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Que saberes, em que diálogo(s), nas trajectórias de representação regulatória das associações de doentes?

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Abstract

A atencao das ciencias sociais ao dialogo institucional entre actores periciais e leigos vem destacando esse momento potencial da sua interseccao como acarretando uma politizacao da regulacao do campo da saude, descurando outros planos de articulacao dos saberes que tais actores comportam e os efeitos que o seu trânsito social para a esfera institucional implica na morfologia dos proprios saberes diferenciados que visaria relevar. Este artigo pretende reconstituir analiticamente as modulacoes dos saberes leigos implicadas nas suas trajectorias de representacao regulatoria pelas associacoes de doentes, providenciando uma instância de reflexao sobre as opacidades analiticas que alguns investimentos propositivos neste dominio podem gerar, no reverso das suas proprias intencoes.
e-cadernos ces
11 (2011)
Saberes em diálogo
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Telmo Costa Clamote
Que saberes, em que diálogo(s),
nas trajectórias de representação
regulatória das associações de
doentes?
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Referência eletrônica
Telmo Costa Clamote, «Que saberes, em que diálogo(s), nas trajectórias de representação regulatória das
associações de doentes? », e-cadernos ces [Online], 11|2011, posto online no dia 01 Março 2011, consultado o 28
Fevereiro 2014. URL: http://eces.revues.org/657; DOI: 10.4000/eces.657
Editor: Centro de Estudos Sociais
http://eces.revues.org
http://www.revues.org
Documento acessível online em: http://eces.revues.org/657
Este documento é o fac-símile da edição em papel.
© CES
e-cadernos CES
, 11, 2011: 79-103
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QUE SABERES, EM QUE DIÁLOGO(S), NAS TRAJECTÓRIAS DE REPRESENTAÇÃO
REGULATÓRIA DAS ASSOCIAÇÕES DE DOENTES?
TELMO COSTA CLAMOTE
ESCOLA SUPERIOR DE TECNOLOGIA DA SAÚDE DE LISBOA (ESTESL), IPL
CENTRO DE INVESTIGAÇÃO E ESTUDOS EM SOCIOLOGIA (CIES), ISCTE-IUL
Resumo: A atenção das ciências sociais ao diálogo institucional entre actores periciais e
leigos vem destacando esse momento potencial da sua intersecção como acarretando uma
politização da regulação do campo da saúde, descurando outros planos de articulação dos
saberes que tais actores comportam e os efeitos que o seu trânsito social para a esfera
institucional implica na morfologia dos próprios saberes diferenciados que visaria relevar.
Este artigo pretende reconstituir analiticamente as modulações dos saberes leigos
implicadas nas suas trajectórias de representação regulatória pelas associações de
doentes, providenciando uma instância de reflexão sobre as opacidades analíticas que
alguns investimentos propositivos neste domínio podem gerar, no reverso das suas próprias
intenções.
Palavras-chave: saberes leigos, associações de doentes, trajectórias de representação,
saberes periciais, regulação social da saúde.
INTRODUÇÃO
O campo da saúde tem-se constituído como um terreno empírico de excelência para a
apreensão pelas ciências sociais da forma como à sombra da dominância dos saberes
periciais produzidos pela(s) ciência(s) moderna(s) que se tornaram o pilar epistémico de
regulação social das sociedades modernas (Santos, 2000) os actores sociais ditos
leigos persistem estruturalmente na elaboração de saberes próprios, referentes às suas
experiências incorporadas de saúde e de doença.
O crescente reconhecimento desse facto tem suscitado dinâmicas de propositividade
social aplicada à crescente politização da tutela pericial dos processos de regulação
social, para o caso, do campo da saúde. Essa propositividade tem seguido no sentido da
promoção de formas de participação e discussão dos processos de regulação informadas
Telmo Costa Clamote
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por uma pluralidade de sujeitos sociais, suas mundividências e lógicas de racionalidade,
para a conformação de formas de democracia técnica (Callon et al., 2001) em sociedades
crescentemente marcadas por dinâmicas de incerteza nas consequências da produção e
aplicação de conhecimento técnico-científico na vida quotidiana.
Contudo, o enfoque analítico nessas dinâmicas emergentes de politização, quando
não a propositividade de as promover, ao inscrevê-las num processo social com alguns
contornos teleológicos, pode perder de vista as processualidades implicadas no trânsito
dos saberes leigos, por actores sociais com alguma atribuição de representação (como
as associações de doentes), para esferas regulatórias institucionais. Estas esferas
constituem-se não como arenas de participação pluralista indiferenciada, mas como
quadros social e culturalmente marcados de participação, onde diferentes actores
encontram possibilidades desiguais de projectar as suas perspectivas e interesses
estratégicos, em função de potenciais diversos de poder social. Particularmente
relevantes na distinção dessas possibilidades de participação consequente (que não
apenas simbólica) nas esferas regulatórias são precisamente as distinções normativas
que essas esferas operam entre os diversos saberes e perspectivas que podem
convocar, como seja entre a pericialidade e vozes diversas da dita sociedade civil (desde
logo ocultas na equívoca homogeneização da designação). Ora, encontrando-se os
saberes leigos, daí emanados, numa posição de secundarização na estrutura normativa
dos processos de regulação social, tal implica que a sua capitalização em esferas de
deliberação regulatória se encontra estruturalmente tolhida pelos constrangimentos dos
dispositivos de participação, implicando também, consequentemente, que os
representantes desses saberes desenvolvam formas de modulação dos mesmos para os
acomodarem a essa participação.
Daqui resulta que, por um lado, socialmente, o trânsito dos saberes leigos dos seus
contextos informais de produção para esferas deliberatórias de regulação implica algo de
uma metamorfose na morfologia e impactos sociais desses saberes nas suas esferas
originais de produção, particularmente ao medirem-se estruturalmente com a primazia
dos saberes periciais. Resulta também, sociologicamente, que remeter privilegiadamente
o relevar analítico (quando não propositivo) desses saberes para essa instância potencial
da sua articulação institucional com outros saberes pode implicar perder o rasto analítico
da sua significância social em outras dinâmicas mais informais de intersecção com a
produção e difusão de conhecimento pericial e os dispositivos regulatórios que
sustentam.
Torna-se, portanto, imperativo não circunscrever analiticamente a operação social
dos saberes leigos a formas institucionais de protagonismo e, como correlato, não perder
o controlo analítico dos efeitos que essas dinâmicas de institucionalização produzem
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sobre os saberes de base que visam veicular. Tal vai no sentido de nos prevenir da ilusão
analítica de pressupor que as perspectivas sociais e construtos cognitivos podem circular
imutáveis e imunes aos constrangimentos inerentes a processos de difusão e discussão
social e culturalmente organizados onde, a despeito de retóricas de pluralização, se
projectam distinções epistémicas do valor de saberes desiguais, diferenças de recursos e
poder entre os seus actores e interesses sociais mutáveis e multifacetados na sua
projecção sobre tais foros afinados pelo bem público.
Este artigo toma como caso de análise as trajectórias de representação pelas quais
as associações de doentes vêm crescentemente engendrando pontes entre os universos
de saberes leigos, que albergam e potenciam, e os mundos institucionais de produção de
conhecimento e regulação periciais sobre a saúde. Aquilo que essas trajectórias nos
permitirão captar será, precisamente, os constrangimentos institucionais que a veiculação
de saberes leigos encontra nas esferas regulatórias, e os efeitos correlatos de modulação
desses saberes que esse trânsito implica, com vista a potenciar a sua influência
institucional.
Para se poder perceber analiticamente as margens e os limites de projecção dos
saberes leigos nas dinâmicas regulatórias formais do campo da saúde, torna-se pois
necessário dar conta de diferentes níveis de análise implicados nas trajectórias que
operam o trânsito desses saberes dos seus contextos de produção para esferas de
deliberação regulatória: dar conta da especificidade desses saberes, em particular na
relação com a dominância dos saberes periciais; perceber em que medida as
associações de doentes, como albergues e veículos privilegiados desses saberes, os
enformam na organização da vida associativa e nas suas trajectórias de representação
nas esferas regulatórias; como é que essas trajectórias se diversificam e adaptam, dada
a estrutura tendencialmente corporativa da regulação no campo da saúde (Abraham,
1997), para potenciarem a capitalização dos saberes que veiculam e dos interesses
estratégicos que representam em diversas arenas de articulação com diferentes actores
regulatórios (não estatais, como periciais ou mercantis); e que efeitos, em última
análise, essas diversas formas de articulação sistémica entre saberes podem suscitar na
transformação (ou não) da regulação social da saúde e da produção de conhecimento.
Para tal efeito, este texto toma como base empírica uma pesquisa exploratória sobre
as dinâmicas correntes de prefiguração social e reorganização institucional, por vários
actores nelas envolvidos, do papel das associações de doentes nas dinâmicas de
regulação social da saúde.
