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Cadernos de Pesquisa, n. 116, julho/2002
Cadernos de Pesquisa, n. 116, p. 245-262, julho/2002
D IREITO À ED UCAÇÃO : D IREITO À
IGUALD AD E, D IREITO À D IFEREN ÇA
CARLO S RO BERTO JAM IL CU RY
Pontifícia Universidade Católica de M inas Gerais
Presidente da Câm ara de Educação Básica do Conselho N acional de Educação
crjcury.bh@ terra.com .br
RESU M O
O artigo estuda a im portância do direito à educação escolar, que, m ais do que um a exigência
contem porânea ligada aos processos produtivos e de inserção profissional, responde a valo-
res da cidadania social e política. Buscam -se no processo histórico da m odernidade, no acer-
vo doutrinário e no conjunto norm ativo, inclusive internacional, as bases desses valores.
D IREITO À ED U CAÇÃO – IGUALDADE D E O PO RTUN ID ADES – ACESSO À ESCO LA
ABSTRACT
The article studies the im portance of the right to a school education, which is viewed as
som ething beyond the contem porary dem and linked to the processes of production and
professional inclusion, as a response to the values of social and political citizenship. It seeks
the bases for these values in the historical process of m odernity, in the national and international
norm s and legislations.
RIG H T TO ED U CATIO N – EQ UAL ED U CATIO N – ACCESS TO SCH O O L
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N um m om ento em que a cidadania enfrenta novos desafios, busca novos
espaços de atuação e abre novas áreas por m eio das grandes transform ações pelas
quais passa o m undo contem porâneo, é im portante ter o conhecim ento de realida-
des que, no passado, significaram e, no presente, ainda significam passos relevantes
no sentido da garantia de um futuro m elhor para todos.
O direito à educação escolar é um desses espaços que não perderam e nem
perderão sua atualidade.
Hoje, praticam ente, não há país no m undo que não garanta, em seus textos
legais, o acesso de seus cidadãos à educação básica. Afinal, a educação escolar é
um a dim ensão fundante da cidadania, e tal princípio é indispensável para políticas
que visam à participação de todos nos espaços sociais e políticos e, m esm o, para
reinserção no m undo profissional.
N ão são poucos os docum entos de caráter internacional, assinados por paí-
ses da O rganização das N ações U nidas, que reconhecem e garantem esse acesso a
seus cidadãos. Tal é o caso do art. XXVI da D eclaração U niversal dos D ireitos do
Hom em , de 1948. D o m esm o assunto ocupam -se a Convenção Relativa à Luta
contra a Discrim inação no Cam po do Ensino, de 1960, e o art. 13 do Pacto Inter-
nacional dos D ireitos Econôm icos, Sociais e Culturais, de 1966.
M ais recentem ente tem os o docum ento de Jom tien, que abrange os países
m ais populosos do m undo. São inegáveis os esforços levados adiante pela U nesco
no sentido da universalização do ensino fundam ental para todos e para todos os
países.
M as com o se trata de um direito reconhecido, é preciso que ele seja ga-
rantido e, para isso, a prim eira garantia é que ele esteja inscrito em lei de caráter
nacional.
O contorno legal indica os direitos, os deveres, as proibições, as possibilida-
des e os lim ites de atuação, enfim : regras. Tudo isso possui enorm e im pacto no
cotidiano das pessoas, m esm o que nem sem pre elas estejam conscientes de todas
as suas im plicações e conseqüências.
Segundo Bobbio,
a existência de um direito, seja em sentido forte ou fraco, im plica sem pre a existên-
cia de um sistem a norm ativo, onde por “existência” deve entender-se tanto o m ero
fator exterior de um direito histórico ou vigente quanto o reconhecim ento de um
conjunto de norm as com o guia da própria ação. A figura do direito tem com o
correlato a figura da obrigação. (1992, p. 79-80)
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Certam ente que, em m uitos casos, a realização dessas expectativas e do
próprio sentido expresso da lei entra em choque com as adversas condições sociais
de funcionam ento da sociedade em face dos estatutos de igualdade política por ela
reconhecidos. É inegável tam bém a dificuldade de, diante da desigualdade social,
instaurar um regim e em que a igualdade política aconteça no sentido de dim inuir as
discrim inações. Além disso, m uitos governos proclam am sua incapacidade adm inis-
trativa de expansão da oferta perante a obrigação jurídica expressa.
É por essas razões que a im portância da lei não é identificada e reconhecida
com o um instrum ento linear ou m ecânico de realização de direitos sociais. Ela acom -
panha o desenvolvim ento contextuado da cidadania em todos os países. A sua im -
portância nasce do caráter contraditório que a acom panha: nela sem pre reside um a
dim ensão de luta. Luta por inscrições m ais dem ocráticas, por efetivações m ais rea-
listas, contra descaracterizações m utiladoras, por sonhos de justiça. Todo o avanço
da educação escolar além do ensino prim ário foi fruto de lutas conduzidas por um a
concepção dem ocrática da sociedade em que se postula ou a igualdade de oportu-
nidades ou m esm o a igualdade de condições sociais.
Hoje cresceu, enfim , a im portância reconhecida da lei entre os educadores,
porque, com o cidadãos, eles se deram conta de que, apesar de tudo, ela é um
instrum ento viável de luta porque com ela podem -se criar condições m ais propícias
não só para a dem ocratização da educação, m as tam bém para a socialização de
gerações m ais iguais e m enos injustas.
