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Dossiê
Ciência Política e sistema
financeiro no Brasil: o artigo
192 da Constituição Federal
Marcus Ianoni *
Resumo
O trabalho revisa a literatura de Ciência Política brasileira sobre a não-
regulamentação do Artigo 192 da Constituição Federal e temas pertinentes
a essa problemática – como as relações entre Autoridade Monetária e
Legislativo e entre sistema político e grupos de interesse financeiro. Após
mapear quatro hipóteses explicativas, faz uma investigação empírica preli-
minar de ações, decisões e não-decisões do Congresso e do Poder Executi-
vo, relacionadas à normatização e regulamentação do Sistema Financeiro
Nacional, para avaliar as hipóteses mapeadas. Conclui considerando que
as hipóteses da não-decisão e da captura têm forte poder explicativo, que a
hipótese da condução centrada no Executivo exagera na dose da autonomia
do Estado e que a hipótese do presidencialismo de coalizão é excessivamente
formalista e não explica as mudanças institucionais.
Palavras-chave: sistema financeiro nacional, Artigo 192, não-decisão, cap-
tura, autonomia do Estado, presidencialismo de coalizão.
Introdução
Apesar da relevância da institucionalização financeira para o desen-
volvimento, o debate da regulação do Sistema Financeiro Nacional
(SFN), prevista no Art. 192 da Constituição Federal (CF), e o estudo
do empresariado financeiro como ator político são incipientes na
Ciência Política1. O trabalho tem dois objetivos: 1) revisar a literatura
* Mestre e Doutor em Sociologia Política pela PUC-SP. Professor Adjunto e Che-
fe do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense
(Niterói/RJ). Endereço eletrônico: marcusianoni@uol.com.br
1 Ver Anexo, com as duas versões, original e atual, do Art. 192.
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de Ciência Política brasileira sobre a não-regulamentação do Art. 192
e temas pertinentes a essa problemática – como as relações entre
Autoridade Monetária ([AM] – Conselho Monetário Nacional [CMN] e
Banco Central do Brasil [BCB]) e Legislativo e entre sistema político e
grupos de interesse financeiro –, para mapear as principais hipóteses
explicativas; 2) investigar empiricamente e preliminarmente ações,
decisões e não-decisões do Congresso e do Poder Executivo sobre a
normatização e regulamentação do SFN e, com essas informações e
dados, fazer uma primeira avaliação das hipóteses mapeadas.
O caput do Artigo 192 da CF estabelece dois grandes objeti-
vos para o SFN: promover o desenvolvimento equilibrado do país e
servir aos interesses da coletividade. Mas estudos apontam que o
SFN possui ineficiências que impedem que sua dinâmica realize os
objetivos que a CF lhe incumbiu de alcançar (e.g. Carvalho, 2004,
IPEA, 2009)2. E embora não se possa dizer que o SFN cumpra sua
missão constitucional, ele tem crescido e acumulado capital, o que
pode ser evidenciado por indicadores como o PIB das instituições
financeiras (IFs) e a rentabilidade dos bancos brasileiros, que, desde
antes da crise internacional, já superava a dos norte-americanos3.
Por outro lado, as pesquisas de Ciência Política sobre o SFN no
Brasil carecem de aprofundamento empírico e de uma abordagem
mais sistêmica, que foque as conexões do sistema político com o
sistema financeiro, e não em aspectos isolados dessas relações. Sem
se fazer isso, corre-se o risco de se produzir ideologia legitimadora
das insuficiências democráticas e econômicas do SFN.
Após essa apresentação e justificativa do objeto, seguem três
seções: a primeira revisa a bibliografia sobre a não-regulamentação
do Art. 192 e/ou temas pertinentes a essa problemática e expõe qua-
tro hipóteses presentes nessas obras; a segunda expõe os resultados
empíricos alcançados e os confronta com as hipóteses identificadas
na bibliografia; a terceira, conclui.
2 Ver também “Crédito deve atingir 53% do PIB em 2010”, Valor On Line,
04/12/2009.
3 “Peso dos bancos no PIB é recorde”, O Globo, 28/03/2003. Sobre a rentabi-
lidade dos bancos, consultar http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/
ult91u319979.shtml.
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1. O sistema financeiro brasileiro na Ciência Política
A revisão abordará essas obras da Ciência Política: Neiva
(1995), Sola, Kugelmas e Whitehead (2002), Santos e Patrício (2002),
Loureiro e Abrucio (2004a e 2004b) e Kasahara (2009). A obra de
Bresser-Pereira (2007) será parcialmente revisada; apesar de situar-se
na ciência econômica, ela aborda uma teoria de política regulatória
– teoria da captura – que adentra a ciência política. A exposição será
ordenada conforme a abordagem teórica das obras: a) neoelitismo;
b) neoinstitucionalismo histórico; c) neoinstitucionalismo da escolha
racional; e d) teoria da captura 4.
1.1. Neiva: hipótese da não-decisão
Neiva (1995) fez um estudo pioneiro sobre a (não) regulamen-
tação do SFN. Seu objetivo foi
identificar os diversos atores envolvidos no processo de regula-
mentação do sistema financeiro nacional e seus recursos de poder,
bem como avaliar a capacidade que têm os mais poderosos para
fazer com que as decisões/não-decisões tomadas atendam às suas
expectativas (op.cit., p. 7).
Em termos teóricos, Neiva recorreu à abordagem neoelitista
da não-decisão, formulada por Bachrach e Baratz (B&B). O neoe-
litismo surgiu na crítica ao método de investigação decisional da
escola pluralista norte-americana. Robert Dahl e outros pluralistas
utilizavam o método decisional para analisar o poder dos grupos de
interesse na formatação das decisões do sistema político. Segundo
B&B (1962, p.948-949),
power is also exercised when A devotes his energies to creating or
reinforcing social and political values and institutional practices
that limit the scope of the political process to public consideration
of only those issues which are comparatively innocuous to A. […]
Can he [the student] safely ignore the possibility, for instance, that
4 As obras de Loureiro & Abrucio (2204a e 2004b) serão utilizadas para apoiar a
tese da captura e a visão de que a accountability do BCB é formalista.
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an individual or group in a community participates more vigorously
in supporting the nondecision-making process than in participating
in actual decisions within the process?
Os autores citam Schattschneider (op. cit., p. 949): “All forms
of political organization have a bias in favor of the exploitation of
some kinds of conflict and the suppression of others because or-
ganization is the mobilization of bias. Some issues are organized into
politics while others are organized out”.
A abordagem da não-decisão sugere proceder da seguinte
maneira na análise do processo decisório: identificar 1) a mobiliza-
ção do bias e 2) quem ganha e quem perde com o bias existente; 3)
investigar a dinâmica da não-decisão; até que ponto os defensores
do status quo influenciam os valores e instituições que limitam o
escopo do processo decisório a questões seguras; 4) após isso, partir
para a abordagem pluralista e verificar a participação dos atores nas
decisões tomadas.
Neiva identificou e investigou os seguintes atores: Poder
Executivo, bancos públicos federais e estaduais, bancos privados na-
cionais, governadores de Estado, agentes financeiros internacionais,
grande capital industrial, agrícola e comercial e, de algum modo,
abordou, também, a imprensa, os parlamentares economistas e os
bancários. Ele investigou três questões principais sobre a regula-
mentação do Art. 192: 1) funcionamento, atribuições e composição
do BCB; 2) organização e funcionamento dos bancos oficiais; 3)
limitação dos juros em 12% ao ano. Eis suas conclusões:
1- Há assimetria de recursos de poder entre os atores e o
Poder Executivo tem posição privilegiada nesse jogo político.
2- O Executivo não tem interesse na independência do BCB,
pois ela implicaria perdas na possibilidade de financiamento de seus
gastos, na condução da política econômica e no poder exercido so-
bre os governadores (Neiva, op. cit., p.155-156). Os bancos privados
também não defendem a independência, pois, com ela, perderiam
influência sobre o Executivo e o BCB, autarquia que, no Brasil, se
incumbe da política monetária, supervisão bancária e da autorização
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para funcionamento das IFs (op. cit., p. 111).5 Governadores e bancos
públicos estaduais também resistem a majorar o poder do BCB e a se
submeterem a essa agência, pois perderiam a capacidade de pressão
política facultada pela situação de então.6 PT e CNB/CUT seriam,
então, favoráveis à independência do BCB, que seria compensada
pela criação, no Congresso, de uma Comissão Mista Permanente
para Assuntos do Sistema Financeiro (idem, p. 98).