Tendo tido a oportunidade de acompanhar algumas das processualidades de
planeamento e inquirição de um estudo recente, de largo escopo, que procurou
recensear e caracterizar o universo de associações de doentes em Portugal (Nunes et
Telmo Costa Clamote
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al., 2007), foi possível organizar com algum controlo teórico e metodológico uma pequena
pesquisa comparativa aplicada a associações de doentes, cujo conhecimento prévio por
aqueles procedimentos permitiu identificar como corporizando modelos, tendencialmente,
diferentes, do ponto de vista das suas inscrições nosológicas (para o caso, grosso modo,
entre doenças infecciosas, doenças contestadas e doenças crónicas sedimentadas) e,
particularmente, dos seus modelos de implantação social e projecção nas dinâmicas
regulatórias do campo (nomeadamente entre um modelo principalmente ancorado numa
dinâmica de envolvimento comunitário e tutelar, outro mais assente na atracção e
captação de actores e recursos na amplitude pericial e mercantil do campo da saúde, e
outro ainda distinguido pela proximidade umbilical ao universo pericial e estatal, pela via
da contratualização pública de serviços periciais da própria associação). Foram assim
entrevistados três informantes privilegiados com responsabilidades dirigentes (presentes
ou recentes) em três associações de doentes (respectivamente, em alinhamento com os
critérios de selecção atrás indicados: a SOS Hepatites; a Myos Associação Nacional
Contra a Fibromialgia e Síndrome de Fadiga Crónica; e a Associação Protectora dos
Diabéticos de Portugal APDP
1
). A essas entrevistas se somaram outras duas com
responsáveis de duas instâncias institucionais igualmente concorrentes para a
construção do papel das associações de doentes em dinâmicas de regulação social do
campo da saúde: as federações de associações de doentes, neste caso pela voz da
Federação das Doenças Raras de Portugal (Fedra); e a tutela pública do campo, aqui
através da Divisão de Participação da Sociedade Civil da Direcção Geral de Saúde.
Através desta estratégia metodológica de triangulação analítica de actores sociais
envolvidos na construção de uma mesma dinâmica social, pretende-se efectuar uma
sobreposição analítica das projecções sociais de cada um desses actores sobre aquela
dinâmica, com vista a dar conta das convergências e descontinuidades que revelam entre
elas, usando-as como instrumentos heurísticos para perceber os investimentos
estratégicos pelos quais esses actores procuram reafirmar os seus interesses sociais
numa esfera regulatória em transformação. Tal visa perfazer assim um quadro bem mais
complexo de análise da possível emergência de processualidades de articulação
institucionalizada de saberes em saúde na esfera da regulação, e seus presumíveis
efeitos, ao arrepio das suas intenções propositivas.
1
Apesar de este entrevistado ter sido abordado, entre outros motivos, por assumir a valência analítica de
uma dupla filiação institucional - o só com a APDP mas igualmente com a Associação de Defesa dos
Diabéticos (ADD) -, na circunscrição do propósito analítico deste artigo, em torno da modulação associativa
dos saberes leigos, apenas a primeira filiação foi relevada, em função do contraste estabelecido com os
outros modelos de organização associativa referidos, e dada a particularidade da breve história social da
ADD. Para a exploração do seu contraponto ao modelo institucional da APDP em outras dimensões de
análise, cf. Clamote (2010a).
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1. PRODUÇÃO E CIRCULAÇÃO DE SABERES SOBRE SAÚDE: CONVERGÊNCIAS E
DESCONTINUIDADES SOCIAIS ENTRE PERICIALIDADE E UNIVERSOS LEIGOS
Enquanto campo social (Bourdieu, 1989) modernamente constituído, o campo da saúde,
no âmbito das dinâmicas de racionalização (Weber, 1978) constitutivas normativamente
do espaço social da modernidade, foi sendo organizado em função da dominância
epistémica, política e social dos modos de conhecimento e prática terapêutica da
medicina moderna. E enquanto disciplina moderna - e face à desregulação do campo
representada por fenómenos como formas de autonomia leiga no desenvolvimento de
práticas de saúde a diversas escalas de distanciamento da primazia normativa de
directrizes médica na gestão da saúde dos corpos e populações (Foucault, 1994) - não
será de espantar que as abordagens sociológicas das práticas de saúde dos indivíduos
tenham começado por conceptualizar as suas razões sociais largamente sob o estatuto
conceptual de crenças. Esse conceito de crenças sobre saúde permitia, num passo,
encontrar uma explicação para a especificidade das práticas leigas de saúde e preservar
a racionalidade médica como norma social para a definição dos fenómenos de saúde e
doença e das formas válidas de acção face aos mesmos.
Contudo, não a irracionalidade do pensamento leigo sobre saúde e doença (para
o caso), como a inexpugnabilidade cognitiva da medicina moderna, se foram tornando
pressupostos epistémicos cada vez mais incongruentes. Tal torna-se particularmente
evidente - e paradoxalmente - com o próprio processo de racionalização social do campo
da saúde, contemplando a crescente exposição dos sujeitos à intervenção disciplinar da
medicina no discurso e prática pública sobre saúde. Ao contrário dos pressupostos dessa
racionalização, os seus efeitos sobre aquela dicotomia epistémica não se produziram
pela diluição dos saberes leigos na aquiescência à primazia da pericialidade, mas antes
pelo incremento da porosidade das suas fronteiras através da apropriação (que não
internalização automática) leiga de saberes periciais para a reorganização reflexiva das
suas próprias práticas e lógicas de saúde, assim mantendo estruturalmente a sua
distintividade.
Se a efectividade da difusão racionalizante de saberes periciais sobre saúde acaba
por se conformar, empiricamente, em dinâmicas de reflexividade social (Giddens, 1990)
dos actores leigos e não de racionalização absoluta e homogénea das suas concepções
nesse domínio, tal torna-se um indicador que cada vez mais reforça a noção de que o
desenvolvimento de lógicas e formas próprias de acção se constitui como um imperativo
social de relação leiga com o domínio da saúde, e não como um défice de exposição a
informação e recursos periciais que potenciasse a conformação dos sujeitos às suas
estritas orientações (Clamote, 2010b). A própria evidência crescente, que poderíamos
designar como hiper-moderna, de crescentes contradições entre esferas periciais
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diferenciadas com jurisdição conflituante sobre os mesmos problemas sociais, ao romper
com pressupostos de unicidade e estabilidade na noção pública de norma pericial,
tornam a intervenção leiga num espectro em dilatação de dinâmicas de regulação não
pericialmente consensualizadas não uma necessidade intrínseca de gestão da vida
própria, como uma exigência sistémica. O papel decisório da acção leiga na reprodução
sistémica dos processos de regulação social torna, pois, cada vez menos sustentáveis os
pressupostos da auto-suficiência e evidência dos saberes periciais nesses processos de
regulação, do carácter exógeno da autonomia leiga face aos mesmos, e da
irracionalidade das lógicas que sustentam essa autonomia.
Ao denotar-se cada vez mais o carácter dinâmico e construído das lógicas que
pautam as formas de acção leiga face à saúde, incluindo nessa dinâmica a apropriação
reflexiva de saberes periciais, essas lógicas denegam de forma crescentemente evidente
um qualquer estatuto de resquícios culturais pré-modernos, e afirmam-se como saberes,
a seu modo, modernamente constituídos, activamente construídos (Baszanger, 1989), e
operativos na regulação dos processos incorporados de saúde e doença.
O facto de, a despeito dessas dinâmicas modernas acrescidas na sua constituição,
os saberes leigos permanecerem num limbo de desconsideração epistémica e política,
tem pois suscitado reivindicações e propositividades de participação formal no espaço da
regulação. Contudo, as dinâmicas de regulação fenomenologicamente discerníveis do
campo da saúde conhecem padrões que estão para dos mecanismos formalmente
instalados para o efeito. Nesse sentido, independentemente das propositividades que se
possam veicular relativamente à ampliação das processualidades de democracia técnica,
com o fito de a ampliar às mais diversas formas de inscrição social e de saberes e
interesses sociais localizáveis, é questão analítica prévia e inalienável conhecer o
campo dessas inscrições, a forma como esses saberes operam na regulação
fenomenológica dos regimes de doença dos sujeitos, e as trajectórias pelas quais esses
saberes são representados ou representáveis em outros espaços sociais de discussão
que não aqueles da sua incepção e operacionalização imediata. A presunção da
transponibilidade deliberativa desses saberes resulta, pois, uma ingenuidade analítica
com efeitos de ocultação das realidades sociais que ancoram esses procedimentos e
seus efeitos potencial ainda que tacitamente excludentes de estruturas institucionais de
participação. Sustenta ainda um viés formalista na apreensão das dinâmicas de
politização da regulação da saúde, ao facilmente negligenciar, por exemplo, formas de
contestação de regimes de doença institucionalizados, de natureza tendencialmente
desmedicalizante, que incorrem largamente no distanciamento de esferas formais,
tendencialmente pericializadas, de regulação.
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Assim sendo, no início desta trajectória analítica, uma primeira estação sedia-se na
consideração da especificidade dos próprios saberes leigos, enquanto categoria
conceptualmente distinta de outros operadores heurísticos de compreensão das lógicas
de racionalidade leiga, e previamente às próprias possibilidades de enformação dos
mesmos no quadro dos seu veículos institucionais mais prováveis hoje em dia, como
sejam as associações de doentes.
No contexto de relevo analítico e propositivo da questão dos saberes leigos, como
dissemos, várias discussões têm sido produzidas em torno da constituição de saberes
leigos em saúde. Contudo, tais discussões persistem amiúde em ver-se analiticamente
tolhidas por duas ordens de enquadramento desses saberes que tendem a deixar
escapar a marca da sua distintividade social.
