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Abstract

The article deals with ethical principles which are the grounds for the rhetorical codification of the Wapishana, people belonging to the Maipura/Arawak linguistic branch, and living between the rivers Branco and Rupununi, at the border of Brazil and Guyana. According to this codification, there is a necessary link between soul and language, which associates its decorous use - as dialogue par excellence - to the human sociability. Through this, the article seeks to establish the Wapishana conception of human nature.
A ÉTICA DA PALAVRA ENTRE OS
WAPISHANA*
Nádia Farage
No começo, dizem os Wapishana,
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"quando o céu era
perto, tudo falava, era puri", magia. Céu e terra eram então
indiferenciados, bem como indiferenciados eram os seres
que os habitavam, porque sua fala era uma só.
Era sobretudo plástico aquele mundo original, e a força de
o moldar encontrava-se na palavra: "Antes falava e mudava
as coisas. Tudo agora está feito". Eficaz, criativa, a
palavra provocava transformações contínuas, que deram ao
mundo a feição que ele ainda hoje guarda: cachoeiras, rios,
montanhas assim se criaram, em batalhas verbais entre os
demiurgos.
O tempo de antes está, porém, irremediavelmente perdido.
O mundo, tal como o conhecemos hoje, apresenta-se como
o reverso da plasticidade original; o mundo está pronto e é
"duro", resiste à intervenção humana. Isto porque,
explicam os Wapishana, a fala perdeu sua força produtiva
propriedade, originalmente, de toda fala. Sua magia hoje
só se manifesta no interior do discurso ritual.
O mundo de hoje é, assim, resultado da ruptura de uma
ordem primordial, ruptura que diferenciou o tempo e o
espaço e provocou a especiação. A especiação, por seu
turno, repousou sobre uma distribuição desigual da fala:
perderam-na muitas espécies, motivo básico pelo qual se
tornaram outras espécies ou, como gostam de dizer os
Wapishana, qualidades , fazendo com que a fala
articulada seja hoje atributo quase exclusivo da
humanidade, que a distingue dos outros entes que povoam
o mundo. Assim, a fala articulada é, aos olhos dos
Wapishana, o que os faz humanos.
Nesta concepção se encapsula a ética que funda o sistema
retórico Wapishana: o atributo da fala e seu uso decoroso
circunscrevem a condição humana, seu tempo e limites.
G. Calamé-Griaule, em posfácio ao seu Ethnologie et
langage (1987), afirma explicitamente que o estudo da noção
de pessoa é via privilegiada para uma antropologia da
linguagem, em particular, para a estilística, uma vez que a
noção de eu subjaz, no mais das vezes, aos modos
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convencionados da expressão. A reflexão sobre a condição
humana entre os Wapishana evolve, com efeito, de um
vínculo necessário entre a alma e a fala, que o presente
artigo busca explorar.
Do silêncio
A fala articulada, para os Wapishana, é índice de
humanidade. Devo notar que não negam, entretanto, um
estatuto humano a outros povos: humanos falam, sejam
eles brancos, ingleses ou brasileiros, Macuxi ou Wai-Wai. A
ininteligibilidade mútua das línguas, ainda que motivo de
desentendimento e contenda, não remete, contudo, a uma
outra natureza dos falantes. Mas, se a fala é humana por
excelência, poder-se-ia deduzir que não humano é o que
não fala. Sim e não é a resposta, mas, para obtê-la, que
se buscar os contrapontos possíveis no domínio não-
humano. Detenho-me, para tanto, em uma noção crucial
neste domínio, a noção de panaokaru.
Não posso oferecer uma tradução precisa do
termo panaokaru (pl.: panaokarunao). Os Wapishana o
traduzem genericamente por "bicho", "animal". Em uma
primeira acepção, o termo panaokaru aplica-se aos animais
selvagens; os animais domésticos, sobre serem panaokaru,
são qualificados de wa'uznao, nossa criação. Mas o
termo panaokaru possui outra acepção, que aqui nos
interessa de perto: como explicam os Wapishana, trata-se,
em sentido lato, da alma das coisas. Tudo o que existe tem
panaokaru, tudo o que a gente lembra, à exceção dos humanos e
de uma categoria particular de plantas de que tratarei
adiante, caracterizados por outro princípio,udorona.
Vultos, ruídos, imagens cambiantes e apenas entrevistas
"nunca ouviu pau rangendo no mato? É isso daí", dizem os
Wapishana , a realidade panaokaruse mede em sintomas,
ou efeitos (Viveiros de Castro, 1986, p. 506; veja-se ainda
Deleuze, 1974, e Derrida, 1991), que consistem, via de
regra, em uma gama variada de doenças, que vão das
marcas vermelhas nas pernas das crianças sinal evidente
de que, alta noite, enquanto todos dormiam, foram tocadas
por panaokaru , das feridas que não cicatrizam, até as
febres que resultam letais.
Os efeitos panaokarunao guardam como tema comum a
predação sobre os humanos, predação cujas modalidades
podem variar, seja no vampirismo ou na necrofagia, mas
que invariavelmente resulta em doença e morte. Por sua
vez, a doença, a morte e os maus odores em geral
incluída a menstruação são estados que atraem a
predação panaokaru. Para o panaokaru, dizem os Wapishana,
exalamos sempre um odor de caça.