1- Entre 1991 e 1995, a questão dos bancos oficiais foi outra
grande fonte de dificuldade para a regulamentação do Art. 192,
por suscitar fortes interesses divergentes entre bancos privados e
oficiais. Isso fez Neiva complementar a teoria da não-decisão: “as
não-decisões também ocorreriam onde há um equilíbrio de forças
em conflito e não apenas quando há o predomínio de um ator mais
poderoso” (idem, p. 152).
2- Não houve tabelamento dos juros por falta de consenso
no Congresso sobre a matéria, desde a Constituinte, embora, na
plenária final de votação do Carta Magna, formou-se ampla coalizão
suprapartidária contra o SF. Mas imediatamente, o Executivo, por
parecer do então Consultor Geral da República, respaldado pela
Febraban e pelo BCB, considerou que a vigência da matéria dependia
de regulamentação prévia (OLIVEIRA FILHO, 2007, p. 96).
Essa é a síntese da hipótese da não-decisão, que Neiva usa
para explicar a não-regulamentação do Art. 192. Executivo, BCB
e banqueiros foram fortes atores contra a independência (não da
autonomia) da AM e a auto-aplicabilidade do Art. 192, respalda-
dos juridicamente por decisão do STF, de 1991, segundo a qual o
artigo só entraria em vigor após a regulamentação da LC. Então,
a legislação anterior continuou a vigorar, particularmente as Leis
4595/1964, 4728/1965 e a 6385/1976 (respectivamente, leis bancária,
do mercado de capitais e de criação da CVM). Assim, a Lei Bancária,
que é ordinária, foi recepcionada pelo sistema jurídico como LC
(Duran-Ferreira, 2009).
5 Não se trata da autonomia operacional do BCB, que vigora hoje, sem a devida
formalização.
6 Note-se que o trabalho de Neiva é de 1995.
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1.2. Sola et alli e Kasahara: hipótese da condução
centrada no Executivo
Sola, Kugelmas e Whitehead (2002) e Kasahara (2009), por
meios distintos, podem ser incluídos, teoricamente, no neoinsti-
tucionalismo histórico (HALLl & TAYLOR, 2003). Enfatizam as inte-
rações entre Estado e mercado. Sola et alli (op. cit., p. 17-18) vêem
o Estado como protagonista nas mudanças em curso na América
Latina, mas criticam o “tratamento do Estado como entidade au-
tônoma, separada da teia de múltiplas relações societárias”. Mas
recusam exageros estruturalistas e atentam para o marco institu-
cional próprio dos Estados em que as mudanças nos mercados e
instituições financeiras estão ocorrendo.
Kasahara (op. cit., pg. 5 e 15) critica a ênfase estruturalista
do poder das forças de mercado diante do Estado e a tese de que
a globalização financeira impõe a “existência de um inexorável
movimento de homogeneização institucional ou regulatória”. Ele
recorre ao conceito de path dependence, do neoinstitucionalismo
histórico.
Sola et alli (idem) criticam o hiperestruturalismo, que “relega
a segundo plano a ação política”. Contextos de transformação
econômica e mudança política podem propiciar “conjunturas crí-
ticas”, ricas em contingência e incerteza, que abrem espaço para
a liderança política e o statecraft (idem, p. 88). Kasahara (op. cit., p.
87) pondera que o “empresariado financeiro, mesmo que em uma
posição privilegiada na estrutura econômica, também sofre dilemas
inerentes à organização de sua ação coletiva, nos moldes olsonia-
nos, e encontra-se constrangido pelas características institucionais
e históricas do país no qual se encontra”.
As “instituições financeiras produzem efeitos distributivos
profundos” e “tais conseqüências necessitam de legitimação [...]
caso contrário despertarão amargos conflitos sociais” (Sola et alli,
op.cit., p. 20). Assim, a viabilidade das estratégias econômicas tem
centralidade política (idem, p. 25). O “regime democrático oferece
constrições habilitadoras” e a “estabilidade econômica adquiriu estatu-
to de bem público” (idem, p. 101). A estabilidade de preços propiciou
a autonomia do BCB, e não o inverso, mas a garantia das mudanças
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liberais depende do grau de inclusão e participação de atores insti-
tucionais mais amplos e da legitimação assim alcançada.
A AM é uma autoridade política, não só por deter o monopó-
lio de emissão de moeda. O exercício da AM, dada sua relevância
para a governabilidade democrática, é um objeto da maior impor-
tância para os cientistas políticos (idem, 114 e 154). Ao abordar a
prestação de contas do banco central no processo de construção
da AM, “o analista deve reconhecer que, num contexto democrá-
tico, o principal requisito desse processo é um ato de delegação
política de autoridade – dos políticos para outros atores –, ato que
certamente pode ter consequências benéficas” (idem, p. 120). Se
tem havido reconcentração do poder nas mãos da AM e os bancos
centrais requerem expertise, como compensar isso com políticas
institucionais que confiram legitimidade à política monetária e à
AM (idem, p. 125-126)?
No Brasil, apesar dos avanços na compreensão da estabilidade
como bem público e na autonomia do BCB, esta última ainda está
nas mãos do Presidente da República. Os políticos devem regular a
delegação da autonomia da AM. (idem, p. 156). Embora reste concluir
a construção institucional democrática da autonomia do BCB, Sola et
alli avaliam que as mudanças pendem para uma maior transparência
e democracia nas decisões (idem, p. 218 e 223). Isso é observável
na menor discricionariedade nas regras de supervisão bancária, na
adoção do inflation targeting e nas exigências de prestação de contas
do BCB ao Congresso contidas na Lei de Responsabilidade Fiscal.
Mas os autores crêem que um maior controle do Legislativo sobre
o BCB é contra-indicado.
Sola et alli não citam a não-regulamentação do Art. 192.
Avaliam que os políticos devem delegar legalmente a autonomia
ao BCB, mas não inserem tal proposição na discussão mais ampla
da regulamentação do SFN, que tem, entre outras atribuições, a
definição do arcabouço institucional da AM. Assim, não problema-
tizam se o SFN cumpre ou não os objetivos que o caput do Art. 192
lhe confere.
Tais autores parecer tomar como inelutável o poder das IFs e
dos “grandes credores da dívida pública” na economia globalizada
(idem, p. 95-97). Se enfatizam o efeito redistributivo positivo do
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fim da inflação, não mencionam a concentração de renda e riqueza
resultante do caminho técnico e político perseguido pela estabiliza-
ção monetária desde 1994 e nem abordam outra regulação do SFN
mais favorável ao desenvolvimento e à redução das desigualdades.
Sua grande preocupação é a legitimação dos arranjos financeiros e
monetários, vista como necessária para evitar conflitos sociais. Mas
avaliam que, desde o Plano Real, o BCB reduziu a influência das IFs
sobre suas políticas, em comparação com o que teria ocorrido de
Costa e Silva até 1993 (idem, p. 166-176). Nessa análise, que destaca
o quadro institucional próprio de cada país, as constrições habilita-
doras, conjunturas críticas e o relativo controle estatal do processo
de construção das novas instituições monetárias, identifica-se a
hipótese da condução centrada no Executivo, defendida mais explicita-
mente por Kasahara.
Kasahara (op. cit., p. 6) visa “desenvolver uma análise capaz de
entender melhor o papel fundamental que as instituições políticas
e econômicas exercem na determinação das estratégias a serem
adotadas tanto pelo governo quanto por segmentos da sociedade,
em particular o empresariado financeiro”. Avalia que o Estado
brasileiro, através de setores do Executivo e órgãos reguladores
(BCB e CVM), foi um ator capaz de “impor uma agenda própria de
expansão da sua capacidade de intervenção e regulação sobre os
mercados financeiros”.
