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Produção da concórdia
VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 23, nº 38: p.543-560, Jul/Dez 2007
Produção da concórdia
a poética do poder na América portuguesa
(sécs. XVI-XVIII)
∗
Producing concord
the poetics of power in Portuguese America
(16
th
– 18
th
centuries)
GUILHERME AMARAL LUZ
Doutor em História pela UNICAMP
Docente do INHIS/UFU
Av. João Naves de Ávila, 2160. Campus Santa Mônica. Bloco IH. Sala IH-40.
Bairro Santa Mônica. CEP 38400-902 - Uberlândia, MG - Brasil
guilherme_a_luz@yahoo.com.br
RESUMO O objetivo deste artigo é traçar, em linhas gerais, os princípios
retóricos, políticos e teológicos que acreditamos nortear a propaganda
imperial portuguesa em seu contexto ultramarino na América. Nessa di-
reção, propomos tomar a “produção da concórdia” como um eixo axioló-
gico fundamental das representações políticas na América portuguesa. A
relevância deste estudo está na consideração de instâncias (re)produtoras
de valores éticos e políticos capazes de mediar os diversos pactos que se
estabelecem entre súditos ultramarinos e coroa portuguesa na condução
dos assuntos coloniais.
Palavras-chave propaganda política, concórdia, América portuguesa
(sécs. XVI-XVIII).
* Artigo recebido em: 07/02/2006. Aprovado em 20/10/2006.
(Este texto é resultado parcial do projeto de pesquisa: O Heroísmo Militar do Governo Geral na América Portuguesa
(1563 – 1676): uma leitura histórico-retórica de De Gestis Mendi de Saa e Vida o Panegvirico fvnebre al Senor Alfonso
Furtado Castro do Rio Mendomcà, para o qual conto com o importante apoio da FAPEMIG. Pela leitura atenta das
primeiras versões deste artigo e pelas suas importantes observações, eu gostaria de agradecer o amigo e colega
Luís Filipe Silvério de Lima, da Unifesp-Guarulhos)
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Guilherme Amaral Luz
ABSTRACT The aim of this article is to present the rhetorical, political and
theological principles that guide the Portuguese imperial propaganda in its
overseas’ contexts, especially in America. Its proposal is to take that what
it calls ‘production of concord’ as the axiological fundament of political
representation in Portuguese America. The pertinence of the proposal is to
approach the means through which ethical and political values are propa-
gated in the colony, mediating ‘pacts’ between overseas’ vassals and the
Portuguese crown.
Key words political propaganda, concord, Portuguese America (16th-18th
Centuries).
Outro dia, procurou saber de pessoa inteligente, que pessoas eram aquelas as
que concorriam no palácio, assim por suas ocupações como por dependências,
de cuja diligência alcançou saber que ocorria entre algumas delas, mas principais,
não se falarem, com que os mandou chamar e fez amigos, dizendo-lhes não ser
justo que Havendo de andar em sua presença, não era justo que houvesse entre
eles ódios, nem rixas, o que todos com muito Agrado, todos fizeram, rendendo-
lhe graças, Exercitando, nesta sua primeira ação o que Cristo, senhor nosso,
tanto encomendou a seus discípulos. O que, no meu sentir, é uma espécie de
divindade, pois onde ela assiste não falta Deus, efeito que nos mostra que não
faltaria no coração de Nosso Herói.
1
Nas últimas décadas, tanto em Portugal quanto no Brasil, vem surgindo
uma gama de trabalhos que têm revisitado a questão da administração
do império ultramarino português entre os séculos XVI e XVIII. Mais do
que fazer um balanço dessa produção, o presente artigo tem como obje-
tivo refletir a respeito dos desafios que ela vem instituindo para a escrita
da história daquele momento, repensando noções tais como a de pacto
colonial, subordinação da colônia aos interesses metropolitanos, centra-
lização política e outras tantas, caras à historiografia sobre o período.
Pretendemos atentar para a nova leitura que se propõe a respeito daquilo
que vem sendo chamado de economia política de privilégios e do lugar
das colônias na monarquia corporativa portuguesa, propondo, em seguida,
um redirecionamento das atenções no caminho do estudo das práticas
de representação e propaganda políticas, que, em suas modalizações
retórico-poéticas e teológico-políticas, colaboram para a consolidação do
domínio ultramarino lusitano.
1 SIERRA, J. L. As excelências do Governador: o panegírico fúnebre a D. Afonso Furtado (Bahia, 1676). São Paulo:
Companhia das Letras, 2002, p.98-99.
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Debates em torno do “pacto colonial”
Um dos aspectos mais debatidos na historiografia sobre a América
portuguesa colonial é relativo à sua administração, particularmente no que
se refere ao seu lugar político em relação à metrópole e às demais pos-
sessões ultramarinas de Portugal nos séculos XVI, XVII e XVIII. Desde pelo
menos os trabalhos de Caio Prado Júnior, tal questão aparece ligada ao
fenômeno mais geral da formação de uma economia capitalista de caráter
mercantil, colocando-se em primeiro plano o pacto econômico entre me-
trópole e colônia de exploração, o que implica dependência da segunda
em relação à primeira, por meio de mecanismos centralizados de controle
da administração e de proteção comercial. Partindo dos insights de Prado
Júnior, Fernando Novais idealizou, na década de 1970, a teoria do “Antigo
Sistema Colonial”: uma engenhosa máquina explicativa do funcionamento
das relações entre metrópole e colônia, articulado às transformações históri-
cas do mundo capitalista entre os séculos XVI, XVII e XVIII, que culminariam
com a crise do próprio sistema, devido às suas contradições necessárias,
na época da Revolução Industrial.
