Necessidade de alimentos! Conciliação entre a economia da produção de proteína sustentável e o tratamento ético dos animais: Um imperativo social de base científica.
Enquanto médico veterinário de formação tive oportunidade de trabalhar em diferentes áreas da profissão, e vão quase quarenta anos. De entre elas, a inspeção sanitária de produtos de origem animal, a medicina da produção e a medicina da conservação serão aquelas em que o papel destes profissionais será mais importante numa sociedade exigente e em marcada evolução. No meu caso, o exercício prático, o ensino e a investigação foram pontuando uma parte relevante da atividade profissional. Não obstante a apaixonante clínica de animais de companhia e a investigação em imunoalergologia, nunca perderia a perceção sobre o principal papel do médico veterinário na sociedade humanizada, o de promover a produção de alimentos de origem animal seguros, em quantidade suficiente e a custo acessível, num contexto mais lato, composto por quatro pilares fundamentais da responsabilidade dos Estados: alimentação, saúde, educação e justiça.
No século XX, excetuando alguns períodos de grande conturbação política e social, até à década de 1960 o modelo de progresso então em curso parecia solidamente imparável. Porém, a evolução a todos os níveis exponencial, observada no planeta, encaminhava-se para uma preocupante insustentabilidade, comprometedora da própria sobrevivência de inúmeras espécies. Ainda na segunda metade do século XX, tal situação começava já a virar progressivamente o foco da consciência social no sentido da necessidade de travar as gravosas e previsivelmente trágicas modificações climáticas associadas. O modelo de desenvolvimento tecnológico em curso não cabia já na nossa Terra. Havia-se chegado à lua, mas, apesar do turismo espacial ser já uma realidade, mesmo que exclusivista, uma possível colonização em massa do espaço afigura-se mais complicada. Certo é que teremos já ultrapassado o ponto de viragem, em termos de impacto ambiental, do modelo de progresso saído da revolução industrial. É como se o planeta começasse a suar mais do que a água que consegue beber, desidratando-se perigosamente. Começa a ser evidente a necessidade cada vez mais urgente de inverter o rumo, perante uma natureza em asfixia. Especialistas mundiais vêm-se reunindo para discutir este cada vez mais assustador problema. A opinião pública começa a reparar nele, preocupando-se, ainda que a sociedade, rendida à volúpia consumista, não permita, para já, o necessário grau de cidadania aderente. Em todo o caso, e felizmente, as questões ambientais começam a chamar a atenção real de líderes políticos um pouco por todo o mundo e os resultados, não sendo tão rápidos quanto desejável para garantir já o salvamento do planeta doente, vêm, pelo menos, colocando aquelas questões na agenda política internacional, de forma incontornável, vincando a preocupação dos cidadãos. Com as sucessivas Conferências das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas (COP) lá vamos seguindo de COP em COP e, mesmo com as fraturantes ausências de importantes poluidores, o caminho vai-se fazendo. Diz-se que água mole em pedra dura, tanto bate até que fura – temos, ainda, uma nesga de esperança neste mundo global, entre pandemias supra-bíblicas e a biologia molecular mais state of the art. Como resumia Frans Timmermans, vice-presidente da Comissão Europeia e representante europeu nas negociações da COP26, relativamente aos resultados alcançados: “O perfeito é inimigo do bom”. Que o tempo gasto não tenha sido tempo perdido, como onomatopeicamente expressava a ativista sueca Greta Thunberg: “Blá, blá, blá”. É o que todos nós cidadãos, esperamos.
