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Griot – Revista de Filosofia v.7, n.1, junho/2013 ISSN 2178-1036
Fenomenologia genética do transcendental e do logos em Merleau-Ponty: subversão e recuperação do
antropológico – Harley Juliano Mantovani
Griot – Revista de Filosofia, Amargosa, Bahia – Brasil, v.7, n.1, junho/2013/www.ufrb.edu.br/griot
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FENOMENOLOGIA GENÉTICA DO
TRANSCENDENTAL E DO LOGOS EM MERLEAU-
PONTY:
SUBVERSÃO E RECUPERAÇÃO DO
ANTROPOLÓGICO
Harley Juliano Mantovani
1
Faculdade Católica de Uberlândia (FCU).
RESUMO:
Saímos da leitura ortodoxa da obra de Merleau-Ponty para lhe sermos mais sinceros
e fiéis. Neste sentido, apresentamos as consequências para a filosofia que, de modo
heroico e dramático, recupera a natureza trágica do transcendental como revelação e
engajamento na contingência eterna. Mostramos que o tema privilegiado para esta
filosofia, seu verdadeiro solo, é a ausência de limites precisos da fenomenologia e da
ontologia. Nesses termos, analisamos de que maneira a fenomenologia estende e
fortalece as fronteiras ordinárias do Logos, que jamais foi humano, mas, desde
sempre uma Natureza que manifesta o Ser.
PALAVRAS-CHAVE: Merleau-Ponty; Fenomenologia; Ontologia; Transcendental;
Natureza.
GENETIC PHENOMENOLOGY OF
TRANSCENDENTAL AND OF LOGOS IN
MERLEAU-PONTY:
SUBVERSION AND RECOVERY OF
ANTHROPOLOGIC
ABSTRACT:
We go of orthodox lecture of Merleau-Ponty’s work. In this way we believe to be
plus sincere and trustworthy to him. In this direction, we present the consequences
for the philosophy which, of heroic and dramatic manner, recover the tragic nature of
transcendental as revelation and engagement at eternal contingency. We show which
the theme proper at this philosophy, yours truthful ground, is the absence of precise
1
Mstre em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), Brasil. Professor da
Faculdade Católica de Uberlândia (FCU); harleybrief@yahoo.com.br
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Fenomenologia genética do transcendental e do logos em Merleau-Ponty: subversão e recuperação do
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limits of phenomenology and the ontology. In this terms, we analyze of the manner
which the phenomenology extend and fortify the ordinary frontiers of Logos, who
never was human, but, since always a Nature which express the Being.
KEYWORDS: Merleau-Ponty; Phenomenology; Ontology; Transcendental; Nature.
Nesse texto nos orientamos pelo propósito de discutirmos em que termos a
fenomenologia se configura como pré-ontologia em Merleau-Ponty, verificando e
demonstrando seus passos intrinsecamente autocríticos quando ela, recebendo do
filósofo a tarefa hercúlea e sísifica de dizer ou de expressar o que não pode ser
descrito diretamente, reanima-se com a aquisição do vigor da investigação da gênese
como uma realidade existencial não pronta, não imóvel e não transponível. Ao
seguirmos os passos dessa “fenomenologia da fenomenologia”, ela se nos apresentou
fundamentalmente trágica, quase mística, mas certamente existencial na medida em
que ela, no-la impondo e realizando o homem através da passagem da cama para o
berço, reclama, reabsorve e se traduz perigosamente e de modo inicialmente
impensado em filosofia não humanista e pré-lógica de uma Natureza além de si
mesma. Retirando-nos obrigatoriamente dos caminhos prévios e sem adiante –
também criticados por Merleau-Ponty –, tomamos a modificação libertadora que,
neste filósofo, o transcendental sofre, implodindo os seus limites subjetivos e se
encontrando desde sempre já no fenômeno, o que significa que, em última instância,
nesse texto o transcendental nos revelou a encarnação do Logos “mais fundamental”
do que o de qualquer ontologia dada pelo pensamento objetivo e traduzível numa
antropologia da reflexão fechada em sua hýbris dos limites. Nesses termos, vejamos
de que forma, para a fenomenologia genética, pode haver uma filosofia não-
filosófica do transcendental como processo de recuperação da força simbólica do
Logos da própria Filosofia.
“Uma filosofia torna-se transcendental, quer dizer, radical, não se instalando
na consciência absoluta sem mencionar os passos que conduzem a ela” (MERLEAU-
PONTY, 1999, p. 98; grifo nosso). Há uma filosofia que caminha, que dá passos
sobre o que lhe está adiante. São esses passos que nos interessam e que
procuraremos seguir, pois, eles nos mostram o processo em que a fenomenologia
recupera a verdade da noção de transcendência, assim constituindo-se como uma
teoria da modificação da reflexão e de um novo cogito, que ela vai encontrar antes de
toda filosofia
2
. De imediato, chamamos a atenção para a ausência de uma
consciência absoluta como ponto de partida para uma filosofia cuja radicalidade será
dada pela sua própria atividade reflexiva de questionar o transcendental como o seu
centro egológico absoluto e previamente formado. Tornar-se transcendental, para
esta filosofia radical, não significa mais compreender-se equivalente a uma egologia
entendida nos temos de uma ciência da essência do ego e da adequação formal dos
2
Cf. Merleau-Ponty, 1999, p. 541.
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seus modos de conhecimento como condição da aquisição da verdade anteriormente
à experiência.
Isto também significa que a filosofia não deve considerar-se a si mesma
como adquirida naquilo que ela pôde dizer de verdadeiro, que ela é uma
experiência renovada de seu próprio começo, que toda ela consiste em
descrever este começo e, enfim, que a reflexão radical é consciência de
sua própria dependência em relação a uma vida irrefletida que é sua
situação inicial, constante e final (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 11).