Observa que, junto com a centralização da AM, ocorre, des-
de o Plano Real, a concentração bancária, resultante de mudanças
regulatórias conduzidas pelo governo para fortalecer o SFN no
difícil processo de transição de um mercado operando em regime
inflacionário para um ambiente de estabilização econômica (idem,
p. 62). Esse fortalecimento era visto como “fundamental para o
sucesso da estabilização” (idem). Entre as medidas de fortaleci-
mento do SFN estão o PROER, o PROES, o FGC (Fundo Garantidor
de Crédito), a abertura bancária, o reforço institucional do BCB, a
criação da Central de Risco de Crédito, a adesão às regras de su-
pervisão bancária dos Acordos de Basiléia, a aprovação do Sistema
de Pagamentos Brasileiro (SPB), da lei do empréstimo consignado
e da nova lei de falências. Sobre o mercado acionário, Kasahara
menciona as Leis 9457/1997 e 10411/2002, que fortalecem a CVM,
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tornando-a agência reguladora, além da L. 11638/2007, que muda
o padrão contábil brasileiro.
O autor ameniza explicações dessas políticas como resultan-
tes de lobby. “O Bacen [...], ao buscar a promoção de um bem público,
como a diminuição do custo do crédito para a economia em geral,
acabava estabelecendo uma agenda de atuação institucional com
forte sobreposição aos interesses do setor privado. A atuação do
Bacen em defesa de interesses presentes na agenda do setor pri-
vado, porém, deveria ser vista muito mais como uma convergência
ocasional do que uma evidência do sucesso do lobby sistemático de
bancos ou de captura” (idem, p. 73).
Ao destacar o papel da AM na condução dessas políticas, vê
como consequência negativa a baixa transparência do BCB, sobretudo
quando ele age “para assegurar a estabilidade do sistema” (idem, p.
84). Avalia que houve, no processo, divergências entre IFs e BCB, sendo
incorretas as “análises que procuram apontar para uma desregulação
do setor bancário ou de hegemonia dos interesses financeiros”. Res-
salta também que os poderes regulatórios do Executivo facilitam sua
atuação, evitando “elevados custos de negociação com o Congresso
Nacional” (idem). Por convir ao Executivo ter “grande margem de ma-
nobra para tomar decisões consideradas necessárias para enfrentar
crises ou para amenizar pressões vindas da opinião pública”, ele não
se interessa pela regulamentação do Art. 192 (idem, p. 85).
Inexistindo canais formais de interlocução com o Executivo, as
Finanças têm com ele contatos informais constantes. A postura dos
banqueiros diante do governo é mais de cooperação e discrição do
que de confronto e visibilidade. Esse quadro tornaria difícil “analisar
de forma mais sistemática a efetividade do lobby do empresariado
financeiro em relação a seus órgãos reguladores” (idem, p. 114).
1.3. Santos & Patrício: hipótese do presidencialismo de
coalizão
Santos & Patrício (S&P) (2002) visam “investigar a lógica que
rege a prestação de contas do BACEN no Brasil pelo poder Legislati-
vo, de forma a ilustrar o argumento de acordo com o qual o controle
de bancos centrais seria essencialmente função de variáveis ligadas
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ao funcionamento do sistema político mais amplo” (op. cit., p. 94).
Defendem a seguinte tese: “em cada país, sejam quais forem as
concepções dominantes de credibilidade e a lei relativa aos proce-
dimentos de prestação de contas dos bancos centrais, o controle
das atividades por parte destes últimos depende da dinâmica das
relações entre o Legislativo, o Executivo e o Banco Central” (idem).
Sobre o Brasil, afirmam: “defendemos que a forma pela qual o Le-
gislativo está inserido no sistema político brasileiro, por intermédio
do presidencialismo de coalizão, é a chave para o entendimento do
padrão de prestação de contas do Banco Central” (idem).
Entre 1945 e 1964 “o Legislativo consegue efetivamente
interferir nos rumos da política monetária, barrando a proposta de
criação de um banco central independente” (idem, p. 98). Porém,
configura-se, “a partir de 1994, com o Plano Real, uma supremacia
efetiva da política monetária sobre os demais objetivos de política
econômica” (idem). Desde então, muda também a relação da AM
com o Legislativo: “tanto o Banco Central do Brasil quanto o Con-
selho Monetário Nacional são beneficiados por ampla delegação
de prerrogativas, podendo regulamentar [...] um grande número de
transações econômicas, desde a política monetária até o funciona-
mento de consórcios” (idem, p. 100).
A análise dos autores prescinde da efetiva consideração dos
fatores econômicos e forças sociopolíticas vinculadas às mudanças
no padrão de relação entre Legislativo e AM. Os grupos de interesse
são efetivos atores apenas quando S&P se referem ao regime militar.
Então, teria havido no BCB um “ambiente de pouca transparência e
grande articulação com os grupos econômicos afetados pela regula-
ção” (idem, p. 93). Mas a situação mudou. Assim, “é natural imaginar
que a democracia brasileira tenha chegado, entre outras coisas,
para resgatar as agências do Executivo da antiga regra autoritária,
segundo a qual a aquiescência ao regime deveria ser comprada pelo
atendimento a interesses privados de grandes grupos econômicos e
corporações” (idem). Embute-se aí a avaliação de que há, agora, um
BCB mais vinculado ao interesse geral, incorporado nas instituições
do sistema representativo, e mais accountable.
A Constituinte decidiu aumentar a autonomia do BCB e o
controle do Congresso sobre a AM. A decisão de não regulamentar
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o Art. 192 resulta da convergência de opinião entre técnicos do BCB
e políticos do Centrão, que se configurou desde o governo Sarney
e tensionou a base política governista, opondo nacionalistas, à
esquerda do espectro ideológico, e conservadores, membros do
PMDB e PFL, propensos a um novo modelo de relações entre Estado
e economia no país. “O conflito na base manifestou-se claramente
na dificuldade de aprovação de um único texto que tratasse de forma
consensual todos os aspectos do sistema financeiro e, além disso,
fosse capaz de regulamentar o parágrafo terceiro. Ao mesmo tempo, a
decisão de não regulamentar mostra que o Centrão foi bem-sucedido
em sua estratégia de prorrogar medidas consideradas muito à es-
querda, mantendo o status quo de delegação ao Executivo e ao Banco
Central quanto à definição da política monetária” (idem, p. 100).
A análise de S&P baseia-se na teoria da agenda. “Após 1994,
a autoridade monetária passa a ser centralizada no Banco Central,
aumentando a capacidade do Executivo em determinar os objetivos
da política monetária. Medidas de saneamento do sistema financeiro
são tomadas também após o Plano Real, aproveitando o amplo apoio
parlamentar ao governo do presidente Fernando Henrique Cardoso.
Ao mesmo tempo, a Lei 9.069, de 26 de junho de 1995, que dispõe
sobre o Plano Real e o Sistema Monetário Nacional, estabeleceu
no artigo 6 do capítulo II, que o presidente do BACEN submeterá
ao Conselho Monetário Nacional, trimestralmente, a programação
monetária, que deverá ser aprovada pelo Senado Federal, sendo
que, com a mesma periodicidade, deverá enviar relatório sobre a
execução da programação monetária, além do demonstrativo mensal
das emissões de real e das reservas internacionais” (idem).
“Criam-se, desse modo, critérios para emissão de moeda,
controlados pelo Legislativo. [...] a lei 9.069 altera a composição
do Conselho Monetário Nacional, que passa a ser composto ape-
nas pelas autoridades do Executivo diretamente ligadas à gestão
econômica: os ministros da Fazenda, Planejamento e o presidente
do Banco Central do Brasil e, em seguida, é criado o COPOM [...]
[que] passa a ter a responsabilidade de estabelecer os objetivos da
política monetária e definir a meta de taxa de juros. A estrutura de
prestação de contas está então montada, com ampla delegação de
poder para autoridades do Executivo e do Banco Central no sentido
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de definir a política monetária e instâncias bem definidas para que
o Legislativo promova atividades de prestação de contas” (idem).
Mas, em junho de 1999, por decreto da Presidência da Repú-
blica, instituiu-se o regime de metas de inflação, sem participação
do Congresso e sem que os dispositivos de controle da expansão
monetária pelo Legislativo, previstos na Lei 9.060/1995, fossem
revogados.7 Se, para S&P, a estrutura de prestação de contas estava
montada e aprimorada, o que explica a mudança das regras do jogo
sem a participação do Congresso (CRUZ JR. & MATIAS-PEREIRA,
2007)? Se o inflation targeting elimina a âncora monetária, o que o
Congresso Nacional iria, então, supervisionar?
