Latin American Music Review 25.1 (2004) 126-129
Tema dileto de vários folcloristas—Leonardo Mota (1978), Luís da Câmara Cascudo (1984), Dulce Lamas (1973), entre outros—, a cantoria de viola é reconhecidamente uma das mais importantes tradições de poesia cantada no Brasil. Enraizada na região Nordeste do país, recebe também as denominações de "repente"—alusão à obrigatoriedade de improvisação dos
... [Show full abstract] versos—e "desafio"—alusão à prática intensamente competitiva dos cantadores, que cantam em duplas, alternando-se nas estrofes e procurando suplantar o parceiro-adversário na correção e originalidade dos versos. Embora venha sendo noticiado e estudado há mais ou menos um século, o canto improvisado dos cantadores não é objeto de uma bibliografia extensa. Muitas vezes, aparece em segundo plano nos livros, desfocado pela maior atenção que os estudiosos dedicaram à poesia impressa nos "folhetos de cordel". Nas últimas décadas, porém, surgiram trabalhos como os de Luciano Py de Oliveira (1999), que transcreve e analisa as "toadas" (melodias) da cantoria, e de Maria Ignez Novaes Ayala (1988), que trata da performance dos cantadores estabelecidos na cidade de São Paulo. É nesse contexto que o livro de Elba Braga Ramalho deve ser saudado como uma contribuição à ampliação das fontes bibliográficas sobre o repentismo contemporâneo.
A autora é clara ao apresentar a cantoria como um sistema de relações envolvendo cantadores, ouvintes e os chamados apologistas (literalmente: aqueles que fazem a apologia da cantoria, i.e., ouvintes que conhecem bem o estilo repentista e não perdem as apresentações de seus cantadores favoritos). Merece destaque a abordagem que leva em consideração os três lados do sistema e as relações entre eles.
O capítulo dedicado à "breve história da Cantoria" (49-60) expõe a hipótese acerca das origens do desafio poético cantado brasileiro, levantada por vários autores. A maioria deles sustenta que o repente dos cantadores brasileiros tem relação com tradições européias, especialmente ibéricas, elas mesmas conjugações de heranças poéticas e musicais heterogêneas (canto sacro latino, poesia trovadoresca, poesia cantada árabe na Península Ibérica, entre outras). Ainda ressoa no livro de Elba Ramalho a pergunta feita por muitos estudiosos: "serão nossos cantadores os legítimos remanescentes dos jograis?" (59). Perguntas sobre origens são tentadoras, daí sua recorrência na literatura sobre o desafio, mas costumam receber respostas vagas quando processos históricos estendendo-se ao longo de séculos separam os fenômenos cuja ligação se deseja estabelecer.
A hipótese de Roger Bastide sobre o desafio, à qual a autora dá certo destaque, parece constituir uma inspiração do problema sociológico enfrentado no livro. A exposição teórica do primeiro capítulo, contudo, oferece poucos recursos para lidar com o problema. De acordo com Bastide, o duelo cantado de dois poetas reflete o antagonismo entre os dois grupos nas sociedades dualistas ("primitivas"); este teria dado lugar, nas civilizações, ao desafio propriamente estético-literário, no qual se enfrentam dois indivíduos. Primitivos opõem-se a civilizados assim como a expressão cantada do dualismo social à expressão individualizada e "estética"—tal é a hipótese durkheimiana levantada pelo autor. A hipótese de Bastide parece ter sido metamorfoseada no trabalho de Elba Ramalho, impressão que deriva de duas constatações:
(1) Elba afirma repetidas vezes que o cantador é porta-voz do "povo". Por exemplo: "Os poetas-cantadores sempre atuam como portadores dos sentimentos do povo que eles representam" (32; ver também 53, 82, 83, 118, entre outras). O cantador é, pois, a voz de um coletivo cuja heterogeneidade interna é reconhecida, mas que pode ser identificado como "povo" na medida em que compartilha as raízes na sociedade tradicional sertaneja...