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(01) Mais detalhes em http://
en.wikipedia.org/wiki/Star_Trek
(02) Mais detalhes em http://
en.wikipedia.org/wiki/VoIP
Guilherme Ranoya é pós-graduado em
Gestão Estratégica em Comunicação
Organizacional e Relações Públicas pela
ECA-USP, e Coordenador do Curso
Superior de Tecnologia em Internet
Business & Web Design do Centro
Superior de Tecnologia das Américas.
Guilherme Ranoya
Tecnologias da
desmaterialização
Resumo
As tecnologias digitais estão
vertiginosamente mudando o mundo.
E não há repouso nestas transfor
mações - enquanto paramos para olha-
las, elas já se transformaram. No
entanto, toda esta ruptura possui um
sentido mais amplo, uma busca por um
mundo onde as coisas concretas e fixas
se tornaram restritas e perderam sua
potência. É fundamental compreender
o projeto de desmaterialização da vida
tangível e da existência, assim como
todos os aparatos e dispositivos
tecnológicos que nossa sociedade
produz, como uma manobra para algo
maior, mesmo que de maneira
fragmentada e distribuída, mas com um
objetivo claro. As tecnologias não são
algo que simplesmente transformam o
mundo como um fim em si mesmo:
elas servem a um propósito, elas
possuem um sentido. Somente
enquadradas desta maneira, podemos
colocá-las em perspectiva.
Este artigo apresenta uma
abordagem desconstrutivista para a
relação entre tecnologia e sociedade.
1. Experiências com o imaterial
Ao andar pelas ruas de um grande
centro urbano, poderíamos refletir um
pouco mais sobre nossos - já tão
comuns - telefones celulares. Que
aparelhos intrigantes?! Como imaginar
que aqueles jovens que assistiam
reprises do seriado americano
StarTrek1 na década de 80 já estariam
utilizando aparatos tecnológicos
portáteis como os mostrados na
ficção, já na década de 90? Principal
mente se lembrarmos os preços das
linhas telefônicas do Brasil da década
de 80...
O celular é um telefone, mas é um
telefone que deixou de ser. O telefone
era uma posição geográfica: a forma de,
através da comunicação, se posicionar
um sujeito em um determinado lugar no
espaço urbano. Ao se realizar uma
ligação telefônica, ligávamos para um
lugar, para, neste lugar, conversarmos
com um sujeito que, para estar
acessível, precisaria estar confinado aos
limites e sujeições impostos pelo lugar.
O telefone era uma tecnologia
disciplinar.
O celular arrebentou este
confinamento. E não é por menos que
relacionamos o celular a um estilo de
vida - já que rompia com sujeições e
confinamento -, motivo o qual levou a
seu estrondoso sucesso de vendas.
Liberdade ele dizia: não a liberdade de
andar pelas ruas e falar com os amigos
e colegas, mas a liberdade de não
precisarmos nos submeter as regras e
exigências próprios a cada um dos es
paços consecutivos pelos quais
transitávamos (a residência, o
escritório, etc...) para estarmos
acessíveis a outros tipo de sujeição. No
Brasil, quando foram lançados, havia
fila de espera para recebê-los, dada a
imensa demanda.
Mas a era do celular está
chegando ao fim. Breve será
substituída pelo VoIP2 (telefonia fixa
através da internet). Os especialistas
certamente irão rir desta afirmação, pois
tratam-se de coisas distintas: o VoIP
nada mais é do que um telefone fixo
que transmite nossas conversas,
convertendo-as antes a dados digitais,
e trafegando-as através da internet no
lugar dos cabos de telefonia
convencionais. Trata-se, portanto, de
um telefone fixo com a vantagem de
poder ser conectado em qualquer lugar
e receber as chamadas telefônicas
naquele lugar. Seria então um retomo
ao confinamento; um retrocesso no
processo que, por conseguinte, não
rivalizaria nem um pouco com a
liberdade proporcionada pelo celular.
As tecnologias têm isso - é o que
chamamos de Killer Applications3 -,
esta “sabedoria” de que, para se
avançar cinco degraus na escada, as
vezes é necessário retornar um. A
desmaterialização das coisas operada
pelo VoIP é vertiginosa! A partir dele, a
telefonia deixa de ser um conjunto de
processos e equipamentos que
permitem a troca de mensagens entre
sujeitos, e passa a ser meramente, troca
de dados. Não se trata de uma
conversa, de um bate-papo, de uma
negociação, são meramente dados
transitados, contendo - por acaso -
registros de voz. Poderiam ser uma
planilha, um vídeo, uma música, ou
qualquer outra coisa. O VoIP faz com a
telefonia o que o processador de texto
no computador fez com a máquina de
escrever.
As redes Wi-MAX4 já começaram
a ser implantadas em algumas capitais
do mundo. San Francisco nos Estados
Unidos já está plenamente coberta.
Breve, estaremos todos cobertos por
uma rede digital sem fio. Ela permite que
notebooks, celulares, videogames,
dentre tantos outros aparelhos
informatizados, conectem-se a internet
de, virtualmente, qualquer lugar. O VoIP
não necessita de um telefone
convencional: por se tratar meramente
de dados, um computador pode
substituí-lo. Um videogame com
microfone e caixas de som também
pode. Qualquer equipamento
informatizado, que possua entrada e
saída de som poderia, seja utilizando
headphones, seja utilizando um viva-
voz, ou até transformando os dados
recebidos em texto escrito na tela do
aparelho e convertendo texto digitado
em áudio para quem está na outra ponta.
Pode-se até utilizar o VoIP com um PDA
(Personal Digital Assistant) — mais
conhecidos no Brasil como agendas
eletrônicas - e conectar este PDA via
tecnologia sem fio Bluetooth5 (outro
tipo de rede sem fio, desenvolvida para
conectar periféricos a equipamentos
informatizados) a um HeadSet (um
headphone também sem fio). O HeadSet
permite que o sujeito faça ligações ou
as atenda sem sequer estar próximo do
dispositivo que realiza a
desmaterialização da conversa em
dados. Se preferir, o sujeito poderá
direcionar a ligação recebida por seu
PDA para o aparelho de rádio de seu
automóvel. O rádio de seu carro passa
a ser o seu “telefone”. O rádio deixa de
ser rádio, e passa a ser apenas um mero
dispositivo que pode se transformar em
qualquer outra coisa, conforme a
necessidade. Devemos reconhecer
como a concepção do que era um
telefone, e como todas as relações que
ele organizava foram, vertiginosa e
abruptamente, transformadas. O
telefone não é mais o aparato ou as
vias, mas meramente sua essência: o
ato de falar com outro. O telefone é
um signo que está perdendo seu
referente concreto: logo não existirá
mais um aparelho telefônico, mas o
ato de ligar e conversar por um meio
permanecerá. O telefone (ou o
telefonar para alguém) fará parte
apenas do mundo simbólico como
representação de um comportamento,
e não como representação de uma ação
sobre um dispositivo material. A
desmaterialização que transformou
esse ato em dados transmitidos,
equalizou a conversa telefônica
(dados), textos (dados), imagens
(dados), músicas (dados), planilhas e
cálculos (dados)... ao estacionar nosso
automóvel na porta de um edifício,
para dar carona para um amigo,
podemos chamá-lo em casa sem
sairmos do veículo ligando para ele de
nosso aparelho celular, ou podemos
enviar para ele uma mensagem de texto
SMS que ele receberá no seu celular.