2
A teoria do Sistema Colonial, proposta por Novais, e inaugurada, de
certa forma, por Prado Júnior, teve e ainda tem ampla influência na historio-
grafia brasileira. No entanto, já na década de 1970, Ciro Flamarion Cardoso,
por exemplo, questionava o que via como uma espécie de hipertrofia do
papel das políticas mercantilistas de extração de excedente na análise das
estruturas sociais e políticas da colônia, propondo, no seu lugar, um olhar
particularizado e comparativo sobre várias situações de “colônias de explora-
ção” capaz de dar conta das relações locais como fundantes de suas estru-
turas políticas, econômicas e sociais.
3
Pode-se dizer que, enquanto Novais
defendia uma interpretação da colonização com base na sua relação com
os interesses metropolitanos, Cardoso defendia uma leitura da colonização
com base nas particularidades da exploração metropolitana nas diversas
áreas coloniais. Grosso modo, em termos administrativos, a colônia poderia
ser vista ou como reflexo de interesses mercantis da burguesia comercial
portuguesa, protegida pelas políticas mercantilistas do Estado, ou como
fruto das configurações sociais que se davam no âmbito local, ainda que
as duas possibilidades fossem passíveis de combinação.
No caso da adoção da perspectiva de que a administração colonial
seria um reflexo de interesses mercantis da metrópole, a constatação da
existência, na América portuguesa, de mecanismos descentralizados de
2 Nos referimos aos “clássicos”: PRADO JÚNIOR, C. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense,
1976 e NOVAIS, F. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). São Paulo: Hucitec, 1979.
3 Ver: CARDOSO, C. F. As concepções acerca do ‘Antigo Sistema Colonial’: a preocupação obsessiva com a ‘ex-
tração de excedente’. In: LAPA, J. R. A. (org.) Modo de produção e realidade brasileira. Petrópolis: Vozes, 1980,
p.109-132.
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exercício de poder pelas elites locais poderia ser tomada de duas maneiras,
muitas vezes, complementares: (1) como sintoma da falta de uma racio-
nalidade administrativa centralizada e eficaz ou (2) como uma conquista
de autonomia relativa das elites locais a despeito da vontade da coroa
portuguesa. Em certa medida, essa leitura recupera lugares comuns de
historiadores oitocentistas, como, por exemplo, João Francisco Lisboa, que
via a administração colonial como caótica, arbitrária e pouco ordenada,
abrindo espaços para o favorecimento pessoal dos “homens bons” e para
a corrupção.
4
Nesse caminho, não raro se encontra uma dicotomia entre o
poder local – exercido principalmente no âmbito das câmaras municipais
– e o metropolitano – expresso em instituições como o Governo-geral e o
Conselho Ultramarino, por exemplo. No caso de Novais, essa dicotomia é
traduzível como a própria contradição do Sistema Colonial, pois não haveria
como explorar a colônia sem desenvolvê-la, ou seja, sem se gerar um grupo
socialmente abastado na colônia capaz de perceber, paulatinamente, que
seus interesses nem sempre convergem com os da metrópole, o que se
intensificaria nas últimas décadas do século XVIII no contexto da Revolução
Industrial.
5
Em uma direção distinta, Russell-Wood, discípulo de Charles Boxer, de-
fende, a partir da teoria de Jack Greene sobre centro e periferias no mundo
colonial, que: “as falhas no sistema de administração metropolitana, as polí-
ticas mal concebidas e inconsistentes da Coroa em relação à colônia, a falta
de flexibilidade na implementação de ordens, e o malogro em reconhecer
o caráter singular do Brasil, contribuíram para tornar frágil a autoridade dos
conselhos metropolitanos”. E segue afirmando que: “a história da colônia
apresenta-se como uma trajetória em direção a uma crescente erosão dos
princípios sobre os quais a metrópole havia construído um pacto colonial,
assim como à progressiva afirmação da participação por parte da periferia”.
Para Russell-Wood, portanto, a administração do Brasil se dar segundo
os interesses metropolitanos seria o que se esperar da lógica do sistema
colonial.
6
Nisso, ele não se difere daqueles que vêem nas falhas do sistema
caminhos através do quais os colonos conquistaram relativa autonomia a
despeito da vontade metropolitana. A diferença de sua abordagem está na
sua observação a respeito do que seria uma espécie de inversão lógica na
prática política colonial do Império português, tornando o sistema colonial,
no limite, uma abstração (ou uma espécie de “ideal tipo”) que se desfaz ao
longo dos três séculos de colonização.
4 LISBOA, J. F. Apontamentos e observações para servir à história do Maranhão. In: Crônica do Brasil Colonial.
Petrópolis: Vozes, 1976, p.385-429.
5 NOVAIS, F. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808), p.106-116.
6 Ver: RUSSELL-WOOD, A. J. R. Centros e Periferias no Mundo Luso-Brasileiro, 1500-1808. Revista Brasileira de
História, São Paulo, vol.18, n.36, 1998.
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O pressuposto de Russell-Wood permanece muito semelhante ao de
Novais, Prado Júnior e outros que defenderam a teoria do Sistema Colo-
nial. Isto é: a centralização administrativa, para todos eles, figura como
ideal político perseguido pelas instâncias metropolitanas. Na base desse
pressuposto encontra-se um outro: o de que a monarquia (“absolutista”),
tipicamente falando, teria como princípio a centralização das decisões nos
círculos mais próximos do rei, reservando espaços bastante limitados de
exercício político por parte dos cidadãos (aristocracia ou nobreza civil).
