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Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(1):141-144, jan-mar, 1997
OPINIÃO OPINION
Análise crítica sobre especialidades médicas
e estratégias para integrá-las ao Sistema Único
de Saúde (SUS)
A critical analysis of medical specialities
and strategies for their integration into the
Unified National Health System in Brazil (SUS)
1
Departamento de Medicina
Preventiva e Social,
Faculdade de Ciências
Médicas, Universidade
Estadual de Campinas,
C. P. 6111,Campinas,SP,
13081-970, Brasil.
Gastão Wagner de Sousa Campos
1
Maurício Chakour
1
Rogério de Carvalho Santos
1
Abstract
The implementation of medical specialization in Brasil has been relatively free of
constraints. There has thus been a progressive fragmentation of medical work. The so-called
root specialities are losing both their strength and clinical problem-solving capacity. Two op-
erational concepts are proposed for achieving better administration of medical responsibilities
and the role of medical professionals: 1) field of competence and 2) core competence. General
goals are suggested for reforming specialized training and integration of specialists into the
Unified National Health System.
Key words
Medical Specialties; Health Systems; Health Policy;Public Health
Resumo
Identificou-se relativa liberdade dos médicos brasileiros para criação de novas espe-
cialidades médicas,havendo,em conseqüência, progressiva fragmentação do trabalho em saúde,
verificando-se também crescente diminuição da importância e mesmo da capacidade resolutiva
das especialidades-raízes: clínica médica, pediatria, cirurgia geral e gineco-obstetrícia.Propõem-
se dois conceitos operativos para redefinição da abrangência e da responsabilidade do trabalho
médico: Campo de competência e Núcleo de Competência. São também levantadas diretrizes
para reforma das políticas de formação e de incorporação de especialistas ao SUS.
Palavras-chave
Especialidades Médicas; Sistemas de Saúde; Política de Saúde; Saúde Pública
CAMPOS, G. W. S.; CHAKOUR, M. & SANTOS, R. C.
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Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(1):141-144, jan-mar, 1997
Considerações sobre as especialidades
médicas e sobre sua influência
na organização do trabalho em saúde
A criação de especialidades médicas tem sido
mais ou menos “livre” no Brasil. A Associação
Médica Brasileira (AMB) tem deixado a cargo
dos médicos a iniciativa pela abertura de novas
Sociedades de Especialistas. Em documento
interno estabeleceu-se que “para caracterizar
uma área de atuação médica como especiali-
dade é necessário que ela reúna pelo menos
cem especialistas afins, e que exista há pelo
menos dois anos como entidade civil organiza-
da” (AMB, 1994a).
Estes dois critérios – uma dada massa críti-
ca de profissionais e uma certa estabilidade
temporal para a área de atuação – têm uma ló-
gica tipicamente liberal; a livre-iniciativa dos
profissionais descobriria necessidades do sis-
tema de atenção sem outros condicionantes
que os acima mencionados. Ou seja, para a en-
tidade médica engarregada por lei da regula-
mentação das especialidades não haveria cri-
térios políticos, sociais ou econômicos interfe-
rindo neste processo. Em nenhum momento
menciona-se qualquer possibilidade de plane-
jamento da quantidade ou do tipo de especia-
listas que deveriam estar sendo formados.
No entanto, hoje, já é possível constatar-se
a insuficiência desta política. Paradoxalmente,
uma vez criada a especialidade, parece esgo-
tar-se o espírito liberal e desregulamentador
das entidades médicas.
Verifica-se clara tendência da maioria das
sociedades de especialistas de definir de modo
extremamente rígido a área de competência
das especialidades, conseqüentemente negan-
do aos demais médicos capacidade para reali-
zar procedimentos incluídos na área de com-
petência regulamentada por cada especialida-
de (AMB, 1994b).
Partindo de uma postura liberal, a política
das especialidades defende normas estrita-
mente corporativistas. Esta contradição tem
gerado mais problemas do que soluções para
os sistemas públicos e privados de saúde.
Por um lado, é inegável a legitimidade téc-
nica da maioria das especialidades médicas.