É preciso considerar que a inscrição de um direito no código legal de um país
não acontece da noite para o dia. Trata-se da história da produção de um direito e
que tem sua clara presença a partir da era m oderna. Segundo Bobbio:
N ão existe atualm ente nenhum a carta de direitos que não reconheça o direito à
instrução – crescente, de resto, de sociedade para sociedade – prim eiro, elem entar,
depois secundária, e pouco a pouco, até m esm o, universitária. N ão m e consta que,
nas m ais conhecidas descrições do estado de natureza, esse direito fosse m enciona-
do. A verdade é que esse direito não fora posto no estado de natureza porque não
em ergira na sociedade da época em que nasceram as doutrinas jusnaturalistas, quando
as exigências fundam entais que partiam daquelas sociedades para chegarem aos
poderosos da Terra eram principalm ente exigências de liberdade em face das Igrejas
e dos Estados, e não ainda de outros bens, com o o da instrução, que som ente um a
sociedade m ais evoluída econôm ica e socialm ente poderia expressar. (1992, p. 75)
Apesar desse direito não constar do estado de natureza ou m esm o entre os
cham ados direitos naturais, será no contexto da aceitação ou da recusa a essa form a
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de encarar o nascim ento da sociedade m oderna que a instrução lentam ente ganha-
rá destaque. O ra ela é o cam inho para que as Luzes (U niversais) se acendam em
cada indivíduo, a fim de que todos possam usufruir da igualdade de oportunidades e
avançar diferencialm ente em direção ao m érito, ora ela é um a função do Estado a
fim de evitar que o direito individual não disciplinado venha a se tornar privilégio de
poucos.
Com efeito, as luzes da razão, com suas leis racionais, supõem a atualização
nos seres racionais de m odo a poder realizar o interesse de todos em cada qual. A
realização do interesse de cada um , interesse esse racional e oposto ao universo
passional, é tido com o um valor que im pulsiona a ação do indivíduo tendo em vista
o princípio da responsabilidade individual. D e acordo com este princípio, cada pes-
soa, cada cidadão deveria ser capaz de garantir-se a si m esm o e a seus dependen-
tes, não cabendo a intervenção do Estado (O liveira, p. 160, 2000).
E um a das condições para o advento dessa “racionalidade ilum inada” e inte-
ressada, própria da sociedade civil enquanto universo do privado, é a instrução, à
m edida que ela abre espaço para a garantia dos direitos subjetivos de cada um . E
com o nem sem pre o indivíduo pode sistem atizar esse im pulso, com o nem sem pre
ele é, desde logo, consciente desse valor, cabe a quem representa o interesse de
todos, sem representar o interesse específico de ninguém , dar a oportunidade de
acesso a esse valor que desenvolve e potencializa a razão individual. M as, segundo
John Locke, esta é um a possibilidade a ser construída.
...Locke adverte, o cam inho que leva à construção desta sociedade im plica um pro-
cesso gigantesco de educação, e não apenas a educação entendida no sentido da
transm issão do conhecim ento m as no sentido da form ação da cidadania. (O liveira,
p. 181, 2000)
D aí a instrução se tornar pública com o função do Estado e, m ais explicita-
m ente, com o dever do Estado, a fim de que, após o im pulso interventor inicial, o
indivíduo pudesse se autogovernar com o ente dotado de liberdade e capaz de
participar de um a sociedade de pessoas livres.
A im portância do ensino prim ário tornado um direito im prescindível do cida-
dão e um dever do Estado im pôs a gratuidade com o m odo de torná-lo acessível a
todos. Por isso, o direito à educação escolar prim ária inscreve-se dentro de um a
perspectiva m ais am pla dos direitos civis dos cidadãos.
Tais direitos vão sendo concebidos, lentam ente, com o um a herança dos te-
souros da civilização hum ana e, portanto, não é cabível que alguém não possa herdá-
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los. Ao oferecer a educação escolar prim ária gratuita, o próprio Estado liberal asse-
gura um a condição universal para o próprio usufruto dos direitos civis.
Em todo o caso, a ligação entre o direito à educação escolar e a dem ocracia
terá a legislação com o um de seus suportes e invocará o Estado com o provedor
desse bem , seja para garantir a igualdade de oportunidades, seja para, um a vez
m antido esse objetivo, intervir no dom ínio das desigualdades, que nascem do con-
flito da distribuição capitalista da riqueza, e progressivam ente reduzir as desigualda-
des. A intervenção tornar-se-á m ais concreta quando da associação entre gratuidade
e obrigatoriedade, já que a obrigatoriedade é um m odo de sobrepor um a função
social relevante e im prescindível de um a dem ocracia a um direito civil. Essa inter-
venção, posteriorm ente, se fará no âm bito da liberdade de presença da iniciativa
privada na educação escolar, de m odo a autorizar seu funcionam ento e pô-la sub
lege.
Essa ligação entre a educação e a escolaridade com o form a de m obilidade
social e de garantia de direitos tem um histórico que é variável de país para país,
considerados os determ inantes socioculturais de cada um .
Um a análise m agistral que invoca a trajetória dos direitos, seja para classificá-
los, seja para m ostrar sua progressiva evolução, é aquela oferecida por um célebre
texto de Thom as M arshall (1967). Ele se debruça sobre a experiência da Inglaterra
e a partir daí diferencia os direitos e os classifica por períodos. D esse m odo, os
direitos civis se estabeleceriam no século XVIII, os políticos, no século XIX, e os
sociais, no século XX. N essa trajetória o autor fará referências à educação e à ins-
trução escolar.