Se não se revêem, em alguma medida, esses pressupostos, a tarefa de
se compreender os espaços de exercício político dos coloniais a não ser
como inversão ou subversão da lógica do sistema torna-se difícil; fazendo
de instituições como, por exemplo, as câmaras municipais indesejáveis,
porém inevitáveis, instrumentos administrativos centrífugos e contraditórios
em relação à ordem política “ideal”. Por outro lado, Russell-Wood torna
bastante evidente o que poderíamos chamar de uma anomalia presente
no paradigma do Antigo Sistema Colonial, que, no atual estágio de inves-
tigação sobre a administração da América portuguesa, vem permitindo a
construção de uma nova visão global a respeito da colonização.
António Manuel Hespanha foi um dos primeiros estudiosos a rever a te-
oria do “poder absoluto” e da “centralização política” no caso da monarquia
portuguesa do “Antigo Regime”.
7
Fazendo uma síntese de sua proposta,
Hespanha, respaldando-se em estudos posteriores ao seu, realizados em
Portugal, caracteriza o que denomina “monarquia corporativa”, adequada,
ao seu ver, à monarquia portuguesa até pelo menos meados do século XVIII.
Em primeiro lugar, ressalta que “o poder real partilhava o espaço político com
poderes de maior ou menor hierarquia”. Em segundo lugar, afirma que “o
direito legislativo da Coroa era limitado e enquadrado pela doutrina jurídica
(ius commune) e pelos usos e práticas jurídicos locais”. Em terceiro lugar,
reconhece uma subordinação dos deveres políticos aos deveres morais,
aos laços afetivos de amizade e às redes clientelares. Por último, percebe
uma proteção dos direitos e atribuições dos oficiais da Coroa, o que lhes
garantia confrontar com a própria autoridade real sem, contudo, suplantar
o seu poder. É desse contexto político que, segundo Hespanha, aflorará
o que denomina “estrutura administrativa centrífuga” das possessões no
ultramar, formada por uma heterogeneidade de laços políticos entre os
vassalos e o rei e pela possibilidade de adaptação (e até mesmo anulação)
das determinações reais no âmbito das instituições políticas locais e de sua
autonomia decisória.
8
7 Nos referimos a: HESPANHA, A. M. As Vésperas do Leviathan: instituições e poder político - Portugal: Século XVII.
Coimbra: Almedina, 1994.
8 Ver: HESPANHA, A. M. A constituição do Império português. Revisão de alguns enviesamentos correntes. In:
FRAGOSO, J. et alli (orgs.) O antigo regime nos trópicos. Rio de Janeiro: Civilização, 2001, p.163-188.
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A monarquia corporativa caracterizada por Hespanha não é uma in-
venção portuguesa, nem tampouco uma estrutura política que surge ex
machina face às transformações da chamada “modernidade”. Ela resulta
de formas históricas complexas de se entender as fontes do poder político
e a legitimidade de seu exercício, que se desenvolvem durante séculos
em um processo contínuo de “releituras” de fontes autorizadas oriundas
da tradição letrada do ocidente e de práticas políticas (que também são
sociais e culturais) inscritas na “longa duração”. Nesse sentido, o estudo
clássico de Ernst Kantorowicz sobre a teologia política medieval ajuda a
entender historicamente o tipo de pacto que se estabelece entre súditos e rei
nesta forma de configuração monárquica. Fundamental, aqui, é a reflexão,
apresentada por Kantorowicz, sobre o caráter corporativo da coroa. Para
esse autor, a coroa é “superior a todos os membros individuais, inclusive o
rei, ainda que não separada dos mesmos”. A coroa é um corpo composto,
segundo uma hierarquia particular, pelo rei e pelos magnatas, co-responsá-
veis pela condução do corpus mysticum.
9
Na teologia política neo-tomista,
própria do universo político ibérico dos séculos XVI, XVII e XVIII, tal noção
de coroa se articula à tópica da “obediência ao poder público” como algo
inscrito na lei natural. Para Francisco de Vitoria, por exemplo, o poder da
sociedade política tem sua origem na Providência, que reúne os cidadãos
como parte de um só corpo, mantendo-o como uma totalidade indivisível.
Assim, por um lado, o cargo real é a corporificação da união mística do
povo, sob uma mesma coroa, na persona ficta do governante a quem se
deve obediência; por outro, há um compromisso inalienável do rei com os
cidadãos na distribuição da responsabilidade em relação ao bem comum.
Tanto na concepção humanista quanto na escolástica, esse compromisso
se volta à manutenção da paz e à promoção da concórdia, tendo em vista
assegurar a preservação da polis, entendida aristotélica e antimaquiavelica-
mente como locus de exercício da ética e das virtudes humanas (no caso,
fortemente marcadas por uma releitura cristã).
10
Voltando à estrutura administrativa “centrífuga” da América portuguesa,
depois dessa breve digressão a respeito da teologia política da monarquia
9 KANTOROWICZ, E. H. Os dois corpos do Rei: um estudo sobre teologia política medieval. São Paulo: Companhia
das Letras, 1998, p.226-232.
10 Sobre as teorias quinhentistas e seiscentistas a respeito das origens e finalidades da sociedade política, utilizamos:
LLOYD, H. A. Constitucionalism. In: BURNS, J. H. (ed.) The Cambridge History of Political Thought (1450 - 1700).
Cambridge: Cambridge University Press, 1991, p.258-264. Para uma visão geral a esse respeito no neo-tomismo,
sugerimos: SKINNER, Q. O ressurgimento do tomismo. In: As fundações do pensamento político moderno. São
Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.414-449. Sobre o papel da política como lugar por excelência do exercício
da ética e das virtudes humanas para Aristóteles, ver o panorama de suas obras sobre ética e sobre política
apresentado em: TAYLOR, C.C.W. Politics. In: BARNES, J. The Cambridge Companion to Aristotle. Cambridge:
Cambridge University Press, 1996, p.233-258 &
HUTCHINSON, D. S. Ethics. In: BARNES, J. The Cambridge
Companion to Aristotle, p.195-232. A recepção das teses éticas e políticas de Aristóteles, bem como as teses
dos estóicos, no ambiente político português do Antigo Regime, é tratada por: HESPANHA, A. M. As vésperas de
Leviatã. Ver, também: CARDIM, P. Politics and power relations in Portugal (Sixteenth-Eighteenth Centuries). Parlia-
ment, States and Representations, vol.13, nº.2, p.98, 1993.
