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SOCIOLOGIAS92
Sociologias, Porto Alegre, ano 10, nº 19, jan./jun. 2008, p. 92-105
DOSSIÊ
E
Cotidianos
de Manguinhos1
Apresentação
HENRIQUE LUIZ CUKIERMAN*
MÁRCIA DE OLIVEIRA TEIXEIRA**
m 1908, o Instituto de Manguinhos, amparado por um novo
arcabouço institucional que conferia autonomia ante a Di-
retoria Geral de Saúde Pública (DGSP) deixava definitiva-
mente para trás os áureos tempos da casinha improvisada
em laboratório. Ao alcançar sua maioridade nacional e in-
ternacional, esta última por conta do prêmio na Exposição de Higiene e
Demografia em Berlim (1907) [CUKIERMAN, 2007], passava a vivenciar
assumidamente o cotidiano de um centro de produção científica. Se ali se
praticava a ciência brasileira, a análise desse cotidiano pode fornecer pistas
valiosas para se entenderem a especificidade das práticas científicas locais e
sua relação com a pretensa ‘universalidade’ da ciência internacional.
A tarefa é evidentemente complexa, de modo que, em nosso artigo,
anotaremos algumas das possibilidades de análise. A partir da incursão de
* Programa de Engenharia de Sistemas e Computação - PESC - COPPE / UFRJ e do programa de
pós-graduação em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia da UFRJ - hcukier@cos.ufrj.br
** Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio - EPSJV - FIOCRUZ. marciat@fiocruz.br
1 Uma versão deste artigo foi apresentada ao X Simpósio Nacional de História da Ciência e
Tecnologia da SBHC (Sociedade Brasileira de História da Ciência), realizado em Belo Horizonte
(2005).
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Jaime Benchimol aos arquivos de História oral da Casa de Oswaldo Cruz,
registrada em seu artigo Retratos do Cotidiano em Manguinhos [1989],é pos-
sível antever o rico manancial para se pensar na hipótese de uma ciência
cordial (adotamos a adjetivação proposta por Sergio Buarque de Holanda em
Raízes do Brasil, a ser examinada mais adiante) à luz do cotidiano dos homens
de ciências daquela instituição. Nesta nossa primeira investida, reunimos re-
latos de episódios ocorridos em diferentes períodos da história de Manguinhos.
Eles constituem um mosaico de referências, articuladas pelos trabalhos de
Sérgio Buarque de Holanda, Beatriz Bitarello e Richard Morse.
Uma Ciência Cordial
O Decreto 1.812 que, como já vimos, propiciaria a Manguinhos sua
autonomia financeira, traria também outras importantes conseqüências em
relação ao seu perfil institucional, buscando torná-lo equivalente ao daque-
les centros de produção científica mais avançados da Europa. Entre os dis-
positivos, agora mandatórios por força de seu estatuto legal, estava aquele
que obrigava o Instituto a publicar o resultado das pesquisas nas suas Me-
mórias. Finalmente, Manguinhos teria o seu próprio texto, esta espécie de
atestado de maioridade perante a comunidade científica internacional, que
agora poderia ter acesso à ciência ali produzida através das edições bilín-
gües da publicação oficial do Instituto. O mapa da ciência teria agora de
incorporar mais um nó em sua rede, o daquele laboratório instalado no alto
de uma colina do Rio de Janeiro, a saneada metrópole tropical.
O quadro de cientistas do Instituto foi circunscrito no mesmo decre-
to a um diretor, dois chefes de serviço e seis assistentes, cujas nomeações,
salvo a do diretor, que era de livre escolha do Presidente da República,
teriam que ser precedidas por aprovação em concurso público (exceto as
primeiras nomeações). Todavia outra mudança viria por conta da prerrogati-
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va, concedida ao diretor do Instituto, de poder sugerir o reforço do quadro
técnico-científico, “quando as circunstâncias o exigirem (...)”, mediante a
contratação de profissionais, “durante o tempo que for necessário”. Desta
forma, abria-se o caminho para concretizar o velho sonho de inverter a mão
do trânsito ultramarino de ‘cérebros’, e assim poder incorporar cientistas
estrangeiros aos trabalhos de Manguinhos, reforçando ainda mais sua ‘per-
sonalidade internacional’2. Em julho de 1908, desembarcaram no Rio de
Janeiro dois professores da Escola de Medicina Tropical de Hamburgo.
