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Ciˆ
encia e Sociedade (CS), Rio de Janeiro, CBPF, v. 2, n. 1, 2014
dx.doi.org/10.7437/CS2317-4595/2014.01.006
Leˆ
onidas de Mello Deane (1914-1993)
Leˆ
onidas de Mello Deane (1914-1993)
Luiz Fernando Ferreira
Membro Correspondente da Academia Paraense de Ciˆ
encias
Pesquisador Em´
erito da Fundac¸ ˜
ao Oswaldo Cruz
Adauto Ara´
ujo
Membro Correspondente da Academia Paraense de Ciˆ
encias
Pesquisador Titular da Escola Nacional de Sa´
ude P´
ublica Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz)
Este pequena resenha sobre o pesquisador paraense Leonidas de Mello Deane d´
a sequˆ
encia `
a s´
erie iniciada
na Revista NORTE CI ˆ
ENCIA (ISSN 2177-4315) da Academia Paraense de Ciˆ
encias, sobre cientistas que se
formaram no Par´
a e exerceram suas pesquisas em outros estados brasileiros. O m´
edico Leonidas Deane foi
um grande pesquisador que deixou contribuic¸ ˜
oes fundamentais para o conhecimento das doenc¸as infecciosas
endˆ
emicas no Brasil ou importadas de outros pa´
ıses. Dentre elas, as leishmanioses e a mal´
aria. Neste breve
relato sobre Leonidas Deane, mostramos sua importˆ
ancia como cientista e como formador de novas equipes de
pesquisadores.
Leˆ
onidas Deane era um grande desenhista e pesquisador
dos mais importantes no Brasil. Conhecedor de m´
usica,
apreciava o jazz, al´
em de muito interessado na hist´
oria.
Tinha um cultura geral muito grande, era de uma bondade
enorme, paciente, incapaz de uma palavra grosseira ou de
um gesto r´
ıspido, em qualquer situac¸˜
ao.
Nasceu em Bel´
em do Par´
a em 1914, filho de Leonard
Eustace Deane e Helv´
ecia de Mello Deane. Seu pai era
inglˆ
es, e conheceu sua m˜
ae em Bel´
em. Leˆ
onidas estudou
medicina na Faculdade de Medicina e Cirurgia do Par´
a e foi
professor de microbiologia nesta instituic¸˜
ao.
Nos anos 1930, Henrique Penna, que trabalhava para a
Fundac¸˜
ao Rockfeler, examinou material de viscerotomia e
encontrou os primeiros casos de Calazar na regi˜
ao. O jovem
pesquisador Evandro Chagas, do Instituto Oswaldo Cruz, vai
para o Par´
a, em Abaetetuba, e inicia os primeiros estudos
sobre a doenc¸a. Re´
une um grupo de jovens cientistas,
entre eles Leonidas e Gladstone Deane, Ot´
avio Mangabeira
filho, Felipe Nery Guimar˜
aes, Geth Jansen e Maria Jos´
e
Paumgarten, que depois se casaria com Leonidas.
O governador da ´
epoca, Jos´
e Carneiro da Gama Malcher,
criou ent˜
ao o Instituto de Patologia Experimental do Norte,
dedicado ao estudo de doenc¸as tropicais. Quando da morte
de Evandro Chagas em 1940, em acidente a´
ereo no Rio
de Janeiro, o instituto passou a chamar-se de Instituto
Evandro Chagas em sua homenagem, hoje reconhecido
internacionalmente.
Em dezembro de 1936, Leonidas Deane e seus companheiros
fizeram a primeira viagem de trabalho de campo, junto com
Evandro Chagas, para a cidade de Abaet´
e, depois chamada
de Abaetetuba. Foi tamb´
em o primeiro contato com a selva,
com redes armadas sob as ´
arvores. Dirigiram-se depois para
um lugarejo chamado Piratuba e l´
a encontraram os primeiros
casos in vivo de Calazar. Examinavam as pessoas do lugar e
naqueles em que o bac¸o estivesse aumentado, praticavam a
viscerotomia, retirando um fragmento de tecido do bac¸o para
exame microsc´
opico `
a procura de Leishmania donovani. Os
artigos publicados resultantes desta primeira viagem foram
muito importantes para o conhecimento da doenc¸a na regi˜
ao
norte, e at´
e hoje referenciados nos estudos sobre a doenc¸a e
este parasito.