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corporativa, pode-se dizer que, antes de ser derivada de aspectos contin-
genciais, da pressão de interesses locais a despeito dos metropolitanos
ou das dificuldades práticas de centralização real, ela encontra ressonân-
cia no espectro político típico de uma racionalidade aristotélico-tomista,
impressa na tradição. A autonomia relativa das instituições coloniais e a
participação de grupos de colonos abastados em determinados lugares
hierárquicos do poder ultramarino não contradizem, mas, antes, reafirmam
o pacto político da modernidade ibérica. A unidade do Império português,
assim, não resultaria de uma obediência cega às determinações reais, mas
de uma espécie de “comunhão fraterna” entre os súditos co-responsáveis
pelo bem-estar do organismo civil corporificado na Coroa. Haveria, assim,
uma diversidade de lugares políticos na unidade orgânica do império ul-
tramarino português e as suas formas de harmonização dependeriam da
produção artificial da concórdia, de uma ordem fundada no “amor”, de uma
hierarquização reconhecidamente justa e legítima aos olhos e ouvidos dos
súditos do Império.
Em resenha do livro O Trato dos Viventes, de Luiz Felipe Alencastro,
Maria Fernanda Bicalho estabelece um diálogo com Milton Ohata, que é
bastante sintomático de um novo paradigma a respeito dos laços políticos
envolvendo colônia e metrópole no universo do Império português seiscen-
tista. Alencastro defende que, no século XVII, ocorrerá uma modificação
do sistema colonial que vinculará o Brasil diretamente à África Ocidental
(particularmente Angola), formando um complexo econômico, social, demo-
gráfico e político comum às áreas escravistas da América portuguesa e às
áreas africanas de trato negreiro. Segundo Bicalho, Ohata entendeu que a
“autonomia do comércio bilateral e do colonato brasílico” tornava, na aná-
lise de Alencastro, a colônia autônoma em relação à metrópole naquilo que
lhe era economicamente imprescindível, contradizendo a lógica do pacto
colonial. Daí sua pergunta: o que então poderia ter garantido que o Brasil
continuasse sendo politicamente subordinado a Portugal ainda por tanto
tempo? Para responder tal pergunta, Bicalho argumentará que o primeiro
passo é rever a noção de pacto colonial, que, para ela, tem de ser pensada
mais em termos de suas configurações políticas do que em termos de suas
dimensões econômicas, como aparece em Novais, por exemplo.
Dois autores aparecem, na argumentação de Bicalho, para exemplifi-
car o que seriam as configurações políticas do pacto colonial. O primeiro é
Evaldo Cabral de Mello, que, em Rubro Veio, trabalha um imaginário político
típico do Antigo Regime português relativo ao contrato ou pacto entre os
súditos e o rei presente na auto-representação dos pernambucanos, que
reivindicavam “honras, mercês e cargos” em troca de terem se empenha-
do na restauração da terra para a coroa à custa de perdas pessoais. O
segundo é Charles Boxer que, em seu trabalho sobre Salvador Correia de
Sá, demonstrou a trajetória exemplar de um funcionário da administração
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ultramarina que representava, ao mesmo tempo, os interesses de grupos
“brasílicos” e “agentes da construção da soberania lusitana no Atlântico Sul”.
Bicalho concluirá que, na perspectiva do Império e no interior do mesmo,
“tanto o ‘homem ultramarino’, quanto o ‘homem colonial’ são ambos produto
de redes e interesses comerciais e políticos, que lhe teceram não apenas a
geografia, mas também a soberania”.
11
Isso quer dizer, em outros termos,
que, buscando de forma complementar ascenderem social e politicamente
no interior das regras do jogo político do Antigo Regime e enriquecerem
através da atuação econômica em um determinado enclave colonial, os
súditos do Império Português que se espalhavam pelas possessões ultra-
marinas construíam as condições do domínio imperial no interior do qual
se viam integrados, conforme uma hierarquia particular.
Um dos caminhos da “nova historiografia política” sobre o Império
ultramarino português tem sido, portanto, identificar os elementos da sua
cultura política que possibilitam a produção da concórdia, ainda que a isso
se atribua muitos outros nomes. Bicalho, a partir da leitura de autores como
Ângela Barreto Xavier, Antônio Manuel Hespanha, Evaldo Cabral de Mello,
João Fragoso e, principalmente Fernanda Olival, nomeia “a base fundadora
de uma cultura política do Antigo Regime – tanto na Europa, quanto nos
trópicos” com a expressão “economia da mercê”. Isto é, uma “cadeia de
obrigações recíprocas” entre súditos (ultramarinos, coloniais ou reinóis) e
monarca em que os primeiros devem ser recompensados pelo segundo
na forma de honras, mercês e privilégios em reconhecimento de seus
serviços prestados à coroa. Desse modo, compreender a administração
colonial implica considerar o papel da distribuição de cargos e mercês
àqueles que são reconhecidos como servos leais à coroa e que dela estão
a serviço no interior de seu projeto imperial. A “liberalidade régia”, tópica
que fundamenta o próprio mecanismo de funcionamento da economia da
mercê – também chamada, por vezes, de economia política de privilégios
-
12
, liga-se à “bondade do monarca”, como “meio para obtenção do amor
e da submissão dos súditos”.