Os panaokarunao flecham os homens o que é atestado
por feridas incomuns, de difícil cicatrização e cobiçam
as mulheres, em particular mulheres menstruadas, que lhes
são excepcionalmente atraentes. Até mesmo os meninos
são freqüentemente advertidos a não chutar pequenos e
indefesos caracóis ou ser cruéis com os lagartinhos
pintados, porque kwito tunuz, seu pai, irado, pode lhes
roubar a alma.
O ardil caracteriza a predação panaokaru, entrelaçando os
campos do sexo e da caça:
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em outras palavras, a sedução
erótica é sua armadilha de caça. Inúmeros são os casos de
humanos que tiveram sua alma quase ou efetivamente
roubada por panaokaru que se lhes apresentou, sob
aparência enganosamente sedutora, oferecendo comida e
sexo; não raro, assumem a forma de brancos, bonitos,
ostentando carros, motocicletas e bolsas repletas de
dinheiro.
Indício seguro de que humanos foram atraídos
por panaokarunao é a perda de apetite, saciados que ficam
pela comida que oferecem. A corte de um panaokaru a uma
humana se exerce, com efeito, sobretudo através da oferta
de alimento.
Em paralelo ao antialimento que oferta, o sexo
com panaokaru, que se realiza, preferencialmente, em
período menstrual, é infecundo, traz doença e morte. Se
eventualmente resulta em gravidez, esta é igualmente uma
antigravidez cujos sintomas são violento inchaço, dores
no ventre e retenção urinária que não produz crianças,
A ÉTICA DA PALAVRA ENTRE OS WAPISHANA
apenas água. Noto que, muito embora mais vulneráveis,
não apenas as mulheres estão sujeitas à atração
pelos panaokarunao; homens igualmente podem ser levados
à doença e à morte pela sedução erótica depanaokaru.
Sua realidade é a dos sonhos, dos delírios febris, das viagens
xamânicas. Inútil seria sublinhar que não se trata de um
grau menor de realidade ante àquela humana, mas
propriamente de outra ordem de realidade. Afirmam
explicitamente os Wapishana: "sonhando, vemos gente,
mas é bicho". E explicam ainda: "panaokaru ninguém vê, só
em sonho. É a mesma coisa que você estar em São Paulo e
eu sonhar com você, porque acordado não vejo mais."
Comer em sonho, fazer sexo em sonho, estabelecer, enfim,
o convívio com os panaokarunao em estados oníricos ou
febris nos retira da realidade dos vivos:
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"tudo eles têm, por
isso pegam a gente e dão comida, mingau, a gente não quer
comer mais. Comemos em sonho." Atração fatal, sem
dúvida, que nos faz desistir da existência humana para
adentrar o campo do outro, percurso que poucas vezes tem
volta.
Em contrapartida, pode-se sugerir que estados que
constituem descentramentos em relação à medida humana
atraem, metonimicamente, à esfera panaokaru: o jejum,
transgressão da boa dieta alimentar, bem como o desejo
frustrado e a paixão obsedante carência e excesso,
respectivamente, diante do pacto amoroso predispõem
o sujeito à sedução predatória do panaokaru. Nesta linha, o
luto, a doença e a menstruação situações
consideradas dipshan, podres constituem limites
extremos de descentramento, que oferecem maior perigo
de predação.
Importa-nos reter que o caráter enganoso da
imagem panaokaru igualmente se aplica à sua voz. É opinião
geral que panaokaru não fala, possuindo apenas um
grunhido ininteligível que em nada se assemelha à fala
humana. O xamã, marinao, pode, no entanto, entender seu
grunhido: quando presente em uma sessão xamanística,
nenhum dos assistentes pode compreender sua cantiga,
apenas o marinao pode explicá-la.
Isto poderia nos levar a entender que, embora ininteligível
ao comum da gente, panaokaru possuísse língua própria. Tal
não se dá, porém: à falta de língua própria, panaokaru é
imitação da voz humana, apenas imita a fala articulada.
Para além da ininteligibilidade, maior vácuo comunicativo
se impõe, pois panaokaru é voz que não se escuta do interior
da sociabilidade humana: "a gente não entende nem escuta
fala de panaokaru". De modo análogo ao que vimos ocorrer
com a imagem, dar ouvidos a esta fala leva necessariamente
à doença e, em um limite, à morte:
Kwap'taka é gente mesmo, quando fala com a gente, ficamos
doentes.Kamara[o eco] também. Yatchim[a gripe e a malária]
gosta de andar no sol quente, por isso o se pode levar
criança no sol quente, porque bicho fala para ela não
precisa encostar, fala de longe , criança fica doente,
fica doida, chora. Faz mal conversar com bichos, a gente
fica doente. A fala deles é diferente. Não presta conversa
de bicho.
Comunicação de tal sorte deve ser evitada, portanto, sob
pena de inviabilizar a comunicação com os vivos,
inviabilidade que a morte física expressa. E, como se
percebe, a comunicação com a esfera panaokaru vai se
tornando possível à medida que enfraquecem os laços
comunicativos com os vivos, aque cesse de vez toda a
possibilidade de diálogo humano. Isto afirmam os
Wapishana de forma definitiva: "Quanto mais doente, mais
perto o panaokaru; de longe, é quando a doença começa".