Uma, passa por abordagens pouco discriminativas na distinção analítica dos saberes
leigos de outros componentes sociais, culturais e ideológicos de organização das lógicas
de racionalidade leiga, como tal, correlacionados com os saberes que elas igualmente
contemplam, mas analiticamente diferenciáveis dos mesmos. Tal torna-se relevante na
medida em que os saberes não substituem, esgotando, todas as dimensões conceptuais
operativas para captar as lógicas de racionalidade leiga (como, por exemplo, as
concepções de saúde), mas são provavelmente o operador conceptual mais próximo da
modulação das práticas de saúde - quanto mais se vão distanciando de meros
mimetismos de tutelas tradicionais ou profissionais - funcionando assim num plano
dialógico mais incisivo. Para além disso, essas distinções analíticas permitem-nos melhor
cartografar como se enformam as diversas perspectivas a serem convocadas para
processos de participação regulatória, para a compreensão do seu alcance e
posicionamento num processo deliberativo. Assim, pressupostos como o da ilusória
homogeneidade do espaço da sociedade civil (contemplando, por exemplo, o
(re)posicionamento de actores profissionais/periciais ou confessionais na esfera do
terceiro sector na saúde, em instituições particulares de solidariedade social (Lopes,
2001) - tal como associações de doentes, formalmente, mas constituídas por
constelações de actores diversos) ou das próprias perspectivas leigas (cuja integração na
discussão e vigilância pública em arenas regulatórias se não faz sob a égide exclusiva
dos saberes particulares que possam trazer à colação, como se dissociados de outros
entendimentos sociais, culturais, ideológicos que enformam dinamicamente as suas
perspectivas e interesses) não colhem para a compreensão das composições e
ponderações desiguais que informam os processos de deliberação regulatória, que
diferentes actores com diversos recursos e interesses procuram maximizar
estrategicamente a despeito de uma retórica de pluralização indiferenciada. Torna-se
pois crucial operar também aqui um controlo cognitivo que permita cartografar as formas
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específicas de articulação de saberes, e outras dimensões de organização das
perspectivas sociais em diálogo, que os processos de participação regulatória
possibilitem, e os efeitos que consequentemente produzam, por contraponto às suas
finalidades declaradas.
Outro enquadramento equívoco dos saberes leigos passa pela sua apreensão (por
vezes com propósitos ingenuamente legitimadores) através da associação privilegiada a
outros corpos de saberes, assumidos como matriciais da natureza subsidiária dos leigos,
sejam eles produzidos e reproduzidos em contextos sociais e culturais particulares sob a
via de tradições terapêuticas, ou sejam eles os próprios saberes periciais. Este último
caso é exemplar das tentativas de relevo social dos saberes leigos, assumindo facilmente
a sua aproximação aos saberes periciais como uma via de validação retórica da
participação dos actores leigos (como que pericialmente capacitados) nos processos
terapêuticos e, por extensão, na própria discussão política dos regimes de doença em
que se inserem.
Ora, também aqui, não denegando (pelo inverso) a correlação que há entre os
saberes leigos e outros corpos de saberes, qualquer definição daqueles que passe pela
sua subsumpção essencialista a uma matriz de saberes externos é fautora de um
reducionismo da especificidade daqueles saberes. Tal acabaria, aliás, por finalmente
minar a própria intenção propositiva que essa sugestão de validação pericializada dos
saberes leigos tende a acarretar, na medida em que, perdendo o alcance da sua
distintividade social, a sua incorporação regulatória com vista a uma pluralização efectiva
de processos de participação e deliberação no campo da saúde tornar-se-ia, na melhor
das hipóteses, espúria.
As discussões correntes em torno de uma presuntiva lay expertise (Arksey, 1994),
por exemplo, têm afinado a bitola do relevo dos saberes leigos pela sua crescente
aproximação à matriz dos saberes periciais, assumindo os actores leigos nessa medida
como pares capacitados para entrar em diálogo com a pericialidade. No entanto, o que os
processos mais politizados de participação leiga em esferas deliberativas e decisórias em
contextos de pesquisa científica, como no caso do HIV nos Estados Unidos da América
(Epstein, 2000) e em França (Barbot, 2002), permitiram documentar, foi como o
aprofundamento dessa lay expertise levou à crescente sensibilização dos actores leigos -
que por essa via foram socializados para a participação nas deliberações periciais - às
perspectivas dominantes, distanciando-se das perspectivas de base para cuja defesa
haviam sido ingressados em primeira instância. Por essa via, será fácil de perceber que
tomar essa dinâmica, efectiva mas não definitória, de aproximação à pericialidade na
constituição de saberes leigos como o foco analítico de apreensão da sua especificidade
acabaria por os colocar numa posição de indistinção analítica num contínuo que, à
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maneira das velhas expectativas de racionalização pericial e unívoca do mundo social,
reitera o saber pericial (desde logo escamoteando analiticamente a sua diversidade
interna) como a teleologia auto-suficiente de qualquer produção cognitiva.
Ora, se é um facto que na constituição dos saberes leigos os saberes periciais se
tornam cada vez mais um recurso central, tornando a própria dependência dos mesmos
como um factor estruturante de modernas formas de autonomia leiga (Lopes, 2007), a
exterioridade face a esses mesmos saberes (e a quaisquer outros socialmente
circunscritos a produtores ou guardiões minimamente especializados) não deixa de ser
uma condição estrutural da sua produção. Nesse sentido, os saberes leigos são
balizados por formas de apreensão dos fenómenos de saúde e doença nos seus
contextos sociais de experiência, e de controlo cognitivo da sua gestão por apropriação e
validação de saberes outros, assentes em observação, comparação e experienciação
afinada, em última instância, pela experiência corporal (Lopes, 2007). São, nesse sentido,
saberes efectivamente subsidiários, mas apenas na medida em que capitalizam outros
corpos de saber a partir da sua posição de exterioridade, desenvolvendo formas de
validação distintivas sobre os mesmos, e operando um controlo cognitivo próprio sobre o
que é integrado nas suas lógicas de racionalidade próprias. Ou seja, a singularidade dos
saberes leigos passa, não pela particularidade variável dos conteúdos que possam
incorporar, mas pelas suas modalidades sociais de apropriação, validação e incorporação
desses saberes para constituir corpus cognitivos adaptados aos seus contextos sociais e
culturais de vivência quotidiana.
Tal implica, pois, que os saberes leigos organizam modos de apreensão e
intervenção fenomenológicas particulares no quadro de finalidades de saúde social e
culturalmente formuladas e corporalmente ressentidas que, mesmo quando partem de
orientações clínicas para a definição de problemas e respostas, operam formas de
adaptação cognitivamente controlada (entre outras) dessas orientações aos
constrangimentos e desejabilidades enraizados nas suas circunstâncias sociais e
culturais, e à bitola da sua experiência corporal.
Contudo, nesse sentido, são também saberes que, pela sua definição básica, não se
conformam facilmente a lógicas de formalização e generalização, inclusive pela sua
dependência de outros saberes. Não obstante, ao mesmo tempo, pela sua resiliência
social, denunciam os limites estruturais dos saberes e recursos periciais quando a sua
acção sai do laboratório para o campo dos corpos vividos e suas multicausalidades mais
anárquicas. É essa, em certa medida, a derivação epistémica mais primordial da
apreensão analítica da operação dos saberes leigos: não a sua potencialidade marginal
de constituir corpos alternativos de saberes, mas o reflexo nas suas estratégias
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adaptativas dos limites da potencialidade de generalização uniformizada da operação dos
saberes periciais no mundo vivido.
Também nessa medida, poder-se-ia dizer os saberes leigos serem ,
intrinsecamente, uma instância de co-produção de conhecimento, ainda que in absentia,
ou não explicitamente dialógica. Contudo, precisamente dada a sua especificidade de
construção cognitiva, na medida em que operam subalternamente a formas de regulação
dominadas por saberes periciais, ou ainda subsidiariamente a outros corpos de saberes
minimamente sistematizados (como populares ou alternativos), estes não são saberes
que à partida concorram para modos de formalização e difusão exteriores a contextos de
sociabilidade. É no quadro de tais contextos que dinâmicas de experimentação assentes
em bases relacionais de confiança interpessoal são passíveis de apelar à circulação
daqueles saberes para calibrar percursos terapêuticos individuais.
Aí, aliás, se desvela como as potencialidades da sua incorporação reflectem
igualmente os limites da sua generalização, assentes na sua irredutibilidade última. É o
facto de as experiências de doença serem muitas vezes, igualmente, experiências-limite,
e serem intensamente partilhadas, que cria um patamar de razoabilidade para a eventual
exposição experimental a saberes, na sua origem cognitiva, não generalizáveis. Ou seja,
os saberes leigos não viajam imaculados se destacados das suas condições primeiras de
produção, validação, circulação e aplicabilidade. Na medida em que qualquer processo
de diálogo tende a implicar, pela sua natureza, o horizonte da não irredutibilidade das
perspectivas que convoca, a posição estrutural de assumpção e representação de
saberes leigos em contextos de circulação e exposição institucional tende a produzir um
efeito (auto)restritivo no seu alcance, comparativamente com o assumido nos seus
contextos de produção, potencialmente mais temerário.
Como tal, a emergência de saberes leigos de facto em processos institucionais
deliberativos (qualquer que seja o seu grau de formalização) e de produção de
conhecimento tenderá a ser viabilizada numa trajectória que os enquadre em actores
sociais institucionalmente vocacionados para enformar dinâmicas de representação dos
actores leigos e dos saberes que comportam, como sejam, particularmente, as
associações de doentes.