Para o autor, a história do direito à educação escolar é sem elhante à luta por
um a legislação protetora dos trabalhadores da indústria nascente, pois, em am bos
os casos, foi no século XIX que se lançaram as bases para os direitos sociais com o
integrantes da cidadania. Segundo M arshall, “a educação é um pré-requisito neces-
sário da liberdade civil” e, com o tal, um pré-requisito do exercício de outros direi-
tos. O Estado, neste caso, ao interferir no contrato social, não estava conflitando
com os direitos civis. Afinal, esses devem ser utilizados por pessoas inteligentes e de
bom senso e, para tanto, segundo o autor, o ler e o escrever são indispensáveis.
A educação das crianças está diretam ente relacionada com a cidadania, e, quando o
Estado garante que todas as crianças serão educadas, este tem em m ente, sem
som bra de dúvida, as exigências e a natureza da cidadania. Está tentando estim ular o
desenvolvim ento de cidadãos em form ação. O direito à educação é um direito so-
cial de cidadania genuíno porque o objetivo da educação durante a infância é m oldar
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o adulto em perspectiva. Basicam ente, deveria ser considerado não com o o direito
da criança freqüentar a escola, m as com o o direito do cidadão adulto ter sido educa-
do. (p. 73)
Em outro m om ento de sua análise, ele reforça a tese ilum inista que, a instru-
ção, deve ser objeto da coerção estatal, já que o ignorante perde as condições reais
de apreciar e escolher livrem ente as coisas. Afinal, a m arca do hom em burguês é a
autonom ia com relação a poderes estranhos, e cuja concepção teórica básica se
expressa em norm as legais, que instituem a igualdade entre os indivíduos e nas suas
relações com as coisas.
O final do século XIX dem onstra que, na experiência européia, a educação
prim ária era gratuita e obrigatória. A obrigatoriedade não só não era um a exceção
ao laissez-faire, com o era justificada no sentido de a sociedade produzir pessoas
com m entes m aduras, m inim am ente “ilum inadas”, capazes de constituir eleitorado
esclarecido e trabalhadores qualificados. Thom as M arshall (1967), com entando e
citando o pensam ento do econom ista liberal neoclássico Alfred M arshall, diz:
… o Estado teria de fazer algum uso de sua força de coerção, caso seus ideais deves-
sem ser realizados. D eve obrigar as crianças a freqüentarem a escola porque o
ignorante não pode apreciar e, portanto, escolher livrem ente as boas coisas que
diferenciam a vida de cavalheiros daquela das classes operárias. [… ] Ele reconheceu
som ente um direito incontestável, o direito de as crianças serem educadas, e neste
único caso ele aprovou o uso de poderes coercivos pelo Estado… (p. 60, 63)
A ativação desta “luz” que cada um traz consigo e que am plia a capacidade de
escolha não poderia ser nem objeto de um a ação assistem ática e nem produto de
um acaso bem -sucedido.
Com o diz Bobbio (1986):
O problem a m ais difícil para um a teoria racional (ou que pretende ser racional) do
Estado é o de conciliar dois bens a que ninguém está disposto a renunciar e que são
(com o todos os bens últim os) incom patíveis: a obediência e a liberdade. (p. 83)
M as, se o Estado, com o ente racional, deve seguir a razão e seus ditam es,
cabe a ele assegurar condições para que seus cidadãos ajam segundo o seu próprio
arbítrio, para o que são necessárias “as luzes da razão”.
Avançando no tem po, m as com um a acuidade teórico-m etodológica exem -
plar, Bobbio (1987) deixa claro um dos sentidos que presidiram a im posição da
obrigatoriedade escolar:
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Esta tentativa de escolher as reform as que são ao m esm o tem po liberadoras e igua-
litárias deriva da constatação de que há reform as liberadoras que não são igualitárias,
com o seria o caso de qualquer reform a de tipo neoliberal, que oferece am pla m ar-
gem de m anobra aos em presários para se desvencilharem dos vínculos que advêm
da existência de sindicatos e com itês de em presa, ao m esm o tem po em que se
destina a aum entar a distância entre ricos e pobres; por outro lado, existem refor-
m as igualitárias que não são liberadoras, com o toda a reform a que introduz um a
obrigação escolar, forçando todas as crianças a ir à escola, colocando a todos, ricos e
pobres, no m esm o plano, m as por m eio de um a dim inuição da liberdade. (p. 23)
M arshall (1967), ao apontar a educação prim ária pública com o obrigatória e
gratuita, torna a justificá-la:
N o período inicial da educação pública na Inglaterra, os direitos eram m ínim os e
iguais. M as, com o já observam os, ao direito veio corresponder um a obrigação, não
apenas porque o cidadão tenha um a obrigação para consigo m esm o, assim com o
um direito de desenvolver o que se encontra latente dentro de si – um dever que
nem a criança nem o pai podem apreciar em toda a sua extensão – m as porque a
sociedade reconheceu que ela necessitava de um a população educada. (p. 99)
Esta ruptura com um a concepção individualista de liberdade da sociedade
tam bém contém um a base liberal à m edida que esta form a de sociedade tem afir-
m ado a relação política não m ais com o algo ex parte principis, m as com o ex parte
civium ,
...característica da form ação do Estado m oderno, ocorrida na relação entre Estado
e cidadãos: passou-se da prioridade dos deveres dos súditos à prioridade dos direi-
tos do cidadão, em ergindo um m odo diferente de encarar a relação política, não
m ais predom inantem ente do ângulo do soberano, e sim daquele do cidadão, em
correspondência com a afirm ação da teoria individualista da sociedade em
contraposição à concepção organicista tradicional. (Bobbio, 1992, p. 3)
Para participar livrem ente das tom adas de decisões era preciso ser cidadão e
este não se constitui sem o desenvolvim ento de sua m arca registrada: a razão. A
propriedade de si expressa-se na efetivação da razão. Seria, pois, preciso desenvolvê-
la e estim ulá-la, no m ínim o com batendo a ignorância.