Mas, para bem apreender a antifala panaokaru, devemos
retornar aos fragmentos da cosmogonia dos quais partimos
para esta discussão. Como disse anteriormente, o advento
do mundo atual operou-se sobre uma distribuição desigual
da fala; na especiação que então teve lugar, todos os entes
se transformaram em puri, magia. A força criativa de sua
palavra ficou, assim, nas encantações que hoje só podem
ser atualizadas pela fala humana. Para os Wapishana, tal
ânimo é impessoal; estritamente pessoal é a alma humana,
expressa na fala que os animais muito perderam.
Tomando em consideração a glosa Wapishana para o
termo panaokaru como "bicho" ou "animal", poder-se-ia
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sugerir que panaokaru constitui um princípio genérico de
animalidade que, note-se, virtualidade de todos os
existentes, não se esgota na esfera da natureza. É
virtualidade do homem, inclusive.
Tratando de um princípio essencial das espécies naturais
para os Amuesha na Amazônia peruana, Santos-Granero
(1991, pp. 79-80) observou que o fato de as espécies
naturais serem manifestações de uma essência fala da
imortalidade atribuída à natureza, sua cíclica recorrência em
contraponto à humanidade que, mortal, impõe-se a tarefa
de buscar a imortalidade. Os Wapishana parecem montar
diferentemente sua equação: a alma das coisas possui
recorrência, afeta as coisas que crescem e morrem, mas
carece de transcendência, a que a alma humana pode
aceder.
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Não por acaso os maus odores atraem a
predação panaokaru; atraem-na as coisas fadadas à vida e à
morte, à deterioração.
Mas, para demonstrá-lo, que se buscar o sentido da
transcendência para os Wapishana, segredo que apenas
uma categoria vegetal específica detém plenamente.
Do canto
A classificação botânica dos Wapishana compreende três
grandes categorias: karam'makao, as plantas da mata,
selvagens; wapao'ribao, as plantas domesticadas, cultivadas
na roça; e, por fim, categoria singular, oswapananinao, cuja
tradução, de simplicidade apenas aparente, seria "as nossas
plantas" (wa, pronome possessivo, primeira pessoa do
plural; pananu, panakaru, planta; nao, pl.).
Distinguem-se os wapananinao das demais categorias,
inicialmente, pelo fato de se encontrarem associados à
magia; não apenas porque acompanham fórmulas gicas
e, nesse caso, são seu veículo , mas porque são
geradores de magia.
Os wapananinao, pelo levantamento a que pude proceder,
são, em sua maioria, ciperáceas e cactáceas. Cactos e
tubérculos, em particular estes últimos, caracterizam-se
pelo seu excelente perfume, propriedade que os Wapishana
enfatizam. Outra propriedade fundamental é a secura:
os wapananinao, dizem os Wapishana, brotam no inverno e
atingem seu auge na aridez do verão. Fora da terra, são
mantidos secos; secos, os tubérculos entram na confecção
do pequeno maracá do kamapazo, uma das modalidades do
xamanismo. Secos, ainda, oswapananinao são ingeridos, em
infusão de água fria, pelo iniciando no xamanismo, ingestão
que assegura que passarão a fazer parte da pessoa do xamã.
Assim, para os Wapishana, sequidão e perfume fazem
doswapananinao uma forma de vida singular, única,
radicalmente diferente de humanos ou animais, que o
podem prescindir da umidade para a vida.
A posse e uso de plantas mágicas não devem ser do
conhecimento público. Além disso, sua posse e uso variam
conforme o sexo: usos específicos para homens e
mulheres, e seu conhecimento é vedado de um sexo a
outro, sob pena de perderem a eficácia. Há ainda uma
divisão entre o uso por indivíduos comuns que os
utilizam de forma laica, para garantir seu próprio sucesso, e
o de seus cães, na caça, na pesca, na agricultura, no amor e
tantos mais projetos e interesses humanos e por xamãs.
Estes últimos possuem não um conhecimento de um
espectro mais amplo de plantas, como fazem delas, como
mencionei anteriormente, um uso potenciado.
Os wapananinao são obtidos freqüentemente através de
troca, figurando como item de extremo valor. a troca é
o meio possível de sua circulação; a venda, aliás, é
considerada reprovável, além de ineficaz, porque,
aborrecidos, os wapananinao recusar-se-iam a seguir seus
novos possuidores, bem como vingar-se-iam daqueles que
ousaram lhes ceder a terceiros.
Aqui se desvela a propriedade fundamental
dos wapananinao, a de, tal como os humanos, possuirem
uma alma,udorona, princípio que lhes confere intenção e
vontade. Donos de vida própria: tal é sua diferença radical
com relação às outras categorias botânicas, pois ninguém
os cultiva ou cria, mas eles apenas permanecem com quem
deles melhor cuida. Se se desagradam dos cuidados que lhes
A ÉTICA DA PALAVRA ENTRE OS WAPISHANA
são dispensados, os wapananinao mudam-se, o que é
atestado pela morte aparente da planta. Digo
aparente porque, à diferença dos humanos que com eles
compartilham uma alma, os wapananinao nunca morrem.
Por possuirem em comum com os humanos uma alma
udorona , os wapananinao possuem ainda o atributo da
fala que dela decorre: "os tajás são gente, pode-se conversar
com eles". Porém, o verbo possuir não é o que melhor
descreve esta relação: para os Wapishana,
os wapananinao são alma, que por sua vez é a potência da
fala em grau eminente, o canto. Em canto os wapananinao se
manifestam, e mesmo no interior de um maracá vivem,
falam e, sobretudo, cantam.