Stanislaw von Prowazeck e Gustav Giemsa haviam ficado encantados com
os trabalhos apresentados na exposição de Berlim, e permaneceram no
Instituto até fevereiro de 1909, onde ministraram cursos e os publicaram
em primeira mão nas Memórias3. Em maio de 1909, foi a vez da temporada
de Max Hartmann, do Instituto de Moléstias Infecciosas de Berlim, e em
1912, Hermann Dürck também seria contratado para orientar os trabalhos
de anatomia patológica.
Uma primeira entrada no cotidiano de Manguinhos revela, com a
unanimidade de todas as fontes consultadas, que, apesar de sua pequenez,
o quadro técnico-científico derivava sua extraordinária produtividade da di-
versidade de suas atividades. Não havia divisão técnica entre os trabalhos
de pesquisa, de ensino e de produção, de forma que cada pesquisador
ocupava-se, simultaneamente, da preparação de produtos biológicos, da
investigação de um leque diversificado de temas, da orientação aos douto-
randos que freqüentavam o Instituto e das aulas dos cursos de especializa-
ção. Portanto, era um pessoal dotado de excepcional flexibilidade tanto na
2 As tentativas anteriores de trazer gente de fora esbarraram em sérios entraves legais e burocráticos,
que o Decreto 1.812 tratou de eliminar.
3 Prowazeck estudou com Henrique Aragão a etiologia da varíola, cuja epidemia recém assolara o
Rio de Janeiro, chegando ambos à suposta descoberta do micróbio da varíola, publicada nas
Memórias com grande repercussão à época.
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ação como na eleição de seu objeto de estudo. Dito em bom português, o
cientista de Manguinhos era um faz-tudo.
Todavia, flexibilidade não é uma dádiva dos deuses, nem surge as-
sim do nada. Uma primeira hipótese relaciona-se à compreensão da ciência
local como fazendo parte das práticas culturais locais relacionadas à flexibi-
lidade, o que, a valer a hipótese, mobiliza toda a discussão a respeito da
dificuldade brasileira em adotar padrões rigorosos e formalismos rígidos.
Sergio Buarque de Holanda fornece alguma indicação a respeito quando,
ao tecer comentários a respeito da cidade colonial engendrada pelo portu-
guês na América, uma cidade que, a seu ver, “(...) não é produto mental,
não chega a contradizer o quadro da natureza, e sua silhueta se enlaça na
linha da paisagem”, propõe que esta aceitação tácita dos limites impostos
pela natureza seja entendida como certo tipo de “...) realismo fundamental,
que renuncia a transfigurar a realidade por meio de imaginações delirantes ou
códigos de posturas e regras formais (...) Que aceita a vida, em suma, como
a vida é, sem cerimônias, sem ilusões, sem impaciências, sem malícia e,
muitas vezes, sem alegria” [Holanda,1996: 110].
Assim, o atributo da flexibilidade já viria impresso na própria configu-
ração urbana das cidades brasileiras, como se fora um instrumento cultural
sub-reptício, destinado a registrar a partir da própria retina dos filhos daque-
las cidades, desde a sua mais tenra idade, um determinado padrão de com-
portamento diante do mundo, o comportamento flexível. Se prosseguirmos
na trilha de Raízes do Brasil, chegaremos inevitavelmente ao conceito de
homem cordial. Com esta formulação, Sergio Buarque de Holanda procura
definir o espaço de uma outra civilidade, a civilidade brasileira, “de um
fundo emotivo extremamente rico e transbordante”, levando-o a afirmar que
“a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade - daremos ao
mundo o ‘homem cordial’” [idem:146-147], expressão do “predomínio
constante das vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em
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círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal” [idem:146],
do “desconhecimento de qualquer forma de convívio que não seja ditada por
uma ética de convívio emotivo (...)” [idem:148]. Portanto, a existir o ho-
mem cordial, existirá a ciência que dele decorre, a ciência cordial?