Nessa medida, cabe-nos analiticamente perceber como é que esse enquadramento
institucional enforma os saberes leigos para melhor os veicular, e de que forma eles se
constituem como recursos para, além de colocar fenomenologicamente em questão um
hiato epistémico absoluto entre saberes leigos e periciais, questionar a sua exclusão
normativa dos processos institucionais de conhecimento e regulação dos fenómenos de
saúde e doença.
Que saberes, em que diálogo(s), nas trajectórias de representação regulatória das associações de doentes?
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2. SABERES LEIGOS NAS TRAJECTÓRIAS DE REPRESENTAÇÃO DAS ASSOCIAÇÕES DE
DOENTES
Na sua agregação de actores leigos associados pela experiência incorporada de uma
mesma condição patológica, as associações de doentes configuram-se facilmente como
instâncias institucionais de circulação de saberes leigos sobre essas condições. A própria
experiência da cronicidade, no seu prolongamento temporal da vivência corporal de uma
condição patológica promove, quase por defeito, a estabilização cognitiva de quadros de
percepção de sintomas que se vão padronizando e constituindo instrumentos de gestão
estratégica da doença para lá das margens de apelo a sistemas periciais.
Nesse sentido, as associações constituem-se claramente como campos
potencialmente privilegiados de acumulação primitiva de conhecimento (Callon e
Rabeharisoa, 2003), em que a sedimentação em temporalidades crescentes de
observações leigas sobre as experiências de doença vai fazendo emergir padrões da sua
densificação casuística. Não a esse nível mais passivo, mas em outras formas de
potenciação daquela acumulação de conhecimento, a circulação de saberes leigos sobre
experiências de doença circunscritas encontra aí campo fértil para o seu teste e eventual
replicação criando, pelas meras dinâmicas mais ou menos informais que potencia de
partilha de experiências, uma espécie de laboratório ou pesquisa ao ar livre (Callon et
al., 2001), onde, por exemplo, estratégias várias de gestão da doença e de
experimentação e adaptação de soluções provindas de saberes formalizados, se vão
sucedendo e, eventualmente, sedimentando num património cognitivo próprio, ainda que
articulando-se com os limites incorporados da validação desses saberes.
Ok, você tem um problema, sei lá, toma a injecção à sexta-feira e tem que se meter
na banheira como o outro doente. O seu caso vai ser revisto por eles [grupo de
apoio dentro da associação], porque é que lhe acontece a si e não me acontece a
mim, e eles tentam arranjar soluções que às duas por três você deixa de ter que se
meter na banheira, que é uma coisa que eu acho interessantíssima. Eu tenho… a
nossa doente [], e ela disse-me assim, ‘ah vou dar a injecção, que é uma
chatice, está tanto frio, dar aquilo gelado’. E eu olhei para ela, disse, ‘ó [], tu dás a
injecção gelada?’, ‘dou’. Ela não teve efeitos físicos. Os efeitos secundários dela
foram todos psicológicos. Físicos, o único efeito que ela teve físico foi que perdeu
20 quilos. Tirando isso, nem dores nem nada. Disse ‘ó […] mas não é assim que se
a injecção. Tens que pôr a injecção à temperatura ambiente. Ou tiras a injecção
uma hora antes, ou então se te esqueceres metes debaixo do braço’. Ela fez
isso. A miúda ia morrendo com efeitos secundários. Olhe, ela teve dores
Telmo Costa Clamote
90
musculares, ela teve febre, ela teve… ‘ó miúda, esquece, a injecção gelada,
congelada, como tu quiseres! (SOS Hepatites)
Contudo, nesse contexto, essa sedimentação se começa igualmente a dar em
função não apenas da espontânea troca de experiências leigas (ainda que em quadros
de interacção potenciados pelas associações), mas em função da própria assumpção
associativa da validade desses saberes, que varia substancialmente consoante os perfis
institucionais das associações, mas sempre particularmente em função da distância
normativa que os separa dos saberes periciais. Embora em qualquer quadro associativo,
onde caibam dinâmicas de entreajuda e partilha assentes nas relações de sociabilidade
entre doentes, se encontre o húmus para o florescimento de tais saberes, quanto maior a
proximidade (ou a dependência) do universo institucional da pericialidade, menor parece
ser o espaço de validação, pela associação, dessas estratégias leigas de gestão da
doença, na medida em que mais dificilmente elas se podem ir exercendo
subalternamente sem chocar com a vigilância pericial das práticas de saúde leigas.
Tendencialmente, parecerá ser em modelos associativos de cariz mais tutelar ou
comunitário que se encontram condições mais favoráveis não a uma massa crítica de
experiências comparadas e uma potencialidade, digamos, mais panóptica, de atenção às
mesmas, como à sua estabilização, promovendo dinâmicas regulatórias próprias de
gestão da doença, potencialmente, sob a forma de tecnologias do self (Foucault, 1982).
Nesse sentido, os saberes leigos, ao serem sedimentados num quadro associativo,
constituem potencialmente, eles próprios, não apenas uma ampliação das margens de
estratégias terapêuticas à disposição dos doentes, mas também uma reinscrição num
regime de doença associativamente modulado pressupondo, quase por defeito, a entrada
de um doente na associação igualmente o seu ingresso num regime de regulação
acrescido pericial) da sua experiência de doença, assente num património de saberes
leigos estabilizados a partir da sedimentação da acumulação primitiva de conhecimento.
Um estudo - um estudo, entre aspas - que nós fizemos aqui dentro - lá está, quando
as pessoas, quando são mais de 10 a dizer-me a mesma coisa eu começo a olhar
assim ‘oops, espera’ - é assim: o Interferon é uma proteína. Você à sexta-feira,
massivamente, uma injecção, e depois tem 14 refeições. Se você nessas 14
refeições as fizer todas de carne, você vai ter efeitos secundários que nem imagina,
porque à sexta vai numa dose maciça e depois está a comer proteínas a semana
toda. Se dessas 14 refeições 10 ou 11 você fizer de peixe, não tem efeitos
secundários quase nenhuns. [] neste momento, doente que comece o tratamento
Que saberes, em que diálogo(s), nas trajectórias de representação regulatória das associações de doentes?
91
dentro da associação, pelo menos metade das refeições tem que fazer de peixe.
(SOS Hepatites)
Tal não implica que em outros modelos, mais assentes na proximidade a uma lógica
de mercado ou estatal na organização de redes de acessibilidade dos doentes a formas
de gestão da sua doença, tais condições de produção, circulação e validação de saberes
leigos não se verifiquem igualmente. Contudo, a sua assumpção associativa e a sua
relativa cristalização e controlo social colectivo não se verificam, tornando a exposição
dos doentes aos mesmos mais casuística, e menos atida à própria inserção no tecido
social associativo. Num modelo de implantação social mais afinado pela captação das
possibilidades de mercado de gestão dos processos terapêuticos, a produção de saberes
leigos sobre a doença tende a ser potenciada pela facilitação do acesso a redes múltiplas
de cuidados, mas sem grande implicação orientadora da própria associação,
individualizando formalmente, a partir do acesso a essas redes, as tomadas de decisão
dos doentes. Tal não obsta a que, na proximidade normativa ao universo pericial, não se
vão desenvolvendo saberes derivados das experiências incorporadas da doença, e que
esses não possam ir organizando guiões informativos supletivos às orientações clínicas
inscritas nesses regimes de doença, mas apenas no sentido em que não contrariam
normativamente aquela doxa mas, antes, procuram densificá-la em torno de uma atenção
incorporada às experiências vividas dos doentes dentro das orientações periciais mais
genéricas.
Os médicos não têm tempo para estar com um doente 45 minutos ou uma hora.
Portanto, basicamente fazem o diagnóstico, podem dar umas breves noções do que
é a doença, mas nem todos o fazem, muitos limitam-se a dizer ah vai ter que fazer
exercício, para a piscina, nadar, e não é assim, pronto. Tem que fazer
exercício adaptado, pronto, não pode fazer qualquer coisa, tanto pode ir para o
ginásio levantar pesos, como ir para a passadeira, como ir para a piscina, mas
tem que ser uma coisa adaptada à sua condição física, e eles muitas vezes não
dão essas noções, por isso mandam para nós. (Myos)
O que isso implica, também, é que, prévia a e independentemente de qualquer
dispositivo de participação das associações de doentes, o reconhecimento pericial e
institucional da acumulação de saberes pelas associações pode potenciar ao nível da
micro-regulação dos processos terapêuticos a delegação funcional sobre as associações
de responsabilidades de gestão de dimensões desses processos que, por essa via, se
tornam cada vez mais externalizados do encontro médico e instituições de saúde.
Telmo Costa Clamote
92
Mas áreas que nós achamos que as associações podem fazer melhor que nós.