Em 1928, Adolpho Lutz esteve em Natal para escolher
o local onde seria constru´
ıdo um lepros´
ario. Por suas
pesquisas, Lutz supunha que a lepra poderia ser transmitida
por mosquitos e estudou as esp´
ecies que se encontravam na
regi˜
ao. As viagens transatlˆ
anticas comec¸avam a crescer e o
cientista chamou a atenc¸˜
ao do governo para a possibilidade
de introduc¸˜
ao de novas esp´
ecies de vetores introduzidas por
este meio. Logo houve a invas˜
ao de Anopheles gambiae
e Deane engajou-se na pesquisa da mal´
aria. Em suas
viagens para trabalho de campo h´
a passagens memor´
aveis,
registradas em depoimentos para a Casa de Oswaldo Cruz:
“O padre C´
ıcero tinha deixado como tradic¸˜
ao a ideia de que
o demˆ
onio vinha tentar provocar o fim do mundo. Ele viria
primeiro sangrando a populac¸˜
ao. Depois, no ano seguinte,
o diabo viria furando os olhos e no terceiro vinha matar
todo o mundo. Acontece que a nossa caminhonete tinha
o n´
umero 666, que ´
e o n´
umero do Apocalipse. Chegavam
aqueles trˆ
es camaradas, meu irm˜
ao, Maria e eu, tirando
sangue das pessoas – a primeira profecia do Padre C´
ıcero.
N´
os est´
avamos tirando sangue para procurar mal´
aria, mas
ficaram muito desconfiados conosco (...).
Houve dois epis´
odios de besta-fera comigo. Um dia, em
Iguatu no sul do Cear´
a, cheguei numa casinha onde s´
o tinha
uma mulher e duas crianc¸as, tremendo de medo. Eu estava
com dois guardas e expliquei para elas que ia tirar sangue,
n˜
ao do´
ıa nada, ia primeiro tirar das crianc¸as, para mostrar
que n˜
ao do´
ıa. Enfim, aquela conversa de sempre. Mas elas,
nada, tremendo, uns olhos assustad´
ıssimos. Perguntei por
que estavam assim. O guarda foi falar com elas e me disse:
Elas dizem que est˜
ao com medo que o senhor seja o diabo.
46 Luiz Fernando Ferreira & Adauto Ara ´
ujo
O senhor tem que provar que n˜
ao ´
e o diabo tirando as botas
para mostrar que n˜
ao tem p´
es de cabra. Tirei as botas, as
meias, para mostrar que meu p´
e n˜
ao era de cabra. Ent ˜
ao elas
deixaram tirar sangue.
Em Ic´
o aconteceu a mesma coisa, em outra casa e o guarda
me disse o que elas estavam querendo que fizesse: tinha
que fazer o sinal da cruz em frente ao crucifixo. E ele
acrescentou: elas disseram que se o senhor n ˜
ao explodir com
cheiro de enxofre, deixam tirar o sangue. Fiz o que queriam”.
Em 1953, foi convidado pelo Professor Samuel Pessoa,
para compor sua equipe de professores de parasitologia na
Universidade de S˜
ao Paulo. O pesquisador da Fundac¸ ˜
ao
Oswaldo Cruz, Wladimir Lobato Paraense, colega de
Leonidas Deane na Faculdade de Medicina e Cirurgia do
Par´
a, diz sobre ele:
“Era verdadeiramente modesto, raiando pela timidez,
incapaz de uma ofensa, sempre disposto a ajudar. Nunca
ouvi falar mal de ningu´
em, como nunca soube de algu´
em
que tivesse tido este privil´
egio. Para mim, Leonidas sempre
representou a encarnac¸˜
ao da pureza”.