Cumpre-nos mostrar o processo em que a filosofia também caminha fora dos
seus limites objetivos e como que há, na história das suas aquisições oficiais e da
centralização das suas verdades, algo que ela não possui, a saber, um Logos mais
fundamental do que o do pensamento objetivo, solo das suas raízes e guardião do seu
começo, que dispensa um sujeito de base como atividade enunciativa e mesmo
gramatical e abre espaço, deste modo, para a aparição de outrem como consolidação
da dissolução das antinomias do pensamento objetivo
3
para o qual a presença de
outrem significava dificuldade e escândalo na medida em que este pensamento era o
de uma Unidade egológica absoluta que não se compreendia enquanto um “ser
em...”, isto é, que não se compreendia em relação ao seu começo irrefletido, então,
perpetuamente ausente. De que forma ela se constitui e o que significa fazer uma
fenomenologia dessa perpetuidade de falta de auto-posse desse Eu desenraizado cuja
atividade (sem passividade qualquer, e se reduzindo a uma familiaridade formal
consigo mesma) se pretende livre da não-familiaridade do mundo implicada no ser
em... cuja gênese é completamente sem motivos prévios? De qualquer forma, essa
fenomenologia só pode ser subversiva, buscando o avesso do pensamento e se
apresentando como um novo modo de filosofar não oficial, ela recupera e nos
reinsere no mundo, nem empirista e nem intelectualista, que igualmente nos
transforma exigindo-nos a persecução do nosso começo perpétuo e inultrapassável e
dando-nos, simultaneamente para este fim, a verdade da reflexão como a abertura a
um irrefletido e experiência de outrem que se me apresenta como a emergência
metafísica de um além da natureza fora da dialética do conhecimento e anteriormente
a uma teoria da posse da verdade
4
.
De que forma o outro pode ainda persistir como uma questão se foi
subvertido aquilo em relação a que tradicionalmente ele se afirma e se compreende?
Em sentido clássico, com a subversão do eu o que se perde não é também o outro e,
portanto, como pode o outro ser ainda, legitimamente, ou ter a dignidade de uma
3
Cf. Merleau-Ponty, 1999, p. 470.
4
A retomada reflexiva do irrefletido que nos dá a abertura da reflexão como sua verdade
(MERLEAU-PONTY, 1999, p. 483), na medida em que assinala como minha experiência me dá
outrem pelo sentimento de uma tensão dialética irrecusável e anterior ao conhecimento, anuncia uma
dialética prévia intrínseca à transcendentalização da intersubjetividade que constitui a fenomenologia
como o solo para uma metafísica que deixou a esfera do pensamento e que se cumpre como uma
investigação que põe em evidência “a gênese do ser para nós” “antes do puro comércio entre o sujeito
epistemológico e o objeto” (Cf. MERLEAU-PONTY, 1999, p. 213; p. 230-2).
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questão filosófica? Se aceitarmos essa subversão levada a termo por Merleau-Ponty,
e se após isto outrem ainda persiste, sua existência não pode ser a de um ego. Nesses
termos, ao contrário da crença comum dogmática, a existência de outrem parece ter
por condição a referida subversão, que deve nos mostrar, ultimamente, como pode
haver uma existência sem ego que para ser então devidamente analisada e
compreendida requer do pensamento filosófico que este, retornando criticamente
sobre os seus pressupostos conceituais e teóricos por ele mesmo tidos como
condições inquestionáveis, se dê conta da insuficiência congênita dos seus
fundamentos e, com isto, das suas vaidosas alturas metafísicas que traduzem uma
equivalente radicalidade insuficiente. E a consideração deste problema de
fundamentação ou de enraizamento, intrínseco ao nosso tema, é indispensável para a
sua demonstração legítima. Isto significa que a descrição e a análise da “subversão
do eu” e da “questão do outro”, assim como da sua correspondência, devem ser a
denúncia simultânea daquela fragilidade congênita do pensamento filosófico que se
construiu e se imobilizou sobre o esquecimento das suas origens. Nestas condições, é
também a recuperação destas origens que empreenderemos, sem o quê não se
compreende e se completa a subversão do eu e, por conseguinte, não surge a questão
do outro em toda a sua envergadura, radicalidade e ineditismo, que nos testemunha a
dimensionalidade pré-linguística do Logos. Ora, se é através de uma preocupação
com as raízes ou se é em correspondência com uma investigação das origens que há
um eu subvertido não apenas como referência para o outro, mas também, como
constitutivo da identidade deste, a demonstração do nosso tema retoma a
Fenomenologia da Percepção apresentada e compreendida idêntica a uma rigorosa
e radical fenomenologia da gênese cujo propósito norteador é realizar uma
“genealogia do ser”. Mas, o que quer dizer, na pena de Merleau-Ponty, o termo
gênese?
Ressentindo a decadência da filosofia expressa, oficial
5
, que trabalha com
significações fechadas ou puros dados acabados que têm por fonte, sempre separada
da contingência, uma consciência absoluta e intemporal, Merleau-Ponty apela para
uma “nova maneira de filosofar” que se identifica, em última instância, a uma
fenomenologia da gênese que, fundamentalmente, não toma como ponto de partida
nem o pensamento isolado e abstratamente derivado em sua tecnicidade, nem a
crença dogmática na existência do real ou do objeto sem fissuras, pleno e
determinado. Embora se excluam reciprocamente nesta consideração ideal que no-los
apresenta como já dados completos, evidentes e definidos em separado, pensamento
e objeto se compreendem então como substâncias regidas pela causalidade, o que
culmina na absolutização, do mesmo modo ideal, da relação entre a res cogitans (a
interioridade pura que desconhece toda finitude e passividade) e a res extensa (a
exterioridade pura constituída pelo perspectivismo e pela exclusão recíproca das suas
5
Decadência que nos exige, no estado da humanidade onde nós estamos, “o mais alto grau de tomada
de consciência filosófica”, dando-nos conta e nos perguntando por que, conforme Merleau-Ponty,
“esta decadência da filosofia é inessencial; é aquela de uma certa maneira de filosofar (segundo
substância, sujeito-objeto, causalidade)” (1996, p. 39; grifo nosso), pela qual a filosofia é metafísica
em sentido clássico e ordinário.
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partes). Aqui, se de um lado, esta exterioridade permite afirmar a transcendência
efetiva e dogmática de um em si, de outro lado, o pensamento causal, derivado ou
tardio, afirma como seu pressuposto uma Consciência centralizada em si mesma ou
um Eu absoluto que se possui plenamente em uma transparência ou adequação de si
a si que se faz fonte universal da constituição tética das significações ou do próprio
inteligível. É contra esse dualismo metafísico, que se ergue e se alimenta da
separação ideal e não necessária entre o inteligível e o sensível, entre a essência e a
existência, entre o conhecimento e a experiência, que se subleva a fenomenologia da
gênese.