D esse m odo, até com a justificativa de im pulsionar o indivíduo na busca da
educação, m uitos países farão da educação prim ária um a condição para o exercício
dos direitos políticos, em especial o do voto. Por seu lado, m uitos m ovim entos
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operários assum irão a bandeira da educação escolar com o form a de obter ganhos
sociais m ediante a representação parlam entar, cuja base operária estaria presente
com o voto dos trabalhadores. Tal perspectiva é desenvolvida por Przeworski (1989).
Assim , voltando-se à análise de M arshall, ele analisa a educação escolar pri-
m ária com o um serviço extra e de tipo único para o indivíduo. Para ele “o desenvol-
vim ento da educação prim ária pública durante o século XIX constituiu o prim eiro
passo decisivo em prol do restabelecim ento dos direitos sociais da cidadania no
século XX” (p. 74).
D esse m odo, m esm o o Estado Liberal do século XIX aceita intervenção do
Estado em m atéria de educação. A educação prim ária é vista com o um a atividade
pertencente ao interesse geral e, portanto, com o Adam Sm ith (1983) já havia dito
“o Estado pode facilitar, encorajar e até m esm o im por a quase toda a população a
necessidade de aprender os pontos m ais essenciais da educação”, m esm o que seja
em doses hom eopáticas. Karl M arx, no capítulo XII, do livro I, de O Capital, refere-
se a Adam Sm ith, que recom endava a instrução prim ária “a fim de evitar a degene-
ração com pleta da m assa do povo, originada pela divisão do trabalho”. N este sen-
tido, o próprio Adam Sm ith colocava-se contra as propostas do francês G . Garnier,
para quem a instrução prim ária contraria as leis da divisão do trabalho. Tam bém
Stuart M ill havia apontado que
...a educação, portanto, é um a dessas coisas que é adm issível, em princípio, ao
governo ter de proporcionar ao povo. Trata-se de um caso ao qual não se aplicam
necessária e universalm ente as razões do princípio da não-interferência [...] É pois
um exercício legítim o dos poderes do governo im por aos pais a obrigação legal de
dar instrução elem entar aos filhos. (1983, p. 404)
Assim , tanto a Inglaterra, com o a França, a Alem anha e outros países euro-
peus, no século XIX, fizeram reform as educativas nas quais se cruzam as idéias do
pensam ento liberal com a ação intervencionista do Estado e com o controle inicial
do trabalho infantil. Acreditava-se que a instrução prim ária seria um a vacina contra o
despotism o já vivido por m uitos países tanto quanto um a form a de questionar a
dom inância do trabalho m anual, entre os adultos, e a presença de crianças no regi-
m e fabril.
N a verdade, para as classes dirigentes européias, colocar o Estado com o
provedor de determ inados bens próprios da cidadania, com o a educação prim ária
e a assistência social, representava a necessidade da passagem progressiva da
autoproteção contra calam idades e incertezas para a solução coletiva de problem as
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sociais. Para contar com as classes populares no sentido da solução de m uitos pro-
blem as, não era m ais possível nem deixar de satisfazer algum as de suas exigências e
nem ser um privilégio, o que, a rigor, era direito de todos e não só de um a m inoria.
M uito instigantes tam bém são as reflexões de Bobbio (1992) que, de certa
m aneira, retom am a análise histórica dos direitos na busca de um a perspectiva his-
tórica de longo alcance.
Certam ente, cada país, dentro de sua situação histórica, conhecerá peculiari-
dades próprias que não o reduzem ao cam inho de um outro. M as, de todo m odo,
a divisão periódica proposta por M arshall e as reflexões de Bobbio (1992) sobre a
era dos D ireitos, sua gênese, evolução e perspectivas, são m uito úteis para classifi-
car, no cam po dos direitos, e diferenciá-los entre si. N o caso, é im portante destacar
que am bos se referem à educação escolar com o um direito im prescindível para a
cidadania e para o exercício profissional.
O direito à educação, com o direito declarado em lei, é recente e rem onta
ao final do século XIX e início do século XX. M as seria pouco realista considerá-lo
independente do jogo das forças sociais em conflito.
Tanto a am pliação dos direitos civis e políticos com o a inserção de direitos
sociais não são apenas um a estratégia das classes dirigentes que aí teriam descober-
to, na solução coletiva, diversas vantagens que o anterior sistem a de autoproteção
não continha.
Esses direitos são tam bém um produto dos processos sociais levados adiante
pelos segm entos da classe trabalhadora, que viram nele um m eio de participação na
vida econôm ica, social e política. Algum as tendências afirm am a educação com o um
m om ento de reform a social em cujo horizonte estaria a sociedade socialista. Para
outras tendências, a educação, própria da classe operária e conduzida por ela, indi-
cava um a contestação da sociedade capitalista e antecipação da nova sociedade.
A história da classe trabalhadora, contada por vários historiadores com o E.P.
Thom pson ou Eric H obsbawn, aponta que a educação se apresentava com o um a
bandeira de luta de vários partidos, m ovim entos radicais populares e de vários pro-
gram as políticos de governo. Thom pson (1987), por exem plo, relatando um m ovi-
m ento societário em prol dos direitos do hom em , escreve que na defesa destes se
incluíam “um direito à parcela do produto... proporcional aos lucros do patrão e o
direito à educação, pela qual o filho do trabalhador poderia ascender ao nível m ais
elevado da sociedade” (p. 176).