13
Em outros termos, ela busca a concórdia
11 Ver: BICALHO, M. F. B. Monumenta Brasiliae: o Império Português no Atlântico-Sul. Te mpo , Rio de Janeiro, vol.06,
nº.11, p.267-273, 2001. O texto é uma resenha do livro: ALENCASTRO, L. F. O trato dos viventes: formação do
Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. A razão para a utilização da resenha e não do livro
em si, neste artigo, está em querermos focalizar nem tanto as idéias de Alencastro em si, mas algumas leituras
provocadas pelo seu livro, em especial por aqueles que defendem uma revisão da teoria do pacto colonial, como
é o caso de Fernanda Bicalho.
12 Maria de Fátima Gouvêa considera que a economia política de privilégios define uma “dinâmica que pode reforçar
os laços de sujeição e o sentimento de pertença dos vassalos – sejam eles reinóis ou ultramarinos – à estrutura
política mais ampla do Império, viabilizando melhor o seu governo”. Cf.: GOUVÊA, M. F. S. Poder político e ad-
ministração na formação do complexo atlântico português (1645-1808). In: FRAGOSO, J. et alli. (orgs.) O antigo
regime nos trópicos. Rio de Janeiro: Civilização, 2001, p.287.
13 Cf.: BICALHO, M. F. B. Pacto colonial, autoridades negociadas e o império ultramarino português. In: SOIHET, R.;
BICALHO, M. F. B. & GOUVÊA, M. F. S. (orgs.). Culturas políticas: ensaios de história cultural, história política e
ensino de história. Rio de Janeiro: Mauad, 2005, p.90-92.
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entre as partes do organismo civil ao redor de sua cabeça: lugar central de
onde irradia a fonte da dádiva e da justiça distributiva.
A visão historiográfica a respeito das redes de interesses comerciais e
políticos, aqui exemplificada com Bicalho e Gouveia, tem o grande mérito
apontar para mecanismos administrativos e políticos fundamentais para
a compreensão das relações entre súditos ultramarinos do Império Portu-
guês. Contudo, para completar este quadro interpretativo, acreditamos ser
relevante buscar o entendimento dos valores que norteiam o juízo sobre o
mérito dos serviços políticos prestados à coroa e a formação do “sentimento
de pertença” dos vassalos ao Império, que se constroem no conjunto das
práticas rituais, retóricas, poéticas e imagéticas representativas da propa-
ganda política portuguesa entre os séculos XVI e XVIII. A esse aspecto, as
abordagens dessa “nova história política” da América portuguesa têm dado
pouca atenção. Com efeito, escapam ao seu campo de visão, principal-
mente, as mediações retóricas da representação política entre dois espaços
que se constroem à distância: o da cabeça do corpo místico do Império
(a monarquia) e o de seus braços ultramarinos (funcionários da coroa e a
“aristocracia” em domínios coloniais).
Diversidade, unidade e concórdia no interior do projeto imperial
A noção de Império Português é um conceito político que deve ser
pensado para se entender as relações que se estabelecem entre os pode-
res metropolitanos e ultramarinos. Juridicamente falando, Portugal jamais
pode ser considerada a cabeça daquele que era o único Império Católico
da modernidade: O Sacro Império Romano Germânico. Mesmo quando
sob o domínio habsburgo espanhol, Portugal não teve um Imperador como
rei, já que Felipe II não sucedeu seu pai, Carlos V, nesse título, ainda que
toda a sua imagem pública tenha sido construída sob esta figura.
14
O ter-
mo Império, quando utilizado para se referir aos domínios lusos na época
moderna, tem, no mínimo, dois sentidos fundamentais.
15
Primeiro, ele se
aplica às extensões do poder soberano da coroa portuguesa sobre diversas
partes do orbe. Em segundo lugar e, talvez, mais importante, remete-se a
14 Sobre a imagem imperial construída em torno de Felipe II, sugerimos: VILÀ E TOMÁS, L. Iam Illustrabit Omnia:
Felipe II y el Imperio Hispânico. In: Épica e Império: imitación virgiliana y propaganda política em la épica española
del siglo XVI. Barcelona: Universitat Autônoma de Barcelona, 2001), p.265-305. (Filologia, Tese de doutorado. Ver
também: BOUZA ÁLVAREZ, F. J. La Majestad de Felipe II. Construción del Mito Real. In: MILLÁN, J. M. (org.) La
corte de Felipe II. Madrid: Alianza Editorial, 1994, p.37-72.
15 Na verdade, há muito mais do que duas concepções possíveis para Império ao longo dos séculos XVI e XVIII. Ao
longo dos séculos XIX e XX, a polissemia do termo ampliou-se ainda mais, tornando-o um conceito referente a uma
diversidade enorme de fenômenos, muitas vezes contraditórios entre si. A esse respeito, sugerimos: PAGDEN, A.
Spanish Imperialism and the Political Imagination. New Haven: Yale University Press, 1990; PAGDEN, A. Lords of all
the world: ideologies of empire in Spain, Britain, and France, 1500-1800. New Haven: Yale University Press, 1995;
MULDOON, J. Empire and Order. The concept of Empire, 800-1800. Londres, Nova Iorque: Macmillan Press, 1999.
Uma síntese, ainda inédita, da multiplicidade dos significados de Império no século XVII português é apresentada,
com competência, em: LIMA, L. F. S. Os nomes do Império no século XVII em Portugal, 2007. (Texto mimeo)
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concepções teológico-políticas e, em certas ocasiões, inscritas em quadros
proféticos, nos quais as conquistas, as navegações e a evangelização
dos povos “gentílicos” assumem, recorrentemente, caráter providencial,
indicativo de uma missão portuguesa no mundo: a de preparar o advento
do Reino de Cristo na terra. Dentre as formulações mais engenhosas (e
polêmicas) a respeito dessa missão, encontram-se, a título de ilustração,
as teses vieirianas sobre o Quinto Império.