Alma/palavra, enfim, despida da matéria que se corrompe
e perece. A secura parece, assim, conotar a imortalidade que
lhes é própria. Infensos à deterioração e ao apodrecimento,
os wapananinao se recusam a agir sob a invocação de
enlutados ou para estes, porque lhes aborrece o odor
putrefato da vizinhança da morte. Mulheres menstruadas
igualmente o podem utilizar os wapananinao, nem
o marinao pode fazê-lo por elas, porque os wapananinao não
gostam do cheiro do sangue. Tampouco as grávidas podem
utilizá-los, por seu peso excessivo. Tal aversão, a meu ver,
não deriva de serem eles suscetíveis a seu contágio, mas
antes porque representam o oposto lógico da podridão:
imortais, imputrescíveis, aromáticos,
os wapananinao configuram o inverso das coisas
deterioráveis e malcheirosas.
Por contraste, esboçam-se na imagem dos wapananinao os
fundamentos de uma fisiologia: a matéria viva, para os
Wapishana, pressupõe a dosagem de umidade, calor e,
pode-se acrescentar, peso. Possuem-na os humanos,
animais e vegetais, mas esta mistura é também a que leva os
corpos à corruptibilidade.
Com os wapananinao -se o contrário: nascidos da umidade
da terra, durante a estação das águas, tubérculos ou cactos
túrgidos alcançam sua plenitude na estação seca, perdendo
mais e mais a seiva e atingindo a leveza aérea do canto.
Leveza de uma alma sem corpo que só eles, dentre todas as
coisas, podem atingir, com exceção dos xamãs que,
ingerindo-os, também tornam-se, eles mesmos, leves e
incorpóreos.
Dotados de alma, o que vale dizer autonomia, ânimo e
vontade próprios, os wapananinao, por serem diferenciados
das outras espécies vegetais, propõem ainda uma relação
com os homens que não pode ser lida sob a ótica da
produção, pois, lembremos, à diferença de todos os outros
cultivos que são reconhecidos como produtos do trabalho
humano, dos wapananinao se diz que ninguém cultiva,
apenas cuida. Os sentidos deste cuidar merecem exame.
Dois epítetos aparentemente contraditórios qualificam a
relação entre humanos e wapananinao: de um lado, referidos
em português, os wapananinao são ditos xerimbabos
do marinao; de outro, são ditos marinaodani, filhos do xamã.
O aspecto animal de estimação esclarecer-se adiante;
detenho-me, por ora, na filiação.
Tratando da relação dos Achuar com suas plantas
cultivadas, Descola (1986) afirma que a filiação postulada
entre mulheres e as plantas de sua roça, que sugam seu
sangue, consiste em metáfora para expressar o desgaste
provocado por uma relação que consome o esforço
feminino em prol da reprodução, desgaste que seria o
atributo compartilhado entre os filhos e o cultivo: ambos
extraem as forças de mulheres.
Antes que metáfora, os Wapishana utilizam a comparação
para referir à relação que mantêm com as plantas mágicas,
enfatizando como termos para tal comparação o zelo, o
cuidado e o respeito mútuo que devem pautar a relação
entre pais e filhos: "Planta de marinao é filho dele, porque
ele planta, cuida, defuma com tabaco todo dia. Cuida como
a gente cuida filho. Todos que têm panakaru podem cuidar
como filhos, dando tabaco."
Assim, a leitura de uma tal relação sob a perspectiva da
linguagem figurada, embora plausível, não me parece
suficiente. Se não, vejamos.
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"A mandioca é nossa mãe", dizem com freqüência os
Wapishana, para em seguida explicitar sua intenção de
metáfora: "porque nos alimenta". Outro, no entanto, é o
estatuto concedido aos wapananinao: aqueles que cuidam
de wapananinao e as plantas sob sua proteção tratam-se,
friso, reciprocamente, por termos que indicam filiação.
Assim, em uma sessão xamanística,
oswapananinaoassociados ao xamã o tratam pelo
termoõdaru meu pai ou õdaro minha mãe, no caso
excepcional de uma xamã mulher , bem como são
tratados por õdani meu filho. A relação de filiação não é
exclusiva do xamã: todos aqueles que cuidam
de panakaru devem cuidar como fazem com seus próprios
filhos, zelando pelo seu bem-estar. Além disso, quando
aparecem aos humanos, em sonhos, vêm sob a forma dos
filhos que temos, falam conosco e fazem suas demandas,
em geral água e tabaco.
Assim sendo, não creio que se possa falar, como o faz
Descola, em uma filiação em sentido próprio, da qual a
relação com as plantas cultivadas seria uma extensão
metafórica. Trata-se, a meu ver, de uma afirmação literal de
filiação, mas, à diferença dos filhos que geramos da carne,
estes são filhos incorpóreos, feitos de alma/palavra, e
concernem diretamente à reprodução do conhecimento
esotérico, da magia.
Para os Wapishana, portanto, a relação com crianças e
plantas gicas, ambas portadoras de alma, pressupõe a
construção de uma relação ativa e recíproca, que envolve o
ensinamento como forma privilegiada do zelo. Assim, a
meu ver, se explica ainda o fato de que é preciso ensinar
os wapananinao a cantar.