Isto não passa de transmitir dados de
um equipamento para outro... Se é a voz
falando “por favor desça que já estou
(03) Ver em DOWNES, Larry &
MUI, Chunka. Unleashing the Killer
App- Digital Strategies for Market
Dominance. Havard Business
School, 2000; ou em http://
en.wikipedia.org/wiki/
Killer_application
(04) Mais detalhes em http://
en.wikipedia.org/wiki/Wi-max
(05) Mais detalhes em http://
en.wikipedia.org/wiki/Bluetooth
(06) Mais detalhes em http://
en.wikipedia.org/wiki/Emulators
(07) Mais detalhes em http://
en.wikipedia.org/wiki/Atari_2600
aqui” ou se é um texto escrito “por favor
desça que já estou aqui”, tanto faz.
Tem se falado muito no Brasil
sobre o problema da TV Digital. Entre
modelos e discussões, talvez a questão
mais importante esteja sendo deixada
de lado: a TV Digital é na verdade o fim
da TV. Ela transformará a TV em outra
coisa que não uma TV - provavelmente
será um catalisador na fusão entre o
computador pessoal e a TV, ou decretará
finalmente a sua extinção junto ao rádio,
ao vídeo/DVD, e ao aparelho de som,
substituindo todos eles por uma central
informatizada de mídia que pode, além
de servir como estação de trabalho e de
divertimento, realizar a automação dos
eletrodomésticos e dos equipamentos
domésticos como a iluminação, o som-
ambiente, conforto térmico (ar-
condicionado, janelas e ventilação), a
irrigação de plantas e jardins, e assim
por diante.
A TV como a entendemos é um
equipamento que transforma sinais em
imagens; seu funcionamento é de mão-
única, recebendo e reproduzindo o que
é transmitido pelos meios de
comunicação. É um instrumento de
decodificação apenas.
Já a TV Digital possui um
funcionamento muito semelhante a um
computador conectado a internet, o que
nos faz questionar se existe algum
sentido em um equipamento que
reproduza as mesmas funções de um
computador, mas que possua a
embalagem de um a TV?! A TV Digital é
de mão-dupla: tanto recebe como envia
sinais. Sua imagem tem mais qualidade
porque se trata de dados de computador
e não de pulsos elétricos. Ela é, na
verdade, um ponto de rede, e transforma
os dados computacionais em imagens
ou em planilhas, arquivos, documentos,
etc. Além de programação televisiva, é
possível apresentar e recolher desta
caixa preta digital tudo que se faz com
um computador conectado a internet.
Será possível fazer compras (como no
caso do e-commerce), será possível
entrar em contato e enviar mensagens
para empresas (como nos formulários
de contato na internet), provavelmente
será possível transformá-la, com o
devido software, em telefone - tudo que
já se faz com um computador.
Provavelmente, independente de
qual seja o modelo adotado, encon
traremos no mercado soluções
obscuras para modificar seus registros
e sermos capazes de receber dados de
outro modelo; seremos também capazes
de re-direcionar o stream [fluxo
contínuo] de dados do computador ou
da internet para a TV, recebendo canais
e recursos digitais que não estavam
previstos no projeto nacional. Ou seja,
independente de qual seja o modelo
escolhido, haverá maneiras de
desmaterializar o equipamento e criar
novas possibilidades para ele. Toda a
discussão que envolve este problema
se restringe, na verdade, a encontrar
proteções contra a pirataria digital e um
modelo de distribuição do sistema que
alcance as massas e tome-se lucrativo
para os produtores de conteúdo. Vale
falar que a tudo que se propõe a TV
Digital, já se pratica em um computador:
os jovens jogam on-line, conversam,
compram, fazem vídeo-conferência e
assistem seus seriados de TV prediletos
nele, tanto em tempo real como após
serem apresentados, porém, o
computador ainda é utilizado por uma
pequena parcela da população, o que
toma remota a possibilidade de lucro
na produção de conteúdo digital para
ser veiculado apenas pela internet.
Isto poderia ser suficiente para
desconcertar qualquer pessoa nas
relações que estabelece com as coisas,
mas, para adensar ainda mais a situação,
saiba-se que os computadores estão
sendo, também, desmaterializados.
Como?! - pode-se pensar. Se os
computadores são o próprio instru
mento da desmaterialização, como
poderiam ser desmaterializados?
De várias maneiras:
Emulações6
Qualquer jovem que viveu a
década de 80, certamente, conheceu o
videogame Atari7. O emulador do Atari
foi, possivelmente, o primeiro projeto
de desmaterialização de um dispositivo
informatizado, realizado na década de
90. Percebeu-se que os computadores
atuais possuíam infinitamente a
capacidade de processamento do velho
Atari. Então, porque não reproduzir o
funcionamento de seus circuitos
através de um programa de
computador? Este programa
funcionaria tão rápido quanto o próprio
equipamento. E foi exatamente isto que
aconteceu: hoje, o velho Atari está vivo,
tendo reproduzido perfeitamente seu
funcionamento tanto nas telas dos
computadores como nas telas de PDAs
e celulares. Ele foi emulado por
equipamentos muito mais poderosos.
Este processo não parou no Atari.
Além de videogames, computadores
mais antigos tiveram todos os seus
circuitos reproduzidos nas telas de
computadores mais novos. Um exemplo
ainda mais curioso é de um emulador
do computador MSX8 (equipamento
criado em meados de 1986) que foi
desenvolvido para funcionar não como
um aplicativo em um computador ou em
um celular, mas para funcionar através
de um Browser (janela dos programas
de navegação na internet, como o
Internet Explorer, o Nestscape, ou o
Firefox). Além de emulado, ele nem
sequer pode ser compreendido como
um software funcionando naquele
computador; a noção de software, como
uma ferramenta distribuída em
disquetes e CD-ROMs, e executada por
um computador, também foi
desmaterializada. Este software, roda
em outro lugar, não naquele
computador. Este emulador foi
desenvolvido utilizando a linguagem de
programação Java9 da Sun Micro
systems, que curiosamente faz uso de
uma Virtual Machine10 (Máquina
Virtual), que nada mais é do que a
emulação de um processador. A
linguagem Java foi desenvolvida para
funcionar em equipamentos domés
ticos que possuiriam uma “máquina
virtual” acoplada para serem capazes
de interpretar essa programação. O
projeto inicial não foi bem sucedido,
e os engenheiros da Sun resolveram
emular esta “máquina virtual” nos
computadores para reciclar seu projeto.