A análise ajuda a esclarecer relações entre Executivo e Con-
gresso em certos contextos, mas é limitada para explicar mudanças.
Embora o artigo de S&P seja de 2002, como eles explicariam o
consenso gerado, desde a eleição de Lula, que propiciou a aprova-
ção da Emenda Constitucional 40, em maio de 2003, sem recorrer
à pressão de atores que não são burocratas públicos, membros do
alto escalão do Executivo e parlamentares? A EC 40 suprimiu todos
os incisos e parágrafos e modificou o caput do Art. 192 e, assim,
reequacionou a tensão aludida pelos autores. Desde então, o con-
flito em torno do Art. 192 deixou de existir na intensidade em que
antes se apresentava.
Ao criticarem o formalismo legal, S&P adotam um formalismo
neoinstitucionalista. O padrão de controle do Congresso sobre a AM
é ex post, formal e passivo (CRUZ JR. & MATIAS-PEREIRA, op.cit., p.
70). A quem a AM efetivamente presta contas? Economistas avaliam
que é ao mercado financeiro que os bancos centrais se reportam
(MAXFIELD, 1994). Na atual fase do capitalismo, há um equilíbrio
de forças entre economia e política que pende mais para a accoun-
tability da AM submeter-se ao mercado, que requer credibilidade e
eficiência, do que o contrário.
Eis outro exemplo do formalismo dedutivista de S&P: “Talvez
seja interessante especular sobre configurações alternativas do sis-
tema político no que tange à distribuição de força parlamentar dos
7 Ver Decreto Presidencial n.º 3088, de 21/06/1999.
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partidos e à tendência ideológica do chefe do Executivo. Se, por
exemplo, um presidente eleito adota um perfil keynesiano de política
monetária e é apoiado por coalizão majoritária no congresso, é de se
supor que o conflito em torno da prestação de contas seja transferido
do âmbito da transparência e responsabilidade final para o âmbito
dos objetivos da política” (idem, p. 107). Aconteceu no Brasil recente
exatamente o oposto dessa especulação. Ao invés de um presidente
keynesiano executar, como preveria a lógica formal, uma política
monetária desenvolvimentista, com mais objetivos que o controle da
inflação, um governo de centro-esquerda aderiu, desde 2003, à políti-
ca macroeconômica liberal. Só a recorrência aos nexos entre sistema
representativo, forças sociais e mercados, não feita por S&P, poderia
enriquecer sua análise institucional e depurá-la do formalismo.
Por que o Legislativo era mais ativo nas matérias monetária,
financeira e cambial em 1945-1964 em relação ao que passa a aconte-
cer desde 1994? Por que, desde o Plano Real, a AM se centralizou no
BCB, se até 1993 o país estava imerso numa crise tal que fazia parte
expressiva dos cientistas políticos vinculados à abordagem neoinsti-
tucionalista acreditarem que, enquanto não houvesse mudança nas
instituições políticas, sobretudo a introdução do parlamentarismo,
a crise inflacionária não poderia ser superada? Por que o governo
presidido pela maior liderança do partido que mais se opôs às
políticas neoliberais, não alterou o tripé que suporta a política ma-
croeconômica e nem resgatou a política monetária para a alçada do
Congresso? As respostas demandam reconhecer que existem atores
com efetivos recursos de poder que não são burocratas públicos e
políticos eleitos, mas influenciam as decisões públicas.
1.4. Bresser-Pereira: hipótese da captura
Segundo Bresser-Pereira (B-P) (2007), o Estado brasileiro, em
especial o BCB, está capturado por uma coalizão política beneficiada
pelos mais altos juros reais do mundo e pelo câmbio sobrevalori-
zado. Compõem esta coalizão os rentistas, as IFs, o grande capital
investido nos serviços públicos e as empresas multinacionais.
A teoria da captura é uma contribuição teórica relevante so-
bre a influência dos grupos de interesse na regulação da atividade
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Volume 9 – Nº 17 – outubro de 2010
econômica implementada por agências governamentais. Stigler
(1971) fez formulação pioneira da teoria econômica da regulação,
conhecida como teoria da captura. Ele afirma:
“Regulation may be actively sought by an industry, or it may be
thrust upon it. […] as a rule, regulation is acquired by the industry and
is designed and operated primarily for its benefit”.
O Estado é uma potencial fonte de recursos, cujo uso pode
beneficiar ou prejudicar, seletivamente, indústrias e profissões.
Essa teoria visa explicar, sobre a regulação econômica (RE), quem
ganhará e perderá, que forma ela terá e quais seus efeitos sobre a
alocação de recursos.
A teoria da captura pressupõe que os homens perseguem
seus interesses e fazem-no de modo racional, o que permite prever
e analisar comportamentos dos agentes econômicos. Decorre do
pressuposto da racionalidade a busca da maximização dos lucros
pelos agentes no mercado. A mesma racionalidade se verifica no
sistema político, visto como instrumento para a realização de
interesses grupais. O comportamento político é analisado com
parâmetros da análise econômica. Dois tipos de atores insiders do
sistema político são relevantes: os políticos, tanto os representantes
eleitos como os nomeados por estes, e os reguladores (burocracia
pública de carreira e políticos nomeados ou eleitos).
É possível analisar a RE como envolta numa estrutura racional
de oferta e demanda. Na demanda, estão os grupos de interesse
das várias indústrias, outsiders que desejam RE para seu benefício,
conhecem os interesses dos políticos – dinheiro para financiar
campanhas eleitorais, votos e cargos para seu séquito (nos setores
privado e público) – e lhes oferecem vantagens em troca de políticas
regulatórias. Na oferta, estão os políticos. Cientes de que os gru-
pos de interesse querem RE a seu favor, dispõem-se a barganhá-la.
Estruturam-se as condições para a troca.
Stigler distingue quatro tipos de políticas regulatórias que
uma indústria pode obter do Estado: 1) subvenção direta em di-
nheiro; 2) controle da entrada de novos concorrentes; 3) políticas
que prejudicam produtos ou serviços substitutos ou que favorecem
produtos e serviços complementares aos da indústria interessada
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Marcus Ianoni
Ciência Política e sistema financeiro no Brasil:
o artigo 192 da Constituição Federal
Dossiê
na regulamentação; 4) fixação de preços (caso das taxas de juro,
câmbio, inflação, spreads e tarifas bancárias).8
Devido aos juros altos vigentes no país, B-P destaca a fixação
de preços como a principal política regulatória que indica a captura
da política econômica pelas IFs e rentistas. Mas a hipótese da captura
pode e deve, para se avançar na sua confirmação e dimensionamento
de sua amplitude, investigar outros tipos de decisões regulatórias,
assim como as não-decisões.
Não se considera que as políticas públicas sirvam apenas às
Finanças e não haja outros atores e coalizões. Apenas se atenta que,
na atual coalizão sociopolítica e político-institucional dominante
no Brasil, o setor financeiro ocupa uma posição hegemônica, haja
vista a estrutura da política macroeconômica. A pesquisa empírica
evidencia que a hipótese da captura é bem plausível. Mas há que se
levar em conta abordagens mais complexas que a teoria da captura.
Wooley (1984, p. 86), por exemplo, diz, em relação ao Federal Reserve,
que, se o banco central, não faz sempre e necessariamente tudo o
que os bancos querem, faz o que eles necessitam.
Em curto, mas denso artigo, publicado em 2004b, Loureiro
& Abrucio (L&A) tecem avaliações que corroboram a hipótese da
captura. Avaliam que a prestação de contas do Copom e do CMN
ao Congresso tem sido mera formalidade. “A composição desses
órgãos e a ausência de mecanismos efetivos de controle de suas
decisões exprimem padrão típico de gestão macroeconômica no
Brasil: arenas restritas e fechadas a demandas da sociedade, tidas
como causadoras de desequilíbrios monetários ou fiscais”. As in-
formações das atas do Copom, por exemplo, são insuficientes, não
identificam os votos nem revelam suas justificativas.