Sim, porque é preciso ensiná-los a cantar. Como as crianças,
os wapananinao têm o potencial de fala, que deve ser
desenvolvido: aquele que passa a cuidar de um panakaru o
ensina a cantar. Em contrapartida, após seu aprendizado,
o panakaru passa a ter, por assim dizer, autonomia de canto:
cantará e mesmo poderá ensinar, em sonhos, novos cantos
ao humano que dele cuida.
Passemos ao segundo aspecto, o de animal de estimação.
Tudo o que até aqui alinhamos converge para colocar
os wapananinao, alma/canto, sob a égide da
incorruptibilidade e, assim, da imortalidade. Estas
propriedades os colocariam em oposição simétrica
aos panaokarunao, marcados, como vimos, pela atração do
putrescível e mau cheiroso.
Se assim fosse, tudo não passaria de um fácil e, até certo
ponto, desinteressante dualismo. Porém, não creio que se
possa capturar um ser ou natureza wapananinao: define-os,
antes, uma conduta e o fim a que se destinam.
Indiquei anteriormente que há, para os wapananinao, uma
utilização laica e uma especializada. Certo é que a fronteira
entre ambas é tênue, mas basicamente traçada pelo canto.
Este, por sua vez, é, como vimos, potencialidade da alma,
mas, acrescentam os Wapishana, potencialidade ativada
pelo alimento em tabaco. Assim, a utilização laica pode, em
princípio, dispensar o canto, mas de modo algum o uso
especializado, pois a magia pende do canto.
Mas nem de tabaco se alimentam os wapananinao: o
sangue é considerado um ativador, tão ou mais potente do
que o tabaco, de sua magia. Dizem os Wapishana que o
sangue lhes refina a arte, seja de cura, de caça ou de
vingança.
Eis seu paradoxo: sangue e tabaco concedem o canto em
mais alto grau, mas ao mesmo tempo desatam a virtualidade
animal dos wapananinao. Alimentados com sangue e tabaco,
os wapananinao podem se manifestar sob forma animal.
Assim, saro, a lontra, se manifesta na forma deste animal,
bem como baudokoru, a onça, se apresenta como tal.
"Pananu vira bicho conforme sua qualidade", dizem os
Wapishana, ou seja: em princípio, a forma manifesta é
particular a cada espécie de planta. No entanto, formas das
mais variadas foram reportadas sem que houvesse um
vínculo básico à espécie de planta, como jacamins,
tamanduás, ou mesmo gatos. Em um limite, todos
os wapananinao podem tomar qualquer forma animal e
humana; mas, ainda que sob forma animal, para os
A ÉTICA DA PALAVRA ENTRE OS WAPISHANA
Wapishana, o deixam de ser gente, posto que não se
apaga o fato de que possuem uma alma.
Este estatuto ambíguo parece-me conjugar os dois
qualificativos contraditórios dos wapananinao, que
mencionamos acima: de "filhos" e "xerimbabos".
Enquanto animais de estimação, há que buscar domesticá-
los, direcionando-os a proteger os que deles cuidam: onças
tomam conta de casas na ausência de seus donos, guiam-
nos na mata e mesmo os levam para casa quando estão
bêbados. No entanto, sua ferocidade é algo que pode
escapar ao controle: tomando o que os Wapishana chamam
agudamente de "um gosto por sangue",
oswapananinao podem passar a caçar indiscriminadamente
animais e humanos. Dizem os Wapishana que aqueles
que "estragam" seus xerimbabos, isto é, lhes dão sangue
para lançá-los à vingança, buscando precisamente a
devoração de humanos: do canto passam, assim, à
devoração.
Para domesticar os wapananinao, que não deixar emergir
sua virtualidade animal, o que significa não lhes permitir o
sangue, ainda que isto implique perda de magia. É, pois, a
alta magia figura de excesso que, enquanto tal, escapa aos
desígnios humanos e cobra um alto preço em desastre e
morte.
Nesse sentido, os wapananinao são aquilo que sua conduta
faz deles. O mesmo se dá com os homens.
A medida humana
Pensadores refinados, os Wapishana não postulam que a
alma habite suporte ou recipiente corporal, nem que se
localize imagem a que estamos habituados em uma
parte específica do corpo, seja coração ou cabeça. O
princípio que venho designando como alma, udorona, é o
princípio vital propriamente dito, força que, por si, nos
movimenta e anima; expressa-se no batimento cardíaco, na
respiração e, exponencialmente, na fala
articulada.Udorona existe na pulsação, na respiração e na
fala; sabe-se que há, quando há sangue e voz. Indissociável
do corpo, udorona é o princípio dinâmico que lhe confere
movimento, autonomia e vontade. Sua realidade é ainda
apreendida na sombra forte que projetamos ao sol.
A morte se atesta pela total cessação da respiração, da
pulsação e da fala, o que pode ocorrer sem ser em
definitivo, nos desmaios, no coma alcoólico e demais lapsos
da consciência, eventos todos designados pelo mesmo
verbo, (x) maokan, morrer. Na morte, diz-se
"udorona umakon naa", a alma se vai, ou, de forma mais
eloqüente, diz-se que alguém se calou, umashadan. O destino
após a morte não é objeto de alta elaboração; ao contrário,
diante da questão, os Wapishana apenas reiteram que
"ninguém sabe para onde vai udorona". Ir-se parece mais um
circunlóquio para tratar de uma questão mais complexa: a
morte não representa o fim daudorona, mas o fim de sua
existência individuada; na morte, o que não perdura é a
pessoalidade. Ainda que alguns creiam que udorona possua
uma existência após a vida terrena, esta é uma existência
sem identidade, para a qual opera o paulatino
estranhamento dos mortos.