Em geral, contribuem para aumentar a capaci-
dade resolutiva da prática médica. Um exem-
plo: a existência de cirurgiões especializados
em mão aumentaria, teoricamente, a possibili-
dade de recuperação de casos considerados
perdidos até alguns anos atrás.
Por outro lado, contudo, a fragmentação do
trabalho médico em múltiplas especialidades
tem difucultado o diagnóstico e a instituição
de terapêuticas em tempo hábil. Em decorrên-
cia, multiplicam-se os encaminhamentos e a
realização de exames complementares injusti-
ficados. Ainda não se encontraram diretrizes
práticas que atenuassem estes efeitos inevitá-
veis da incorporação de novas especialidades
aos sistemas de saúde. Quer nos países desen-
volvidos, quer em outros mais pobres, consta-
tam-se tanto um declínio da eficácia dos servi-
ços de saúde, quanto um outro efeito deletério
que se convencionou denominar de “elevação
crescente dos custos em saúde” (Freidson,
1978).
Retomando o exemplo anterior, se é estúpi-
do negar valor à existência de algumas equipes
especializadas em cirurgia de mão, estrategica-
mente posicionadas em hospitais de referência
regional, não podemos ignorar, também, que,
na medida em que são instalados estes novos
serviços, desenvolve-se tendência da maioria
dos cirurgiões gerais de encaminharem todos
os casos de lesão desta parte do corpo, ainda
que tivessem tradição de resolvê-los com ra-
zoável grau de competência no período ante-
rior à existência destes serviços especializados.
Sendo assim, quando se adotam processos
de trabalho centrados na lógica da especializa-
ção, há sempre uma tendência ao esvaziamen-
to de função e posterior desaparecimento das
“especialidades mais gerais”. Refiro-me não so-
mente ao clínico geral, supostamente, egresso
das faculdades, mas aos pediatras, gineco-obs-
tetras, cirurgiões gerais e internistas. O mesmo
efeito passa a acontecer também com algumas
outras especialidades-raízes de alguma linha
de especialização, como os casos dos neurolo-
gistas e cardiologistas (CFM, 1996).
No Brasil, o Sistema Único de Saúde pre-
tendeu enfrentar este problema criando um
modelo hierarquizado de atenção. Em teoria,
haveria uma rede básica onde trabalhariam ou
o clínico geral (médico de família) ou, pelo me-
nos, equipes compostas pelas quatro “especia-
lidades gerais”: clínica médica, pediatria, gine-
co-obstetrícia e medicina sanitária. Em algu-
mas situações incorporam-se cirurgiões, para
cirurgia ambulatorial, e psiquiatras.
Sem dúvida, é uma proposta racional. En-
tretanto, ela tem encontrado dificuldades prá-
ticas para sua operacionalização. De saída, não
são facilmente encontrados clínicos gerais, tra-
ta-se de um profissional em extinção no País.
Além do mais, constata-se uma tendência das
redes primárias operarem com baixíssima ca-
pacidade resolutiva, não somente por proble-
mas de infra-estrutura ou de manutenção, que
são relevantes, mas também pela dificuldade
de os profissionais médicos exercerem a clíni-
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ca com sentido eficaz. Os melhores serviços
básicos funcionam como pronto-atendimen-
tos voltados para cuidado sintomático e são,
em inúmeras localidades, instâncias de tria-
gem que não aliviam a sobrecarga dos especia-
listas (Campos, 1992).
As faculdades de medicina têm estruturado
seus cursos dentro da mesma lógica. A maioria
dos professores tem formação especializada e
tem dificuldade em conservar e, portanto, em
transmitir saberes e práticas mais polivalentes.
O ensino é segmentado e, muitas vezes, padece
de lacunas básicas importantes, conforme as
características aleatórias da composição do
corpo docente (Abem, 1995).
Observa-se na residência uma tendência a
reproduzir este modelo. Pesquisa recente da
Fundap encontrou que as áreas menos procu-
radas pelos graduados são exatamente aquelas
das “especialidades gerais”. Não há, por parte
das escolas, dos hospitais ou dos governos, po-
líticas que priorizem a formação desta ou da-
quela especialidade (Fundap, 1994).