Esta tam bém é a direção de m uitos trabalhos de Adam Przew orski (1989). O
autor trata das lutas dos vários partidos europeus de esquerda que, nos diferentes
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países deste continente, se em penharam na busca de vitórias eleitorais acenando
bandeiras de reform as. M uitas tendências dos diferentes partidos socialistas que se
form aram ao longo do século XIX e início do século XX, desejosos de transform a-
ções sociais radicais pelo cam inho de m aiorias eleitorais, não só lutaram pela escola
prim ária gratuita e obrigatória com o tam bém pela sua extensão a níveis m ais eleva-
dos. Este foi o caso da França em torno da gratuidade do ensino m édio e sua
obrigatoriedade progressiva. N o caso específico da França, a defesa da escola laica
era um outro m odo de dizer da im portância e da responsabilidade do Estado no
assunto. Todo um capítulo dedicado à questão da alfabetização no século XIX, na
Inglaterra, e sua im periosa necessidade por parte dos trabalhadores será levado
adiante por E.P. Thom pson, (1987a, p. 303 ss).
Assim , seja por razões políticas, seja por razões ligadas ao indivíduo, a educa-
ção era vista com o um canal de acesso aos bens sociais e à luta política e, com o tal,
um cam inho tam bém de em ancipação do indivíduo diante da ignorância. D ado este
leque de cam pos atingidos pela educação, ela foi considerada, segundo o ponto de
vista dos diferentes grupos sociais – ora com o síntese dos três direitos assinalados –
os civis, os políticos e os sociais ora com o fazendo parte de cada qual dos três.
A m agnitude da educação é assim reconhecida por envolver todas as di-
m ensões do ser hum ano: o singulus, o civis, e o socius. O singulus, por pertencer
ao indivíduo com o tal, o civis, por envolver a participação nos destinos de sua
com unidade, e o socius, por significar a igualdade básica entre todos os hom ens.
Essa conjunção dos três direitos na educação escolar será um a das características
do século XX.
Em m uitos casos, com o nas constituições da Alem anha (Constituição de
W eim ar), da então União Soviética e da Espanha republicana, esse direito do cida-
dão é tam bém declarado, reconhecido com o dever dos poderes públicos e inscrito
em lei. A garantia do Estado visava dim inuir o risco de que as desigualdades já exis-
tentes viessem a se transform ar em novas m odalidades de privilégios. D o m esm o
m odo com o se invocou o poder do Estado para regular as relações de trabalho,
este poder se fez presente na educação escolar sobretudo pela im posição da
obrigatoriedade e conseqüente gratuidade.
M uitos países, com o a França, reconheceram a educação com o serviço pú-
blico e a inseriram dentro do princípio da laicidade. As lutas pela laicidade e por
governos civis dependentes do contrato social deram oportunidade para que a es-
cola pública para todos se constituísse verdadeiro apoio da construção da naciona-
lidade e do acesso ao sistem a eleitoral.
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Hoje, em boa parte dos países europeus e m esm o latino-am ericanos, a dis-
cussão do direito à educação escolar já se coloca do ponto de vista do que Bobbio
(1992) cham a de especificação. N a verdade, trata-se do direito à diferença, em
que se m esclam as questões de gênero com as de etnia e credo, entre outras.
presença de im igrantes provindos em boa parte das ex-colônias da Europa repõe
não só o tem a da tolerância com o o da subm issão dos cidadãos ao conjunto das
leis nacionais.
A dialética entre o direito à igualdade e o direito à diferença na educação
escolar com o dever do Estado e direito do cidadão não é um a relação sim ples. D e
um lado, é preciso fazer a defesa da igualdade com o princípio de cidadania, da
m odernidade e do republicanism o. A igualdade é o princípio tanto da não-discrim i-
nação quanto ela é o foco pelo qual hom ens lutaram para elim inar os privilégios de
sangue, de etnia, de religião ou de crença. Ela ainda é o norte pelo qual as pessoas
lutam para ir reduzindo as desigualdades e elim inando as diferenças discrim inatórias.
M as isto não é fácil, já que a heterogeneidade é visível, é sensível e im ediatam ente
perceptível, o que não ocorre com a igualdade. Logo, a relação entre a diferença e
a heterogeneidade é m ais direta e im ediata do que a que se estabelece entre a
igualdade e a diferença.
O pensam ento “único” ou em pírico não aprecia a abstração, preferindo o
m anifesto, o visível, o palpável. O em pírico é necessário e m esm o “porta” de entra-
da para um a realidade ontológica m ais am pla. Esta realidade é o gênero hum ano, da
qual procede o reconhecim ento da igualdade básica de todos os seres hum anos,
fundam ento da dignidade de toda e qualquer pessoa hum ana. É do reconhecim en-
to da igualdade essencial de todas as pessoas do gênero hum ano que se nutriram
todas as teses da cidadania e da dem ocracia. Sem esse reconhecim ento e respeito
por ele, estão abertas portas e janelas para a entrada de todas as form as de racism o
e correlatos de que o século XX deu trágicas provas.
A defesa das diferenças, hoje tornada atual, não subsiste se levada adiante em
prejuízo ou sob a negação da igualdade. Estam os assim diante do hom em com o
pessoa hum ana em quem o princípio de igualdade se aplica sem discrim inações ou
distinções, m as estam os tam bém ante o hom em concreto cuja situação deve ser
considerada no m om ento da aplicação da norm a universal.
Por isso, os Estados dem ocráticos de direito zelam em assinalar as discrim i-
nações que devem ser sem pre proibidas: origem , raça, sexo, religião, cor, crença.