Supondo a existência de tal ciência, a pergunta remonta a outra do
mesmo formato, e que a antecede no tempo e na complexidade: a existir
a ciência cordial, existirá sua matriz, a ciência ibérica? A resposta envereda
necessariamente por uma discussão que nos é familiar, ou seja, a de que a
Península Ibérica, por conta de seu conservadorismo religioso, teria ficado
para trás em relação às revoluções científica e industrial. Não é à toa que
ainda hoje se produzem estranhezas sempre que se pretende afirmar a
moderna capacidade científica e tecnológica de países ibero-americanos e
da própria Europa ibérica, como se nesta área estivéssemos condenados a
um fracasso “congênito”. Entretanto, este sentimento de inferioridade ante
a nossa capacidade para a ciência e a técnica pode também nos defrontar
com reflexões instigantes a respeito de si próprio e do mundo ao redor.
Modernidade singular
Beatriz Domingues Bitarello explora a temática, em sua tese de mestrado
intitulada A modernidade ibérica e a revolução científica do século XVII [Bitarello,
1994], inspirada especialmente nas idéias preconizadas por Richard Morse em
O Espelho de Próspero [Morse, 1995]. Nela, a autora manifesta o desejo de
referir-se à nossa tradição ibérica “de uma forma positiva, não lamentatória”
[Bitarello,1994: 4] e lança um desafio que nos libera irreversivelmente do fardo
do ‘atraso’ : “E se a Ibero América, ao invés de ainda não modernizada, for
imodernizável pelos padrões anglo-americanos?” [idem: 3].
Para respondê-lo, sua argumentação realiza uma outra aproximação à
idéia de modernidade: “Se nós entendermos Modernidade como o mundo
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que emergiu da revolução científica, da reforma protestante e do individualis-
mo e contratualismo modernos, um mundo no qual ciência e religião são
perfeitamente separáveis um do outro e no qual as esferas pública e privada
não se misturam, é inescapável concluir que não somos suficientemente
modernos. Mas este fato não é bastante para concluirmos que perdemos o
‘bonde da história’: só que, ao invés do bonde moderno ocidental, nós
tomamos um outro” [idem: 3-4]. O outro bonde que teríamos tomado
refere-se à posição adotada pela tradição ibérica que, ante a ciência de
Galileu e a filosofia de Descartes, teria optado por modernizar a ciência e a
tradição filosófica medieval. Esta postura ibérica em relação à constituição
da chamada Modernidade é o que Beatriz Bitarello denomina de
Modernidade Medieval, por sua vez oriunda do mesmo berço da Modenidade
Moderna, a saber, a modernidade cristã-racional medieval. Desta forma,
sua sugestão é no sentido de “acrescentar aos modos de modernidade pen-
sados linearmente no tempo, a possibilidade de diferentes modos de
modernidade convivendo num mesmo período histórico – o moderno” [idem:
7], e assim liberar o caminho para a nossa Modernidade Medieval, sem
que, com isso tenha-se de senti-la superior ou inferior ao desenvolvimento
ocorrido na Europa Ocidental. “Não se trata de fazer apologia do atraso ou
do exótico mas de afirmar a possibilidade de ser diferente”. [idem: 40]. No
entender de Richard Morse, essa diferença tem um sentido altamente pe-
dagógico para a Anglo-América, desde que ela se disponha a aprender com
“(...) a experiência histórica da Ibero-América, não mais como estudo de um
caso de desenvolvimento frustrado, mas como a vivência de uma opção
cultural” [Morse, 1995: 14].