Neste caso, um emulador roda outro
emulador em outro lugar que não o
próprio computador. E mesmo assim, o
usuário se diverte e nem percebe a
complexidade do que está utilizando.
Hoje temos todo tipo de
equipamentos eletrônicos desmateria-
lizados. As velhas calculadoras
científicas e financeiras foram todas
transformadas em softwares. Os
processadores e sintetizadores de som
também: os músicos já não utilizam
sintetizadores e teclados capazes de
gerar som para suas músicas; no lugar,
utilizam teclados capazes de transmitir
dados para um computador, que são
interpretados por emuladores dos
circuitos existentes naqueles velhos
sintetizadores.
Os próprios softwares já estão
sendo desmaterializados. Existe hoje um
movimento apelidado de Web 2.0, onde
aplicativos utilizados amplamente nos
computadores estão sendo emulados
em websites. Se você não possui o
Microsoft Word instalado em seu
computador, mas precisa editar um
documento nele, poderá acessar um
website que funcionará precisamente
igual ao software. O software não está
instalado no seu computador, mas,
mesmo assim, você poderá usufruir dele.
Desconstrução dos aparatos
O teclado dos computadores
deixará de ser uma coisa sólida. Logo
esqueceremos a idéia de um teclado
como teclas físicas sendo apertadas.
Diversas empresas já lançaram o VKB
(Virtual Laser Keyboard), que nada mais
é do que um dispositivo que projeta
feixes contínuos de laser em qualquer
superfície, desenhando as teclas de um
teclado convencional, e, através de
varredura infra-vermelho, reconhece
quais teclas estão sendo apertadas. Não
se trata de ficção cientifica; esta
tecnologia já está ampla e facilmente
acessível. O teclado do computador
passa a ser o tampo de uma mesa, uma
folha de papel, o braço de alguém, a
parede, enfim, qualquer coisa. O
teclado não é mais um dispositivo
sólido, mas o ato de entrar dados
digitando-se. O teclado desaparecerá,
e restará apenas traços e pistas sobre o
que ele era: o signo “teclado”
(08) Mais detalhes em http://
en.wikipedia.org/wiki/MSX
(09) Mais detalhes em http://
en.wikipedia.org/wiki/
Java_ %28Sun%29
(10) Mais detalhes em http://
en.wikipedia.org/wiki/
Java_virtual_machine
(11) Mais detalhes em http://
en.wikipedia.org/wiki/EPaper
(12) Mais detalhes em http://
en.wikipedia.org/wiki/Pixel
(13) Mais detalhes em http://
en.wikipedia. org/wiki/
Touchscreen
(14) Mais detalhes em http://
en.wikipedia.org/wiki/Linux
(15) Mais detalhes em http://
en.wikipedia.org/wiki/VNC
representará o comportamento de
digitar, e não mais o objeto concreto.
Os monitores também estão
desaparecendo. Antes eles possuíam
profundos tubos catódicos para
projetarem elétrons em uma tela
magneticamente coordenada. Hoje,
temos telas e monitores de plasma, finos
e elegantes, reduzidos simplesmente a
imagem projetada e uma pequena
moldura em seu entorno. Todos
imaginam que em um futuro próximo,
as telas serão, praticamente só a imagem,
mas não... não se trata de um futuro
próximo: a Fujitsu demonstrou seu
ePaper11, uma folha de papel transpa
rente (como uma folha de acetato) que
pode ser estimulada eletricamente
polarizando pixels12 (pontos em um
monitor). Além de ser capaz de compor
imagens tão nítidas como um monitor,
estas imagens formadas por polarização,
permanecem no papel por horas se assim
for desejado. Não satisfeitos, o papel,
como qualquer papel, é flexível e pode
ser enrolado e guardado em um tubo
como um velho pergaminho.
A tela também está substituindo o
mouse. Para quê utilizar um dispositivo
como este - que movimenta um ponteiro
ao longo da tela - se poderíamos tocar13
diretamente na própria tela, ou até, com
uma caneta, desenhar sobre ela?
Praticamente todos os PDAs fazem uso
deste tipo de tecnologia. Empresas de
animação e ilustração possuem monitores
(finos como os de plasma) onde seus
profissionais podem pintar e ilustrar
diretamente na tela, sem a necessidade de
um mouse. Instituições de ensino já estão
providenciando lousas digitais, onde se
pode desenhar, marcar, apagar, copiar e
colar, em uma tela de computador
projetada como lousa, com o recurso de
“pincéis atômicos” (canetas cuja tinta
pode ser apagada, amplamente utilizadas
em lousas de plástico).
Acessibilidade Remota
O sistema operacional Linux14
causa certa estranheza para quem está
acostumado com a idéia de computador
pessoal. Ao ligá-lo, o usuário é
interpelado por um login e uma senha,
mas o detalhe é que estes dados não
são entrados necessariamente pelo
sujeito que está na frente do
equipamento!
Conectado a internet, o
computador está acessível remotamente
a qualquer pessoa que possua sua
senha. A dinâmica de seu sistema
operacional é justamente esta: além de
múltiplos sujeitos poderem utilizar o
equipamento ao mesmo tempo, sem que
um saiba da existência do outro, o
computador não está mais acessível
para aquele que estiver fisicamente mais
próximo do equipamento; na verdade,
um usuário situado no outro lado do
mundo pode estar mais próximo e obter
mais controle do equipamento, do que
a pessoa situada na frente de seu
monitor. O usuário acessa apenas um
“terminal” do sistema operacional, uma
abertura para que ele possa usufruir de
recursos daquele equipamento, de
acordo com a posição que ele ocupa na
hierarquia definida naquele computador
pelo seu administrador (o usuário que
possui poder total sobre ele, e é
autorizado a definir sua hierarquia de
acesso).
Hoje isto não é mais exclusividade
do sistema Linux. Todos os sistemas
operacionais contam com recursos
iguais ou semelhantes, porém, mantém
ainda sua aparência de computador
pessoal.
Com softwares como o VNC15,
desenvolvido originalmente pela AT&T,
qualquer pessoa pode acessar e utilizar
seu computador através de outro
computador, havendo uma conexão
entre ambos e a internet. Se há uma
planilha a ser alterada, ou um download
que precisa ser feito em um computador
que está localizado em outro lugar (até
outro país ou outro continente), este
computador pode ser utilizado
plenamente, visualizado a partir de uma
janela do computador que temos acesso
naquele momento. Podemos contar com
pouquíssimos recursos de um
equipamento que está localizado a
nossa frente, mas deter controle total
sobre um equipamento que se localiza
a quilômetros de distância, e que nos
permite fazer o que precisamos ou
desejamos.
Muito diferente das postulações
McLuhanianas, que construíam este
mundo em rede digital como próteses e
extensões de nosso sentidos, nos
permitindo ver o que acontecia em New
York em 11/09/2001 sem estarmos lá,
presentes, estas idéias de emulação do
objetos concretos, desconstrução de
aparatos e acessibilidade remota não
são extensões de nossos sentidos: são
as próprias coisas perdendo sua casca
física, e transformando-se em alguma
coisa outra.