Para poder ultrapassar os exigentes desafios que temos pela frente precisamos focar o extraordinário potencial científico, que não para de crescer, no desenvolvimento de um modelo tecnológico de produção alimentar seguro, acessível e de distribuição justa. O conhecimento científico e tecnológico deve permitir à população mundial um equilíbrio incontornavelmente democrático, respeitando também os nossos parceiros na natureza, de forma a mantê-la sã e sustentável para as gerações vindouras. Só assim garantiremos a nossa própria sobrevivência, como parte integrante do ecossistema terrestre. Não nos considerarmos pares dos outros seres vivos, posicionando-nos arrogantemente como superiores, resulta no que está à vista de todos. Neste contexto, afigura-se especialmente importante que a humanidade comece, de forma inequívoca, por respeitar todos os que, de forma senciente, são capazes de sentir e de sofrer, física e emocionalmente. Também neste aspeto a ciência deve ser ouvida, sendo consideravelmente preocupante observar que, após a extraordinária evolução do conhecimento científico, grandes massas populacionais continuem a fazer opções à sua margem, promovendo lideranças políticas flutuantes entre a ignorância e o cinismo, com graves consequências para todos os habitantes de um planeta que, do espaço, de onde o conjunto que somos se pode observar, não apresenta fronteiras. A prossecução de objetivos tão necessariamente ambiciosos, relacionados com a nossa própria sobrevivência planetária, requer uma estabilidade decisória que permita um desenvolvimento económico equilibrado e sustentável, associado a uma redistribuição da riqueza. É isso a que chamamos progresso, paz social e democracia. Trata-se, verdadeiramente, de uma responsabilidade dos Estados, mas nem todos a demonstram, levando, perante a falta de acesso a uma vida digna, tantas vezes sem a elementar expectativa de sobrevivência, a que “os pobres assaltem a casa dos ricos”. É o triste espetáculo que entra diariamente pelas nossas casas dentro, quando a ausência de paz social, e mesmo de recursos alimentares, promove ondas migratórias vindas de sul, rumando em direção à Europa e à América do Norte. Este espetáculo desumano, e que conta também com muros e arame farpado como atores, não é compatível com os princípios democráticos, exigindo consensos internacionalmente alargados. Esse objetivo deve também manter-se na agenda política internacional, devendo mesmo ser um dos temas fulcrais das políticas públicas transnacionais. Curiosamente, do espaço não se vê o arame farpado!
Neste número especial do Jornal Português de Políticas Públicas, dedicado à produção alimentar sustentável, às alterações climáticas e ao tratamento ético dos nossos maiores fornecedores de proteína, os animais, é com apreciável satisfação que pudemos contar com vários nomes de reconhecido prestígio naqueles domínios. Carlos Fiolhais, professor universitário, físico, ensaísta e um extraordinário divulgador de ciência, expõe-nos com uma lucidez clarificadora aspetos essenciais associados às alterações climáticas e à produção de alimentos. Afinal, a agricultura industrializada não é a mãe de todos os males, mas, no global, aqueles tendem claramente a agravar-se se mudanças cientificamente baseadas não se fizerem. Os factos científicos aqui desmontados e explicados com extraordinária clareza permitem-nos compreender melhor a dimensão inerente a estes temas. Manuel Chaveiro Soares, professor universitário, agrónomo, administrador e empresário de sucesso é alguém que muito admiro, pela extraordinária visão científica que mantem da sociedade, a qual lhe permite manter na crista do sucesso empresarial as atividades que empreende. Apresenta-nos factos incontornáveis do desenvolvimento biotecnológico, que, com a sua repercussão a nível farmacêutico e da produção alimentar, sem contornar a questão do impacto ambiental, nos mostra como foi possível sermos hoje mais saudáveis, sentirmo-nos mais seguros e, talvez mesmo, mais felizes. Fernando Bernardo, professor universitário, médico veterinário e ex-Diretor Geral de Alimentação e Veterinária foi, desde que o conheci como meu professor, alguém cuja elevação me captou a atenção e marcou positivamente. Como poucos, recorrendo aos seus conhecimentos científicos e do terreno, apresenta-nos o panorama atual da produção alimentar em Portugal, em termos de sustentabilidade e, de forma integrada, em termos sociais, económicos, culturais e sanitários. Trata-se, pois, de uma perspetiva a levar muito em conta, em termos de política agroalimentar. Christiane Souza, Flávio Vieites, Antônio Castro, Luís Martins e Cristina Ribeiro de Lima são também todos académicos, com estreita ligação ao terreno e um denominador comum, a experiência diferenciada no domínio da produção avícola de elevada eficiência. Experiências diferentes, mas complementares, permitiram a presente visão da produção avícola, nas suas diferentes vocações, em termos da extraordinária evolução tecnológica, do impacto socioeconómico e da dinâmica territorial, recorrendo ao exemplo de uma grande potência como o Brasil. Demonstram, acima de tudo, como a produção de proteína alimentar de alto valor biológico é possível, de forma muito eficiente, ou seja, com contido impacto ambiental. José Afonso de Almeida, professor universitário, médico veterinário, cedo demonstrou uma capacidade singular de gestão académica, cuja competência o levaria a ocupar diferentes lugares cimeiros da organização universitária. Sem nunca perder o gosto por ensinar, tornou-se para muitos de nós uma referência de pensamento. O seu contributo para este número não podia ser mais relevante e inquietante. De facto, a arena moral em que colocamos os outros animais, sejam eles de companhia, trabalho, desporto, lazer ou mesmo de comer e vestir, é algo que colide frequentemente com os valores modernos que consideramos humanistas e cívicos. Mas é preciso conhecer bem o histórico e a natureza animal, nas suas várias facetas, para melhor enquadrar a dimensão da questão. É isso que, de forma brilhante, aqui nos oferece.