Daqui em diante, o rumo a seguir é o do exame mais detalhado das
opções filosóficas e culturais assumidas ao longo do período histórico, com-
preendido entre os séculos XII e XVII, nos quais se formou a matriz moral,
intelectual e espiritual comum a ambas as modernidades, e dentro da qual
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“(...) foram feitas opções e construídos modelos conceituais que viriam a
produzir os diferentes padrões do que chamamos ‘civilização ocidental’”
[idem: 22]. Um rumo um tanto quanto inesperado e complexo, embora
necessário, para quem, preocupado com as questões concernentes ao dia-
a-dia de Manguinhos, acabou deparando-se com a necessidade de realizar
um salto enorme no espaço, no tempo, e na própria discussão, refratada
pela construção do laboratório para a construção da modernidade.
Memórias de um cotidiano
No entanto existe outro rumo, mais singelo talvez, o de realizar o
salto inverso, para dentro do tempo e do espaço daquele cotidiano. Um
salto que se torna possível graças aos arquivos de História oral da Casa de
Oswaldo Cruz, reunidos sob o título de ‘Memórias de Manguinhos’. Elas
contêm depoimentos que permitem vislumbrar com extraordinária clareza
as situações cotidianas do Instituto e, embora se refiram em sua grande
maioria, ao período posterior a 1920, são descrições que servem tranqüila-
mente para, da mesma forma representar a vivência dos anos anteriores. As
‘Memórias de Manguinhos’ já foram submetidas a uma primeira incursão
de Jaime Benchimol, registrada em seu artigo Retratos do Cotidiano em
Manguinhos [Benchimol,1989], cujo conteúdo permite antever o rico ma-
nancial para se pensar na hipótese de uma ciência cordial. Esta ousada espe-
culação quase certamente carecerá de elementos que a comprovem, mas o
leitor poderá testemunhar a existência de alguns traços ‘perturbadores’, de
sorte que, se perdemos a hipótese, ao menos não perdemos a provocação.
O imbróglio cordial começa com o quadro de pessoal previsto pelo
decreto 1.812, dividido em três grupos: o técnico-científico (um diretor,
dois chefes de serviço, seis assistentes), o administrativo (um zelador, um
almoxarife, um arquivista, um escriturário e um desenhista) e o pessoal
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subalterno (um chefe de cocheira, quatro serventes de primeira classe,
quatro serventes de segunda classe, cinco ajudantes, um mestre, dois ma-
quinistas e dois foguistas). Não havia nenhuma vaga para auxiliares de la-
boratório, de forma que estes foram recrutados pelos cientistas entre o pes-
soal subalterno. Assim, era corriqueiro que um técnico de laboratório fosse
exímio em suas funções, apesar de analfabeto. Um dos ‘subalternos’, William
Hamlet Aor, conta em seu depoimento que “o Dr. Costa Cruz, no Pavilhão
da Peste, tinha um servente, um senhor totalmente analfabeto. Ele só com-
prava jornal quando tinha fotografia. (...) Mas tinha uma coisa: o que o
homem quisesse, um meio de cultura, um repique, uma semeadura, podia
confiar porque saía dentro do figurino” [idem:24].