16
A noção de Império pressupõe formas de relacionamento com realida-
des “civilizacionais” variadas, cujos critérios de diferenciação e nivelamento
passam, necessariamente, pelo grau de adesão/resistência de grupos
presentes nas regiões ultramarinas ao seu projeto unificador. Assim, a
concepção de Império não se confunde, necessariamente, com a figura
do Imperador (ou mesmo com a do Rei), mas se associa a uma espécie
de missão civilizadora/cristianizadora da “nação portuguesa” por obra da
providência. A formação de uma espécie de “proto-etnografia” – classifica-
tória dos povos do orbe, presente nos diversos exemplares de “literatura de
viagens”, gêneros historiográficos e corografias portuguesas dos séculos
XVI, XVII e XVIII – é bastante adequada, nesse sentido, ao projeto imperial.
Por um lado, ela permite um mapeamento da diversidade de “civilizações”
ou “culturas” na sua relação com os portugueses. Por outro, ela indica os
hábitos, as práticas, os costumes e as leis que, de certa forma (pacífica
ou não), convivem ou viriam a conviver no interior da unidade possível do
Império.
17
Unificar a diversidade civilizacional dos povos sob o Império não
significa, necessariamente, impor-lhes um modelo unilateral. Antes, trata-se
de adaptar as instituições portuguesas àquilo que, em cada localidade, seja
compatível com a finalidade maior do Império: a adoção universal de uma
vida política inseparável do desenvolvimento das virtudes cristãs, capaz de
preparar o orbe para o dia do Juízo.
Assim sendo, o Império é uma unidade composta de realidades di-
versas que convivem em seu interior. Nela, convivem códigos variados de
leis e costumes, níveis hierárquicos de civilização, situações diversas de
contato com as populações nativas, formas institucionais mais ou menos
adequadas a cada domínio em que se estabelecem, além de condições
materiais, ambientais e culturais que impõem políticas diferenciadas de
fixação e convívio por parte dos portugueses em cada área colonial. A uni-
16 Sobre a formulação teológico-profético-política da missão portuguesa no mundo: LIMA, L. F. S. Destinos de
Portugal. In: O Império dos sonhos: narrativas proféticas, sebastianismo e messianismo bragantino. São Paulo:
Universidade de São Paulo, 2005), p.90-230. (História, tese de doutorado. Sobre o papel das profecias na cons-
trução épica da figura imperial, especialmente no caso quinhentista espanhol, é interessante: VILÀ E TOMÁS, L.
Profecía y Poesía Épica: construcción de la historia y de la figura imperial en la épica quinhentista española. In:
Épica e Império, p.309-363.
17 É particularmente interessante, neste sentido, a análise feita por Joan-Pau Rubiés a respeito da visão “etnográfica”
de João de Barros sobre os povos de Vijayanagara e suas categorias de classificação, ver: RUBIÉS, J-P. Travel
and Ethnology in the Renaissance: South Índia through European eyes. Cambridge: Cambridge University Press,
2000, p.164-177.
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dade, por sua vez, é dá-se no princípio ético evangelizador que fundamenta
a expansão imperial, na circulação de elementos materiais e culturais de
várias proveniências para outras áreas de domínio e na implantação de
políticas mínimas de centralização, expressas em órgãos administrativos,
religiosos e jurídicos metropolitanos e coloniais. O grande desafio imperial
é, portanto, em termos políticos e administrativos, a produção da concórdia
entre as diversas partes da unidade do corpo místico. Dizemos concórdia
e não padronização, pois, organicamente pensando, são as finalidades de
cada parte – não os seus meios – que devem unificar-se. Estas finalidades
devem convergir para o interesse do bem-comum ou, em outros termos,
para a manutenção da soberania de uma comunidade unida pelo amor ao
Rei, a Cristo e ao próximo.
Uma vez que cada domínio ultramarino particular, em si, não forma
um bloco social e culturalmente uniforme – constituído sempre por níveis
hierárquicos entre comunidades que nem sempre compartilham interesses
comuns –, a concórdia que se deve gerar é escalonada, reverberando, na
dinâmica de sua produção, os graus da hierarquia social e política, que im-
plicam obrigações e responsabilidades diferenciadas em cada caso relativas
ao bem-comum. É o escalonamento da produção da concórdia que está,
por exemplo, representada no trecho de Juan Lopes Sierra que serve de
epígrafe para este artigo. Nele, Sierra alude àquilo que teria sido a primeira
tarefa do Governador Afonso Furtado de Mendonça relativa ao Estado do
Brasil: refrear, nos ciclos mais altos da hierarquia política colonial, a discór-
dia entre cidadãos de grande poder e, logo, de grandes responsabilidades
para com o bem-comum. Como Governador Geral, Furtado de Mendonça
é o elo político entre a coroa portuguesa (cabeça do Império) e o Estado
do Brasil. Sua função básica é conduzir políticas coloniais que interessem
a totalidade do Império em consonância com a vontade do Rei, cumprindo
os seus objetivos no plano do poder temporal. Como Governador, na pre-
sença de Furtado de Mendonça e ao seu redor, é justo que haja harmonia
e concórdia entre os cidadãos de alto escalão, conforme nos apresenta o
trecho citado de seu panegírico fúnebre.