Ao m esm o tem po, seria absurdo pensar um igualitarism o, um a igualdade absoluta,
de m odo a im por uniform em ente as leis sobre todos os sujeitos e em todas as
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situações. U m tratam ento diferenciado só se justifica perante um a situação objetiva
e racional e cuja aplicação considere o contexto m ais am plo. A diferença de trata-
m ento deve estar relacionada com o objeto e com a finalidade da lei e ser suficien-
tem ente clara e lógica para a justificar.
A França ilustra bem este ponto com o caso dos foulards (véus) usados por
jovens m uçulm anas, cujos pais têm proibido a freqüência das filhas em aulas de
educação física
1
.
Contudo, o pensam ento e a política que cam inham no sentido de um a so-
ciedade m ais justa não pode abrir m ão do princípio da igualdade, a cuja “visibilidade”
só se tem acesso por um a reflexão teórica. A não-aceitação da igualdade básica
entre todos os seres hum anos e o direito a um acesso qualificado aos bens sociais e
políticos conduzem a um a consagração “caolha” ou m uito perigosa do direito à
diferença. Porque sem esta base concreta e abstrata, ao m esm o tem po, do reco-
nhecim ento da igualdade, qualquer diferença apontada com o substantiva pode se
erigir em princípio hierárquico superior dos que não com ungam da m esm a diferen-
ça. Em nossos dias, a negação de categorias universais, porque tidas com o aistóricas
ou totalitárias, tem dado lugar a um a absolutização do princípio do pequeno, da
subjetividade, do privado e da diferença. E isso torna m ais problem ático o cam inho
de um a sociedade m enos desigual e m ais justa.
O ra, essa realidade dem onstra que o cam inho europeu, no sentido das con-
quistas de direitos consagrados em lei, nem sem pre foi o m esm o dos países que
conheceram a dura realidade da colonização. E, m esm o no m eio dos países coloni-
zados, ainda resta avaliar o im pacto sociocultural da colonização quando acom pa-
nhada de escravatura. A conquista do direito à educação, nestes países, além de
m ais lenta, conviveu e convive ainda com im ensas desigualdades sociais. N eles, à
desigualdade se som a a herança de preconceitos e de discrim inações étnicas e de
1. Com o se sabe, após a puberdade, as jovens m uçulm anas devem respeitar um certo núm ero
de hábitos de conduta relativos ao recato e à exposição do corpo. O véu (foulard) que lhes
cobre o rosto (ou todo ele, em determ inadas tendências do islam ism o) é um deles. A França,
ciosa de seu republicanism o e laicidade, não aceita no espaço escolar o que lá se denom ina
de sinais ostentatórios de pertença a agrem iações religiosas, políticas ou associativas em geral.
A rejeição ao foulard é defendida em nom e da igualdade de gênero e/ou da obediência às leis
do país. As aulas de educação física exacerbam o problem a, já que as jovens se recusam a
usar os trajes esportivos exigidos para determ inadas práticas. Até m eados da década de 90,
este debate perm eou a educação francesa e gerou artigos, livros, posições oficiais e práticas
diferenciadas por parte dos colegiados das escolas. D e m odo geral, o problem a envolveu a
tensão igualdade/diferença e novos olhares sobre a laicidade.
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gênero incom patíveis com os direitos civis. Em m uitos destes países, a form alização
de conquistas sociais em lei e em direito não chega a se efetivar por causa desses
constrangim entos herdados do passado e ainda presentes nas sociedades.
Ao contrário de m uitos países europeus, os países colonizados não conta-
ram , desde logo, com processos de industrialização e de constituição de um a forte
classe operária. Assim sendo, para as classes dirigentes, a educação não se im pôs
com o um a necessidade socialm ente significativa para todos. N ão houve um proces-
so social em que um outro ator social forte e organizado abrisse, desde logo, um
conflito que cobrasse responsabilidades sociais. Ao ocuparem os aparelhos de Esta-
do, as classes dirigentes se preocuparam m uito m ais com seus interesses exclusivos
do que com um projeto nacional que englobasse dim ensões m ais am plas da cidada-
nia para todos.
A escravidão, o caráter agrário-exportador desses países e um a visão
preconceituosa com relação ao “outro” determ inaram um a estratificação social de
caráter hierárquico. N ela, o outro não era visto com o igual m as com o “inferior”.
Logicam ente as elites atrasadas desses países, tendo-se na conta de “superiores”,
determ inaram o pouco peso atribuído à educação escolar pública para todos. N a
perspectiva dessas classes dirigentes, era suficiente para as classes populares serem
destinatárias da cultura oral. Bastava-lhes um tipo de catequese em que o “outro”
deveria ser aculturado na linha da obediência e da lealdade servil.
O s países latino-am ericanos, por exem plo, sofreram a colonização ibérica e
por ela conheceram o im pacto da Contra-Reform a em face da sua população nativa
ou escravizada. Para as elites, tais povos eram “selvagens”, “incivilizados” e “incul-
tos”. Com o tais, deveriam ou se conform ar docilm ente às ordens “superiores” ou
se converter aos padrões ocidentais com o seres “dependentes”.
A leitura e interpretação de livros em geral ou dos livros sagrados eram re-
servadas aos bacharéis e aos teólogos, autorizados pela Igreja católica. D aí porque a
transm issão oral ganha relevância sobre a transm issão baseada no acesso à leitura e
à escrita a todos. Tal tradição se opõe à experiência européia dos países que conhe-
ceram a Reform a. N eles, a tese luterana da sola fide et sola scriptura im plicou não
só o desenvolvim ento da im prensa com o tam bém o incentivo a que todos os fiéis,
m ediante a instrução, pudessem ler os livros sacros e m editar sobre a palavra de
D eus. Por isso, nestes países colonizados será longa e árdua a luta pelo direito à
educação em geral e pela educação prim ária em especial. N ão serão fáceis a inscri-
ção e a declaração deste direito nas leis destes países.