Estudos podem fazer melhor que nós, têm essa… normalmente podem contactar
pessoas para realização sobre aquela tarefa que é uma coisa que não podemos
fazer como administração pública []. Isto, as acções todas de educação
terapêutica, podem fazer melhor que nós, porque nós não temos hipótese num
hospital estar a ensinar a um doente como é que tem que… também se faz, como
sabe como é que se toma uma bomba, como é que se toma a insulina, também
fazemos, agora não podemos é estar o tempo que as associações podem dar de
apoio àquele doente. Não temos grupos de apoio, como sabe… também temos,
mas se calhar não temos suficiente como estas associações têm, para apoiar
emocionalmente e psicologicamente um determinado doente e família. [] Eles têm
muita informação condensada, porque normalmente eles também vão aos
congressos internacionais naquelas áreas, são eles muitas vezes que vão alguns
até são representantes de Portugal []. (DGS)
Contudo, tal pode facilitar que assim se vão revertendo os saberes e práticas
médicas para um domínio cada vez mais restrito e tecnicizado de acção, fragmentando e
tornando potencialmente mais casuística a adaptação dos doentes à plenitude
incorporada da vivência da sua doença, na medida em que a incorporação de uma
estação associativa no seu trajecto, podendo assumir um relevante papel supletivo não é,
necessariamente, uma possibilidade ou desejabilidade social característica de todos os
trajectos e inscrições sociais
A esse potencial excludente de uma divisão informal do trabalho entre pericialidade e
sociedade civil, em torno do exercício vagamente articulado de saberes
institucionalmente fragmentados, acresce o facto de que, tal como as associações podem
assumir adendas próprias mais ou menos sedimentadas de regulação dos trajectos
terapêuticos dos indivíduos quando estes nelas ingressam, essa entrada também os
inscreve num universo identitário e ideológico (que assim se verifica diferenciar-se
analiticamente de uma mera componente cognitiva, mesmo sendo empiricamente
inextricável dela), variável que tanto pode operar na integração dos que nele se revêem,
como na exclusão dos que o não prefiguram.
Eu acho que é aquilo que nós temos estado a fazer, que é o papel de ajuda no
doente a lidar com a doença no dia-a-dia, porque eles não têm, não há…. O ideal
era que houvesse equipas multi-disciplinares, nos hospitais, ou centros clínicos,
mas não existem, nem para esta nem para outras doenças... existem as unidades
Que saberes, em que diálogo(s), nas trajectórias de representação regulatória das associações de doentes?
93
da dor que têm realmente equipas multidisciplinares, mas cobrem uma camada
pequena de doentes, não chegam todos; nem aquilo é para todos os doentes
com dor, e portanto acho que é muito naquela perspectiva de lhes aliviarmos
trabalho, e porque estamos a fazer o papel como deve de ser, estamos a ir pelo
bom caminho, e não por aquele caminho de se vitimizar, que foi a vitimização do
doente, porque isso, temos o caso do Curry Cabral, que uma médica dizia-nos que
gostava muito de receber os nossos doentes, ‘ai, eu adoro os doentes que vêm da
Myos, porque não são nada desgraçadinhos, nem coitadinhos, nem vêm para
chorar, pronto, vêm cá para se tratar, mas com uma postura diferente []. (Myos)
O constrangimento inerente à supletividade funcional das associações face aos
saberes periciais parece ver-se ainda acrescido em modelos associativos mais próximos
da regulação estatal, quer pela explícita associação a actores periciais, quer pela
contratualização pública dos seus serviços especializados, servindo a associação quase
como veículo de solidariedade social (como outros não necessariamente ditos “de
doentes”) para o aprofundamento institucional da acessibilidade de uma população de
doentes a cuidados especializados. Nesse contexto, qualquer dinâmica informal de
produção e circulação de saberes leigos tenderá a ser quase funcional e
institucionalmente diferenciada para, por exemplo, a organização de grupos de apoio,
onde, contudo, a óptica dessa circulação tende ainda a estar balizada pela difusão e
incorporação de saberes periciais nas práticas leigas (como na organização de
workshops dirigidos por actores periciais), incluindo formas de tutela das margens de
aceitabilidade de estratégias leigas que fujam à estrita orientação clínica. A ênfase na
circulação leiga desses saberes acaba, pois, por estar centrada não necessariamente
tanto na sua apropriação quanto na própria forma como eles circulam, pelos efeitos de
confiança e proximidade social que as redes de sociabilidade acarretam, potenciando a
sua incorporação.
Aqui são coisas diferentes. Esta casa aqui, esta associação [APDP], embora seja
estatutariamente uma associação, uma IPSS, mas é um centro clínico, de
excelência, é o centro clínico de excelência de tratamento de diabetes em Portugal,
e a parte associativa é pouco trabalhada, porque não pode ser trabalhada, porque
as pessoas que estão são médicos, enfermeiros, psicólogos, o que quer que
seja. [] Estes grupos de auto-suporte, a base é a conversa entre os pares, não é,
e a conversa entre os pares é uma conversa que fica sempre mais na cabeça das
pessoas, e acaba por haver essa troca de experiências, a pessoa relatar coisas que
aconteceram, como resolveram, o outro contar como é que resolveu determinado
Telmo Costa Clamote
94
assunto, a pessoa sentir que não está sozinha, não está isolada na sociedade com
a sua própria doença; acaba por ter efeitos muito mais visíveis porque fica muito
mais informação na cabeça, do que numa acção de formação em que a pessoa
está um bocadinho a receber informação, interacção porque perguntas e
respostas, mas há muito só… há um aspecto muito passivo. (APDP)
Portanto, sendo o relevar de dinâmicas informais de partilha de experiências e
circulação de saberes uma relativa, ainda que matizada, constante no universo de
associações de doentes, essa dinâmica parece depender de uma certa medida de
autarcia social (que não necessariamente, de todo, epistémica) face ao espectro da
pericialidade. É nessa medida que, nestes dois modelos associativos agora discutidos, o
que não se encontra tanto são condições para a criação de um patamar mais estabilizado
de produção e circulação de saberes leigos que os resgate da volubilidade das relações
de sociabilidade para um nível mais colectivo e controlado de elaboração,
experimentação e inscrição cognitiva. Contudo, mesmo num modelo de maior
solidariedade mecânica (Durkheim, 1973), como o primeiro que foi discutido, é na estrita
observância da primazia instrumental e dominância normativa dos saberes periciais que
as condições de formalização e assumpção destes saberes leigos pelas associações,
onde encontram terreno privilegiado para medrar, encontram limites claros. Dificilmente
esses saberes assumem uma centralidade que os retire de um carácter essencialmente
acessório à gestão leiga de orientações clínicas, assente em recursos periciais
relativamente aos quais a cronicidade que tendencialmente marca as experiências
associativas de doentes (quando não a carência mais premente de novos instrumentos
de gestão terapêutica ou a própria validação clínica das entidades patológicas para que
as próprias associações concorrem estrategicamente, no sentido da estabilização
terapêutica e legitimação institucional das suas condições) se define num estatuto de
dependência fulcral. Sendo boa parte da vida das associações assim marcada pela luta
pela garantia, mais formal ou informal, de condições de acessibilidade a tais recursos
periciais, e aos regimes socialmente contratualizados de gestão da doença que
genericamente acarretam, tal implica que também, normativamente, a difusão de saberes
leigos com base nas associações para esferas institucionais marcadas pela primazia da
pericialidade torna-se quase contra-intuitiva, do ponto de vista da garantia da validação e
continuidade institucional da acção das associações, dependentes, a vários níveis de
consequência, de redes estabelecidas de relação, quer com as tutelas públicas, quer
directamente com as próprias redes clínicas.
Ou seja, se à partida nem todos os contextos associativos apresentam condições
idênticas para a sistematização de saberes leigos que os conformem a lógicas
Que saberes, em que diálogo(s), nas trajectórias de representação regulatória das associações de doentes?
95
publicamente partilháveis, tendo a associação como veículo que constitui assim, por si
mesma, um filtro dos tipos de saberes que são ou não partilháveis, dentre todos aqueles
que podem circular nas redes informais de sociabilidade que facilita -, mesmo nos
contextos mais favoráveis à emergência de tais dinâmicas, elas não são suficientes para
a equalização discursiva com saberes formalizados e normativamente acreditados.
Mesmo quando a elaboração cognitiva sobre a funcionalidade desses saberes leigos
segue linhas de raciocínio e justificação pericial, a hierarquização social e normativa da
relação desses saberes leva a que os saberes leigos sobre saúde não sejam
automaticamente passíveis de circulação em esferas sociais mais expostas.
[] Até porque eu acho que, se eu chegar ao dos médicos e disser ‘mandem lá
comer peixinho aos doentes’ eles riem-se muito; mas tem lógica, porque o doente
durante um ano está a comer excesso de proteína []. (SOS Hepatites)
Tal implica que, estruturalmente, mesmo passando da esfera mais irredutivelmente
incorporada dos saberes que os indivíduos vão construindo pela sua própria experiência
corporal para uma outra, de comparação e sedimentação de saberes consensualizados
em estratégias colectivamente compenetradas de gestão pragmática de regimes
pericializados de doença, esses saberes continuam largamente a concorrer para a
modulação da operação dos saberes periciais nos corpos, ou, se quisermos, a procurar
formas subalternas de os tornar mais dóceis e maleáveis às finalidades, circunstâncias e
experiências leigas de saúde.
Por outro lado, daí decorre que, mesmo quando as associações investem na
projecção de saberes próprios sobre as condições dos seus doentes, num contexto
discursivo marcado pela dominância de saberes periciais (com a sua validação
uniformizada e controlada), o fazem através já de um processo de filtragem e formatação
que os marque pelo morfismo de se adaptarem às lógicas produtivas da racionalidade
científica, e assim os coloque na senda do serviço ou da potenciação da emergência de
novos saberes periciais.