Pode-se imaginar, portanto, o tipo de relação hierárquica que se estabe-
lecia entre o cientista e seu ‘subalterno’, na qual o rigor e o formalismo
prussianos das práticas de laboratório eram forçadas a conviver e a contrastar
com relações patriarcais típicas dos trópicos. “Eu não era nada, mas era um
auxiliar dileto. Isso já me satisfazia, compreendeu?” [idem: 23], revela em seu
depoimento outro ‘subalterno’, Attílio Borrielo, deixando evidente a obediên-
cia e a hierarquia estabelecidas no cotidiano dos laboratórios do Instituto. Esta
situação se torna ainda mais explícita pelo que ele mesmo declara em outro
ponto a respeito dos uniformes e do ritual das refeições em Manguinhos:
“Até o avental era de cor diferente. O indivíduo que tinha um avental pardinho
era servente. Depois, quando ia subindo de posição, passava a usar um avental
branco. E isto era um orgulho! Era uma categoria média. Tinha o refeitório dos
humildes e o carramanchão. Eu saí daqui comendo no caramanchão. Era uma
vaidade tola, mas a gente sentia-se bem...” [idem: 23] Atuando em conjunto
com a obediência, subjazia o temor que impunha a figura do cientista em seu
jaleco branco: “os cientistas só falavam com a gente quando tinham interesse
num certo serviço. Fora disso, mão tinham razão de falar nada. E a gente
quando via um homem daquele, tomava todo o cuidado” [idem: 23]. É o que
se ouve do testemunho de William Hamlet.
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A visão do ‘subalterno’ a respeito daquilo que se passa com o seu
superior hierárquico é oferecida por Francisco Gomes, para quem “os pes-
quisadores da época eram formidáveis. Eles chamavam a gente, ensinavam o
porquê, o como era, o como se fazia (...) eles tinham orgulho de que a gente
aprendesse e se tornasse bons técnicos (...)” [idem: 25]. Desenvolvida neste
ambiente de vínculos intensamente afetivos, a formação do ‘subalterno’, a
exemplo do que ocorria com os cientistas, também contava com a extrema
diversificação de suas atividades: “A formação do técnico era feita nos pró-
prios laboratórios, porque revezávamos de laboratório para laboratório e se
aprendia então todas as coisas, da microbiologia para a imunologia, da
imunologia para a protozoologia, a entomologia, a bioquímica, a fisiologia...
assim a gente acabava formando um técnico de conhecimento mais ou me-
nos geral. Mas não havia curso assim específico para a formação de técnico
de laboratório” [idem: 24], é o que nos conta Francisco Gomes, revelando
que, ao invés de um curso formalizado, operava em Manguinhos uma esco-
la tácita, informal e altamente eficiente para os seus técnicos de laborató-
rio. Uma eficiência construída sobre o plano puramente afetivo e informal,
uma eficiência cordial!
A contratação dos subalternos, de livre arbítrio do diretor do Instituto
segundo facultava-lhe o Decreto 1.812, ensejava relações extremamente
pessoais entre contratantes e contratados. Uma vez contratado um primei-
ro ‘subalterno’, este usufruía do compadrio com o seu chefe para tentar
introduzir sua parentela, de forma que, com o passar do tempo, estabele-
ceram-se várias linhagens familiares entre os serventes de Manguinhos.
Conseqüentemente, o recrutamento dos ‘subalternos’ ocorria sob a chan-
cela de alguma forma de predileção pessoal. O recrutamento de Francisco
Gomes, ‘descoberto’ por Carlos Chagas em Lassance, interior de Minas
Gerais, quando este pesquisava o ciclo da doença que, mais tarde, tomou o
seu nome, é um exemplo típico deste processo. Com apenas sete anos e
muito magrinho, Chico foi levado ao acampamento de Chagas por um tio,
para que pudesse melhorar seu estado de saúde ao ‘mudar de ares’. Um
dia, ao subir em uma árvore para laçar uma gambá que lhe atrapalhava o
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sono na rede, o garoto foi surpreendido pelo cientista que, ao mesmo
tempo que pedia todo o cuidado com o bicho, rogava ao menino que não
o deixasse fugir. “’Tem jeito de pegar?’ ‘Tem’. Aí foi quando ele correu para
a barraca, foi apanhar a bandeja com o material – lâmina, tesoura, etc.
Imprensei a cabeça do gambá com a forquilha no chão, consegui segurar as
patas traseiras e ele veio correndo e deu um pique na orelha, tirou uma gota,
botou na lâmina, saiu correndo para a barraca e foi para o microscópio.