De fato, em 1981, Leonidas Deane e Lobato Paraense
compunham o Comitˆ
e do Prˆ
emio Samuel Barsley Pessoa,
durante o Congresso da Sociedade Brasileira de Parasito-
logia em Belo Horizonte, e escolheu um dos primeiros
trabalhos nossos em Paleoparasitologia como primeiro lugar,
distinguindo-o como o mais original. Por´
em, no ano anterior,
levei a ele minha dissertac¸˜
ao de mestrado sobre os achados
de parasitos em material arqueol´
ogico no Brasil. Pediu-
me dois dias para ler, depois me ligou e fui vˆ
e-lo em seu
laborat´
orio. Disse-me que havia gostado do assunto, por´
em
n˜
ao entendia nada daquilo e precisaria tempo para ler os
artigos e investigar mais a fundo. Tinha muitas tarefas pela
frente e n˜
ao teria tempo para isso. Pediu-me desculpas (!) e
devolveu-me o trabalho. No ano seguinte viria o prˆ
emio.
Leonidas Deane estudou e fez o mestrado na Universidade
de Johns Hopkins, em Baltimore, e depois na Universidade
de Michigan, ambas nos Estados Unidos. Ao longo de
sua carreira, Leonidas Deane recebeu in ´
umeros prˆ
emios e
distinc¸ ˜
oes, entre os quais, Prˆ
emio Oswaldo Cruz, Medalha
Carlos Chagas, Medalha Gaspar Vianna, Prˆ
emio Moinho
Santista, Medalha Henrique Arag˜
ao, entre outras. Foi
ainda professor da Faculdade de Medicina do Norte do
Paran´
a, cientista visitante do Col´
egio Imperial, em Ascot,
Inglaterra, e professor da Universidade Federal de Minas
Gerais. Al´
em de ter trabalhado ainda na Universidade de
Carabobo, Venezuela (1976-1979), e no Instituto de Higiene
e Medicina Tropical de Lisboa (1975).
Ao voltar ao pa´
ıs, ingressou na Fundac¸ ˜
ao Oswaldo Cruz,
juntamente com sua insepar´
avel companheira, Maria Deane.
Ele no Departamento de Entomologia e ela no Departamento
de Protozoologia, no Instituto Oswaldo Cruz, chefiando
estes departamentos e formando equipes de not´
aveis
pesquisadores. Permaneceu em atividade, mesmo depois de
sua aposentadoria compuls´
oria, vindo a falecer em janeiro de
1993.
Ao terminar esta breve resenha, reproduzimos o belo poema
de Eduardo Tosta, professor da Universidade de Bras´
ılia, por
ocasi˜
ao da morte de Leonidas Deane:
Foi-se o gigante franzino
Que nos extasiava com lic¸ ˜
oes de sabedoria e simplicidade
Mostrando que ´
e poss´
ıvel ser erudito sem ser arrogante
E ser puro em um mundo corrompido
Foi-se o exemplo de abnegac¸˜
ao
Que provou com sua vida que o conhecimento liberta
E que o trabalho representa
Uma fonte perene de redenc¸ ˜
ao
Foi-se o mestre
Que ensinava aos mestres os segredos da vida
E que no decifrar os segredos da vida
Nos deixava mais pr´
oximos de Deus
Foi-se a alma peregrina
Ao encontro de um recanto de menos sofrimento
Para poder ensinar aos anjos
Os mist´
erios das esp´
ecies cr´
ıpticas
Ficam legi˜
oes de ´
orf˜
aos.
Carlos Eduardo Tosta
Bras´
ılia, Fevereiro de 1993
Leonidas e sua esposa Maria
Leituras recomendadas
Lacaz CS 1998. A tribute from the Tropical Medicine
Institute of S˜
ao Paulo in memory of Leonidas de Mello
Deane and his wife Maria Jos´
e von Paungarten Deane.
Revista do Instituto de Medicina Tropical de S˜
ao Paulo 40:
http://dx.doi.org/10.1590/S0036-46651998000400013
Depoimentos da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz
http://www.coc.fiocruz.br/index.php/patrimonio-
cultural/acervo-arquivistico/acervo-de-historia-oral
Canal Ciˆ
encia, IBICT. Entrevista a Nilc´
ea Freire
http://www.canalciencia.ibict.br/notaveis/livros/
leonidas e maria deane 32.html
Paraense WL 1993. Leonidas de Mello Deane. Mem ´
orias do
Instituto Oswaldo Cruz 88: http://dx.doi.org/10.1590/S0074-
02761993000100002