Nota-se, tanto pelos valores dos honorários
da tabela da AMB, como pelos salários e nor-
mas de remuneração de órgãos governamen-
tais, uma desvalorização do trabalho mais clí-
nico, mais polivalente, mais integrativo, em
contraste com uma supervalorização de outros
dependentes de tecnologias “duras”, de equi-
pamentos operados por especialistas em “pe-
daços” muito específicos do processo diagnós-
tico ou terapêutico. Provavelmente, estes estí-
mulos financeiros expliquem o perfil de inte-
resse dos candidatos à residência.
Portanto, urgem soluções que modifiquem
o sentido da graduação médica, da residência
e das políticas das entidades médicas e do Es-
tado.
Discussão de algumas diretrizes
potencializadoras de mudanças
neste quadro
a) Reconhecendo a inevitabilidade da espe-
cialização, como definir a área de competência
de cada especialidade de maneira a não ocor-
rer uma concomitante perda da capacidade de
resolver problemas de saúde dos demais médi-
cos?
Já nos referimos à propensão das especiali-
dades definirem um campo muito rígido de
atribuições próprias. Até chegamos a identifi-
cá-la com um certo corporativismo. Por outro
lado, ao mesmo tempo que se busca retirar
atribuições das especialidades-raízes, observa-
se, por parte dos novos especialistas, a perda
ESPECIALIDADES MÉDICAS
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de habilidades médicas básicas. Cirurgiões
descuidam da clínica, clínicos da dinâmica psí-
quica dos seus pacientes, cardiologistas igno-
ram a pneumologia básica e assim sucessiva-
mente. Desta forma, a prática médica se com-
plica sem que ocorra, proporcionalmente, me-
lhoria da eficácia ou diminuição de custos. Ao
contrário.
Uma linha alternativa de raciocínio poderia
ser a seguinte: dividir a denominada área de
competência de cada especialidade em dois
espaços inclusivos:
Um mais geral, denominado campo de com-
petência, que incluiria os principais saberes da
especialidade-raiz e que, portanto, teria um es-
paço de sobreposição de exercício profissional
com outras especialidade. O campo de compe-
tência não caracterizaria monopólio profissio-
nal da especialidade; ao contrário, seria um
campo de intersecção com outras áreas. Por
exemplo: o campo de competência do especia-
lista em cirurgia de mão seriam as lesões de
mão e mais saberes e práticas próximos ao do
cirurgião geral.
E um segundo, mais específico, denomina-
do de núcleo de competência, que incluiria as
atribuições exclusivas daquela especialidade,
justificando, portanto, a sua existência como
uma nova área. Retomando o exemplo: o nú-
cleo de competência do especialista em cirur-
gia de mão poderia ser constituído pelos casos
graves de trauma, amputação ou semi-ampu-
tação da mão com lesões importantes de vasos
ou outras estruturas nobres. Se adotado este
critério, inúmeras lesões de mão continuariam
a ser também da competência do cirurgião ge-
ral.
O campo de competência teria limites e con-
tornos menos precisos e o núcleo, ao contrá-
rio, teria definições as mais delineadas pos-
síveis.
A constituição destes espaços organizar-se-
ia segundo um jogo de negociações provisó-
rias, em certa medida intermináveis porque
impossíveis de serem arbitradas exclusivamen-
te por uma racionalidade técnica. Isto porque
a definição destes campos dependeria também
de interesses políticos, profissionais e não ape-
nas de diretrizes médicas positivas.
Neste sentido, a AMB e órgãos públicos po-
deriam organizar encontros entre todas as es-
pecialidades ligadas à cirurgia, à pediatria, ou
à neurologia, mediando os resultados dos de-
bates entre as várias alternativas que certa-
mente surgirão.
Com a criação destas duas lógicas de crité-
rios, uma mais flexível e outra mais rígida, pre-
tende-se assegurar tanto a necessária existên-
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cia de especialidades, quanto a conservação da
capacidade resolutiva das chamadas especiali-
dades gerais ou especialidades-raízes. Senão,
com o tempo, elas seriam expropriadas de toda
capacidade resolutiva.