Quando olhou no microscópio, deu um tremendo berro, que aquilo ecoou,
a ressonância, por aquele campo afora... Foi o segundo animal que tinha
descoberto como hospedeiro do Trypanosoma Cruzi. O primeiro era o tatu,
que ele já tinha descoberto, e o segundo foi esse gambá” [idem: 254].
A identidade de um novo hospedeiro, assunto tão vetusto da ciência
universal, ocorria a partir da destreza de um garoto magrinho aboletado
numa árvore. Como prêmio, Chagas ‘contratou’ o garoto, comprometen-
do-se a ensiná-lo a ler, a escrever e a levá-lo mais tarde ao Instituto (para
onde foi com apenas doze anos). Em seguida, ainda de acordo com seu
depoimento, o recrutamento de Francisco Gomes mergulha fundo na
ambiência afetiva e na invocação da estrutura familiar, levando ao limite a
magnificação da figura do cientista como pai, às custas do minguamento de
sua estatura profissional. “Então começou a me ensinar a ler de noite (...)
Isso tudo com aquele espírito paternal, porque, como eu perdi meu pai
muito cedo, fui fazendo transferência de afeto para ele, né? Ele me ensinava,
com aquela delicadeza de sempre, como sempre foi, uma delicadeza tre-
menda” [idem: 24].
Outro ‘subalterno’, Venâncio Bonfim, o Venancinho, sobrinho do len-
dário Joaquim Venâncio Fernandes, auxiliar de Adolpho Lutz e tido como o
guru dos ‘subalternos’, dá um depoimento que não deixa margem a dúvi-
das quanto aos traços da existência de uma ciência cordial. Suas observa-
ções, extraídas das comparações entre as práticas locais e as norte-america-
nas, introduzidas em Manguinhos pela Fundação Rockfeller, dispensam
maiores comentários: “(...) o auxiliar, ele não era assim tão importante que
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não pudesse limpar o piso, por exemplo. Coisa que o americano achou estra-
nho. O auxiliar de laboratório da Rockfeller tinha um uniforme todo branco,
sapato de borracha. Se não fosse assim, não podia. Deu para sentir que o
povo lá tinha mais, assim, gabarito. Agora, de conhecimento intrínseco, isso
é que o americano estranhou. Como é que um homem que está aqui lim-
pando o piso, daqui a pouco pega aí uma lâmina, olha e vai dizer o que é?
Porque lá o afiador de navalhas para a área de cortes só fazia isso. O esterilizador
de material só esterilizava material” [idem: 27].
Faz-Tudo e subalternos à luz do século XXI
O pesquisador faz-tudo gradativamente foi cedendo diante do modelo
taylorista, à medida que Manguinhos firmava-se como centro de produção
científica. Mas um olhar mais atento sobre o cotidiano de Manguinhos lança
dúvidas em torno da taylorização mais radical. “Aprender a fazer” e “fazer
efetivamente um pouco de cada coisa” são expedientes corriqueiros para
assistentes de pesquisa e auxiliares técnicos, ainda hoje, no primeiro quartel
do século 21 [Martins et alii, 1997]. Em muitos laboratórios é possível obser-
varmos uma prática correlata à prática de outros tempos. Adota-se, quase
indiscriminadamente, a organização de escalas para a execução de atividades
de rotina. Um elenco de técnicos, estudantes de graduação, mestrandos e
doutorandos alternam-se na preparação de toda sorte de insumos para a
experimentação [Teixeira, 1996]. Será a escala de trabalho uma atualização
do faz-tudo e da flexibilização transvertida em tática de capacitação?
Os relatos dos subalternos, recolhidos por Jaime Benchimol (1989),
não descrevem uma realidade totalmente estrangeira. Os laboratórios atual-
mente são povoados por técnicos certificados por escolas técnicas e contra-
tados através de processos seletivos públicos ou por empresas de
terceirização. Porém, em muitos casos o contato inicial (ou será iniciático?)
guarda estreitas relações com uma complexa rede de relações de parentes-
co, compadrio e amizade. E ainda persiste, em muitas histórias de recruta-
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mento para o trabalho em laboratório, o sentido da descoberta da vocação.