Ademais,
mesmo que o principal ator a quem respondem os que tomam
decisões sobre juros seja o mercado financeiro, é fundamental
enfatizar que as relações desse com as instituições monetárias no
Brasil comprometem, ainda mais, a ordem democrática e os valores
republicanos. São relações demasiadamente estreitas, e há muitos
8 Consultar Bresser-Pereira (2007, p.235).
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Volume 9 – Nº 17 – outubro de 2010
membros do Copom ligados, por origem e destino, a bancos ou
consultorias financeiras. Além disso, nosso mercado financeiro é
basicamente acionado por títulos públicos, tornando as decisões
sobre taxas de juros cruciais, pois podem gerar lucros enormes a
quem se tornou o grupo quase que exclusivo da prestação de contas
governamental. Eis aí nosso principal déficit de “accountability”
sobre as decisões monetárias: o Copom responde a uma parte
extremamente reduzida do “demos”, mesmo que suas decisões
atinjam milhões de cidadãos.
A solução não se encontra no insulamento, mas, ao contrário, no
maior controle das decisões pelo sistema político. Não apenas pelo
Poder Executivo, mediante ampliação do CMN, como começa a se
falar. É preciso principalmente preparar o Legislativo para exercer
de fato o controle e a fiscalização, incluindo o debate sobre as
metas de inflação, sobre as informações que norteiam as decisões
e os próprios votos. Sem mudanças em prol de maior responsabi-
lização do Copom, a própria discussão da autonomia do BC será
lida (erroneamente) como problema técnico, e não como questão
democrática. (LOUREIRO & ABRUCIO, 2004b)
Remetem o problema à reforma democrática do Estado.
2. Avaliação das hipóteses
Esta seção confronta as quatro hipóteses apresentadas aci-
ma com alguns resultados empíricos até então obtidos, oriundos
das seguintes fontes: 1) normas e ações do Legislativo; 2) normas
e ações do Executivo; 3) dinâmica da não-decisão e participação
dos atores 9.
Embora a responsabilidade pela aprovação da LC ou, desde
2003, das LCs de regulamentação do SFN seja do Congresso, in-
vestigar o Executivo se justifica por(a) 1) seu poder de agenda; 2)
profusão de normas editadas pelo CMN-BCB; 3) padrão insulado
de gestão macroeconômica no Brasil, que desafia a accountability
democrática e 4) hipótese da captura requerer a observação dos
9 Esse caminho empírico está presente nas pesquisas pluralistas e neoelitistas. O
exame das decisões do Judiciário sobre o SFN e das ações de lobby das Finanças
sobre esse poder não foi feito nesse trabalho.
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Ciência Política e sistema financeiro no Brasil:
o artigo 192 da Constituição Federal
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reguladores.10 Para explicar a não-regulamentação do Art. 192 deve-
se olhar para o sistema político como um todo e para suas relações
com os grupos de interesse.
2.1. Normas e ações do Legislativo
Promulgada a Constituição de 1988, o Congresso passou
a examinar a regulamentação do Art. 192. Em três legislaturas
consecutivas, de 1991 a 2003, a Câmara dos Deputados formou
a Comissão Especial do Sistema Financeiro. O grande tema dessa
comissão foi a regulamentação do Art. 192. Em seus doze anos de
atividades, assim como na CAE do Senado, produziram-se inúmeros
projetos de lei, promoveram-se seminários, audiências públicas,
trabalhou-se bastante. Com a aprovação da EC 40/2003, há uma
relativa desmobilização da discussão da regulamentação do SFN,
embora haja, ainda hoje, projetos sobre essa matéria em tramitação,
em especial o PLS-102/2007.
Na pesquisa empírica, destacamos, de início, a produção de
projetos de LC, pelo Senado e Câmara, que visaram regulamentar
o Art. 192, ou com uma abordagem geral, disciplinando “um con-
junto de normas de um mercado ou todo o sistema”, ou focando
“assuntos específicos [...] (como os que regulamentam as atividades
de seguro privado, de capitalização e de previdência privada aber-
ta; os requisitos para nomeação de dirigentes do Banco Central; a
instituição de crime de usura; e a aplicação de recursos públicos
federais através dos bancos oficiais regionais)”11.
Ao se fazer um primeiro levantamento amplo de projetos
de lei formulados no Congresso, entre 1989 e 2009, sobre o SFN,
chega-se à soma de 124 no Senado e 98 na Câmara, ou seja, 222.
Os projetos identificados na Câmara são todos projetos de lei
complementar (PLPs). Dos identificados no Senado, 54 são PLS-
10 A captura pode ser apreendida de modo sistêmico e, assim, investigada não
só pela via das instituições da AM.
11 O critério de classificação dos projetos baseia-se em Dias et alli (1992). No
Senado, nem todos os PLSs com conteúdos do Art. 192 são distinguidos como
complementares, mas foram aqui computados.
190 p. 173 – 204
Volume 9 – Nº 17 – outubro de 2010
complementar e os demais 70, de lei ordinária.12 Do total, a Tabela
I identifica 129 abrangentes e específicos. A classificação resulta da
exclusão, do levantamento inicial de 222 projetos, dos que não se
referiam aos conteúdos da primeira versão do Art. 192.
Tabela I – Congresso Nacional: Projetos de Lei Complementar sobre Art.
192 – 1989-2009
Casa Abrangentes Específicos Total
Senado Federal 15 32 47
Câmara dos Deputados 27 55 82
Total 42 87 129
Esses dados permitem destoar de S&P, que avaliam que os
parlamentares, pela indisponibilidade de tempo e complexidade
da política monetária, tendem a delegá-la ao Executivo. Entre os
projetos abrangentes e específicos, vários abordam mecanismos
alternativos de prestação de contas do BCB ao Legislativo, como
o PLP-63/2003, assim como outros propõem ampliar a composição
do CMN e a criação da Comissão Mista Permanente para Assuntos
Econômicos e Financeiros do Congresso Nacional. Se, efetivamen-
te, há omissão do Congresso na sua relação com a AM, deve-se
avaliar mais objetivamente o quanto as variáveis falta de tempo
e complexidade da política monetária são explicativas se compa-
radas a variáveis como falta de consenso, hegemonia financeira,
não-decisão, equilíbrio de forças. Também na sociedade civil há
forças, como CNI, CUT e CTB, que defendem a ampliação do CMN
e as que, ademais, propõem a ampliação dos objetivos da política
monetária, hoje apenas pautada nas metas de inflação. O Conselho
de Desenvolvimento Econômico e Social, que Lula criou em 2003,
aprovou a ampliação do CMN.
A pesquisa da autoria desses projetos mostra que nenhum dos
abrangentes provém do Executivo. Os de sua autoria têm conteúdo
12 Várias matérias de ordem financeira podem também tramitar por lei ordinária.
Ademais, há uma indeterminação jurídica sobre a exigibilidade de LC ou LO para
algumas matérias sobre o SFN. Ademais, os dados do site do Senado parecem
nem sempre explicitar como Complementar determinados PLSs.
191
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Ciência Política e sistema financeiro no Brasil:
o artigo 192 da Constituição Federal
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específico e, em regra, são aprovados. Um caminho fundamental para
avançar na pesquisa sobre a não-regulamentação do Art. 192, a ser
feito num próximo trabalho, será analisar as tentativas de regulamen-
tação do SFN, observando conteúdos dos projetos, contextos, atores,
dinâmica das tramitações e encaminhamentos adotados13.
Em segundo lugar, cabe observar o que de fato se produziu,
em normas aprovadas no Congresso, sobre conteúdos do Art. 192
original, a começar pelo inciso II. Pois bem! A EC 13/1996, de autoria
parlamentar, altera o inciso II, extinguindo a exclusividade do Insti-
tuto de Resseguros do Brasil como órgão oficial ressegurador. A L.
9.932/1999 transfere atribuição do IRB para a Superintendência de Se-
guros Privados (Susep). Em 2002, essa lei é suspensa pelo STF, mas, em
2005, a Fazenda envia ao Congresso o PLP-249/2005, que, em 2007,
é convertido na LC 126, que disciplina o mercado de resseguros. Tais
mudanças, inicialmente, quebraram o monopólio estatal do resseguro,
privatizaram-no, depois, abriram o mercado ao capital externo. Foram
elogiadas pelos grupos de interesse correspondentes 14.
Por iniciativa do Executivo, em 2001, é aprovada a LC 109, que
estabelece o Regime de Previdência Complementar, a previdência
privada, seja aberta ou fechada. Em 2009, também por iniciativa
do Executivo, é aprovada a L. 12154, que cria a Superintendência
Nacional de Previdência Complementar (Previc), novo órgão fisca-
lizador e supervisor dos fundos de pensão (previdência privada
fechada). A previdência aberta passou a ser fiscalizada pela Susep.