Essencialmente crítica ou antidogmática, a sublevação da gênese então visa,
ultimamente, a libertação, ou seja, a liberdade responsável ou o enraizamento como
novo princípio do pensamento que, assim retornando às suas origens e se tornando
radical, não mais tardio, especulativo ou fechado na coincidência de si consigo
mesmo de um Ego extramundano intemporal, recusa as significações conceituais
puras herdadas da metafísica e da lógica tradicionais, e busca experienciar na
aparência, a gênese antepredicativa da significação ou “a inteligibilidade em estado
nascente”, conforme Merleau-Ponty, que assim afirma um há do sentido prévio ao
sentido gramatical e lógico-formal. Deste modo transformado e fundamentado, o
pensamento, não mais objetivo e não mais filosófico, no sentido clássico, não pode
mais ser o de um Eu universal enquanto condição de possibilidade do conhecimento,
e que também se vê como uma consciência transcendental constituinte das
significações. Nesses termos, nos orientamos por uma análise do modo pelo qual a
restituição da finitude e da temporalidade enquanto fundamento do eu sem subsolo se
realiza por meio de uma investigação que deve dar conta do modo pelo qual a
experiência – sendo em sua gênese não coincidência com os limites do eu, e assim, a
apresentação não sintética e inacabada de algo que se quer vigorar como real – tanto
antecipa quanto está implicada na melhor compreensão do problema da alteridade
cuja resolução deve se direcionar, portanto, para uma limitação das responsabilidades
constituintes do sujeito quanto à determinação temporal da gênese do sentido da
experiência. Isto pressupõe retomar a temporalidade da síntese perceptiva que é
inacabada – na medida em que a percepção me abre a um mundo ultrapassando-me e
ultrapassando-se – e assim faz convergirem temporalidade e subjetividade
6
que,
então, “não é a identidade imóvel consigo: para ser subjetividade, é-lhe essencial,
assim como ao tempo, abrir-se a um Outro e sair de si” (MERLEAU-PONTY, 1999,
p. 571; grifo nosso)
7
. A partir da busca pela gênese do sentido se nos apresenta a
convergência e a identidade entre subjetividade e temporalidade, ambas abertura e
saída de si, e com isto temos a correlação entre a experiência da modificação do
mundo e a do Eu. Eis como, nas palavras de Merleau-Ponty, a retomada da
experiência transgride os limites do eu, preparando-o para o encontro com o outro
6
Cf. Merleau-Ponty, 1999, p. 321; p. 504.
7
Esta abertura (offenheit, mitsein), não quer dizer apenas o diálogo enquanto terreno de encontro
com o outro, conforme constatou Mercury (2000, p. 192-4), mas também, por ser uma experiência
com dimensões metafísica e ontológica, é preciso enfatizar seu ser de terreno e assim reunir o diálogo
e a dialética pré-linguística e anterior ao conhecimento.
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nessa facticidade que é uma totalidade aberta que dissolve as sínteses finais e
intransitivas que se traduzem nas significações cuja colocação coincide com a
autoposição do Eu em seu desdobramento:
Temos a experiência de um mundo, não no sentido de um sistema de
relações que determinam inteiramente cada acontecimento, mas no
sentido de uma totalidade aberta cuja síntese não pode ser acabada.
Temos a experiência de um Eu, não no sentido de uma subjetividade
absoluta, mas indivisivelmente desfeito e refeito pelo curso do tempo
(1999, p. 296; grifo nosso).
Ao eleger a facticidade ao status de um dos seus temas privilegiados,
considerando-a como a dimensão sem a qual não se compreende a existência humana
e a do mundo, a fenomenologia redefine e revigora a compreensão – tomada como
modo de filosofar –, enraizando-a na facticidade enquanto elo essencial que assegura
a circularidade a-cêntrica entre o homem e o mundo. A compreensão então nos
revela a dialética enquanto abertura a um outro anterior ao conhecimento, pois, essa
circularidade é o elemento de dialeticidade de um pensamento prévio sem a negação
dos contraditórios então em diálogo legítimo e fundamental (DELIVOYTZIS, 1987,
pp. 17-26) que é, para nós, o Grund pré-teorético – Solo, fundamento ou princípio –,
o Logos cuja inacessibilidade quebra qualquer harmonia preestabelecida, e é pois
uma transcendência que nos atravessa e nos ultrapassa.
A circularidade compreensiva, sendo abertura originária e tendência à
reciprocidade e à simultaneidade, também é a experiência do já estar-aí do mundo
que antecede, limita e alimenta a reflexão filosófica, então cada vez mais sem homem
interior, que cede lugar à transgressão intencional (Überschreiten) da circularidade
pré-linguística e do diálogo legítimo e fundamental. Desde então, a fenomenologia se
constitui como uma investigação acerca das condições em que o cogito revela-me em
situação transcendental de intersubjetividade
8
. E esse procedimento começa pela
pergunta sobre a verdade do cogito a fim de recuperar a existência anterior à
coincidência do pensamento interior a si e a certeza do mundo prévia ao pensamento
enquanto único critério de certeza. Ao se inquietar com a fragilidade congênita e
crônica do cogito como uma reflexão que se esquece das suas próprias origens e da
perpetuidade da sua falta de autoposse, a fenomenologia se preocupa em reencontrar
o mundo que esse cogito desvigorado substituiu por uma significação. E ela não o
encontrará em uma reflexão que, segundo Merleau-Ponty, “se retira do mundo em
direção à unidade da consciência enquanto fundamento do mundo” (1999, p. 10),
ansiando, com este gesto de reduzi-lo à sua familiaridade especulativa, eliminar o
caráter estranho e paradoxal do mundo, sem o qual deste não se tem consciência,
porque é justamente este caráter que tanto nos exige quanto nos entrega o admirar-se
8
Em outros termos, para Merleau-Ponty, “o Cogito deve revelar-me em situação, e é apenas sob essa
condição que a subjetividade transcendental poderá, como diz Husserl, ser uma intersubjetividade”
(1999, p. 9), porque “a subjetividade transcendental é uma subjetividade revelada, saber para si
mesma e para outrem, e a este título ela é uma intersubjetividade” (MERLEAU-PONTY, 1999, p.