Entre os trabalhadores de Manguinhos da segunda metade da década de
90, encontramos histórias como a do motorista que “tornou-se” técnico de
laboratório. Eis a explicação dada pelo pesquisador que o recrutou e apadri-
nhou sua transferência definitiva das garagens para a bancada: “ele tinha
jeito para o trabalho na pesquisa” [Teixeira, 1996]. Sua formação, totalmen-
te empírica, apoiou-se na observação do pesquisador-tutor, na execução de
atividades com o tutor e, finalmente, em fazer sob a supervisão do tutor.
Esta sistemática também é utilizada para a formação dos estudantes de
graduação quando iniciam seus estágios nos laboratórios. Curiosamente,
em alguns laboratórios, o técnico assume o lugar de tutor para a aprendiza-
gem de algumas técnicas.
Não obstante, há diferenças significativas. Não estamos propondo uma
história de continuidades singelas. A captura para os laboratórios implica atual-
mente a busca da educação formal e do almejado diploma. Técnicos não
acumulam suas novas rotinas nas bancadas com as funções anteriores. Todavia,
as similitudes inquietam e persistem, mesmo quando relativizadas pelas dife-
renças entre a sociedade brasileira da primeira metade do século 20 e a desse
primeiro quartel do século 21. Inquietam e interessam, conquanto sejam pistas
para entendermos quais arranjos locais sustentaram uma produção científica
aparentemente enformada pelos modos e fazeres do além-mar.
A observação dos espaços físicos é outra fonte de pistas. Laboratórios,
ordenados de modo a deixar os traços da tropicalidade trancados do lado de
fora, guardam vestígios da improvisação e da provisoriedade por todos os
lados. Bancadas apinhadas de equipamentos importados funcionam, graças
ao emaranhado de tomadas e fios conectados em uma única fonte. Em
alguns corredores de Manguinhos, equipamentos ultramodernos convivem
com geladeiras antiquadas. Há anos, estas geladeiras são mantidas graças à
inventividade dos técnicos e ao canibalismo de peças. Manguinhos, centro
científico tropical, parece sustentar-se graças ao equilíbrio precário entre uma
ordem científica dita “racional e universal” e a flexibilidade da cultura local.
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O ponto aqui é saber como todos estes elementos se articulam e produzem
diferenças com os modos, arranjos e fazeres dos laboratórios norte-america-
nos e europeus. E, ainda, como essas diferenças produzem uma ciência ca-
paz de desejar circular com desenvoltura pelos salões de além-mar.
Outras histórias deste e do século passado ainda poderiam ser aqui
mencionadas, nas quais as mãos do pesquisador aparecem encarnadas nas
de seus serventes e auxiliares, em profundo contraste com as mãos
‘taylorizadas’ dos seus ‘similares internacionais’. Em todas elas, por este ou
aquele motivo, abundam os traços de práticas cordiais, as quais, se estão
longe de fundamentar a plena existência de uma ciência cordial, ao menos
indicam que a modernidade à brasileira distingue-se significativamente da
modernidade moderna da ciência. Concluo, com a evidência neste sentido
oferecida por outro dos ‘subalternos’, José Cunha, que, ao esboçar a auto-
ridade do cientista de Manguinhos, utiliza uma reveladora metáfora religio-
sa, de fundo patriarcal e nobiliárquico: “Cada chefe era um deusinho. (...)
Pequenos deuses, todos eles eram. Quase sem exceção” [idem: 30].
Referências
BENCHIMOL, Jaime. Retratos do Cotidiano em Manguinhos. Cadernos da Casa
de Oswaldo Cruz, v.1, n.1, novembro 1989.
