Francisco de
Zurbarán (1598-1664), Buster Keaton (1895-1966), Stanley Kubrick (1928-1999), entre
outras. Ambos os cineastas projectam, portanto, imagens originárias.Reflectindo sobre a
utilização do segmento Zapruder no filme JFK, de Oliver Stone (USA, 1991), João Mário
Grilo escreveu, posteriormente, que «não há imagens mais verdadeiras do que outras;
haverá quando muito, imagens primordiais2 [...] que é preciso tomar no seu valor
intrínseco, i.e., como urn principio de atracção de outras imagens, umas já feitas outras
por fazer.» (Grilo, 2006, p. 84). Ora, é indubitável que, à semelhança das imagens do
museu ideal de Aby Warburg (1866-1929) e do seu projecto Mnemosyne-Atlas (1924-
1929), estas imagens, que atraem e são atraídas, provêm de um espaço-outro, qualquer,
reflectido e abismado (heterotopia) e de um tempo fragmentado e descontínuo
2 Sublinhado nosso.
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(heterocronia). São imagens matriciais que pertencem ao filme da realidade,no cinema
da vida. São imagens cuja potência está menos em pertencerem a este ou àquele sistema
artístico ou científico, e mais em contribuírem para a transformação do olhar dos
espectadores sobre a realidade própria ou dos seus antepassados. Para Erice, a imagem
da origem, que se inscreve em El Espíritu de la Colmena é, assumidamente, a de
Frankenstein, que o cineasta recebeu através do filme do mesmo nome de James Whale
(Frankenstein, USA, 1931). Mas vemos, ao longo de todo o filme, o verdadeiro rizoma
de uma ideia que não sustenta apenas uma visão poética do seu autor, mas estabelece
uma crítica profunda, ainda que velada, sobre os totalitarismos, a guerra, a privação de
liberdade de expressão, etc., ao mesmo tempo que revela o trabalho secreto das
“obreiras da colmeia” – que são aqui, literalmente, as artes. A imagem maior é a
daquela acção que, individual ou colectiva, mas sempre em prole de um bem comum –
isto é, ao serviço de um humanismo – consegue, apesar de tudo, operar a grande e
desejável transformação do mundo, pela transmissão dos seus ideais – na forma de
propaganda ou contra ela, mas sempre em sentido verdadeiramente pedagógico. O
cinema pode ser, assim, a seu modo, uma forma de acordar as consciências
adormecidas, alertando para os perigos dos “monstros” dos tempos modernos, criados e
alimentados pelos homens. É, assim, sobre a resiliência do espírito humano, mas
também sobre a desumanidade do homem para com o homem, que verdadeiramente
falam os filmes de Grilo e Erice, através do já referido discurso indirecto livre. Neste
sentido, as imagens destes filmes pertencem, simultaneamente, a uma memória dita
cultural e às memórias individuais dos espectadores. São imagens de uma herança
comum que agem sobre o pensamento. O que é relevante, neste caso, é que a suposta
memória colectiva e as memórias individuais coincidam numa imagem que atravessa os
tempos e as fronteiras geográficas. As paisagens físicas dos filmes incorporam espaços
e tempos estratificados que reenviam ora para uma dimensão realista, ora para a
imaginação sartreana, no sentido em que uma imagem é já uma forma de
consciencialização e jamais encontraremos nela mais do que aquilo que somos capazes
de conceber. É, portanto, nesse movimento de imbricação do real com a ficção que se
desenham as outras imagens cinemáticas da paisagem, aquelas que realmente inscrevem
o seu significado político.