Afinal, a em ersão da escrita redefine o valor da palavra falada e a subordina
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nas relações contratuais, especialm ente aquelas vigentes em torno do trabalho. A
colonização e a escravatura, pondo-se fora de relações contratuais em que ao m e-
nos juridicam ente se reconhece a igualdade entre todos, só apareciam após os
processos de abolição e de independência. M esm o assim , m uitos destes países
continuarão fortem ente agrários e, nesse caso, as classes dom inantes terão pouco
interesse em difundir a educação escolar e, com ela, a escrita e a leitura.
A própria experiência dos Estados Unidos da Am érica revela que, só na m e-
tade do século XIX, a cam panha pela educação pública e gratuita para todos, inicia-
da em Boston por H orace M ann, dará seus frutos.
Preocupadas m ais com o seu enriquecim ento econôm ico e preservação de
seus privilégios, as elites dos países latino-am ericanos desconsiderarão a im portân-
cia efetiva da educação, apesar de m uitas falas ao contrário. O que não quer dizer
que não houvesse iniciativas progressistas a este respeito. A Argentina, ainda que às
custas de grande redução de sua população nativa, investiu bastante no direito à
educação prim ária aberta para todos. O m esm o pode se dizer da experiência uru-
guaia. Já no Brasil, por exem plo, a educação prim ária, durante m ais de m eio século
após sua independência em 1822, será proibida aos negros escravos, ao índios, e as
m ulheres enfrentarão m uitos obstáculos por causa de um a visão tradicionalm ente
discrim inatória quanto ao gênero.
M esm o com declarações e inscrição em lei, o direito à educação ainda não
se efetivou na m aior parte dos países que sofreram a colonização. As conseqüências
da colonização e escravatura, associadas às m últiplas form as de não-acesso à pro-
priedade da terra, a ausência de um sistem a contratual de m ercado e um a fraca
intervenção do Estado no sistem a de estratificação social produzirão sociedades
cheias de contrastes, gritantes diferenças, próprias da desigualdade social. A persis-
tência desta situação de base continua a produzir pessoas ou que estão “fora do
contrato” ou que não estão tendo oportunidade de ter acesso a postos de trabalho
e bens sociais m ínim os.
Isto explica o enorm e núm ero de pessoas que sequer possui educação pri-
m ária, sendo ainda grande o núm ero de pessoas que possui poucos anos de esco-
laridade. A pirâm ide educacional acom panha m uito de perto a pirâm ide da distribui-
ção da renda e da riqueza.
Para os tem pos contem porâneos, em que vai se constituindo a cham ada
“sociedade do conhecim ento”, a distância entre pobres e ricos aum enta tam bém
por causa do acesso aos conhecim entos disponíveis e às novas form as de linguagem
que necessitam de um a socialização própria. Essa distância tam bém tem aum enta-
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do a distância entre países ricos e países pobres, no m om ento em que o conheci-
m ento tem -se constituído em m ais-valia intelectual e base para o desenvolvim ento
auto-sustentado dos países.
Isto não quer dizer que se deve dim inuir a im portância da declaração de
direitos. D eclarar um direito é m uito significativo. Equivale a colocá-lo dentro de
um a hierarquia que o reconhece solenem ente com o um ponto prioritário das po-
líticas sociais. M ais significativo ainda se torna esse direito quando ele é declarado e
garantido com o tal pelo poder interventor do Estado, no sentido de assegurá-lo e
im plem entá-lo.
A declaração e a garantia de um direito tornam -se im prescindíveis no caso de
países, com o o Brasil, com forte tradição elitista e que tradicionalm ente reservam
apenas às cam adas privilegiadas o acesso a este bem social. Por isso, declarar e
assegurar é m ais do que um a proclam ação solene. Declarar é retirar do esqueci-
m ento e proclam ar aos que não sabem , ou esqueceram , que eles continuam a ser
portadores de um direito im portante. D isso resulta a necessária cobrança deste
direito quando ele não é respeitado.
O Brasil, por exem plo, reconhece o ensino fundam ental com o um direito
desde 1934 e o reconhece com o direito público subjetivo desde 1988. Em 1967,
o ensino fundam ental (prim ário) passa de quatro para oito anos obrigatórios. Ele é
obrigatório, gratuito e quem não tiver tido acesso a esta etapa da escolaridade pode
recorrer à justiça e exigir sua vaga.
N este sentido, o direito público subjetivo está am parado tanto pelo princípio
que ele o é, assim por seu caráter de base e por sua orientação finalística, quanto
por um a sanção explícita quando de sua negação para o indivíduo-cidadão. Para
esses oito anos obrigatórios não há discrim inação de idade. Q ualquer jovem , adulto
ou idoso tem este direito e pode exigi-lo a qualquer m om ento perante as autorida-
des com petentes.
...quando nascem os cham ados direitos públicos subjetivos, que caracterizam o Es-
tado de D ireito. É com o nascim ento do Estado de D ireito que ocorre a passagem
final do ponto de vista do príncipe para o ponto de vista dos cidadãos. N o Estado
despótico, os indivíduos singulares só têm deveres e não direitos. N o Estado abso-
luto, os indivíduos possuem , em relação ao soberano, direitos privados. N o Estado
de D ireito, o indivíduo tem , em face do Estado, não só direitos privados, m as tam -
bém direitos públicos. O Estado de D ireito é o Estado dos cidadãos. (Bobbio, 1992,
p.61)
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Consagrado por este reconhecim ento, o direito público subjetivo im plica ao
Estado seu dever de atender a todos os m aiores de sete anos no cum prim ento dos
anos da escolaridade obrigatória
2
.