Tal como, quando os saberes leigos se vão cristalizando em torno de redes
associativas, eles vão sendo filtrados e modulados em regimes regulatórios
colectivizados, perdendo alguma da sua irredutibilidade incorporada na experiência
individual - ainda que depois, fenomenologicamente, a possam recuperar na adopção,
rejeição ou modulação, pelos doentes, dos saberes e estratégias com que vão
contactando na vida associativa -, quando se fala em diálogo explícito (e não nas
substantivas formas de diálogo in absentia que temos analisado) de saberes estamos
necessariamente a contemplar uma outra operação de modulação na produção e
Telmo Costa Clamote
96
circulação de saberes, nomeadamente uma de formalização. Esta recorre a saberes
periciais (como seja em processos de levantamento e tratamento estatístico de dados),
que precisamente conforme os saberes leigos a saberes passíveis de serem apropriados
e validados pericialmente, permitindo colocar hipóteses científicas testáveis e
desenvolver estratégias metodologicamente controladas
Tal não quer dizer que, como vimos, as associações não detenham a possibilidade
de - pela sistemática criação de alianças com redes clínicas para as suas finalidades de
garantir a acessibilidade a cuidados - difundir por actores periciais saberes, hipóteses e
preocupações intrínsecas à vivência e experiência da doença, e a possibilidade de vigiar
modulações epidemiológicas da doença que confere um certo potencial panóptico às
associações de doentes. De facto, as associações, embora necessariamente não
representativas de todo um universo epidemiológico, reúnem tendencialmente condições
privilegiadas de observação e vigilância de uma amostra desse universo que lhes confere
um potencial de entreposto que, cada vez mais, capitalizam nas suas estratégias de
acção, de acesso arregimentado a um banco de biocapital por defeito que, pela sua mera
existência associativa, permite a monitorização de uma diversidade de dinâmicas que
intervêm nas vivências quotidianas dos indivíduos, como seja no plano da
farmacovigilância. Ou seja, qualquer disrupção ou problema implicado na uniformidade
dos regimes terapêuticos pericialmente designados, pelo seu efeito agregado nas
vivências dos associados, pode facilmente tender a ter um efeito de visibilidade mais
imediato na vivência associativa que na ponderação estatística de instrumentos
epidemiológicos, tornando as associações potenciais instâncias daquilo que se vem
designando como epidemiologia popular (Brown, 1997).
Contudo, podendo assumir essa valência de monitorização e alerta no calibrar dos
regimes de doença periciais constituídos para a gestão dos seus processos terapêuticos,
e tendo já vias constituídas de acesso à pericialidade, o impressionismo metodológico da
sua evidência (mesmo quando racionalizado pela apropriação de saberes periciais) torna
essas hipóteses e observações formalmente débeis para o espoletar dos mecanismos
institucionais implicados nas metodologias periciais.
Neste momento nós desconfiamos que, eu diria que tenho a certeza, o tratamento
de interferon cabo do pâncreas, o doente acaba o tratamento, dois três anos
depois está diabético, só que os médicos dizem que não, os laboratórios dizem que
não, e nós não temos nenhum estudo, porque mesmo que esse estudo exista, está
algures não se sabe muito bem onde não é, nem interessa, se calhar no fundo de
alguma gaveta [] Já, falei com os professores, até porque convém saber, em
cada médico, quantos doentes diabéticos é que eles têm. Não interessa saber
Que saberes, em que diálogo(s), nas trajectórias de representação regulatória das associações de doentes?
97
quantos é que eles têm ao início do tratamento, porque se calhar nem sabem, mas
quantos é que têm no pós. ‘Alguns’! Pois, alguns não me chega. [] eu estive
agora com a presidente da ELPA, e com a secretária da WHA, e alertei para isso,
portanto vai-se tentar ver, porque lá está, a pessoa fica diabética, mas nunca
associa ao tratamento. (SOS Hepatites)
Isso implica que, por um lado, hipóteses não imediatamente passíveis de uma
resposta ou retradução pericial podem ir constituindo adendas de regulação associativa
dos regimes terapêuticos dos seus doentes, acessoriamente à regulação pericial, mas
sem se alçarem a formas de generalização e intersecção com essa regulação. Por outro
lado, a acumulação de saberes sobre as vivências e experiências de doença do universo
associativo vai sendo estrategicamente conformado à possibilidade de ser apropriado por
essa pericialidade, como um repto ou aliciamento, no sentido de potenciar novas
respostas periciais aos problemas detectados na vivência associativa, mais uma vez,
reforçando a nota de dependência produtiva desses saberes (ainda que procurando ter
um papel na sua orientação) do que da constituição de corpos alternativos de saberes.
Essas estratégias de formalização de saberes para o aliciamento do investimento
pericial passam particularmente por formas de levantamento e caracterização das
condições e problemas respeitantes ao universo epidemiológico que as associões
recobrem, mas que, por essa via, são reconvertidos simbólica e instrumentalmente
(quase que por prestidigitação metodológica) em informação a produzir um efeito sobre a
produção de outros saberes, seja apenas para a sua validação institucional, seja para
abrir novas vias de investigação.
Queremos saber quantos somos, onde é que estamos, quais são… qual é o seu
ambiente social e económico, as suas dificuldades, o acesso à informação,
validada, o acesso ao medicamento, informação sobre o medicamento órfão,
ensaios clínicos… Em termos de complementaridade, é tentar desenvolver políticas
de incentivo à investigação clínica, de laboratório… àquela que a Fedra não faz,
não vai desenvolver directamente, mas considera que é importante…
imprescindível, porque o resto nós fazemos [].[E]u vou poder dizer que no
universo de [] x da nossa amostra o resultado foi este. [] E agora vai-me dizer
“pronto, fantástico, percebemos todos que dói-lhe a barriga às 5 horas às doenças
tal e tal” - o pano de amostra vão ser todas as associações federadas na nossa
instituição - e vai dizer assim e mais?”. Fiquei com o trabalho, agora posso ir
trabalhá-lo especificamente ou… mergulhar o seu estudo para a Spina Bífida.
“Olha, encontrei aqui umas coisas fantásticas []”, então vamo-nos dedicar à
Telmo Costa Clamote
98
população da Spina Bífida, hoje, amanhã à dos celíacos, amanhã às da
Raríssimas, e vamos desenvolvendo conhecimento, vamos apurando o
conhecimento devagarinho, e também direccionar para aquilo que politicamente
nos convém, a representatividade dos nossos doentes, como é evidente. []
Vamos agora trabalhar a Spina Bífida por qualquer característica que seja
importante: sentamo-nos todos à mesa; o Conselho Científico há-de ter qualquer
coisa a propor, e a Fedra considerará… […] Para que é que isto vai servir? Vai
servir para encontrar um medicamento órfão? Pode. Vai servir para melhorar a
minha condição social? Claro, com certeza, se eu souber do que é que estamos a
falar, com certeza que poderá, e com certeza que a intervenção da Fedra a nível
político na pasta da Solidariedade Social será muito mais específica e muito mais
clara. (Fedra)
É interessante, por seu lado, que os modelos associativos mais afinados pela
proximidade institucional à pericialidade e ao Estado, como o caso da APDP, não
pareçam surtir maiores efeitos de sinergia na circulação de saberes vários, na medida em
que a presença tutelar de actores periciais tenda a reforçar mais, no que respeita à
produção de saberes, a apropriação pericial daquele terreno epidemiológico como campo
para o eventual aprofundamento de questões periciais do que como espaço para o
surgimento de questões próprias emanadas do mundo da vida desses doentes. Ou seja,
mesmo nestas estratégias de aliciamento à produção de saberes periciais, uma certa
medida de autarcia parece constituir uma margem de distintividade das interpelações
passíveis de intersectar os universos periciais, mesmo que seja para o aprofundamento
das suas lógicas produtivas.
Ainda que não seja de descartar o potencial de orientação da investigação de acordo
com os interesses e hipóteses emanados do próprio universo associativo, na medida em
que pudessem, no limite, controlar o próprio processo de contratualização da
investigação, como seja no caso emblemático da Association Française contre les
Myopathies (Rabeharisoa e Callon, 2002), reflecte-se aqui ainda uma mesma situação de
dependência estrutural da pericialidade na produção e ratificação de saberes com
consequência institucional e pública na transformação dos regimes de doença. O campo
de biocapital que por defeito constituem torna-se, pois, o recurso central de
reorganização da posição das associações na investigação, na medida em que a sua
capacidade de começar a protagonizar igualmente algumas margens de orientação da
pesquisa reside na função directa do seu controlo de um universo arregimentado de
estudo, de que as associações se convertem em mediadores do acesso pela
investigação. Ora, são esses poderes de mediação, derivados da projecção estratégica
Que saberes, em que diálogo(s), nas trajectórias de representação regulatória das associações de doentes?
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das associações no universo da investigação, e potencialmente independentes de
qualquer formalização de um papel institucional das associações em fóruns deliberativos
de participação, que constituem uma via mais imediata de projecção dos seus interesses
no campo da investigação, constituindo uma dimensão de um padrão de regulação
intersticial (Clamote, 2010a) no campo da saúde por parte das associações, assente não
na posse de poderes formais, mas de potenciais de mediação dos interesses de vários
actores junto do seu universo institucional.