BITARELLO, Beatriz Domingues. A modernidade ibérica e a revolução científica
do século XVII. Tese de Doutorado, COPPE/UFRJ, Programa de Engenharia de
Produção, 1994.
CUKIERMAN, Henrique. Yes, Nós Temos Pasteur - Manguinhos, Oswaldo Cruz e
a História da Ciência no Brasil. Rio de Janeiro, Relume Dumará/FAPERJ, 2007.
HOLANDA, Sergio Buarque. Raízes do Brasil. 19a. ed. Rio de Janeiro, José Olympio,
1996.
MARTINS, Carla e ali. Formação Técnica em Biotecnologia em Unidades de Pro-
dução. In: Formação Técnica em Biotecnologia. Relatório Técnico Final. CNPq /
PCDT, 1997. (mimeo)
Sociologias, Porto Alegre, ano 10, nº 19, jan./jun. 2008, p. 92-105
SOCIOLOGIAS 105
MORSE, Richard. O Espelho de Próspero. RJ. Companhia da Letras, 1995.
TEIXEIRA, Márcia de Oliveira. Processo de Trabalho em Laboratórios: Uma Análi-
se da Condição dos Técnicos em Unidades de Pesquisa da FIOCRUZ. Relatório
final. Convênio Fiocruz-FAPERJ. RJ, 1996. (mimeo)
Resumo
O artigo trata do dia-a-dia do Instituto de Manguinhos nas primeiras déca-
das do século 20, com destaque para as relações de trabalho no interior dos
laboratórios. Aquele cotidiano revela que, apesar de sua pequenez, o quadro
técnico-científico derivava sua extraordinária produtividade da diversidade de
suas atividades. Tratava-se de pessoal dotado de excepcional flexibilidade tanto
na ação quanto na eleição de seu objeto de estudo. Dito em bom português, o
cientista de Manguinhos era um faz-tudo. Uma hipótese quanto à tamanha flexi-
bilidade relaciona-se à compreensão da ciência local enquanto parte das práti-
cas culturais locais. Seguindo a trilha aberta pelo conceito de homem cordial,
conforme definido por Sergio Buarque de Holanda em seu Raízes do Brasil, pode-
se perguntar se existiria em Manguinhos a ciência que lhe decorre, a saber, a
ciência cordial. O artigo oferece algumas possibilidades de resposta a partir do
exame das relações que se estabeleceram entre os cientistas e seus ‘subalternos’, os
ajudantes de pesquisa, nas quais o rigor e o formalismo das práticas científicas de
laboratório conviveram com relações patriarcais tipicamente brasileiras.
Palavras-chave: Manguinhos, ciência cordial, estudos de laboratório.
Recebido em 15/01/2008
Aceito em 15/02/2008
Day-to-day routine of the Manguinhos Institute
Henrique Luiz Cukierman and Márcia de Oliveira Teixeira
This article examines the routine of the Manguinhos Institute during the first
decades of the 20th Century, emphasizing the relationships of work inside the
laboratories. This routine reveals that, despite the small size of its technical-scientific
staff, the institute’s extraordinary productivity resulted from its diversity of activities.
They were professionals endowed with exceptional flexibility both in action and
in the selection of the object of study. To put it simply, the scientist of Manguinhos
did everything. One hypothesis about such flexibility is related to the
comprehension of the local science as part of the local cultural practices. Following
the path opened by the concept of cordial man, as defined by Sergio Buarque de
Holanda in his book Raízes do Brasil (Roots of Brazil), this work wonders if there
was in Manguinhos the science that follows him, i.e., the cordial science. The text
presents some possible answers drawn from the analysis of the relationships
established between the scientists and their ‘subordinates’, the research assistants,
in which the rigor and formalism of scientific laboratory practices coexisted with
typically Brazilian patriarchal relationships.
Keywords: Manguinhos, cordial science, laboratory studies
SOCIOLOGIAS346
Sociologias, Porto Alegre, ano 10, nº 19, jan./jun. 2008, p. 346-353