Este jogo entre direito e dever im plica aos interessados, quando na falta des-
te atendim ento, o acionar de instrum entos jurídicos e processuais capazes de fazer
respeitar um direito claram ente protegido. N esse sentido, a Constituição aciona a
própria sociedade civil com o espaço consciente de poder e de controle dem ocrá-
tico do próprio Estado, a fim de que nenhum cidadão fique sem o benefício da
educação escolar.
O direito à educação parte do reconhecim ento de que o saber sistem ático é
m ais do que um a im portante herança cultural. Com o parte da herança cultural, o
cidadão torna-se capaz de se apossar de padrões cognitivos e form ativos pelos
quais tem m aiores possibilidades de participar dos destinos de sua sociedade e co-
laborar na sua transform ação. Ter o dom ínio de conhecim entos sistem áticos é tam -
bém um patam ar sine qua non a fim de poder alargar o cam po e o horizonte desses
e de novos conhecim entos.
O acesso à educação é tam bém um m eio de abertura que dá ao indivíduo
um a chave de autoconstrução e de se reconhecer com o capaz de opções. O direi-
to à educação, nesta m edida, é um a oportunidade de crescim ento cidadão, um
cam inho de opções diferenciadas e um a chave de crescente estim a de si.
Esta estim a de si conjuga-se com a descrição feita por Bobbio (1992) em
relação ao desenvolvim ento dos direitos. Segundo ele, a gênese histórica de um
direito com eça com o um a exigência social que vai se afirm ando até se converter
em direito positivo. Esta conversão ainda não significa a universalização do m esm o.
O m om ento da universalização indica que aquela exigência, já posta com o direito,
se torna generalizada para todos os cidadãos ou am plia os níveis de atendim ento.
Finalm ente há a especificação de direitos. N o prim eiro caso, tem os, por exem plo, o
direito à escola prim ária para os hom ens livres. O utras categorias passam a exigir
este direito e, após m uito esforço e luta, pode acontecer tanto a am pliação da
escola prim ária para todas as pessoas de qualquer gênero, idade ou condição social
quanto a exigência da inclusão de um nível superior da educação escolar para todos.
É o caso da luta pela universalização da escola m édia.
2. N o Brasil, a Constituição Federal im plica o M inistério Público à defesa “da ordem jurídica, do
regim e dem ocrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127), prom oven-
do as m edidas necessárias a sua garantia” (art.129).
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Cadernos de Pesquisa, n. 116, julho/2002
Q uando organism os internacionais passam a fazer destes direitos um m otivo
de declarações e de convenções é porque se revela um a tendência de
internacionalização, com o é o caso do Pacto Internacional sobre D ireitos Econôm i-
cos, Sociais e Culturais da Assem bléia Geral da O nu, de 16.12.66, e a Convenção
relativa à luta contra a discrim inação no cam po do ensino, da Unesco, de 1960.
A especificação acontece quando são reconhecidos novos direitos, com o o
de as crianças m enores de 6 anos terem um a escola adequada à sua idade, ou
quando se reconhece, ainda hoje, o direito de as m ulheres, os jovens e adultos
entrarem nas escolas. Aqui tam bém é o caso dos portadores de necessidades espe-
ciais que, por algum a razão, se vêem prejudicados na sua locom oção ou audição ou
qualquer outro problem a, e passam a exigir um m odelo próprio educacional, que
atenda às suas peculiaridades.
O ra, donde advém tam anha im portância e necessidade reconhecidas à edu-
cação?
O direito à educação decorre de dim ensões estruturais coexistentes na pró-
pria consistência do ser hum ano.
A racionalidade, expressão da ação consciente do hom em sobre as coisas,
im plica tam bém o desenvolvim ento da capacidade cognoscitiva do ser hum ano com o
m eio de penetração no m undo objetivo das coisas. A racionalidade é tam bém con-
dição do reconhecim ento de si, que só se com pleta pelo concom itante reconheci-
m ento igualitário da alteridade. Só com o desenvolvim ento destas capacidades é
que a ação do hom em com o outro e sobre as coisas torna-se hum ana e criativa. O
pleno desenvolvim ento da pessoa não poderia se realizar sem o desenvolvim ento
efetivo da capacidade cognitiva, um a m arca registrada do hom em . Assim sendo,
essa m arca se torna universal. Ela é a condensação de um a qualidade hum ana que
não se cristaliza, já que im plica a produção de novos espaços de conhecim ento, de
acordo com m om entos históricos específicos.
E com o os atores sociais sabem da im portância que o saber tem na socieda-
de em que vivem , o direito à educação passa a ser politicam ente exigido com o um a
arm a não violenta de reivindicação e de participação política.
D esse m odo, a educação com o direito e sua efetivação em práticas sociais se
convertem em instrum ento de redução das desigualdades e das discrim inações e
possibilitam um a aproxim ação pacífica entre os povos de todo o m undo.
A dissem inação e a universalização da educação escolar de qualidade com o
um direito da cidadania são o pressuposto civil de um a cidadania universal e parte
daquilo que um dia Kant considerou com o um a das condições “da paz perpétua”: o
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caráter verdadeiram ente republicano dos Estados que garantem este direito de li-
berdade e de igualdade para todos, entre outros.
Ao m esm o tem po a relação que se estabelece entre professor e aluno é de
tal natureza que os conteúdos e os valores, ao serem apropriados, não se privatizam .
Q uanto m ais processos se dão, m ais se m ultiplicam , m ais se expandem e se socia-
lizam . A educação, com isto, sinaliza a possibilidade de um a sociedade m ais igual e
hum ana.
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