Destino diverso, note-se, seguem apenas os xamãs após a
morte: permanecem em uma árvore chamada Toronai, que
existe no alto, no céu ou no topo das serras mais altas e
inacessíveis, onde se casam novamente e podem ter filhos.
Esvaindo-se a udorona, a morte produz dois outros aspectos
que, embora distintos entre si, são ambos designados,
eufemisticamente, porawaru, o vento. Udikini, ao contrário
da força vital constituída na udorona, é a sombra mais fraca
que projetamos ao sol. São ditos udikini os retratos e as
imagens da televisão; tal como estes,udikini não passa de
uma sombra pálida que, ocasionalmente, aparece aos vivos:
"você reconhece, mas ela não está mais, ela morreu".
Inócua aos vivos, udikini pode apenas produzir barulhos
nos locais que um dia freqüentou. Às vezes, esconde-se nos
redemoinhos, mas, via de regra, pode ser percebida na casa
em que habitava, pois procura estar junto a seus antigos
pertences terrenos.
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Poder-se-ia sugerir que udikini, definida pelos Wapishana
como sombra, é a lembrança que o morto carrega de seus
pertences em vida, mas, reversamente, lembrança do morto
evocada pelos objetos que um dia foram seus. Lembrança
que vai pouco a pouco cedendo, ao entrarem os objetos em
novo uso e nova posse: em seis meses, mais ou menos,
dizem os Wapishana, udikini desaparece.
Outra coisa é desfazer-se a lembrança de alguém, um rosto
e uma história: isto constitui o ma'chai, termo que se refere
tanto ao cadáver quanto ao seu espectro. "Udorona dizem
os Wapishana ninguém sabe para onde vai; quem volta
éma'chai."
À diferença de udikini, apego do morto aos seus
pertences,ma'chai, a sombra do morto, é seu apego aos entes
queridos, às relações sociais que em vida entreteve. Mas
este apego, se instituinte de uma sociabilidade na vida, na
morte ganha sentido oposto: pode-se subscrever para os
Wapishana o que demonstrou Carneiro da Cunha (1978)
para os Krahó, ou seja, mortos são aqueles que se passaram
para o outro lado, abandonaram os vivos, e, assim sendo,
aceitar seu convívio seria abrir mão da vida em sociedade.
A saudade do morto em duplo sentido, a saudade que
ele sente e sua contrapartida, aquela que dele se sente
provoca nos vivos uma nostalgia letal (Carneiro da Cunha,
1978; Viveiros de Castro, 1986).
Ma'chai, certeza de um corpo que se desfaz, exala um odor
pútrido que tudo contamina coisas, animais e homens.
As opiniões divergem: para uns, a ameaça representada
peloma'chai cessa com a total decomposição do cadáver;
para outros, o espectro permanece, independente da
decomposição de seu corpo, e vai morar na mata e,
sobretudo, nas serras, de onde ocasionalmente vem rondar
os viventes, para levá-los consigo. A divergência é
significativa, pois refere-se precisamente à medida da
lembrança do morto entre os vivos.
Pois que de outra coisa trata oma'chai, senão da lembrança
do morto entre os vivos? Presença de uma ausência, na
análise inspirada de Viveiros de Castro (1986, p. 505),
memória insistente de um corpo, de uma individualidade.
Talvez, por isso, hesitem os Wapishana em determinar um
período para a ameaça posta pelo ma'chai: lembra-se de nós
enquanto do morto nos lembramos.
Ma'chai, o cadáver e seu espectro, é, para os Wapishana, a
porção panaokaru do ser humano. Nesta linha, a atração
quema'chaiexerce sobre os vivos é vista como predação,
atingindo os doentes e os tristes: "muitas vezes a pessoa
anda triste, pensando em quem morreu, é mais
fácil ma'chaiaparecer. Verma'chaié adoecer". Claro está que
maior vulnerabilidade se encontra no espaço da
consangüinidade, onde é mais intensa a presença doma'chai.
Novamente, os convites insistentes do ma'chai se fazem,
sobretudo, mediante a oferta de alimento que, inverso
simétrico da partilha que institui sociabilidade, resulta em
doença e morte: "Ma'chai provoca dor de barriga e dor de
coração, porque em sonho oma'chainos comida e
bebida". Para seduzir os vivos para que o sigam, em
particular quando um deles doente, oma'chai passa a
alimentar o doente, que então piora, porque não quer mais
se alimentar: a mesma comida dos vivos; se comemos no
sonho não queremos mais a nossa comida".
Tal negação de humanidade se expressa, de modo
equivalente, no código comunicativo. A sombra do morto
propõe um antidiálogo, expressando-se em um murmúrio
ininteligível. Pelos motivos que examinamos, a
comunicação com ma'chai se estabelece em situações de
descentramento da alma, nos estados oníricos ou febris.
De um lado, a neutralização doma'chai requer seu
esquecimento. Por tempo variável, indeterminado mesmo,
a ausência do morto se fará sentir, provocando a nostalgia,
a tristeza. O paulatino estranhamento dos mortos é o
antídoto para a ameaça que representa ao bem-estar dos
vivos.