485).
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com o mundo que define o transcendental como um percurso compreensivo da
transcendência do sujeito em direção ao mundo. É neste sentido que, destituindo o
“eu penso” do posto de critério de certeza da existência, a facticidade, enquanto
restituição de finitude e transcendência pré-cognitiva ao outro, não é em mim uma
imperfeição, mas, “aquilo que me torna certo de minha existência” (MERLEAU-
PONTY, 1999, p. 14).
Se a existência – além de demandar uma análise criteriosa das condições
transcendentais do estado intencionalmente latente da compreensão – se compreende
como admiração em direção ao mundo, ao que é estranho e paradoxal, ela não pode
estar completamente subjugada aos imperativos e ao senhorio de uma consciência
inteiramente familiar e transparente para si mesma. Eis a sublevação que deixa a
consciência sem servos, fazendo dela ou uma soberana sem reino ou uma rainha que
não sabe mais o que se passa em todos os setores e com todos os elementos do seu
frágil reinado, pois, emanciparam-se e não mais lhe obedecem cegamente, a
afetividade, a motricidade, a linguagem, enfim, o corpo enquanto abertura
antepredicativa da consciência ao mundo e como intencionalidade operante da minha
vida irrefletida, autônoma e independente de um eu penso centrado em si mesmo
9
.
Doravante, tendo que se preocupar com essa destituição de um governo central,
arkhé e princípio inquestionável de uma sistematização do saber, a fenomenologia
deverá ser tanto a denúncia de uma ausência de consciência egológica que se queria
seu ponto de partida, quanto a dissolução do objeto posto por um ato sinteticamente
intemporal e a dessubstancialização da presença plena de um em si resoluto. Ao
recusar o inquestionável como princípio de sistematização, a fenomenologia procura
recuperar a sistematicidade não-sistêmica da experiência, localizando-se, assim,
numa dimensão genética que só pode ser abordada por uma fenomenologia da
apresentação que não possui condições a priori separadas do seu conteúdo sensível.
Nesta instância da inteligibilidade nascente de uma experiência fundadora, o
aparecer não é destituído de sentido e possui, portanto, uma racionalidade elementar,
dimensional e pré-lógica pela qual ele se organiza sem pedir conselhos à consciência
que organiza, abstratamente, apenas as suas representações sem conteúdo distinto e
exterior. Esta consciência então separa percepção e linguagem, cor e signo, sensível e
símbolo, experiência e historicidade, enfim, Natureza e Logos. Sendo este o seu
maior crime que herdamos como um vazio filosófico ou uma relação que a filosofia
demasiadamente assentada sobre os seus pressupostos antropológicos deixou de
pensar salutarmente. Ao passo que é das condições da juntura intencional dessas
9
Este corpo fenomenal é offenheit e mitsein enquanto particularização de uma dialeticidade
primordial ou de uma “expressividade fundamental indivisa e oculta” (MERCURY, 2000, p. 38)
enquanto “originalidade fundadora” do próprio acontecimento do Ser que se dá não podendo ser dado
a um sujeito, e que é assim o não-dito ou o inexprimível, a “ausência fundamental” permanentemente
presente e irrefutável, e a partir do qual há o aqui e o agora de toda presença, e identificado por
Mercury (2000, pp. 52-64) com a Carne que é uma corporeidade primordial anterior ao corpo. Eis a
revelação de uma eroticidade expressiva fundamental. Trata-se de considerar o Eros como princípio
universal, dialético, não reflexivo e excessivo que habita o Logos e que é responsável pela abertura e
fecundidade metafórica e simbólica deste. Antes do entendimento, já há uma inteligibilidade e uma
compreensão eróticas entre os corpos antes deles mesmos.
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instâncias que a fenomenologia da apresentação deve dar conta, já que ela recupera e
se assenta na percepção que deixou de ser inspeção do espírito e operação do juízo e
se tornou, conforme Delivoyatzis, “uma maneira de reencontrar as funções pré-
cognitivas de organização e de estruturação” (1987, p.16) dialéticas e circulares do
sujeito no mundo, e por isto, “uma investigação dos pressupostos da racionalidade
que repousa sobre uma contingência inultrapassável” (DELIVOYATZIS, 1987, p.
16). Com efeito, em termos rigorosos, não alcançaríamos uma verdadeira
fenomenologia da apresentação subentendida em Merleau-Ponty, não apenas se nos
prescindíssemos de analisar sua subversão do eu, mas também, se
desconsiderássemos que ela é uma condição necessária desta fenomenologia do
modo em que algo se nos apresenta verdadeiramente, ao invés de termos diante de
nós um nada ilusório que seria uma má tradução da ausência, dos perfis-horizontes,
em suma, do inacabamento da síntese em transição essencialmente temporal. A
apresentação legítima me descredencia como seu fundamento predicativo exterior,
porque ela é uma síntese de horizontes que não são limites, mas passagem
essencialmente temporal entre perspectivas que dispensa uma ligação de
entendimento, porque “cada perspectiva passa na outra e, se ainda se pode falar em
síntese, trata-se de uma síntese de transição” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 442)
que constitui o admirável que nos exige a transcendência compreensiva que nos
revela que não há síntese definitiva. Eis o transcendental não-sintético que não
preexiste e não é sem o movimento do tempo.
Se o tempo é a medida da inteligibilidade do que se apresenta, ele é também o
critério de distinção entre o nada ilusório – o irreal por ele dissolvido – e aquilo de
que podemos ter uma experiência que extrapola os limites abstratos e psicológicos da
nossa subjetividade, e que assim nos entrega “a origem do ser para nós” (que nos
antecede e nos dispensa) inseparável do fenômeno, justamente do quê nos exigindo
que nos ultrapassemos é, intrinsecamente e de modo espontâneo, intersubjetivo.