A liberalização da previdência complementar tem desenvolvido
os mercados financeiros, sobretudo por fortalecer os investidores
institucionais, cujos ativos têm alavancado vários segmentos eco-
nômicos. Uma grande rede de grupos de interesse vincula-se a tais
mercados, fomentados pelas leis de autoria do Executivo e normas
de agências como Susep, Previc e CVM15.
13 Devemos essa análise procedimental ao pesquisador Carlos Eduardo Carvalho
(PUC-SP), que, generosamente, concedeu-nos uma entrevista sobre o tema
dessa pesquisa.
14 Consultar o site da Federação Nacional de Seguros Gerais http://www.fenaseg.
org.br .
15 Consultar o site da Associação Brasileira das Entidades Fechadas de Previdência
(Abrapp) http://www.abrapp.org.br .
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Volume 9 – Nº 17 – outubro de 2010
Por iniciativa do Congresso, aprova-se, em 2009, a LC 130, que
normatiza o crédito cooperativo, conforme previsto no inciso VIII do
Art. 192. Esse mercado, embora não seja novo, tem se desenvolvido
com o novo marco legal e seus agentes pretendem ocupar um espaço
alternativo de oferta de produtos e serviços bancários em melhores con-
dições que os proporcionados pelo mercado financeiro tradicional.
Sobre as normas aprovadas no Congresso pertinentes ao
Art. 192, cabe, por fim, destacar a já referida EC 40/2003, conver-
são da PEC 53, de autoria parlamentar. Essa emenda, aprovada no
início do primeiro mandato do Presidente Lula, altera a história da
regulamentação do Art. 192. A Febraban considera a aprovação da
EC 40 um marco no avanço do ambiente regulatório, por permitir
a regulamentação separada dos diversos mercados do SFN e por
eliminar a regra de tabelamento dos juros reais em 12% ao ano
(ANGELO, 2007, p. 135-136). O governo Lula aprovou a EC 40 sob
pressão das Finanças, visando sinalizar aos mercados que variáveis
políticas não interfeririam na política monetária do BCB.
O Congresso produziu também, desde 1995, várias leis
pertinentes ao SFN que, embora não normatizem matérias do con-
teúdo original do Art.192, têm alterado profundamente a ordem
econômico-financeira. No processo do Plano Real, o Congresso
Revisor aprovou a EC de Revisão n.º 1, que instituiu o Fundo Social
de Emergência, até hoje em vigência sob o nome de Desvinculação
de Receitas da União. Esse fundo desvincula 20% da arrecadação da
União para destiná-lo ao pagamento das obrigações contratuais da
dívida pública, dívida essa cujos títulos os bancos são os grandes
operadores. Em 1995, a medida provisória da nova moeda, o real,
foi convertida na L. 9.060, que, entre outras mudanças, reduziu a
composição do CMN para três membros. Destacamos, também: L.
9447/1997 (Responsabilidade Solidária), L. 9613/1998 (“Lavagem”
de Dinheiro), L. 9710/1998 (Proer), L. 10214/2001 (SPB), LC 105/2001
(Sigilo Bancário) e L. 11101/2005 (Nova Lei de Falências). Todas es-
sas leis são consideradas pela Febraban como avanços no ambiente
regulatório e normativo (ANGELO, op. cit., pp. 121-137).
Na Era Lula, além da Nova Lei de Falências, pode-se men-
cionar as seguintes leis, todas de iniciativa do Executivo, também
legitimadas politicamente pelas IFs: L. 10820/2003 (Empréstimo
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Marcus Ianoni
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o artigo 192 da Constituição Federal
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Consignado), L. 10931/2004 (Cédula de Crédito Bancário) e a EC
56, que prorrogou a DRU até 2011. Cabe aqui destacar que, em
20/dez/2007, a mesma sessão de votação que aprovou a parte da
PEC 89, enviada pelo governo, que prorrogava a DRU, derrotou o
governo na parte da PEC que visava prorrogar a CPMF. Essa ocor-
rência é muito elucidativa em relação à hegemonia do “capitalismo
dirigido pelas finanças” (GUTTMANN, 2008). Na votação de uma
PEC de autoria do governo, este sofre derrota em sua tentativa
de manter um fundo para financiar o sistema público de saúde e
conquista vitória na prorrogação de uma emenda constitucional
que lhe permite direcionar recursos para o pagamento da dívida
pública, cujos principais credores são os grandes rentistas e IFs.
Os banqueiros apoiaram ativamente o fim da CPMF e consideram a
eliminação desse tributo uma vitória regulatória.16
Tais dados destoam da análise de Kasahara (op. cit., p. 106).
Para ele, o Congresso tem legislado pouco sobre o SFN e o lobby das
IFs sobre esse Poder é baixo, sendo mais forte sobre o STF. Dados
aqui obtidos revelam que, desde 1994, o Congresso aprovou deze-
nas de leis sobre a ordem financeira, 40 delas da maior importância
para o SFN. Das mais importantes, o Executivo foi autor de cerca
de 75% e o Legislativo, de 25%. O Congresso tem sido co-autor das
mudanças institucionais no SFN.
2.2. Normas e ações do Executivo
Várias normas têm sido editadas pela AM insulada (BCB e
CMN), outras partiram diretamente da Presidência da República
ou de normativos da Receita Federal. Enfim, no Brasil – e alhures
também -, o “capitalismo dirigido pelas finanças” tem colocado o
Executivo à frente de decisões que suscitam discussões, inclusive no
meio jurídico, sobre o tênue equilíbrio entre credibilidade, eficiência
e accountability democrática (e.g. VEIGA DA ROCHA, 2002; SOLA et
alli, 2002; L&A, 2004a e 2004b).
Selecionamos aqui algumas normas importantes do Executivo.
Primeiramente, vejamos as normas pertinentes ao Art. 192 original.
16 Ver o sítio do Best http://www.bestbrazil.org.br/ .
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O inciso II abordava seguro, resseguro, previdência e capitalização.
A Susep, órgão de fiscalização e controle do mercado de seguro,
previdência privada aberta e capitalização, tem normatizado sobre
os mercados de danos em geral, automóveis e capitalização. O inciso
III abordava “as condições para a participação do capital estrangeiro”
nas IFs. Em agosto de 1995, a Fazenda encaminhou à Presidência
da República a Exposição de Motivos n.º 311, que se tornou o do-
cumento formal de justificação da abertura do setor bancário ao
capital estrangeiro (CARVALHO & VIDOTTO, 2007).
O inciso IV da versão original do Art. 192 tratava da “organi-
zação, o funcionamento e as atribuições do banco central e demais
IFs públicas e privadas”. Em 1996, a Circular 2698 do BCB originou
o Copom (Comitê de Política Monetária) e o Decreto 3088, de
21/06/1999, da Presidência da República instituiu o regime de metas
de inflação. Esse decreto é um dado empírico relevante que fragiliza
a ideia de S&P de que a estrutura de prestação de contas entre BCB
e Legislativo estava bem definida. Por fim, o inciso VI previa que a LC
do SFN disporia sobre “a criação de fundo ou seguro, com o objetivo
de proteger a economia popular”. Em agosto de 1995, no contexto
das crises dos bancos Econômico e Nacional, a Resolução 2127 do
CMN autorizou os banqueiros a criarem o FGC e a Resolução 2211, de
novembro daquele ano, aprovou o estatuto e o regulamento desse
fundo. A Febraban pleiteou ao BCB a normatização que viabilizou
o FGC (ANGELO, op. cit. p. 121-123). O Congresso não participou
dessas mudanças institucionais.
Além das normas pertinentes ao conteúdo original do Art.
192, o CMN normatizou outras matérias relevantes vinculadas à
nova ordem financeira. Obviamente que, sendo o CMN um órgão
regulador do SFN, é de sua natureza normatizar sobre os mercados
e instituições financeiras. O que se quer destacar aqui são quatro
características gerais dessa centralização política da regulação e
normatização do SFN na Autoridade Monetária: a) o caráter financial
market-oriented da política monetária e das normatizações imple-
mentadas; b) a não formalização da autonomia operacional retida
pelo BCB; c) a presença das IFs no processo de política monetária;
d) o déficit de accountability democrática do atual padrão de relação
entre o Congresso e a AM insulada.