Controlar as rixas através de sua autoridade e do estabelecimento da
justiça é, assim, a maneira de orientar a diversidade de interesses concor-
rentes na colônia na direção da “comunidade de fins” do Império. Suceder
na tarefa de produção da concórdia é tido, desse modo, como efeito sacra-
mental. Teologicamente, significa estabelecer a ordem do corpo místico no
exercício da autoridade de governo que emana da coroa e que irradia às
diversas partes da sociedade civil, seja no reino, através do próprio rei, ou
nas áreas coloniais, através dos funcionários de mais alta hierarquia, como
os Governadores Gerais. Em outros termos, metonimicamente, a concórdia
em torno do Governador Geral reverbera: a concórdia em torno de seu
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princípio de autoridade política (a coroa e o rei) e a união sacramental do
corpo místico no amor de Cristo.
Da mesma forma que a concórdia é o elo necessário para o reconheci-
mento da autoridade do Governo Geral, ela também é um princípio funda-
mental no reconhecimento de autoridades ainda mais localizadas como, por
exemplo, a autoridade do senhor junto aos seus escravos. Isso fica claro,
particularmente, nos sermões de Vieira dedicados à questão da escravidão.
Para o jesuíta, a autoridade do senhor não é unilateral, como exercício do
que hoje chamaríamos de “direito de propriedade”. Vieira entende que o
cativeiro dos escravos, embora seja violento, deve ser aceito de bom grado
pelos escravos como maneira de purgação dos pecados e de acesso ao
corpo místico, possibilitando a sua salvação. Por isso, a única justificativa
para se ter escravos é a responsabilidade do senhor quanto à evangeli-
zação dos cativos. Assim, a fonte da autoridade senhorial estaria ligada a
uma série de obrigações junto aos escravos, administrando, com justiça,
prudência, caridade e moderação, os castigos, os trabalhos e o cotidiano
(sobretudo ligados à esfera religiosa) de suas propriedades, preservando a
ordem e evitando as rebeliões ou qualquer outra forma de discórdia. Nesta
concepção, a autonomização dos meios (como, por exemplo, a violência)
no exercício do poder senhorial ou a sua mera aplicação coercitiva para o
trabalho gerador de riquezas mundanas seria o análogo perfeito da tirania
política, ou seja, ações que, no uso da autoridade, deslocam as finalidades
relativas ao bem-comum para os interesses particulares, gerando discórdia
e comprometendo a união do corpo místico no microcosmo da fazenda.
18
Propaganda política no contexto do Império
Evidentemente, deve-se ter em vista o caráter artificial da produção da
concórdia como princípio político unificador da diversidade do Império. Ela
se dá com base em maciça propaganda. O que estamos chamando de
propaganda política
19
é um vasto repertório de práticas culturais escritas,
orais, imagéticas, rituais ou performáticas que representam prescritivamente,
18 Utilizamos-nos, para essa análise a respeito da concórdia no engenho, da leitura do seguinte sermão: VIEIRA, A.
Sermão décimo quarto do Rosário, pregado na Bahia, à Irmandade dos pretos de um engenho, em dia de São
João Evangelista, no ano de 1633. In:
Sermões, vol. IV, tomo II, Porto: Lello & Irmão, s/d. Sobre a visão jesuítica
a respeito da escravidão sugerimos, ainda: PECORA, A. Vieira, o índio e o corpo místico. In: NOVAES, A. (org.).
Tempo e História. São Paulo, Companhia das Letras, 1992, p.423-461; ALENCASTRO, L. F. A evangelização numa
só colônia. In: O trato dos viventes, p.155-187 & VAINFAS, R. Ideologia e escravidão: os letrados e a sociedade
escravista no Brasil colonial. Petrópolis: Vozes, 1986. Vale considerar que há uma ampla e polêmica discussão
historiográfica a respeito das práticas senhoriais de controle e sobre as diversas formas de resistência escrava.
Não é nosso objetivo, aqui, pensar, na prática, como as relações entre senhores e escravos se davam. As consi-
derações que tecemos dizem somente respeito às justificativas jurídico-teológicas do “cativeiro justo” no interior
de um sistema de aconselhamento político segundo uma lógica neo-tomista.
19 É importante, aqui, evitar a associação anacrônica do uso do termo propaganda nos séculos XVI, XVII e XVIII com
os sentidos (de marketing) que ele assumiu na contemporaneidade. A palavra deve ser assumida, aqui, na sua
etimologia latina, que advém de propagatio, significando, figurativamente, extensão, aumento ou prolongamento.
A propaganda, assim entendida, deve significar ações, práticas e discursos cujos efeitos devem ser o de aumento
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segundo uma orientação teológico-política, a ordem hierárquica do corpo
místico.
20
Nesse sentido, instrumentos de catequese, sermões, cartas,
festividades civis e religiosas, teatro, sátiras e muitas outras formas retóri-
co-poéticas e/ou artísticas e performáticas podem configurar instrumentos
de propaganda política, cuja meta é exatamente a produção da concórdia.
Em relação ao seu público, eles podem ser voltados a comunidades mais
ou menos homogêneas conforme a ocasião, o que, na grande maioria
dos casos, é determinante da complexidade da combinação de signos e
registros mobilizados para a produção de seus efeitos.
O elogio a personagens públicas que ocupam posição de destaque
não é a única forma de propaganda política. Esta se define, muito mais
precisamente, como representações da ordem hierárquica do corpo mís-
tico com profundo caráter prescritivo, através da reafirmação dos valores
capazes de manter o organismo civil unido e em concórdia. Pode-se afirmar,
contudo, que, entre as mais propícias ocasiões para a propaganda política,
as de louvor têm especial destaque. No plano ritualístico, por exemplo, as
cerimônias fúnebres têm este caráter, principalmente quando envolvem
morte de pessoas ilustres. No plano textual, os versos heróicos da poesia
épica, os panegíricos, os sermões e outros gêneros retóricos e poéticos
capazes de serem inscritos no discurso epidítico ou demonstrativo cum-
prem este papel. É importante assinalar ainda que o objeto de louvor de
um exemplar de propaganda política não tem necessariamente que ser
uma pessoa, mas se estende a celebração de qualquer figura (uma data,
um lugar, a natureza, um santo, uma instituição, a Providência, a Virgem, o
Espírito Santo, a opulência...) que, no plano teológico-político, seja capaz
de, em suas características, ações ou palavras excelentes, por in evidentia,
exemplar, metafórica ou alegoricamente, a sacralidade, a legitimidade e a
justiça da ordem vigente e de suas práticas.