5. Nota inconclusiva
Esta breve análise dos filmes O Processo do Rei (João Mário Grilo, 1989, Portugal) e El
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Espíritu de la Colmena (Victor Erice, Espanha, 1973), mediada pelos conceitos de
memória e paisagem, centrada nas referências da Arte e da História não esgota a
complexa problemática da relações supracitadas, e constitui o prolegómena de uma
investigação em curso. Por questões metodológicas optou-se por introduzir os
problemas segundo uma matriz de análise própria, deixando para trabalho posterior a
eventual referência e comentário de uma interessante bibliografia existente, sobretudo
no caso do filme El Espíritu de la Colmena. Para uma outra fase deste work in progress
ficou ainda o alargamento de uma leitura dos filmes no contexto geral e cruzado da obra
dos dois cineastas. Por agora, pretendeu-se mostrar como a arte e o conhecimento são
determinantes para a singularidade das práticas contemporâneas do cinema, cada vez
mais envolvidas numa complexa convocação do passado como forma de compreensão e
validação do presente. Neste contexto, é evidente que a configuração de diferentes
valores veiculados pelo(s) filme(s) decorre de um trabalho expressivo (do cineasta), mas
também do envolvimento emotivo e interpretativo (do espectador), em que ambos
concorrem para uma mudança do paradigma do valor da arte e, em particular, do
cinema. No caso de Erice e Grilo, é evidente que o rigor técnico e a sensibilidade
estética das utilizações da luz e da iluminação (vejam-se os trabalhos meticulosos de
Eduardo Serra em O Processo do Rei e Luis Cuadrado em El Espíritu de la Colmena),
bem como as opções de enquadramento e montagem, resultam em imagens de uma
beleza clássica, susceptíveis de emudecer os seus espectadores, e dar à contemplação os
processos da arte, da história e da memória. Mas os retratos intimistas, marcas da alma e
da poesia, moldados pelas estruturas dos espaços filmados, transformam as paisagens
culturais, reconhecíveis e passíveis de descrição, em paisagens interiores que são, por
definição, marcadas pelas condições que as transformam: as emoções, mais ou menos
intensificadas pelo som – a música, por exemplo – ou a cor, e os movimentos interiores
que convocam a razão e a reflexão. Os filmes deixam então de valer apenas pelas suas
composições e narrativas e assumem, em pleno, a complexidade das ligações
intertextuais que são, por definição, pro-activas e mesmo políticas.
______________
Referências
Aparício, M. I. (2013). “Forma(s) do Cinema: Das Matérias do Filme ao Espírito nas
Formas” in Grilo, J. M. e Aparício, M. I. (Orgs.), Cinema & Filosofia: Compêndio. pp.
227-256, Lisboa: Edições Colibri / ISBN 978-989-689-342-2).
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Deleuze, G. (1983). Cinéma 1: L`Image-Mouvement. Paris, Les Éditions de Minuit.
Foucault, M. (1967). “Different Spaces” in Faubion, J. D. (Editor). Aesthetics, Method,
and Epistemology. Essencial Works of Foucault 1954-1984, Volume Two (Translated
by Robert Hurley and Others), New York: The New Press, 1988, pp. 175-185. Texto
apresentado numa conferência no Architectural Studies Circle, a 14 de Março de 1967.
A primeira publicação data de 1984. Cf. Architecture, Mouvement, Continuité 5
(October 1984, pp. 46- 49).
Grilo, J. M. (2006). “Um Presente Interminável” in O Homem Imaginado. Cinema, acção,
pensamento. pp. 74-86, Lisboa: Livros Horizonte.
Mitry, J. (1963). Esthétique et Psychologie du Cinéma (Translated by Christopher King.
The Aesthetics and Psychology of the Cinema e Semiotics and the Analysis of Film,
Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press, 1990).
Pasolini, P. P. (1972). «O “Cinema de Poesia”» in Empirismo Eretico, Garzanti Editore
(Tradução de Miguel Serras Pereira, Lisboa: Empirismo Hereje, pp. 137-162. Lisboa:
Assírio e Alvim, 1982).
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Chri
e Analys
o Ereticotico
, Garzanti E, Garzanti E
HerejeH
, pp. 137-162, pp. 137-162