Ninguém o vê, ninguém o escuta, ninguém, em suma, o
reconhece. O apagamento de sua memória é o requisito
para a continuidade da vida. O esquecimento é, assim,
imperativo, como explicam os Wapishana, recorrendo
A ÉTICA DA PALAVRA ENTRE OS WAPISHANA
sempre à comparação com o mundo vegetal: "veja o
algodão, nunca lembra o pé de onde foi arrancado".
Em resumo, ma'chai, lembrança cifrada no odor pútrido
exalado pelo cadáver, memória da carne que se desfaz, é
virtualidade panaokaru do homem que tende ao podre. Sua
contrapartida é a fala, princípio ativo, ânimo, alma.
Udorona, como anunciei anteriormente, é princípio vital que
se encontra na fala, no sangue, na respiração; prova disso,
dizem os Wapishana, é que quando morremos ficamos
brancos e frios.
À diferença da respiração e da fala, o sangue é componente
da pessoa transmitido e partilhado. Para os Wapishana, o
sangue, com efeito, é obtido por transmissão: recebemo-lo
de pai e mãe, em partes igualmente distribuídas. É, além
disso, partilhado: irmãos, pais e filhos de Ego possuem o
mesmo sangue, constituindo, assim, propriamente o grupo
que Ego reconhecerá como seus consangüíneos. Tal noção
se expressa no termo õribienao, que, traduzindo literalmente,
significa "meus muitos", ou melhor dizendo, "os muitos de
mim". Não se incluem neste grupo os parentes colaterais,
nem os afins que não são consangüinizados divergindo,
assim, os Wapishana do cenário guianense , em que
pesem o nascimento dos filhos ou a longa co-residência.
Os limites da consangüinidade estão dados neste grupo,
limites estes que são ditosõtokon, "minhas pontas": "ponta é
como planta, o que nasce do mesmo pé". Em tese,
encontram-se excluídas do grupo de consangüíneos a
segunda geração ascendente e a segunda geração
descendente em relação a Ego: "Avós não são pontas,
porque morreram, acabou. Chama avô mas não é
ponta". Explicam os Wapishana que, se vivos, os avós
podem ser considerado sõtokon, mas não mais o serão após
sua morte. Essa condição transitória dos avós tem
implicações sobre a relação que mantêm com os netos, em
particular no resguardo pela doença e outras situações que
envolvem o cálculo do sangue. Tal concepção tem ainda
implicações sobremodo importantes na transmissão
narrativa, pois é precisamente a ausência possível de um
vínculo de sangue entre Ego e a segunda geração
ascendente que permite um vínculo de linguagem (veja-se
Gow,1991, e Farage, 1997).
A respiração é componente pessoal da alma: no ventre
materno não a possuímos; apenas a obtemos quando, pela
primeira vez, inspiramos. A respiração, em certa medida,
acompanha o valor da fala, questão que se apreende com
maior nitidez no contexto da magia: soprar e falar são atos
homólogos, que surtem o mesmo efeito encantatório, por
serem ambos alma.
Sopro, fala, o atributo fundamental da alma é a leveza. A
alma sopro e fala conjugados na magia é o que, no
homem, pode ainda restaurar a criatividade da fala original,
seu poder de transformar o mundo.
Por sua vez, a fala, do ponto de vista Wapishana, é índice
exponencial da alma. Sua existência no homem é o que o
singulariza, o que não o deixa diluir-se entre as coisas do
mundo. Índice também da vida humana, comprova-o,
como disse acima, o murmúrio rouco e inaudível dos
mortos, cuja inteligibilidade é sinônimo de morte.
A fala é, ainda, um princípio eminente da razão. Crianças
pequenas são ditasmadoronan, termo cuja tradução literal é
"sem alma", porque ainda não falam. De modo correlato,
querem com isso dizer os Wapishana que crianças não têm
discernimento "criança não tem juízo" , motivo pelo
qual se lhes deve perdoar as tolices que cometem. Ambos,
fala e discernimento, desenvolver-se-ão
concomitantemente no processo de socialização do
indivíduo, culminando em plena sociabilidade. Assim, em
seu auge, a faculdade de falar perfaz o homem, aquele que
é capaz de dialogar com seus semelhantes. Nesta linha, diz-
se ainda madoronan com referência àqueles que estão fora de
si, por estarem seja bêbados, seja tomados por sentimentos
violentos, como a raiva, o ressentimento, a paixão: estes
agem erraticamente e não falam, recusam o diálogo.
A fala é princípio estritamente pessoal: "Para formar uma
criança, os pais ajudam com o sangue; o sopro e a fala são
dela mesmo. A gente ensina a falar, mas a udorona da gente
não pode fazer o outro falar". Em analogia ao que vimos
REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 13 Nº38
ocorrer com as plantas wapananinao, o potencial de fala
precisa ser desenvolvido socialmente: às crianças,
evidentemente, se ensinam a falar. Este fato, que poderia
passar por corriqueiro aos nossos olhos, para os Wapishana
se reveste de alto valor simbólico, dada a equivalência entre
a fala e a alma: ensinar a falar é processo de humanização,
que só ocorre no interior de plena sociabilidade.