Logo, se no campo fenomenal sou um já ter sido ultrapassado, isto significa que ele é
constitutivamente transcendental com a condição de desfazer e de substituir o caráter
originário da pessoa humana pela abertura e produtividade próprias da gênese e
anteriores a atividade de uma subjetividade pessoal desengajada. Esta recuperação da
significatividade irrefletida da experiência – entendida em termos de retorno ao
fenômeno como laço de reciprocidade expressiva, não causal e não predicativo, entre
a percepção e o percebido – nos mostra de que forma a subjetividade transcendental,
perdendo o seu classicismo e ortodoxia, é um já ter sido para além de si mesma, é
um engajamento que revela e recupera os limites indemarcáveis do sentido que
extrapolam a certeza de si da consciência egológica e assim já se apresenta de modo
intersubjetivo. Isto determina que as condições genéticas pelas quais me sei – que me
retiram do meu estar dado desde sempre pronto – também me entregam assim
retirado ao outro, do qual sei, pelo saber que tenho de mim mesmo anterior à minha
particularização tética, que igualmente não se encontra sempre ali, completamente
dado em sua atualidade perceptiva. Portanto, esse encontro exige que se investigue e
se defina o que limita a atividade subjetiva como articulação do sentido da
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experiência. Ora, esse limite é representado precisamente pelo que, de modo mais
imperativo, não é constituído pela consciência. E o que tem a sua realidade,
irrealizando qualquer conteúdo de uma consciência ideal, é o tempo. Este não é um
dado da consciência porque lhe é essencial, diz Merleau-Ponty, “nunca estar
completamente constituído” (1999, p. 556), pois, ele tem uma produtividade própria
que não é uma síntese antecipadamente possuída pela consciência tética do tempo. A
questão, para Merleau-Ponty, após descobrir o tempo verdadeiro que se recomeça
sempre, é explicitar como este “tempo em estado nascente” é “uma dimensão do
nosso ser” (1999, p. 557). Para tanto, é preciso considerá-lo indispensável a este
projeto ontológico, porque o tempo não é nada do que está apenas presente e real
como uma sucessão indefinida de instantes pontuais fechados e idênticos a si
mesmos; sem ser um suporte real, e sem procurar um, o tempo é um fluxo não-
substancial entre diferentes dimensões. Esta possibilidade de não-ser que caracteriza
o tempo não é uma oposição ao ser e, tampouco, uma oposição entre o ser e a
subjetividade.
Sendo fluxo e passagem natural, autônoma e espontânea entre os seus
diferentes tempora que se afirmam unidos pela relação e pelo trânsito indefinido de
si a si da temporalidade, o tempo nos revela uma unidade em transição, natural e
primordial, cuja inteligibilidade traz em si a convergência entre a significação e a
existência, e que se apresenta através da síntese passiva de uma intencionalidade
operante sem ego e auto-legitimada nesse próprio fluxo e passagem. Se há em cada
tempora toda a série aberta dos outros tempora, essa coesão de vida enquanto ek-
stase explicita, abaixo da intencionalidade de ato intelectual, “uma intencionalidade
operante (fungierende Intentionalität), que torna a primeira possível e que é aquilo
que Heidegger chamava de transcendência” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 561).
Enquanto corpo vivo, o homem está antes do homem, e é assim que me antecipo
temporalmente antes de estar centralizado em mim mesmo
10
.
Os Abschattungen temporais, ao passarem uns nos outros espontaneamente
num processo de retenção e protensão, prescindem e dissolvem tanto os atos
intelectuais constituintes e sintéticos que fazem das coisas laços judicativos entre
sujeito e predicado, quanto os laços causais entre as coisas. Neste sentido, o tempo é
um movimento subjetivo de transcendência do próprio processo de fenomenalização
que acaba por explicitar a intersubjetividade fática e engajada do transcendental, que
não é, portanto, um eu nascido fora do tempo. É por isso que, no tempo, já me sei e
me relaciono comigo próprio dispondo-me ao outro antes de ser fixado e definido
como uma primeira pessoa instantânea, e com a identidade de uma consciência que
se retira do tempo pelo saber completo e transparente que ela tem de si mesma.
De acordo com a intersubjetividade intrínseca do fenômeno, vimos que há a
convergência e a correlação entre o movimento da temporalidade e o do
10
Isto porque há algo a mais entre meu corpo e eu, algo que não é da ordem de uma regularidade
causal. Este “a mais”, diz-nos Merleau-Ponty, é “uma relação de meu corpo consigo mesmo que faz
dele o vinculum do eu com as coisas” (2003, p. 271). Abaixo e além do meu eu já sou esse vinculum e
transcendência que caracterizam a minha vida antes de eu refleti-la e vê-la como uma “série de
estados de consciência privados” (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 285).
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transcendental enquanto já ter sido ultrapassamento da pessoa, pois, onde não falta a
passagem temporal há um sentido que exige a gênese da experiência anterior à sua
produção por parte de uma consciência previamente unificada apenas a si mesma,
querendo-se um fundamento, de cunho inclusive teológico
11
, mas, no entanto, sem
fundamento algum, porque ela não portava em si mesma suas condições de ser um
critério último de certeza da existência, indispensável para o conhecimento
fundamentado de uma realidade qualquer. Em outros termos, a intersubjetividade
elementar e dimensional do fenômeno reforça e nos mostra como “o sujeito não pode
ser definido pela posse completa de si” e “se apresenta, antes, como um ser que se
ultrapassa a si mesmo” (FERRAZ, 2006, p. 176), isto é, “a subjetividade não está
pronta desde sempre, mas avança sobre o que era para fazer-se algo novo”
(FERRAZ, 2006, p. 179), a partir das situações fáticas nas quais se engajará em um
mundo já intersubjetivo que tem os limites da encarnação do transcendental enquanto
autoprojeção intencional para o horizonte exterior, sem padrões preexistentes a essa
atividade que é a própria existência, então sem ego. Essa encarnação instaura e revela
uma compreensão e uma comunicação prévias com outrem que começam e não vão
além da fenomenologia da percepção como um projeto de fundamentar a passagem
da consciência para o Ser, diante do qual nós estamos – coexistindo uns com os
outros sem um sentido disponível de partida – quando não somos mais uma
subjetividade sem solo e perdida em seus atos e que expurga de si o tempo como sua
irrealização. Essa encarnação é uma reflexão mais radical que faz com que “de um só
golpe eu me apreenda como excêntrico a mim mesmo” tendo a experiência de
outrem para mim destacado do seu ser para si um ego, dentro de um halo de Para
Outrem em geral que caracteriza, conforme Merleau-Ponty (1999, p. 601), a
sociabilidade em sua atmosfera mortal, uma vez que, “com o cogito começa a luta
das consciências das quais cada uma, como diz Hegel, persegue a morte da outra”
(MERLEAU-PONTY, 1999, p. 476). Isto constitui um intermundo que é ainda um
projeto meu pelo que seria hipocrisia acreditar que me sacrifico em benefício de
outrem, com quem, apesar de tudo, tenho uma coexistência irrecusável, visto que
nunca vivo sua presença a si mesmo tal como minha morte é um porvir inacessível
que alimenta e limita meus pensamentos.