Não obstante, o que nesse cenário, mais uma vez, se verifica, é como a eventual co-
produção de conhecimento que dessas dinâmicas emerge resulta, mais do que da
articulação de saberes epistémica e normativamente diferenciados (a qual persiste em
ser feita principalmente em esferas mais subalternas e casuísticas de experiência
incorporada daí a necessidade de não as deixar fugir do foco analítico), da articulação
de actores com recursos diferenciados para a produção de mais saberes periciais, e não
necessariamente de outras formas de saber.
Nesse sentido, não se afigura adequada uma discussão destas dinâmicas de
produção de conhecimento que a priori, em função do seu posicionamento social no
campo da saúde, as remeta automaticamente para pólos opostos de
reprodução/contestação da dominância dos saberes periciais. Em boa verdade, as
associações de doentes, na sua dependência tendencialmente constitutiva de formas de
classificação e regulação pericial que, pelo seu poder de gatekeeping (Freidson, 1970),
abra as portas ao acesso a instrumentos de diagnóstico e terapêutica que ampliem as
margens de controlo da doença, podem facilmente constituir-se como agentes
epistemicamente conservadores, na medida em que a sua organização é já um reflexo de
uma posição de dependência face à ratificação pericial/institucional das suas condições,
e à satisfação de necessidades particulares a essas condições. Nesse sentido, em última
análise, poderão facilmente visar mais o aprofundamento das possibilidades periciais de
regulação das suas condições patológicas (ainda que sempre eventualmente sujeitas a
modulação nos saberes e estratégias de saúde leigas, numa esfera subalterna), do que a
produção de corpos resolutamente alternativos de saberes. Essa esfera de contestação
da dominância pericial pode ser, pois, campo mais propício para outros actores sociais,
menos investidos numa gestão periclitante da sua ontologia corporal, como alguns que,
até ao momento sem grande precisão conceptual e empírica, vêm sendo abarcados na
noção de movimentos sociais em saúde (Brown e Zavestoski, 2004).
De qualquer forma, o que finalmente tal espelha, por defeito, é como o espaço dito da
sociedade civil pode engendrar actores extremamente diversos, com interesses e
perspectivas muito distintos sobre a produção de saberes em saúde, e a forma como os
projectam sobre as formas dominantes de produção de conhecimento não é passível de
Telmo Costa Clamote
100
qualquer inscrição normativa prévia ao conhecimento das processualidades pelas quais
se relacionam com aquela dominância pericial.
Essa pluralidade de posicionamentos face a uma dominância relativamente comum
ressalta ainda mais quando se considera a sua projecção na esfera regulatória e nas
arquitecturas sociais em que se organiza, onde vem paulatinamente sendo acrescido um
lugar de representação às associações da sociedade civil, associações de doentes (em
geral, indistintamente) incluídas.
A particularidade social, cultural, ideológica, inclusive epidemiológica, desses
universos não contempla qualquer atribuição de uniformidade, neste caso, na sua relação
com o universo da pericialidade. Um enfoque analítico na malha fina dos
posicionamentos de diferentes actores associativos e periciais face a uma mesma
dinâmica de investigação pode levar-nos facilmente a encontrar uma transitoriedade nas
suas lógicas de racionalidade e acção, que facilmente atravessa o que estruturalmente se
desenha como posições opostas no campo da saúde. Assim, da mesma forma que
diversos movimentos na luta contra o HIV intervieram nos processos de pesquisa no
sentido de modificar protocolos de pesquisa para facilitar o acesso mais expedito de
doentes, mesmo que a seu potencial sacrifício, a novos medicamentos, num contexto de
emergência sanitária (Epstein, 2000); num contexto de necessidade de estabilização
nosológica, podemos encontrar associações mais afinadas, na sua intervenção, pela
necessidade de controlar metodologicamente a natureza da patologia e a precisão dos
protocolos terapêuticos a adoptar, do que a dar resposta mais imediata e instrumental às
dificuldades e sofrimento do momento dos doentes, no que, ironicamente (para quem
ainda instasse por visões simplisticamente dicotómicas destes actores), se em
substituídos pelo pragmatismo clínico de médicos assistentes, mais responsáveis pela
gestão de cada caso individual do que pelos processos mais amplos de pesquisa da
doença como entidade ainda indeterminada (Akrich et al., 2008: 48).
Nessa medida, se as associações se conformaram estruturalmente como campo de
produção e circulação de saberes leigos, as trajectórias de representação que levam as
associações a assumirem papéis de articulação em dinâmicas de investigação não
podem ser deduzidas univocamente da natureza, especificidade e legitimação social
daqueles saberes, para prefigurar propositivamente dinâmicas marcadamente
diferenciadas de regulação do campo da saúde em contraponto à dominância dos
saberes periciais. Seria, aliás, se assim não fora, que se poderia discutir em que medida
essa emergência e consequente prefiguração participativa de novos actores sociais nas
esferas regulatórias, de acordo com guiões pré-estabelecidos, configuraria efectivamente
uma politização dessa regulação, ao alienar previamente dessa deliberação a margem de
incerteza que qualquer processo político inerentemente comporta.
Que saberes, em que diálogo(s), nas trajectórias de representação regulatória das associações de doentes?
101
NOTAS CONCLUSIVAS
Se contextos de incerteza na produção e difusão de conhecimento são propícios à
discussão de novas formas de engenharia social de regulação dessas dinâmicas,
nomeadamente da ampliação participativa dos processos de tomada de decisão (e de
definição das próprias decisões a tomar), de produção, e de controlo da aplicação do
conhecimento, o enfoque propositivo nessas dinâmicas não pode acarretar o obnubilar
das processualidades e das linhas de estruturação que marcam a emergência dessas
dinâmicas e as morfologias peculiares que assumirão.
O caso em análise, das trajectórias de representação e veiculação de saberes leigos
pelas associações de doentes, enquanto actores mediadores de uma possibilidade de
esses saberes encontrarem voz participativa nos processos regulatórios no campo da
saúde e seus esteios epistémicos terá, espera-se, exemplificado como o alçar dessas
vozes (e dos saberes que originalmente comportam) a processos de participação
institucional implica modulações várias na sua morfologia, por forma a adequá-los, da
especificidade dos seus contextos de produção imediata, à circulação em contextos
institucionais de organização da participação, e de acordo com os juízos estratégicos dos
actores que os representam, em face das possibilidades e limites percepcionados à sua
acção na estrutura desses contextos.
Daí decorre poder este caso constituir uma narrativa cautelar para o risco analítico
para a, também, produção de conhecimento sobre estes processos, de fazer confluir (por
inclinação propositiva) a apreensão do diálogo contemporâneo entre saberes
privilegiadamente para as esferas institucionais de participação. Ainda que verificando-se
estratégias, mesmo que relativamente rarefeitas, de projecção institucional das
associações no universo da pesquisa e das esferas regulatórias, como uma dinâmica
relevante a acompanhar, ao abrir a lente analítica ao espectro de actuação dos saberes
leigos (tal como potenciados e enformados, neste caso, pelas associações de doentes),
podemos verificar como o seu âmbito central de consequência epistémica continua
sediado numa modulação da circulação e apropriação (e, no limite, mesmo da produção)
de saberes e recursos periciais para a gestão de experiências incorporadas de saúde e
doença. Tal, por um lado, torna o seu tendencial particularismo pouco atreito a configurar
a circulação desses saberes fora dos seus contextos de produção como a arena por
excelência da sua consequência social. Por outro lado, pelo seu carácter parcialmente
subsidiário de outros saberes mais formalizados, as suas formas explícitas de projecção
no campo da produção de saberes periciais podem facilmente tender mais a potenciar o
aprofundamento de formas de regulação pericial das suas condições que promover
formas de contestação das mesmas.
Telmo Costa Clamote
102
Num sentido ou noutro, na indeterminação constitutiva dos processos de politização,
convirá sempre não perder de vista que será nos terrenos fenomenológicos dos saberes,
práticas e experiências leigas, a jusante e a montante destes processos de articulação
institucional, que se poderá explicar e reencontrar analiticamente a consequência social
do que nessas processualidades propositivas, em seu nome, se projectou.
TELMO COSTA CLAMOTE
Formação em Sociologia pelo ISCTE e pela Faculdade de Economia da Universidade de
Coimbra. Investigador do CIES, ISCTE-IUL e docente na Escola Superior de Tecnologia
da Saúde de Lisboa (ESTeSL-IPL). Interesses de investigação sociológica nos domínios
da saúde, da ciência e do conhecimento, desenvolvidos em torno de objectos de análise
como o pluralismo médico e as lógicas e práticas leigas em relação com a informação
sobre saúde.
Contacto: telmocostaclamote@gmail.com
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... Given the absence of institutional channels capable of promoting regular participation, as emphasized in the last two national health plans (2004-2011 and 2012-2016), the role played by these associations in the health decisionmaking processes has proven essential, especially because it has exerted growing pressure since 2000 in opening the health decision-making process to their participation, valuing their special expertise. Some studies in Portugal highlight the activism in the associative movement in HIV/AIDS 43 , diabetes, fibromyalgia, chronic fatigue syndrome, hepatites 44 , and rare diseases and in defense of humanized childbirth 45 . ...
... As mentioned above, patients' associations also act in Portugal (as in other countries of Southern Europe) as prime spaces for citizens' participation, given their capacity to produce knowledge and influence health governance 44 . ...