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Pode-se destacar as seguintes resoluções do CMN que, se-
gundo a Febraban e outros grupos de interesse financeiro, como a
Comissão Nacional de Bolsas, propiciaram um ambiente de negócios
mais seguro: a 2390, de maio/1997, que criou a Central de Risco
de Crédito (embrião do atual Sistema de informações de Crédito
do BCB); as resoluções 2689 e 2770, respectivamente de janeiro
e agosto de 2000, que consolidam a abertura financeira (Penido
de Freitas & Prates, 2001); e a resolução 3110, que autoriza os
correspondentes não-bancários. A Instrução Normativa n.º 568, de
setembro de 2005, da RFB, que reduz o prazo de emissão de CNPJ
para investidores estrangeiros, é outra conquista regulatória na qual
as IFs consideram ter participado.
Em trabalho anterior (IANONI, 2008), visando evidenciar em-
piricamente a já referida hipótese da captura do BCB, formulada por
B-P, foram investigadas três agências de relações com investidores (RI),
sendo uma delas também de marketing financeiro. As duas primeiras
são estatais e a terceira é conduzida conjuntamente por IFs privadas
e agências do Estado. São elas:
1- Gerência-Executiva de Relacionamento com Investidores do
Banco Central do Brasil - Gerin (BCB)
2- Gerência de Relacionamento Institucional da Secretaria do
Tesouro Nacional - Gerin (TN)
3- Brazil Excellence in Securities Transactions (Best), composto, na
sua face empresarial, por ANBID (Associação Nacional dos
Bancos de Investimento), BM&F (Bolsa de Mercadorias e
Futuros), BOVESPA (Bolsa de Valores de São Paulo) e CBLC
(Companhia Brasileira de Liquidação e Custódia); pelo setor
público, nele participam o BCB, o TN e a Comissão de Valores
Mobiliários (CVM)17.
Agências de RI passaram a ser criadas nos países emergentes
desde as crises financeiras e cambiais de meados dos anos 90, par-
17 Em março de 2008, fechou-se acordo de fusão entre BOVESPA e BM&F, resul-
tando na criação da “Nova Bolsa”, ou BM&FBOVESPA.
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ticularmente desde a crise do México, no final de 1994. Uma das
lições que a comunidade financeira internacional extraiu da crise
foi que sua extensão agravou-se pela má qualidade das informações
disponibilizadas para os investidores, tanto por fontes públicas e
oficiais (como o governo mexicano e o FMI), quanto pelo mercado.
Entre tais informações deficitárias, estariam as referentes às reservas
internacionais (FISCHER, 2004, p. 127 e 145)18. Então, em 1995,
o governo mexicano criou, na Secretaría de Hacienda y Crédito
Público, a Oficina de Relación com Inversionistas.
Essas agências vinculam instituições e organizações inter-
nacionais da comunidade financeira a instituições e organizações
domésticas, públicas e privadas, das áreas monetária e financeira.
No Brasil, criaram-se agências e staff burocrático específicos para
RI, que estruturam uma comunicação de mão dupla entre BCB e in-
vestidores em portfólio e entre emissores (TN) e credores de ativos
financeiros da dívida pública.
As agências de RI no BCB e no TN têm sido avaliadas como
as mais eficientes do mundo pelo Institute of International Finance,
maior organização global do capital financeiro. Elas têm contribuído
efetivamente para o confidence building e a credibilidade externa do
Brasil. Suas atividades abrangem o processo de implementação e
monitoramento do inflation targeting, mas vão além. São uma via de
comunicação de mão dupla. Embora as políticas monetária e cambial
interessem a todos os agentes econômicos, o BCB tem como prin-
cipal referência para suas ações o mercado financeiro. Além das RI
servirem tecnicamente ao sistema de metas para a inflação, que tem
nas taxas de juros o principal instrumento de política, elas servem
para outros fins, como disponibilização de dados tempestivos e
de qualidade padronizados internacionalmente, diversos tipos de
contatos com investidores – desde apresentações sobre conjuntura
e regulação econômica até esclarecimento de dúvidas por e-mail,
teleconferências, relações públicas do TN nos mercados externos,
disseminação de informações importantes para as decisões de ne-
gócios e de políticas públicas.
18 Ver também Businesseek, September, 2003, disponível em http://www.busines-
sweek.com/magazine/content/03_39/b3851710.htm .
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As agências governamentais de RI no Brasil são um recurso
de poder habilmente conquistado e utilizado pelos grupos de inte-
resse financeiro para interferir nas políticas públicas e na regulação
econômica. Elas desenvolvem importante parte de suas atividades
com o Best Brazil, iniciativa de RI e de marketing financeiro enca-
minhada em parceria entre reguladores estatais (BCB, TN, CVM) e
instituições privadas. Tal empreendimento tem tido sucesso em
suas iniciativas de negócios, conforme as próprias partes envolvidas
reconhecem, por conquistar mudanças regulatórias pró-Finanças,
agregar credibilidade aos fundamentos da política econômica bra-
sileira e atrair novos investidores financeiros, conforme revelam
vários de seus indicadores.
A análise das agências de relações com investidores do BCB e do
TN e também de marketing financeiro, como é o caso do Best, é um
campo fértil a ser explorado, junto com outros caminhos de pesquisa,
para que os cientistas políticos possam dar sua contribuição empírica
à sustentação da hipótese da captura da política macroeconômica
brasileira pelas Finanças. Assim, se em alguma medida é possível
aceitar a hipótese da condução centrada no Executivo, deve-se contra-
balançá-la, para evitar o exagero estadocêntrico, com abordagens
teóricas que explicitam o poder público dos capitalistas (PRZEWORSKY,
1995, p. 87-129), sobretudo, na atual fase do capitalismo, o poder
do capital financeiro sobre as políticas do Estado.
2.3. Dinâmica da não-decisão e participação dos
atores
Os dados empíricos mostram duas coisas em relação às deci-
sões sobre o Art. 192 e o SFN: 1) não houve decisão, até hoje, sobre
a normatização do caput do artigo, que estabelece que o SFN deve
ter dois objetivos: promover o desenvolvimento equilibrado do País
e servir aos interesses da coletividade; PLCs que partem desses
dois objetivos ainda não foram aprovados; ademais, a autonomia
operacional do BCB continua informal; 2) houve decisão, como visto,
em vários conteúdos específicos do Art. 192 original e em outros
conteúdos importantes sobre o SFN não especificados no artigo de
1988; no que se decidiu, destaca-se a EC 40/2003.
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Assim, é possível confirmar a hipótese da não-decisão se se
distinguir o que foi do que não foi decidido. Embora reste apro-
fundar essa pesquisa, examinando com mais rigor as tentativas de
regulamentação do Art. 192, os dados até aqui alcançados embasam
as seguintes explicações para a não-decisão:
1- Há assimetria de poder. Executivo e IFs são os atores mais po-
derosos e os últimos, desde 1988, têm se oposto à regulamentação
do Art. 192. Os bancos usam a não-regulamentação como escudo
jurídico contra leis nacionais (Código de Defesa do Consumidor) e
também leis estaduais ou municipais que normatizam tempo de
permanência em fila bancária ou atendimento específico para defi-
cientes físicos, mas não tomam a iniciativa de regulamentar o SFN,
pelo contrário, criticam os projetos formulados. O Executivo, por sua
vez, não enviou ao Congresso nenhum projeto para regulamentar
o Art. 192, mas tem sido profundamente ativo na normatização do
SFN, seja via AM ou por MPs e outras iniciativas legislativas. A inação
do Executivo em regular o Art. 192 revela sua postura pragmática
nessa área de políticas, seja por desinteresse em perder prerro-
gativas normativas ou por antecipar que o tema é politicamente
difícil, pois os bancos são grandes operadores da dívida pública,
exercem forte lobby no sistema político, são grandes financiadores
de campanhas eleitorais. A produção de consenso nessa matéria
é rara. Embora o governo Lula tenha mantido o tripé da política
macroeconômica, seria interessante investigar comparativamente
as características das relações dos governos de FHC e Lula com os
interesses financeiros, pois vários dados indicam que são diferentes
e que tem havido mudanças incrementais.19
2- A correlação de forças políticas entre hegemonia pró-finan-
ceirização versus contra-hegemonia por um SF voltado ao interesse
público e ao consumidor é favorável às Finanças. O nível de delegação
do Congresso à AM é muito alto e a principal explicação disso é a
hegemonia pró-financeirização. A aprovação da renovação da DRU,
19 Essas avaliações resultam também de entrevistas que fiz com intelectuais es-
pecialistas no tema e com parlamentares da Câmara dos Deputados, além de
sindicalistas do SINAL. Agradeço aos pesquisadores Carlos Eduardo Carvalho
e Joe Yoshino e aos deputados Pepe Vargas e Ricardo Berzoíne.