2. De nômades/sedentários a
nômades + sedentários
Até agora, a idéia de nomadismo
opunha-se a idéia de sedentarismo, mas
talvez, mais esta história venha a
transformar-se.
Um computador ainda não é capaz
de reproduzir fielmente o mundo que
nos envolve. Não, ao menos, com os
detalhes, a iluminação e a riqueza que
ele possui. Também não são ainda
capazes de criar reproduções quase-
realistas, como as dos filmes
hollywoodianos, em tempo-real, ou seja,
na medida que navegamos nestes
espaços virtuais, não se consegue
desenhá-los. Todos os cenários e
efeitos especiais utilizados em filmes,
levam meses de cálculos e processa
mento para serem transformados em
imagens.
Mas, um dia, este tempo será
praticamente instantâneo. E devemos
nos questionar o que sobrará de nossas
cidades quando isto acontecer?
Nos locomovemos nos centros
urbanos para, dentre outras coisas, nos
inserir no sistema produtivo. É nele que
produzimos bens e serviços, criamos
riquezas, e estabelecemos grande parte
das relações com outros sujeitos. A
cidade nos serve como suporte material
para que isto aconteça.
No entanto, no momento que
tivermos a tecnologia para a repro
dução do mundo material em um
espaço virtualizado, para quê iríamos
construí-lo? Se o que ocorre no chão-
de-fábrica em uma indústria pudesse
ser transportado para um espaço virtual
de forma que fosse detalhadamente
reproduzido, e sua simulação em
computador pudesse estar acessível
para seus operários de maneira que
estes pudessem alterar os painéis e
controles ali reproduzidos, o que
impede que estes controles simulados
realmente controlassem as máquinas da
industria, e além, o que impede ao
ambiente simulado ser mais agradável,
mais limpo, mais belo, do que o
ambiente real? O que impediria aos
sujeitos habitarem um ambiente virtual
sem saírem de suas casas, e deixarem
desertos os ambientes materiais fétidos
e concretos?
O espírito maquínico do homem
imperfeito, que deseja tornar-se
sistêmico e infalível como uma máquina,
se transformará no desejo de tomar o
mundo inventado uma correção ao
imperfeito mundo real, como as
esculturas gregas que talham o homem
de traços e formas perfeitos como
reflexo de um mundo como ele deveria
ser, e não como ele efetivamente é.
Um mundo virtualizado seria o
espaço onde não haveriam celulares,
onde uma pessoa localizada a
quilômetros de distância, ao ser
chamada para uma conversa, poderia
surgir imediatamente no entorno, sem
que isto causasse qualquer estranha
mento, ou que vozes pudessem surgir
do nada, mesmo que não houvessem
pessoas ao redor. Um mundo onde um
“corpo” poderia ocupar vários espaços
simultaneamente. Um mundo onde,
quem sabe, a materialidade das coisas
tivesse perdido de tal forma seu
sentido, que falar de máquinas, corpos,
e espaços, não fariam o menor sentido.
Um mundo onde o corpo estaria de tal
maneira desvalorizado, que não seria
medida para a beleza, a sedução, nem
tão pouco para o prazer.
Este delírio futurístico e
apocalíptico - ou talvez platônico -
foi explorado densamente por filmes
de ficção científica, dentre eles, “The
Matrix”. Se considerarmos que todas
estas proposições são teoricamente
possíveis (como era para Newton, no
século XVII, teoricamente possível,
lançar um objeto para além da
estratosfera), e a idéia de um
(16) In CHUNG, Peter;JONES,
Andy; KAWAJIRI, Yoshiaki; KOIKE,
Takeshi; MAEDA, Mahiro;
MORIMOTO, Kôji; WATANABE,
Shinichirô. The Animatrix. EUA,
2003.
(17) In Silva, Tomaz Tadeu da;
Haraway, Donna; Kunzru, Hari;
Antropologia do Ciborgue. São
Paulo: Ed. Autêntica, 2000; Pg. 14.
computador possa eventualmente
estimular nosso sistema sináptico de
maneira a nos causar as sensações de
toque, calor, frio, cheiros ou que
possamos transmitir informações
diretamente ao equipamento controlado
a entrada de dados por nossos sistemas
conscientes e inconscientes, o que
impediria de transportar nossa
experiência para um mundo inventado
e subjetivo?
O filme de animação “The
Animatrix”16, continuação descontínua
e fragmentada da trilogia “The Matrix”
aborda alguns destes pontos curiosos.
Seus personagens habitam, muitas
vezes, mundos inventados por eles
mesmos. A sedução em abandonar o
mundo real pela liberdade da imaginação
está sempre presente. Curioso também
é, em um de seus trechos, o momento
quando uma máquina é domada e
conectada na “Matrix”... questionam-
se: “Como será que uma máquina vai
entender um mundo virtual?”, no
entanto, a resposta é breve: “Para uma
máquina, todo mundo é uma
virtualização”.
Mas, para que tratamos aqui
destas reflexões ficcionais? Pois que
esses pequenos delírios nos dão pistas
sobre qual o intuito de toda essa
desmaterialização ocorrendo em nossas
vidas. Qual o seu propósito?
Paula Sibilia, em seu “O homem
pós-orgânico”, enfatiza que, de certo
modo, existe um projeto em busca da
imortalidade, e que estaríamos em uma
cruzada por encontrar maneiras de nos
desfazermos de nossa casca perecível
- o corpo - e encontrarmos novas
formas de permanecer existindo. Paul
Virilio corrobora, demonstrando que
se antes, todo o desenvolvimento
tecno-científico estava destinado à
conquista do espaço que existe além
da estratosfera, agora, estes mesmos
esforços se destinam ao corpo e ao que
o constitui e lhe mantém vivo. Vivemos
em um mundo sendo povoado por
intervenções no que consideramos
“humano”. Sem nos darmos conta,
consideramos cada vez mais comuns
“Implantes, transplantes, enxertos,
próteses. Seres geneticamente
modificados. Anabolizantes, vacinas,
psicofármacos. Estados ‘artificialmente’
induzidos. Sentidos farmacologica-
mente intensificados: a percepção, a
imaginação, a tesão. Superatletas.
Supermodelos. Superguerreiros.
Clones. Seres ‘artificiais’ que
superam, localizada e parcialmente
(por enquanto), as limitadas qualidade
e as evidentes fragilidade dos
humanos. Máquinas de visão
melhorada, de reações mais ágeis, de
coordenação mais precisa. Máquinas
de guerra melhoradas de um lado e
outro da fronteira: soldados e
astronautas quase ‘artificiais’; seres
‘artificiais’ quase humanos. Biotecno-
logias. Realidades virtuais. Clonagens
que embaralham as distinções entre
reprodução natural e reprodução
artificial. Bits e bytes que circulam,
indistintamente, entre corpos huma
nos e corpos elétricos, tornando-os
igualmente indistintos: corpos
humano-elétricos”l7.