Ao mesmo tempo, partindo-se desta pers-
pectiva, caberia exigir-se do especialista uma
certa polivalência – a específica ao seu campo
de competência, contribuindo assim, também,
para a ampliação da declinante capacidade re-
solutiva dos profissionais altamente especiali-
zados.
b) Se a proposição e o aparecimento de novas
especialidades seguem inevitavelmente um
padrão mais ou menos livre, dependente tanto
da iniciativa dos médicos, quanto de algumas
regulamentações, o Sistema Único de Saúde
não deveria furtar-se de ter uma política que
interferisse nesta dinâmica.
Basicamente, acreditamos que o SUS deve-
ria criar mecanismos que indicassem uma cla-
ra prioridade não só pela formação, como tam-
bém pela contratação de trabalho desta ou da-
quela especialidade.
Quanto à formação, sabe-se que institui-
ções governamentais custeiam a maioria das
vagas para residência. Neste sentido, seria viá-
vel, sem grandes rearranjos institucionais, pro-
ceder-se a definição do perfil dos profissionais
a serem formados conforme necessidades de
saúde e a lógica do sistema público. Superar o
laissez-faire atualmente existente, que repro-
duz de forma centralizada os interesses ou dos
profissionais enquanto corporação, ou do mer-
cado, é um desafio inadiável.
A principal diretriz sugerida seria a defini-
ção de cotas mínimas de vagas para as deno-
minadas “especialidades gerais”: pediatria, ci-
rurgia geral, clínica médica, gineco-obstetrícia
e saúde pública. Poder-se-ia, em curto prazo,
instituir-se a obrigatoriedade de o conjunto
dos serviços de residência médica reservarem
metade das vagas para estas áreas. Caberia às
Secretarias Estaduais e Comissões de Residên-
cia Médica administrarem esta distribuição, de
maneira que um serviço especializado exclusi-
vamente em pediatria, por exemplo, não se vis-
se obrigado a criar residência de clínica. Seria
ridículo. O importante seria o planejamento
em toda a rede. Estas residências seriam termi-
nais, ou seja, as demais especialidades somen-
te contariam com a outra metade do número
de vagas para prosseguimento dos seus cursos
específicos. Estas cotas sugeridas deveriam ser
revistas periodicamente conforme o impacto
no sistema de formação e no assistencial.
Além disso, seria importante assegurar que
todas as especialidades iniciassem a residência
por uma destas “especialidade gerais”, confor-
me já é praxe em inúmeras instituições.
c) Quanto ao mercado de trabalho, haveria
que se considerar que de pouco adiantaria mo-
dificar o perfil da residência se não houvesse
mudanças equivalentes no perfil de contrata-
ção e de remuneração de médicos do SUS.
Haveria que se valorizar o exercício destas
especialidades gerais, assegurando tanto salá-
rios, como incentivos por desempenho ade-
quados. Por outro lado, seria importante rever
o quadro de pessoal de hospitais públicos, am-
pliando o número de profissioanais com estas
características também nos níveis secundário
e terciário de atenção. Metade dos médicos de
um hospital moderno poderia também ter este
perfil mais resolutivo e polivalente.
Por último, caberia iniciar um processo de
discussão com a AMB e com o Ministério da
Saúde voltado para a revalorização dos proce-
dimentos clínicos e cirúrgicos mais integrais e
abrangentes. A atual política está degradando
o trabalho essencialmente interpessoal da Me-
dicina.
Comentários finais
Com estas diretrizes, pretendemos tão-so-
mente indicar alguns caminhos que, se trilha-
dos, poderiam desencadear processos de su-
peração de algumas da dificuldades do sistema
de saúde brasileiro. Trata-se de uma aborda-
gem parcial e que tem como objetivo mais es-
timular a elaboração de novas alternativas para
estes já velhos problemas sanitários, do que
pretender fornecer receitas acabadas.
Referências
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1995. Anais. XXXIII Congresso Brasileiro de Edu-
cação Médica. Porto Alegre: ABEM.
AMB (Associação Médica Brasileira), 1994a. Proposta
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AMB (Associação Médica Brasileira), 1994b. Regimen-
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CFM (Conselho Federal de Medicina), 1996. Consoli-
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FREIDSON, E., 1978. La Profesión Médica. Barcelona:
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FUNDAP (Fundação para o Desenvolvimento da Ad-
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