Todavia, esta mesma natureza pensante que me abarrota de ser me abre o
mundo através de uma perspectiva, com ela eu recebo o sentimento de
minha contingência, a angústia de ser ultrapassado, de forma que, se não
penso minha morte, vivo em uma atmosfera de morte em geral, há como
que uma essência da morte que está sempre no horizonte de meus
pensamentos (...); e minha vida tem uma atmosfera social assim como
tem um sabor mortal (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 489).
11
Visto como perfeição do contato do pensamento consigo mesmo, pelo que ele não se ultrapassa e
não tem aspirações a um outro, o Cogito se possui encontrando-se apenas a si mesmo no exterior, e
assim não é mais um eu finito. “É finalmente com Deus que o Cogito me faz coincidir (...), me faz sair
do acontecimento e me coloca na eternidade” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 499).
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É preciso darmo-nos conta do que constatamos através do cogito quando,
para retraçarmos sua gênese, acrescentamos, por recomendação de Merleau-Ponty,
uma fenomenologia à fenomenologia da descrição direta
12
. E assim, o que
descobrimos é que a subjetividade não é uma espectadora imparcial que está em
Deus e dele precisa para ter consciência e para amar outrem, por exemplo, pois,
agora, sua reflexão lhe mostra que ela não precisava dos livros de filosofia para se
conhecer e se perceber como uma existência com outrem anterior ao eu
13
. A
subjetividade é compreendida pela recuperação do começo irrefletido e perpétuo da
reflexão que se sabe nesta sua finitude recusada pela razão autoral dos livros feitos
de meio abstrato de autoconservação. Ao passo que,
É este fundo de existência dada que o cogito constata: toda afirmação,
todo engajamento e mesmo toda negação, toda dúvida tem lugar em um
campo previamente aberto, atesta um si que se toca antes dos atos
particulares nos quais ele perde contato consigo mesmo (MERLEAU-
PONTY, 1999, p. 479; grifo nosso).
No cogito, o infinito – e sua própria infinitude – é essa perda de contato
consigo mesmo em seus atos. Eis o verdadeiro teor mortal que lhe é intrínseco, como
um sinônimo de intimidade e de comunicação com um Outro que, incutindo em sua
identidade previamente assim formada uma ruptura insanável com o mundo,
determina-o como uma consciência reflexiva que mal disfarça sua infelicidade
constitutiva. Ao passo que, para mim que nasci, que tenho um corpo e um mundo
natural no qual minha existência já opera engajada aquém dos atos, sabendo-se dada
a si mesma entrelaçada a outrem, este não é um problema, porque ele não me retira
tudo, porque ele me retira dos meus atos nos quais eu me perdia sem contato comigo
mesmo. Portanto, se outrem não é uma ameaça apenas nociva à presença de si a si, a
relação com ele não se estabelece por uma ruptura da relação de si a si, com esta
contribuindo, na verdade. Nesses termos, é justamente por me reservar uma solidão
vivida
14
– pela qual exijo respeito –, reconhecendo-me como um si indeclinável e
insuperável, que não é um eu intelectualmente sozinho e inalienável, aceito e
reconheço outrem em uma presença cuja constatação não é definitiva e acabada. E
nessa generalidade toda – constituída por uma solicitação recíproca que não exige
uma entrega completa e instantânea dos seus participantes –, se instaura a
sociabilidade que já estava em germe como um horizonte último da subversão do eu.
“Portanto, é preciso que na reflexão mais radical eu já apreenda em torno de minha
12
Cf. Merleau-Ponty, 1999, p. 489.
13
Cf. Merleau-Ponty, 1999, p. 481.
14
Esta solidão vivida é diferente do solipsismo intelectualista. Fora deste, “a solidão e a comunicação
não devem ser os dois termos de uma alternativa, mas dois momentos de um único fenômeno, já que,
de fato, outrem existe para mim” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 482), ainda que como uma
possibilidade no ambiente. Para Merleau-Ponty (2003, p. 283-4), só há solidão verdadeira se não há
mais sequer eu, mas ora, isto é a emersão da própria vida intersubjetiva que nos demonstra a
impossibilidade de não haver o outro e, nesses termos, nos testemunha um “Se (On) primordial”
dotado de autenticidade, que é também um pressuposto ontológico que resiste e obstaculiza a redução
à egologia e à individualização numérica.
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individualidade absoluta como que um halo de generalidade ou como que uma
atmosfera de sociabilidade” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 601). Chamamos a
atenção para a reflexão mais radical que se mostra condição da existência de uma
intersubjetividade prévia ao conhecimento, reflexão aberta ao irrefletido,
compreendida como “tensão de minha experiência em direção a um outro cuja
existência no horizonte de minha vida é incontestada, mesmo quando o
conhecimento que dele tenho é imperfeito” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 482). Eis
a apritude transcendental da subversão. Isto significa que, o que funda a minha
subjetividade ao mesmo tempo funda a minha transcendência em direção a outrem,
pois, como vimos, “os atos do Eu são de uma tal natureza que eles se ultrapassam a si
mesmos e não há intimidade da consciência” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 503),
que é de um lado a outro transcendência. E com isto temos o fim do transcendental
na imanência, o que abre espaço para um projeto ontológico que se propõe investigar
a Ursprung das transcendências como o que torna possível o conhecimento para
além das simples descrições das experiências pré-lógicas do campo fenomenal. “É
preciso que essas descrições sejam para nós a ocasião de definir uma compreensão e
uma reflexão mais radicais do que o pensamento objetivo” (MERLEAU-PONTY,
1999, p. 489). Isto é, “à fenomenologia entendida como descrição direta, deve
acrescentar-se uma fenomenologia da fenomenologia”, pela qual, segundo Merleau-
Ponty, “o que descubro e reconheço pelo Cogito não é a imanência psicológica (...),
não é nem mesmo a imanência transcendental (1999, p. 504)” de acordo com
Descartes e Husserl, porém, “é o movimento profundo de transcendência que é meu
próprio ser, o contato simultâneo com meu ser e com o ser do mundo” (1999, p.