Diz-se que a história do homem é
a história da busca por sua beleza e pela
vida eterna entre seus semelhantes. Em
um mundo ficcional como o descrito,
a beleza deixa de ser sólida e fixa, e
passa a ser constantemente mutável:
passa a ser delimitada apenas pela
moda. É possível que seu gene se
encontre na revolução feminista: os
temos e roupas masculinas possuem os
mesmos cortes a décadas, enquanto que
as roupas femininas mudam a cada
estação - representações de
subjetividade distintas; a transformação
operada por tal revolução substituiu o
valor estóico, sólido e constante, pelo
desejo, o mutável e o inconstante.
Perdeu-se nisto o referencial como
belo - nada é belo, mas tudo pode ser
considerado belo por um determinado
tempo, em um determinado espaço, e
logo deixará de ser; o ideal de beleza -
antes fixo, estático e eterno - é então
substituído pelo gosto coletivo -
perecível, substituível... dinâmico. Na
verdade, não é a beleza que passa a ter
diversas faces, mas o conjunto de
mudanças, reciclagens e rotatividades,
todos em um ritmo frenético que se
tomam o belo. Enquanto nós, os velhos
homens da modernidade, apreciávamos
o quadro e a imagem parada, nossos
filhos se encantam com vídeo e com a
beleza do conjunto de luzes que a cada
trinta avos de segundo recebem uma
nova configuração. A beleza é a sua
dinâmica, sua velocidade.
O que diríamos então sobre a
imortalidade? Neste futuro delirante,
seria difícil explicar a uma criança por
que chamamos os membros da
Academia Brasileira de Letras de
imortais?! Todo o esforço nas
biotecnologias não visam apenas
prolongar a vida humana, mas
simplesmente impedir que ela termine.
O Projeto Genoma não procura
simplesmente curar doenças e
aperfeiçoar os organismos para que
sejam mais resistentes, mais belos e
mais fortes, mas sim desvendar a própria
chave da vida, e nos possibilitar a sua
criação - o que dentro de uma
perspectiva dialética significa: se
formos capazes de criar a vida, seremos
capazes de impedir a morte. Mas mesmo
dentro desta idéia bizarra, a
manutenção do corpo físico já deixou
de ser vedete. Enquanto nós, pobres
mortais, nos digladiamos nas academias
para continuarmos jovens e belos, os
mais astutos visionários já perceberam
que o corpo está fora de moda. Veja-se
que aquele discurso de fim de século
sobre a tríade corpo-mente-espírito já
está declinando para uma configuração
mais sofisticada: saúde-mente-espírito.
O corpo delineado perde espaço para o
corpo saudável, no sentido que são
aceitas suas imperfeições e a marca do
tempo, desde que estejam saudáveis
para a idade e para o contexto. Das
tradicionais campanhas de cigarro dos
anos 80 e 90 exibindo mulheres
esculturais, passamos a exibição das
belezas interiores, no grupo de
amigos, na diversão e felicidade
coletiva, na satisfação interior em
lugar da beleza aparente. A cirurgia
plástica, primeiro colocada como uma
preocupação demasiada com o corpo,
mas que logo após as primeiras
aparições de pessoas deformando-se
(desde um sujeito que modificou seu
rosto para se assemelhar com um felino
até mulheres com enxertos de silicone
tão grandes e pesados que causaram
problemas graves de coluna)
demonstraram ser na verdade o
descaso com ele - não mais o corpo
templo imaculado da sagrada alma, mas
o corpo-ferramenta, útil mas gasto pelo
uso e necessitando ser reformado como
uma ferramenta de trabalho. Mesmo a
cirurgia plástica já não é mais bem vista;
os seios rígidos e imóveis vêm
perdendo seu charme - até nos filmes
pornográficos - mas as tatuagens, as
mudanças de visuais, os brincos e
piercings, as pinturas e cortes de cabelo,
as ilustrações nas unhas e dentes, as
lentes de contato coloridas,
desenhadas e inusitadas - todas elas,
transformações perecíveis e reversíveis
que não procuram mais falar da
aparência e do corpo, mas tão somente
refletir o espírito, a personalidade do
sujeito - estas estão em alta.
Eis que os mais astutos já
perceberam isto também: na eternidade,
o que é fixo e estático torna-se
monótono e desinteressante. Já aquilo
que é dinâmico, descartável e
incessante... ganha brilho - e não há
nada mais monótono do que um corpo
que nos acompanhe, igual, a vida toda,
quanto mais em uma vida sem fim. As
suas transformações naturais são
deveras tênues e sutis para o gosto
imortal.
Estas formulações insanas são o
futuro de uma prática presente. Se hoje,
nossos imortais são aqueles cujos
pensamentos se perduram ao longo das
gerações, as biotecnologias procuram
formas de manter estas consciências
vivas, mesmo desligadas de seus
corpos. Buscam desmaterializar a vida,
pois separada do corpo que envelhece,
ela poderia permanecer existindo, ou,
ao menos, ser emulada por um
computador cujo processamento fosse
rápido suficiente para reconstruir todos
os caminhos e processos feitos no
cérebro humano. “É nesse contexto que
surge uma possibilidade inusitada: o
corpo humano, em sua antiga
configuração biológica, estaria se
tomando ‘obsoleto’. Intimidados pelas
pressões de um meio ambiente
(18) In Sibilia, Paula; O homem
pós-orgânico - corpo,
subjetividade e tecnologias
digitais. Rio de Janeiro: Ed.
Relume-Dumará, 2002. Pg. 13.
(19) Mais detalhes em http://
en.wikipedia.org/wiki/
Operating_system
(20) Mais detalhes em http://
en.wikipedia.org/wiki/Blogs
(21) Mais detalhes em http://
en.wikipedia.org/wiki/
Intemet_forums
amalgamado com o artificio, os corpos
contemporâneos não conseguem fugira
das tiranias (e das delícias) do upgrade.
Um novo imperativo é internalizado,
num jogo espiralado que mistura
prazeres, saberes e poderes: o desejo
de atingira a compatibilidade total com
o tecnocosmos digitalizado.”18
O surgimento da internet
comercial inspirou uma imagem de
que em pouco tempo estaríamos
“navegando” por lugares sem sair da
frente de uma tela de computador. Uma
realidade-virtual. Hoje já se percebe
que a comunicação digital é muito
diferente desta idéia original de
navegação por espaços virtuais, mas a
idéia original continua a ser perseguida
de uma maneira ainda mais
revolucionária: não mais navegar em
imitações computadorizadas da
realidade na frente de um computador,
mas tomar como realidade o mundo
inventado e virtual onde o espaço e o
deslocamento são coisas ultrapas
sadas. Aos poucos, vivemos cada vez
mais mediatizados pelo computador.
Logo, fica a questão: as novas
tecnologias procuram criar interfaces
para a própria existência?