Além de pessoal, a fala é princípio cumulativo, que
encontra sua plenitude na velhice, quando, para os
Wapishana, somos mais alma do que corpo. Nesta
concepção imbrica-se o conhecimento, necessariamente
envolto na competência oratória; falar bem é o corolário da
sabedoria, que só existe na proporção da alma.
Em suma, correlato da alma, a fala é, da perspectiva dos
Wapishana, valor central na definição do humano. Mas,
vale insistir, é entre os extremos do silêncio e do canto que
a medida humana se instaura. Silêncio e canto são, como
vimos, virtualidades do homem; de sua dosagem exata
que não é nem o peso da animalidade, nem a existência
imponderável das plantas wapananinao resulta a
comunicação entre semelhantes. Diálogo é, enfim, o
quinhão dos homens.
NOTAS
1 Os Wapishana, povo de filiação lingüística
Maipure/Arawak, atualmente em número estimado de 10
mil a 11 mil indivíduos, habitam o interflúvio
Branco/Rupununi, região de fronteira entre Brasil e
República da Guiana.
2 Veja-se Descola (1986) quanto à mútua sedução entre
caçador e caça para os Achuar.
3 Tema que, aliás, evoca vivamente a relação dos Krahó
com seus mortos. Veja-se Carneiro da Cunha (1978).
4 Veja-se a discussão magistral de J.C.Crocker (1985)
acerca do princípiobopepara os Bororo.
BIBLIOGRAFIA
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parole chez les Dogon. Paris, Institut d'Ethnologie, Musée de
l'Homme.
CARNEIRO DA CUNHA, M. (1978),Os mortos e os outros:
uma análise do sistema funerário e da noção de pessoa entre os índios
Krahó. São Paulo, Hucitec.
CROCKER, J.C. (1985),Vital souls: Bororo cosmology, natural
symbolism and shamanism. Tucson, University of Arizona
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des Sciences de l'Homme.
FARAGE, N. (1997),As flores da fala: práticas retóricas entre os
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Pós-Graduação em Letras, USP.
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use of knowledge amongst the Amuesha of Central Peru. Londres,
The Athlone Press.
VIVEIROS DE CASTRO, E. (1986),Araweté: os deuses
canibais. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor.
* Trabalho apresentado ao GT História Indígena e do
Indigenismo, no XX Encontro Anual da Associação
Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais
(Anpocs), 22-26 de outubro de 1996.
... Em tese, o conhecimento de puri é acessível a todos, mas seus especialistas são os popazo, "rezadores", "sopradores". Para os Wapishana, pessoas e coisas são afetadas pela palavra, e é a ela que recorrem para lhes restaurar a integridade (Farage, 1997(Farage, , 1998. ...
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O objetivo deste trabalho é esboçar os contornos gerais do que seria uma faceta do profetismo taurepáng, povo indígena que vive no norte do estado de Roraima. Testemunhas oculares da imigração em massa de venezuelanos para o Brasil, os impactos da crise venezuelana na fronteira brasileira forneceram novos referenciais para a vida ritual dos Taurepáng, praticantes há décadas da religião do Sétimo Dia. Entretanto, se eles condenam as sessões de cura dos xamãs, a própria atuação de seus pregadores sugere a existência de um xamanismo subjacente à sua experiência religiosa. Nos cultos, o poder da palavra ritual proferida pelos pregadores assume o primeiro e parece indicar elementos fundamentais para pensarmos esse caso particular de cristianismo indígena, no qual eventos do cotidiano são sistematicamente interpretados à luz da doutrina adventista.
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O objetivo desse trabalho é apresentar a maneira pela qual os Taurepáng, povo Carib que no Brasil vive no norte do estado de Roraima, interpretam as ações do Kanaimé. De acordo com a literatura, trata-se de uma categoria de feitiçaria que envolve técnicas específicas de mutilação e assassinato amplamente difundidas nas terras adjacentes ao Monte Roraima e, além de um fenômeno espectral, oriundo da malevolência de outsiders, também diz respeito a um agressor que pode ser cercado, agredido e morto. Diante do aumento das tensões e acusações de Kanaimé nas comunidades taurepáng que ficam na savana venezuelana, suas lideranças optaram por uma iniciativa inédita: a criação de uma prisão para Kanaimé. Porém, em vez de atenuar os conflitos entre os parentes da vítima assassinada e os parentes do Kanaimé acusado, essa medida surtiu o efeito inverso e acabou por reforçar a compreensão taurepáng de que vivem em um “lugar de morte”.
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This article deals with the issue of ritual polities in Southern Amazon, and in particular the case of "chieftaincy without power." Through the analysis of ritual oratory among chiefs in the multiethnic and multilingual system of the Upper Xingu, it considers how the concepts of "ritual condensation" and "chimera" could be useful for the description and analysis of such polities. In the Upper Xingu, certain chiefs are fluent in a verbal genre known as "chiefs' talk," composed of formalized speeches directed either to leaders of other groups or to their own people, depending on the context in which they are delivered. Analyzing discourses of the latter kind among the Kalapalo (a Karib-speaking people of the region), the article shows how both the chief and his audience are symbolically constructed as "paradoxical" subjects characterized by contradictory predicates, and discusses how this is related to Kalapalo ideas on kinship and power. By engaging with the concepts of "ritual condensation" and "chimera," the article resumes the debate on political oratory generated by Pierre Clastres and investigates how uncertainty—rather than "authority" or "belief"—can enact an exchange of perspectives through which the identities of the group and the chief are produced.
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