504), que se nos mostra o verdadeiro transcendental pelo qual descobrimos como
havia ali, no Cogito, “um Logos mais fundamental do que o do pensamento
objetivo
15
”, que em sua abertura primordial favorável torna este possível a partir do
seu levantamento ou alteamento enquanto Arkhé originário
16
.
Ora, nesses termos, este Logos “mais fundamental”, sendo uma abertura ou
transcendência expressiva prévia sem sujeito com suas palavras e representações
intelectuais, e na medida em que ele dá a luz e fertiliza o fenomênico, este Logos se
apresenta com os limites indemarcáveis de um Umwelt prévio aquém (en deçà) do
movimento e do repouso, e só pode ser, portanto, assim pré-linguístico e pré-teórico,
15
Sem mencionar a implicação do transcendental neste processo, Moura (2001, pp. 271-293) o analisa
como uma restituição ontológica da linguagem enquanto radicalização da fenomenologia que adquire
a capacidade de revelar, aquém do a priori formal, um a priori material do sentido que se dá através
da apresentação expressiva do Ser antes do homem e da sua atitude teórico-científica.
16
Uma camada universal de engendramento – a Terra que está antes do intramundano com suas
relações e que é o berço que contém todas as possibilidades ulteriores. A Terra se tornou uma
realidade infinita constituída pelos “horizontes que são apenas horizontes” (MERLEAU-PONTY,
1995, p. 110) que se atravessam e se transcendem sem limites últimos e definitivos. Eis a verdade
recuperada do infinito libertado do pensamento e da razão caladamente teológicos que fizeram do
infinito uma noção positiva de desvalorização do mundo. Relembrando Husserl, nos diz Merleau-
Ponty: “O verdadeiro infinito não pode ser esse: é preciso que seja o que nos ultrapassa; o infinito da
Offenheit e não da Unendlichkeit – o infinito do Lebenswelt e não o infinito da idealização. Portanto,
infinito negativo – sentido ou razão que são contingência” (1964, p. 223).
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“o solo de nossa experiência”, o Solo (Boden, de Husserl) que não está entre os
planetas, enfim, a Terra ou a Offenheit (MERLEAU-PONTY, 1995, p. 110), que
apenas vivenciamos em nossas experiências. E estas experiências são as de uma
intersubjetividade originária e sempre em nascimento antes de terem nascido o eu e o
outrem em sua oposição problemática e irresolúvel enquanto tomarmos a
reflexividade da consciência separada do mundo e da vida como uma presunçosa
atividade de alteamento abstrato do homem que quer ser mais enquanto centro
interior a ele mesmo. Eis a hýbris da qual é preciso nos proteger. Alcançamos a
intersubjetividade – só redescobrimos o nosso nascimento juntos a partir da própria
fissão, irrupção e deiscência carnais como comunicação do Logos bruto e selvagem –
na medida em que somos menos nós mesmos, e desta maneira, reconhecemos que
não somos o ponto de partida absoluto para a compreensão que, porventura e risco,
podemos ter de nós mesmos. Neste sentido, a partir da efetiva e subversiva
instauração fundante do transcendental pela qual a fenomenologia toma como sua
tarefa infinita a explicitação dos modos pré-filosóficos de encarnação do Logos, é
preciso recuperar e caminhar por uma filosofia da Natureza que seja também uma
filosofia não-filosófica do Logos “que tem necessidade de uma linguagem que pode
retomar a Natureza no que ela tem de menos humano, e que, por isso, seria próximo
da poesia” (MERLEAU-PONTY, 1995, p. 71; grifo nosso)
17
. Neste “menos”, a
Natureza desfruta do mesmo ser poético da Carne do Logos então enraizado na
metáfora e no simbolismo.
Em Merleau-Ponty, a Natureza é aquilo que, antecedendo e transcendendo o
antropológico, permite-nos compreender o homem ao qual ela mesma, de fato, não
está oposta, pois, o homem apenas é enquanto emergência continuada e infinita neste
Solo, antes de se identificar com sua atividade derivada de pensamento que, em sua
hýbris, arrogava-se o senhorio do sentido. A filosofia da Natureza pré-reflexiva então
visa e no-la propicia a superação da separação e do antagonismo entre o pensamento
e a vida, a partir da recuperação ontológica da Natureza em sua “autoprodução de um
sentido” e de uma solidez primordial, não-constituída e não-instituída (MERLEAU-
PONTY, 1995, pp. 19-20), pelo quê lhe é reconhecida a eternidade de um eterno
retorno que a ‘retira’ de diante de nós. Não sendo nada diante de nós e sendo a
recuperação do Ser anterior à reflexão, daí seu eterno retorno, “esta erste Natur é o
elemento mais antigo, ‘um abismo de passado’, que permanece sempre presente em
nós como em todas as coisas” (MERLEAU-PONTY, 1995, p. 61), este Ser Natural,
bruto e selvagem, do qual nos falava Schelling é, para Merleau-Ponty, “o estofo
fundamental de toda vida e de todo existente, alguma coisa de assombroso, um
princípio bárbaro” (1995, p. 61; grifo nosso) não separado e sem planos e regras
prévias. Neste sentido, uma tal Naturphilosophie, conclui Merleau-Ponty, “era difícil
17
Em outro momento, preocupado com o se pronunciar silenciosamente do Logos nas coisas se
fazendo assim de mensagem enquanto poder de eclosão, fecundidade e produtividade (praegnas
futuri), Merleau-Ponty afirma ser preciso “criticar o homenzinho que existe no homem” e reencontrar,
enfim, “o homem face a face com o próprio mundo, reencontrar o presente pré-intencional”, e isto é
“reencontrar essa visão das origens, aquilo que se vê em nós, como a poesia reencontra o que em nós
se articula, sem o sabermos” (1964, p. 261; grifo nosso).