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Marcus Ianoni
Ciência Política e sistema financeiro no Brasil:
o artigo 192 da Constituição Federal
Dossiê
em dezembro de 2007, no Senado, na votação da PEC 89, cuja
parte que se referia à renovação da CPMF foi derrotada, deixando
o governo, numa só proposta legislativa, derrotado e vitorioso, é
exemplar quanto à hegemonia das Finanças no sistema político.
Parte da explicação da omissão do Executivo em relação à regulação
do Art. 192 se deve a essa hegemonia.
As IFs são atores ativos nas decisões e não-decisões. Exer-
cem lobby sobre os Três Poderes. Kasahara destacou o lobby delas
sobre o Judiciário. O estudo das agências de RI revela a presença
de seus interesses no BCB e no TN. Inúmeras outras regulações,
passando da resolução do CMN que aprovou a criação dos bancos
múltiplos, em 1988, à que aprovou o FGC, em 1995, do decreto da
Presidência que instituiu o inflation targeting, em 1999, à Instrução
da RFB que desburocratizou a emissão de CNPJ para investidores
estrangeiros, em 2005, mostram seu lobby sobre órgãos do Execu-
tivo (ANGELO, 2007; IANONI, 2008). Mas esses são apenas alguns
exemplos. O lobby das IFs sobre o Congresso também é consis-
tente e pode ser evidenciado em sua participação na aprovação
da EC 40, na rejeição da prorrogação da CPMF, no financiamento
de campanhas eleitorais etc (KASAHARA, 2009). A razão de ser de
suas associações representativas é exatamente defender interesses
das IFs (ANGELO, op. cit, p. 210).
Conclusão
A pesquisa aqui apresentada prosseguirá, mas os resultados
permitiram avaliar virtudes e limites das hipóteses presentes na
literatura da ciência política brasileira sobre a não-regulamentação
do Art. 192. A hipótese da não-decisão é forte para explicar a ine-
xistência de aprovação, pelo Congresso, de projetos abrangentes
para regulamentar o SFN, desde que não se entenda por isso que
a intermediação financeira não tem seus interesses atendidos no
Legislativo. A hipótese da condução centrada no Executivo exagera na
dose da autonomia atribuída ao Estado no processo de construção
da nova ordem institucional financeira. Ao criticar o estruturalis-
mo economicista, acaba considerando a esfera político-estatal por
demais capaz de disciplinar os mercados. A hipótese da captura é
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Volume 9 – Nº 17 – outubro de 2010
forte, embora possa e deva ser enriquecida com uma discussão
mais ampla sobre as relações entre Estado e economia no atual
capitalismo dirigido pelas finanças. Ademais, as abordagens que
ressaltam o vínculo entre reguladores e regulados questionam as
que avaliam que as mudanças têm se processado no sentido de
maior accountability democrática, pelo contrário, destacam o caráter
formal da prestação de contas da AM para o Congresso. Por fim, a
hipótese do presidencialismo de coalizão, ao menos tal como exposta
em S&P, ajuda a entender as relações de delegação do Legislativo
para o Executivo em matéria de política monetária, mas exagera
no formalismo analítico e é insuficiente na capacidade de explicar
a mudança institucional por isolar o sistema político do mercado e
da sociedade. Em contraposição a essa visão insulada de reforma,
que está por trás desse modelo de escolha racional, L&A (2004a)
propõem uma concepção explicativa e normativa incrementalista.
Recebido em: 30.7.2010
Aprovado em: 8.9.2010
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o artigo 192 da Constituição Federal
Dossiê
ANEXO – Artigo 192 da Constituição Federal
ORIGINAL DE 1988 SITUAÇÃO ATUAL FORMAL
CAPUT Art. 192. O sistema financeiro nacional,
estruturado de forma a promover o desenvolvi-
mento equilibrado do País e a servir aos interesses
da coletividade, será regulado em lei complementar,
que disporá, inclusive, sobre:
O sistema financeiro nacional, es-
truturado de forma a promover o
desenvolvimento equilibrado do
País e a servir aos interesses da
coletividade, em todas as partes
que o compõem, abrangendo as
cooperativas de crédito, será regu-
lado por leis complementares que
disporão, inclusive, sobre a par-
ticipação do capital estrangeiro
nas instituições que o integram.
(Redação dada pela Emenda Con-
stitucional nº 40, de 2003)
I - a autorização para o funcionamento das insti-
tuições financeiras, assegurado às instituições
bancárias oficiais e privadas acesso a todos os
instrumentos do mercado financeiro bancário,
sendo vedada a essas instituições a participação em
atividades não previstas na autorização de que trata
este inciso;
Revogado
II - autorização e funcionamento dos estabeleci-
mentos de seguro, previdência e capitalização, bem
como do órgão oficial fiscalizador e do órgão oficial
ressegurador;
Revogado
II - autorização e funcionamento dos estabelecimen-
tos de seguro, resseguro, previdência e capital-
ização, bem como do órgão oficial fiscalizador.
(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 13,
de 1996)
Revogado
III - as condições para a participação do capital
estrangeiro nas instituições a que se referem os
incisos anteriores, tendo em vista, especialmente:
a) os interesses nacionais;
b) os acordos internacionais
Revogado
IV - a organização, o funcionamento e as atribuições
do banco central e demais instituições financeiras
públicas e privadas;
Revogado
V - os requisitos para a designação de membros
da diretoria do banco central e demais instituições
financeiras, bem como seus impedimentos após o
exercício do cargo;
Revogado
VI - a criação de fundo ou seguro, com o objetivo de
proteger a economia popular, garantindo créditos,
aplicações e depósitos até determinado valor, ve-
dada a participação de recursos da União;
Revogado
VII – os critérios restritivos da transferência de
poupança de regiões com renda inferior à média
nacional para outras de maior desenvolvimento;
Revogado
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VIII – o funcionamento das cooperativas de crédito
e os requisitos para que possam ter condições de
operacionalidade e estruturação próprias das insti-
tuições financeiras.
Revogado
§ 1º - A autorização a que se referem os incisos I
e II será inegociável e intransferível, permitida a
transmissão do controle da pessoa jurídica titular,
e concedida sem ônus, na forma da lei do sistema
financeiro nacional, a pessoa jurídica cujos diretores
tenham capacidade técnica e reputação ilibada, e
que comprove capacidade econômica compatível
com o empreendimento.
Revogado
§ 2º - Os recursos financeiros relativos a programas
e projetos de caráter regional, de responsabilidade
da União, serão depositados em suas instituições
regionais de crédito e por elas aplicados.
Revogado
§ 3º - As taxas de juros reais, nelas incluídas comis-
sões e quaisquer outras remunerações direta ou in-
diretamente referidas à concessão de crédito, não
poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a
cobrança acima deste limite será conceituada como
crime de usura, punido, em todas as suas modali-
dades, nos termos que a lei determinar.
Revogado
Abstract
Political Science and the financial system in Brazil: Article 192 of
the Federal Constitution
The article reviews Brazilian Political Science literature on the non-regulation
of the Federal Constitution (Article 192) and related themes, such as the
relationship between monetary authority and Legislative Power and the
political system and financial interest groups. After mapping four explana-
tory hypotheses, we go on to present preliminary empirical research on the
actions, decisions and non-decisions of Congress and of Executive Power
related to normalization and regulation of the SFN (national financial system),
as a means for evaluating the aforementioned hypotheses. We conclude
that the hypotheses of non-decision and of “capture” have strong explana-
tory power; the hypothesis of state-centralized conduction exaggerates the
degree of state autonomy and the hypothesis of Coalitional Presidentialism
is overly formalist and is not able to explain institutional change.
Keywords: national financial system, Article 192, non-decision, capture,
state autonomy, coalitional presidentialism.