3. Interfaces
A noção original de interface vem
da informática e das transformações
que ela proporcionou ao mundo que
vêem abalando nossa própria
concepção sobre ele. A computação é
naturalmente um campo racional e frio
e que vem provocando amplas rupturas
nas relações sociais. Levaram-se muitos
anos para que as idéias de interfaces
sofisticadas aparecessem. E levaram
mais alguns para que o gosto mutante
e os modismos começassem a integrar
este espaço. Inicialmente partiram de
alguns softwares que possuíam a
habilidade de mudar de cara, trocar de
pele no termo original [changeprogram
skin]. Esta idéia possui nítidas
implicações com a metáfora da serpente
que Gilles Deleuze atribuiu à Sociedade
de Controle, mas não é este ponto que
pretendemos discutir aqui.
Hoje na informática, toda a
aparência de um sistema operacional19
(o interface primordial entre a máquina
e o homem) pode ser alterada. Não
falamos apenas de cores, mas de
formatos, posicionamentos, ergono-
mias, etc. Alguns softwares possuem
aparências de objetos, outros utilizam
imagens de objetos concretos (e não
mais signos) para auxiliar sua
utilização. No fundo, continuam a
receber dados, processá-los, fazerem
cálculos e devolverem respostas, mas
a interface entre a máquina e o homem
se sofisticou. Incluiu-se nela o gosto, a
moda, a mutabilidade, e a inconstância.
Na internet, esta idéia de
mutabilidade começou com os blogs20
e forums21, sob o termo de customi
zação. Era então possível que cada
usuário destas ferramentas de
comunicação, devidamente individua
lizados e reconhecidos, pudessem
fazer alterações em sua aparência da
maneira que lhe conviesse, sem que
estas alterações fossem visualizadas
por outros usuários. Assim, cada
usuário teria um espaço próprio,
adaptado a suas necessidades e gostos,
e os aplicativos que forneciam os
processamentos e as funcionalidades
passaram a ser separados da interface
com o usuário, numa técnica
conhecida como “programação em
três camadas”. Com esta estrutura, a
interface passou a ser intercambiável,
e o processamento (cujo ritmo de
mudança é sensivelmente menor)
tomou-se independente dela.
Este mesmo processo é repro
duzido nos diversos equipamentos
anteriormente descritos; as idéias de
desmaterialização e de interface estão
mutuamente implicadas. A desma
terialização faz necessária uma
interface para que seja possível a
interpretação daquilo que foi
transformado em dados/informação, e
vice-versa.
A desmaterialização é uma
operação na qual uma coisa é destituída
de seu meio, sendo considerada apenas
a sua essência como sendo a coisa, e
tomado seu invólucro descartável. O
jornal por exemplo, com a internet
sofreu a desmaterialização; Ver o jornal
hoje significa ler suas notícias em
qualquer meio que seja (no próprio
jornal, na tela de um computador, no
celular, ou impressas em uma folha a
parte). O jornal foi reduzido a sua
essência, e seu meio tornou-se
descartável. O livro está caminhando
para o mesmo destino. Tanto faz se
encontramos o livro material na livraria,
se temos seu texto em arquivo digital
no formato PDF22, se o lemos
diretamente em um website no formato
HTML23 ou se o ouvimos na forma de
AudioBook24 em um CD ou em um
walkman de MP325. O meio foi
substituído pela noção de interface. Ela
é responsável apenas por materializar a
coisa de uma maneira conveniente em
um determinado momento - é portanto
perecível, sujeita a sua própria
obsolescência, e desmembrada da coisa
em si. A interface pode ser modificada
conforme a conveniência para que não
mate a coisa em seu próprio
envelhecimento: é a maneira que
produzimos para tornar a essência
eterna - descolando-a da casca
perecível. O livro envelhece, mas não
seu texto. Desmaterializado, o livro
permanece eterno, pois não tratam-se
mais de folhas de papel carcomidas pela
umidade ou por traças, mas apenas de
dados que serão interpretados e
apresentados por um interface
conveniente.
É necessário tecer alguns
comentários para que a idéia de
interface não seja confundida com um
processo de re-significação:
Tomemos como exemplo as roupas
que vestimos. Se algum dia elas
serviram somente para cobrir-nos os
pudores, isto aconteceu há milênios e
durou pouquíssimo tempo. Em toda a
história da humanidade, as vestimentas
nunca nos cobriram, mas sim, nos
revelaram... revelaram nossa classe
social, revelaram nossa hierarquia,
revelam nosso status, revelaram nossas
filiações e vinculações, e hoje em dia
tratam de revelar nossa personalidade,
gostos e subjetividades. Seriam então
as roupas uma de nossas interfaces
com o mundo? No sentido estrito de
interface, não, pois elas (interfaces) são
produtos das tecnologias de
desmaterialização (ou também
conhecidas como tecnologias digitais)
em sua atuação de substituir o
referencial de um signo, de algo
concreto e tangível, para um
comportamento, uma idéia, uma atitude,
ou um valor, através de um processo
também bastante específico; criando
compatibilidade e portabilidade deste
referencial enquanto dados que podem
ser lidos e interpretados facilmente.
Trata-se - obviamente - de um
processo que insere ou transforma algo
no campo simbólico, de uma forma
peculiar.
As vestimentas podem sim tornar-
se interfaces quando, por exemplo,
forem capazes de receber dados sobre
nosso “estado de espírito”, e
responderem a eles. Será no momento
que uma camisa se tomar amarela
quando seu usuário estiver alegre, ou
se tornar azul quando ele sentir-se
triste, ou quando brilhar ao interpretar
os dados de que existe animação em
quem a veste ou tomar-se fosca ao
interpretar melancolia, que a camisa
será enquadrada como um interface
(seja a medição feita por processos
invasivos ou não). Neste momento, a
camisa-coisa (e não o signo “camisa” -
a palavra, a idéia...) passa a ser também
um dispositivo de interpretação de
dados. A camisa deixa de ser objeto de
cobrir ou objeto de significação de uma
mensagem apenas, e passa a um mero
leitor, um display que pode informar
diversas mensagens para qual esteja
programada, como “estou feliz”, ou
“sou antipático”, ou “estou carente”. A
mesma camisa, vestida por pessoas
diferentes, irá responder mensagens
diferentes. Ao contrário de uma
camisa como a conhecemos, que
significa por si alguma coisa (uma
camisa rasgada significa “sou punk”,
uma camisa com corte arrojado
significa “sou ultra-moderno”, etc...),
a camisa-interface não significa
absolutamente nada, ela apenas lê.
Como a camisa, o automóvel pode ser
capaz de interpretar estes mesmos
dados, a residência, os eletrodo
mésticos, a decoração, todos como
interfaces podem interpretar e dar
(22) Mais detalhes em http://
en.wikipedia. org/wiki/PDF
(23) Mais detalhes em http://
en.wikipedia.org/wiki/HTML
(24) Mais detalhes em http://
en.wikipedia.org/wiki/Audiotxxík
(25) Mais detalhes em http://
en.wikipedia.org/wiki/Mp3
(26) Mais detalhes em http://
en.wikipedia. org/wiki/Porting
(27) Mais detalhes em http://
en.wikipedia. org/wiki/
Google_maps
(28) Este é um exemplo grosseiro
com a intenção apenas de ilustrar
o conceito de desmaterialização e
interface. Sabe-se que a
metamorfose de um animal não é
uma interface, uma vez que a
criatura em si não pode escolher
e trocar de forma a hora que
desejar. Seu corpo - ainda - não
é algo descartável.