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de ser integrada no quadro de um idealismo transcendental” (1995, p. 112) que
recusava à experiência – mesmo a do infinito recuperado – a condição de acesso a
Deus que está em sua base e que “não é para ser conhecido à parte da experiência, é
ele que nós apreendemos no finito” (MERLEAU-PONTY, 1995, p. 73). O que acaba
por se traduzir na restauração da dignidade do antropológico.
Recuperada, a Natureza “é nosso solo, não o que está diante, mas o que nos
conduz” (MERLEAU-PONTY, 1995, p. 20; grifo nosso). Cabe dizermos que esse
solo-caminho de fluxo de horizontes no qual não temos nada diante de nós é a de
uma fértil emergência que nos alteia em geração constante e incessante por sua
própria produtividade primordial (MERLEAU-PONTY, 1995, p. 61) que se
apresenta como um Pré-ser (o Vor-Sein de Husserl) indissociável do ser-produzido
por ela. Esta apresentação pré-ontológica significa, em outros termos, que a Natureza
é um produtor, mas, “que não chega a terminar sua produção: é um movimento de
rotação que não produz nada de definitivo” (MERLEAU-PONTY, 1995, p. 61). E
tendo nascido dela e preservando entre si e si mesmo a autoprodução (poética,
impetuosa e violenta) da Natureza, o homem não é terminado e não é nada de
definitivo, e sendo assim inacabado do ponto de vista pré-ontológico, o homem
ultrapassa a medida e, por isto, libertando-se da sua insolência, soberba e presunção,
ele se torna ardorosamente excessivo e se alteia pela Hýbris do Logos ou pelo
infinito das transcendências dos horizontes da Offenheit, de onde tudo provém e para
onde tudo retorna não terminado e não definitivo, sem início e sem fim. Com efeito,
a autoprodução pré-ontológica não produz apenas a vida, mas também, a morte do
homem que é apenas essa passagem entre – a travessia da sua existência pela Terra –
o início e o fim, destituída do início e do fim e de uma sequência ordenada de
direções.
Nesses termos, já compreendemos e já refletimos o homem mais radicalmente
do que o tolerável pelo logos do pensamento objetivo, pois, se nos apresentou,
ressurgindo da opacidade e do peso do infinito separado metafísico e teológico, um
fundamento arcaico pré-teórico que nos desvela a necessidade de refletirmos e de
compreendermos o homem de maneira não antropológica, o homem que não tem
mais mãe, mas, que sendo filho de um princípio bárbaro (1964, p. 321), é renascido
(e revigorado) junto com o mundo e o espírito também renascidos. Merleau-Ponty
apresenta a filosofia da Natureza não-natural como essa Renascença, e em virtude
disto, sua preocupação última não é com o humanismo, o psicologismo e o
logicismo, incapazes de nos dizer a eternidade existencial, a solidez e a
confiabilidade que habitam e identificam o ser humano. Doravante, o que identifica o
homem é o fato de ele pisar sobre a metafísica
18
, é o seu ser terrestre, pelo quê ele é
chamado “filho da Terra” (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 293-4), filho deste Sub-ser.
18
Porque “não há mais essências acima de nós, objetos positivos, oferecidos a um olho espiritual, há,
porém, uma essência sob nós...” (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 158), que nos é um solo-caminho
através do qual, “a infinidade do Ser que me pode ser questão é finitude operante, militante: a abertura
do Umwelt”, e por isto, continua Merleau-Ponty, “sou contra a finitude no sentido empírico, existência
de fato que possui limites; daí porque sou pela metafísica. Mas esta não está mais no infinito do que
na finitude de fato” (1964, p. 305).
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Este ser gerado sem corpo, mas carnal e eroticamente, restitui, em sua finitude e
limites, o infinito e a verdadeira transcendência, e pela realização espontânea e
existencial de tal tarefa épica e trágica, essa renascença do homem nos permite
redescobrir – atravessando-o e o retirando dos seus limites visíveis, instituídos e da
sua identidade racional – “o espírito bruto que não está aprisionado por nenhuma das
culturas e ao qual se pede que crie novamente a cultura” (MERLEAU-PONTY,
2003, p. 295; grifo nosso).
Por fim, por termos seguido os passos transcendentais dessa revivificação do
mundo e do espírito selvagens, reencontrando-os agora na condição de despertados
de seu sono no leito insidioso da razão, tocamos, aqui, num Símbolo pré-filosófico
muito arcaico como fundamento pré-ontológico inacessível à nossa memória prática,
psicológica e antropológica, que nos impedia de sairmos de nós mesmos a caminho
do outro e não alimentava as nossas esperanças, então sem a infinidade dos
horizontes. Descobrimos que esse fundamento está presente em nós com um sentido
sólido que nos escapa, presente como um passado que não é passado, e que assim
escava um buraco no tempo, buraco que é a emergência favorável de uma inefável
Eternidade existencial pela qual passamos sem passarmos de uma necessária
contingência.
Referências Bibliográficas:
DÉLIVOYATZIS, Socratis. La dialectique du phénomène: sur Merleau-Ponty. Paris:
Méridiens Klincksieck, 1987.
FERRAZ, Marcus Sacrini. O transcendental e o existente em Merleau-Ponty. São
Paulo: Humanitas, 2006.
MERCURY, Jean-Yves. L’Expressivité chez Merleau-Ponty: Du corps à la peinture.
Paris: L’Harmattan, 2000.
MERLEAU-PONTY, M. Le visible et l’invisible. Paris: Gallimard, 1964.
__________. La nature. Paris: Le Seuil, 1995.
__________. Notes de cours. Paris: Gallimard, 1996.
__________. Fenomenologia da Percepção. Tradução Carlos Alberto Ribeiro de
Moura. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
__________. Le philosophe et son ombre. Signes. Paris: Gallimard, 2003.
MOURA, Carlos Alberto Ribeiro de. Racionalidade e Crise: Estudos de História da
Filosofia Moderna e Contemporânea. São Paulo: Curitiba: Discurso Editorial e
Editora da UFPR, 2001.