Conference Paper
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The purpose of this presentation is to analyze citizens’ participation (CP) in the health systems of Greece, Italy, Portugal and Spain, which will be framed under Southern European countries Welfare State “model”. Through a review of the existent sanitary regulations, health plans and published literature on CP in the health sector, citizen participatory practices will be analyzed. First, the main stages of the health reform processes will be described, so that we can take into account the context in which such experiences of participation in the health domain have been developed. Then, the preliminary results of the research on CP experiences in the health systems of the four countries will be presented. Some of the research results are noteworthy: a) citizens’ participation in the decision¬ making process on health has become the focus of attention of the public policies only after the 1990; b) there has been a significant progress in the regulatory framework and in the acknowledgement of users’ rights, particularly in Italy, Portugal and Spain; c) the development and implementation of participatory mechanisms were insufficient, discontinuous and limited to certain geographic regions; d) in Greece, despite the intentions to implement participatory practices within national health system, those do not exist until today; e) the scientific production and theoretical contribution of the South European Countries on the subject of public participation in the health sector still is insufficient. To conclude, some reflections on the possible developments of citizen’s participation within the health systems of the Southern European macro¬region will be proposed.
... Given the absence of institutional channels capable of promoting regular participation, as emphasized in the last two national health plans (2004-2011 and 2012-2016), the role played by these associations in the health decisionmaking processes has proven essential, especially because it has exerted growing pressure since 2000 in opening the health decision-making process to their participation, valuing their special expertise. Some studies in Portugal highlight the activism in the associative movement in HIV/AIDS 43 , diabetes, fibromyalgia, chronic fatigue syndrome, hepatites 44 , and rare diseases and in defense of humanized childbirth 45 . ...
... As mentioned above, patients' associations also act in Portugal (as in other countries of Southern Europe) as prime spaces for citizens' participation, given their capacity to produce knowledge and influence health governance 44 . ...
Article
Full-text available
The current article analyzes existing mechanisms for public participation in health systems in the countries of Southern Europe. Results are presented from a literature review focusing on public participation in health systems, highlighting the potentialities and challenges emerging from the principal national experiences in the respective countries: Spain, Greece, Italy, and Portugal. The article begins by characterizing the health systems, then presents the methodology followed by the results of the analysis in each country, emphasizing the different forms of participation, both institutionalized and non-institutionalized. The study's principal conclusion is that a legislative discourse has prevailed, which in most cases has not materialized in actual participatory practices; meanwhile, non-institutionalized forms of participation have emerged with a special leading role in the health area, featuring protests, largely spurred by the current economic crisis.
... As associações de doentes atuam em Portugal enquanto espaços de participação cidadã, dada a sua capacidade de coproduzir conhecimento e inluenciar a governação da saúde. As trajetórias de representa- ção pelas quais as associações de doentes projetam, modulam e fazem circular os saberes leigos, a partir dos seus contextos informais de produção, para esferas institucionais de deliberação regulatória no campo da saúde, caracterizam-se pela apropriação relexiva dos saberes periciais, embora demonstrando os seus limites porque assentes nas experiências incorporadas da doença (Clamote, 2011). ...
Article
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Neste artigo, abordamos o envolvimento das mulheres através das plataformas online da Asso­ciação Portuguesa de Fertilidade e da sua congénere francesa, a Association MAIA, na promoção do direito à saúde e do acesso à Procriação Medicamente Assistida (PMA) com dadores terceiros (ovócitos e/ou espermatozoides). Além de recolherem informações e partilharem de experiências, os membros das associações afirmam o seu direito a participar publicamente e de forma ativa na luta contra a falta de dadores de gâmetas, de informações sobre as doenças associadas à infertilidade ou sobre as técnicas de PMA disponíveis, em particular os tratamentos com recurso a doação de gâmetas. A internet funciona como fonte de responsabilização e ativismo. A partir do nosso projeto de pós-doutoramento, propomo-nos abordar esta questão, teórica e empiricamente, com base na análise de fóruns de discussão online de associações de doentes com infertilidade e de entrevistas com mulheres que recorreram à PMA com doação de gâmetas.
Chapter
This chapter presents the characteristics of the southern healthcare systems, namely of Portugal, Spain, Italy and Greece. It briefly identifies the main processes of health reform so that readers can understand the context in which experiences of participation in the health domain were developed.
Chapter
This chapter presents the characteristics of the southern healthcare systems, namely of Portugal, Spain, Italy and Greece. It briefly identifies the main processes of health reform so that readers can understand the context in which experiences of participation in the health domain were developed.
Article
This article discusses the relationship between information sources and social practices in the use of medicines and other products for performance purposes. Setting it against the backdrop of contemporary infoscapes, we analyze how the plurality of information sources they comprise are articulated in informational trajectories, which structure consumption practices and dispositions. These trajectories enable us to grasp the diversity of social avenues through which this social logic of consumption is advanced. Particularly, we will emphasize its articulation with processes of medicalization and individuals' contexts of action, and its implications. The empirical evidence for this discussion comes from a national study on performance consumptions among young people in Portugal
Article
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This text analyses lay people’s forms of knowledge and rationalities which frame self-medication practices. After a brief critical review of the main theoretical peaks of the analysis of lay knowledge vis-a-vis expert knowledge, the aim is to demonstrate current forms of lay appropriation and reconversion of expert knowledge and the modalities of expertisation which such lay knowledge uncover. In contradistinction to the sociological potentiality contained within these forms with a view to developing new spaces for lay people’s autonomy, a discussion is developed on the new forms of lay dependence with regard to expertisation by means of the thematics of self-medication and of a typology of modalities of lay cognitive construction made up of spontaneous forms of knowledge, mediated knowledge and confirmed knowledge. The constructed nature of these forms of knowledge, which are not merely mimesised as a result of contact with expert sources, leaves open the need for a new epistemologic dialogue among the different theoretical currents which address reflexivity in modern societies.
Article
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Les associations de malades jouent un role grandissant dans le soutien a la recherche sur les maladies qui les concernent. En quoi consiste ce role ? Toutes les associations sont-elles impliquees de la meme maniere, ou bien existe-t-il une pluralite de formes d’engagement ? Et si oui, comment en rendre compte ?La reponse a ces questions depend des pays, de leurs cadres institutionnels et de leur histoire. Elle depend egalement de la nature et des caracteristiques des maladies. Mais au-dela de la diversite des configurations, il est possible de decouvrir des formes d’engagement typiques.Cet article s’efforce de fournir de premiers elements d’information et de reflexion. Etant donne le peu de travaux disponibles, il se concentre essentiellement sur le cas francais pour essayer d’en degager des lecons plus generales. Il montre l’implication croissante des associations dans la recherche. Il propose de distinguer deux types d’association selon le role qu’elle assigne aux malades, les associations-auxiliaires et les associations-partenaires. Il souligne l’originalite des associations-partenaires qui tendent a combler le traditionnel grand partage entre specialistes et profanes.
Article
Isabelle Baszanger: Chronic pain, medical work and experience ofillness. Recent sociological research about pain, in particular chrome pain, is part of a broader current of sociological inquiry into the problems raised by chronic illnesses. This inquiry is organized around two major axes: the relationship between chronic illnesses and medical work; and the patient's experience of chronic illness. The first two parts of this article examine the place of research on pain in and its contribution to the sociological literature. The third part, based on personal field work, indicates how reflexion on chronic pain and its medical treatments help us to understand the relationship between medical work and the subject's experience; and paths of possible research are pointed out.
Article
The concept of popular epidemiology is updated by examining it as a form of citizen science and a type of social movement. As a citizen science, popular epidemiology is a lay way of knowing that is based in part on an appropriation of expert knowledge by non-experts. As a social movement, popular epidemiology is a mobilization of citizens around the goal of identifying and ameliorating environmental stressors and local illness patterns. The updated concept of popular epidemiology shows the important influences of the environmental justice movement and of critical epidemiology among professional epidemiologists. Case study materials are provided to illustrate arguments.
Article
This paper examines the explanatory value of Fleck's conceptual analysis with regard to the development of medical knowledge. The discussion is illustrated by empirical data gathered as part of an on-going study into Repetitive Strain Injury (RSI), a condition currently disputed within medical circles. Whilst there is empirical substantiation for some of Fleck's beliefs, the findings suggest his notion that general practitioners are educated and patients uneducated is too simplistic; in particular circumstances these attributes may be reversed. Furthermore, there is little evidence to show that ideas are circulated and exchanged between specialists, GPs and a lay audience; according to this revised view, medical knowledge is determined by experts alone. By invoking an extended version of Collins' notion of the ‘core-set’, the paper considers how seemingly marginal actors can exploit their technical competence and thus play an influential role in medical debate.
Chapter
Economic ActionThe concept of economic actionReligious Ethics and Economic RationalityThe Market: Its Impersonality and EthicClass, Status, PartyEconomically Determined Power and the Status OrderDetermination of Class Situation by Market SituationStatus HonorParties
Article
This article examines new forms of techno-science-society interactions, in which non-scientists work with scientists to produce and disseminate knowledge. The term “research in the wild” is coined to name a special version of this new phenomenon. The primary illustration for this new form of research is connected with the Association Française contra les Myopathies (AFM), the history of which is particularly suitable for exploring certain mechanisms at work in the co-production of scientific knowledge and social identities. The article first compares laboratory research with research in the wild, emphasizing patient interest in maintaining control over cooperation. It then notes the intimate interrelations between the construction of patient identities and the collective form of research in which they participate. Finally, it examines the role of genetics, both as it is integrated into the construction of the collective, and also into the production of mechanisms of exclusion—the reverse side of the constitution of a collective identity.