(29) Mais detalhes em http://
en.wikipedia.org/wiki/GSM
(30) Mais detalhes em http://
en.wikipedia.org/wiki/CDMA
(31) Mais detalhes em http://
en.wikipedia.org/wiki/
Microsoft_Windows
(32) Mais detalhes em http://
en.wikipedia.org/wiki/MacOS
respostas adequadas aos dados que
receberam. A residência pode, por
exemplo, ajustar a iluminação para criar
um clima mais confortável, ajustar a
temperatura para um valor momo e
selecionar uma música conveniente ao
“estado de espírito”.
As interfaces possuem proprie
dade não muito familiares ao campo
da filosofia: portabilidade26 e com
patibilidade. Alem das possibilidades
de associação e sobreposição (como
os websites meshUp, onde interfaces
como o google maps27 são misturados
com interfaces de outros sistemas
resultando em um website dinâmico
totalmente novo, como sistemas de
encontro e namoro que localizam as
pessoas nos mapas digitalizados) e as
propriedade de comutação (substi
tuição de uma interface por outra), a
portabilidade e a compatibilidade
são oriundas da computação: ao se
transformar o código lógico de um
programa (compreensível para uma
pessoa) em código de máquina
(compreensível por um computador),
realizamos uma compilação. A
compilação tradicional formula um
código interpretável unicamente para
um tipo de sistema e processamento,
e não pode ser transportado para
outros sistemas que não mantenham
com ele a compatibilidade, ou seja,
realizem aqueles processos da mesma
maneira sejam em uma condição
normal, ou em uma condição especial
para manter esta compatibilidade. Já
as tecnologias mais recentes são
capazes de compilar códigos de
maneira que se adaptem exatamente
como são ao funcionamento de
qualquer sistema, independente de
como ele realize seus processos.
Falamos então que eles são portáveis,
pois podem ser transportados de um
sistema para outro sem a necessidade
de serem re-compilados.
Para fazer a distinção no campo
simbólico da coisa desmaterializada em
relação aos signos sem referentes
concretos (as idéias, os valores, o
imaginário, as invenções, etc...),
tomemos mais um exemplo, como as
criaturas que sofrem metamorfose. Uma
taturana em seu ciclo de vida se
transforma em borboleta. Veja que, por
estarmos saturados no campo
simbólico, possuímos representações
diferentes [taturana/borboleta] para a
mesma criatura. Atribuímos um
imaginário diferente para cada uma
delas, criamos um universo simbólico
diferente associado a cada uma das
duas idéias. No entanto, haverá - quem
sabe — um dia que seremos capazes de
entender que se trata da mesma criatura.
Neste dia, ela terá sido desmaterializada,
uma vez que conseguirmos reduzi-la a
sua essência - vê-la tão somente como
um DNA singular - e entender que as
formas que adota ao longo de sua vida
são somente interfaces diferentes
interpretando este mesmo código
genético que lhe permitem corpos-
possibilidades diferentes de uso
[rastejar/voar/qualquer outra possibi
lidade que esteja contida em seu DNA,
mas que por qualquer motivo não se
toma efetiva]28. A desmaterialização é
uma forma de transformar o campo
simbólico (de maneira diferente de um
processo de re-significação), e quando
transformamos o campo simbólico,
transformamos automaticamente a
coisa (uma criatura borborana). Mas a
atuação da desmaterialização é no
sentido oposto: ao invés de construir
um conceito, ela tenta desmontá-lo.
Nossos aparelhos celulares, como
interfaces que se tornaram, são
compatíveis como sistemas GSM29 ou
compatíveis com sistemas CDMA30;
Nossos computadores são compatíveis
com sistema operacional Windows31 ou
com MacOS32; Nossas futuras roupas
e carros mutantes serão compatíveis ou
não com os processos de leitura de
nossos “estados de espírito” ou até
compatíveis ou não com os sujeitos que
estão utilizando a vestimenta. Já alguns
outros interfaces - como celulares tri-
band e quadri-band - são capazes de
se adaptar em qualquer instância,
funcionando em qualquer lugar do
mundo, logo, são portáveis. Estas
propriedades de compatibilidade e
portabilidade funcionam até o nível
simbólico e conceitual da coisa.
Da mesma maneira, não podemos
confundir a re-significação de um
aparato com sua desmaterialização.
Quando temos um aparelho celular e
uma máquina fotográfica (dois objetos
e dois signos distintos), e fundimos os
dois aparelhos em um só, não estamos
desmaterializando nada nem criando
interfaces novos; estamos apenas re-
significando algo: criando novas
palavras, novos usos, novos
imaginários, novos conceitos, novos
significados para este equipamento que
permanece sendo tanto máquina
fotográfica quando celular. Já, ao tratar
de um rádio automotivo capaz de
interpretar dados MP3, e um celular
também capaz de interpretar dados
MP3, estamos falando de uma mesma
coisa, aparente em dois interfaces
distintos. Vale ressaltar que, como
estamos submetidos à um regime
simbólico “antigo”, cuja atuação destes
processos de desmaterialização não
foram vertiginosas, tendemos a olhar o
celular e o rádio automotivo como
coisas distintas, mas eles são na
verdade a taturana e a borboleta.
Conforme a atuação das tecnologias e
dos processos digitais for se tomando
mais intensa, tenderemos a observar as
coisas pelo “seu DNA” - a coisa pelo
que ela é, e não pelo fetiche
proporcionado por sua forma e
aparência ou pela idéia de substância
ou qualquer alma transcendental que a
herança platônica nos diga que a coisa
ou o ente possuam como essência. Logo
um jovem, ao ligar um computador, irá
se impressionar muito pouco com as
diferenças de formato, de cor, de
ergonomia, de localização em um
software, vendo pouquíssima diferença
entre computadores com sistemas
operacionais Linux, Windows ou
MacOs ou entre as peculiaridades de
suas interfaces gráficas, uma vez que
tratam-se todos de um conjunto de
processadores capazes de realizar
cálculos e processamentos, transfor
mando-se em ferramentas para usos
específicos. Ou um transeunte irá
impressionar-se muito pouco com a
imponência dos edifícios em seu
entorno, seus panos de vidro sem
caixilhos, seus elevadores panorâmicos,
suas entradas monumentais... As
primeiras (e imaturas) críticas pós-
modernas sobre a arquitetura moderna
a compararam a um “pato” cujos
“detalhes” lhe foram roubados: lhe foi
tirado seu bico, sua cauda, suas penas
- tudo aquilo que lhe qualificava como
“pato”. O edifício moderno foi
considerado uma construção sem
identidade e sem identificação; deixou
de ser referência urbana das atividades
e práticas que se realizavam nele e
naquele lugar da cidade quando todos
os edifícios se tomaram iguais, padrões
e produzidos com valores e sentidos
mais abstratos. Mas agora podemos ver
que esta crítica é superficial, uma vez
que a mesma pós-modernidade que
reclama pelo “bico do pato”, também é
a pós-modernidade que reduz o “pato”
a seu DNA, sem penas, sem bicos, sem
caudas. A singularidade do “pato” é
aquilo que ele compartilha com todos
(sua essência no código genético), e
sua distinção uma pífia parcela (mas
totalmente estrutural) de cromossomos
que o distingue do resto dos animais.
Na comunicação, o processo tende
a ser o mesmo. Possuímos diversos
suportes para uma mesma mensagem: a
publicidade usa de outdoors,
propaganda em TV, propaganda em
rádio, anúncios em revistas, etc... e
todos eles procuram passar a mesma
mensagem. A mensagem já faz parte do
mundo simbólico (por ser apenas uma
idéia), mas o suporte não. Ele é material,
concreto, fixo. Começamos a ver uma
transformação nisto quando, ao invés
de termos outdoors nas grandes
avenidas, temos telões eletrônicos. O
telão nos remete ao mesmo signo que
o outdoor (uma lacuna vazia para
colocação de propaganda; que varia
conforme a época; de grande dimensão
para ser avistada a longa distância), no
entanto, a peça de mídia que é produzida
para o outdoor é única e feita
exclusivamente para ele (não pode ser
reaproveitada em outro suporte),
enquanto que a peça de mídia que é
produzida para o telão pode ser
interpretada também pela TV, pela tela
de cinema, pela publicidade on-line,
pela tela do celular, e com um pouco de
(33) In Silva, Tomaz Tadeu da;
Pedagogia dos Monstros. São
Paulo: Ed. Autêntica, 2000. Pg. 16.
“boa vontade”, até pelo rádio (mesmo
com perda da imagem o sinal de áudio
pode ser interpretado). Conforme for a
atuação das tecnologias de
desmaterialização, não se produzirá
mais nenhum tipo de peça de
comunicação fixa e estática como a
comunicação impressa: o ePaper
(comentado anteriormente) é como uma
tela de computador, e dispensará o
papel; os outdoors serão substituídos
por telas de vídeo, e o rádio e TV serão
transformados em outra coisa com
recepção/interpretação de sinais
digitais. O suporte deixará de ser
suporte, e se transformará em interface;
a idéia de outdoor soará estranha —
talvez ridícula —, e de difícil
compreensão para uma criança nascida
neste tipo de ambiente. Isto significrá
que o signo “suporte” fora
transformado, e o “suporte”-coisa
possuirá muito pouco em comum com
aquilo que nós conhecemos. Talvez o
período de transição que vivemos tome
essa questão ainda mais difícil: como
explicar então que uma imagem é
produzida através de um computador
em formato digital, para ser
transformada em fotolito,
posteriormente em uma chapa inserida
em uma máquina que tenta
mecanicamente reproduzir com tinta os
pixels desenhados na tela?
O deslocamento de suporte para
interface na comunicação se dará por
completo no momento que a mensagem
lhe for passada enquanto dados, e o
próprio interface souber o quê e como
deve se montar visualmente para
interpretar esta mensagem. Neste ponto
teremos exatamente a mesma
mensagem-dados sendo transmitida
para um telão em uma grande avenida
e para um celular, e o interface saberá
se diagramar e contextualizar com
imagens e formas adequadas para
persuadir apenas uma pessoa ou uma
multidão. Desmaterializar os Meios de
Comunicação significa estirpar todo o
processo produtivo e todas as
atividades correlatas que ocorrem em
seu entorno, e reduzi-los a aquilo que
eles se pretendem a fazer: persuadir.
Tornar-se-ão apenas o dispositivo de
persuasão cujos interfaces poderão
ficar obsoletos, desatualizados e
incapazes de seduzir; poderão, no
entanto, ser facilmente substituídos
por versões atualizadas, mais sedutoras
e mais eficientes, sem que matem com
isto, a mensagem ou os próprios Meios
de Comunicação como dispositivo de
persuasão.
As transformações resultantes
destas novas tecnologias provocam
possibilidades em todos os sentidos:
podem desconstruir signos e formas
herdadas de interpretar o mundo,
assim como podem tomar-se os filtros
e a única forma de contato com ele.
Portanto, para analisar qualquer
processo que envolva as questões
tecno-científicas da atualidade, faz-se
crucial o expediente intelectual legado
por dois autores de grande renome,
mas que estranhamente não estão
sendo utilizados, principalmente por
aqueles que estão diretamente ligados
aos processos de produção
tecnológica: Gilles Deleuze e Jacques
Derrida. Em específico no primeiro, as
questões ligadas a sociedade de
controle, e como as tecnologias
transformaram (e continuam
transformando) nossa sociedade, e
porquê. Já Derrida - que gostaríamos
de salientar, pois é completamente
desconhecido no expediente de quem
operacionaliza estas novas
tecnologias - nos deixa o legado do
desconstrutivismo. “Com Derrida, a
subjetividade dissolve-se na
textualidade. O ‘sujeito’, se é que ele
existe, não passa de simples inscrição:
ele é pura exterioridade. Não há lugar,
aqui, para qualquer ‘teoria do sujeito’
ou ‘filosofia da consciência”’33. Tudo
que abordamos desde o inicio até o
fim deste artigo, não passa de um
processo de desconstrução! Ou seja,
as formas pelas quais os conceitos são
desmontados de sua cadeia de
significação para permanecerem em
aberto e passíveis de novas
construções. A desmaterialização e os
interfaces são a prática do
desconstrutivismo atuando na vida
cotidiana, e ao mesmo tempo,
passando desapercebidos por ela.
Bibliografia do artigo
DOWNES, Larry & MUI, Chunka. Unleashing the Killer App - Digital
Strategies for Market Dominance. Havard Business School: 2000.
SIBÍLIA, Paula. O homem pós-orgânico — corpo, subjetividade e
tecnologias digitais. Rio de Janeiro: Ed. Relume-Dumará, 2002.
SILVA, Tomaz Tadeu da; HARAWAY, Donna; KUNZRU, Hari.
Antropologia do Ciborgue. São Paulo: Ed. Autêntica, 2000.
____________________
. Pedagogia dos Monstros. São Paulo: Ed.
Autêntica, 2000.
WIKIPEDIA —The free encyclopedia. http://www.wikipedia.org
Filmografia
WACHOWSKI, Andy; WACHOWSKI, Larry. The Matrix. EUA, 1999. 136
minutos.
CHUNG, Peter; JONES, Andy; KAWAJIRI, Yoshiaki; KOIKE, Takeshi;
MAEDA, Mahiro; MORIMOTO, Kôji; WATANABE, Shinichirô. The
Animatrix. EUA, 2003. 102 minutos.