Pensando em uma sociedade como a portuguesa do “Antigo Regime”,
seja no reino ou nas colônias, em que o estatuto de nobreza se define
antes pelo mérito do que pela linhagem,
21
as várias formas de elogios a
varões de ações destacadas cumpririam papéis sociais importantes. Em
primeiro lugar, eles prestavam a construção da fama pública de algumas
personagens, aspecto decisivo para o reconhecimento de ações valorosas
e virtudes morais capazes de elevar o homenageado às posições superiores
da adesão em torno de determinados valores, irradiando-os ao todo que compõe uma comunidade – no caso,
política – em expansão.
20 O conceito chave para a compreensão do que estamos chamando de propaganda política é o de representação.
Sobre ele, ver: HANSEN, J. A. A categoria ‘representação’ nas festas coloniais dos séculos XVII e XVIII. In: JANC-
SÓ, István & KANTOR, Íris. (orgs.) Festa: cultura e sociabilidade na América portuguesa. São Paulo: Imprensa
Oficial/HUCITEC/EdUSP/FAPESP, 2001, vol.2, p.733-755.
21 Ver: NIZZA DA SILVA, M. B. O conceito de nobreza. In: Ser nobre na colônia. São Paulo: Ed. UNESP, 2005,
p.15-40.
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na hierarquia e aos cargos e honrarias de maior prestígio.
22
Em segundo
lugar e, provavelmente, mais decisivo, as diversas formas de encômio
traduziam exemplarmente os modelos de excelências a serem imitados
por aqueles que almejam alcançar posições de destaque e fama pública,
conquistando honrarias e colocando-se a serviço do bem comum. Assim,
os louvores favoreciam o homenageado, ajudando-o a alcançar vantagens
na economia de mercês; eram úteis ao orador/poeta/historiógrafo, que ga-
nhava a proteção do nobre; serviriam como ensinamento político e moral
para aqueles que buscam alcançar maior destaque público e, além disso,
colocariam em evidência os valores políticos e morais que deveriam ser
cultuados por todos.
A eficácia ou não da propaganda política depende da mobilização de
instrumentos imagéticos, performáticos e retóricos carregados simbolica-
mente, que sejam capazes de legitimar a ordem hierárquica vigente e as
fontes de autoridade que ela sustenta. Em um ambiente culturalmente tão
complexo como o imperial, tal carga simbólica precisaria ter propriedades
capazes de mover auditórios altamente diversificados, comportando re-
gistros variados. Nesse sentido, aquilo que, por exemplo, para um fidalgo,
pode ser altamente claro e persuasivo, para um índio do sertão recém in-
troduzido na sociedade escravista, pode chegar ao extremo do indecifrável,
sem qualquer efeito ou, ainda pior, com efeitos opostos àqueles que se
visavam produzir.
23
O decoro das ocasiões e as expectativas de recepção
circunscritas a determinados públicos particulares são, portanto, importan-
tes chaves para a arquitetura da propaganda política no contexto imperial
e, ainda assim, não são fianças de recepções totalmente ajustadas com a
“mensagem original”. Ao prescreverem valores, práticas, comportamentos,
atitudes, hábitos e vontades, as representações devem estar sempre atentas
às suas recepções e aos seus receptores, de modo que se constroem no
diálogo entre a norma geral que procura “impor” e as circunstâncias parti-
culares de enunciação que lhes orienta na escolha dos formatos retórico,
artístico e/ou “linguageiro” mais convenientes.
A eficácia da produção da exemplaridade através do encômio só é
possível, portanto, quando apresenta o ajuste das ações, características,
22 Sobre o que apresentamos aqui como fama, sugerimos a conceituação clássica de Jacob Burckhardt. Segundo
o autor suíço, a busca pela fama se propaga em sociedades, como a do Renascimento italiano, em que a no-
breza – identificada como nobilitas (notabilidade) – não qualifica um homem tanto pela sua origem familiar, mas
pelos seus méritos expressos em ações e palavras reconhecidamente valorosas, que o consagram perante os
demais. Fama – pode-se dizer – é o reconhecimento público do mérito daqueles considerados nobres (nobilis).
Ver: BURCKHARDT, J. A biografia na Idade Média e no Renascimento. In: A cultura do Renascimento na Itália.
Brasília: Editora da UnB, 1991, p.199-207.
23 Um belo exemplo de “mal-entendidos” capazes de gerar efeitos opostos aos previstos pelo emissor dos discursos
é o complexo “herético” indígena estudado por Vainfas, conhecido como “Santidade de Jaguaripe”. Segundo
Vainfas, foi no interior dos aldeamentos jesuíticos e a partir de uma releitura indígena dos ensinamentos dos
padres sobre a Religião que a Santidade originou-se, combinando signos cristãos com práticas “gentílicas”. Ver:
VAINFAS, R. A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras,
1995, p.109-117.
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aparências ou palavras do homenageado aos valores éticos reconhecida-
mente válidos no interior da cultura política da qual é parte. Assim, sem-
pre há uma indissociabilidade entre o elogio encomiástico e o reforço da
adesão a tais valores. Analogamente, o mesmo reforço ocorre quando a
exemplaridade é produzida através de sua via negativa: o vitupério, próprio
da sátira e de outras formas de escárnio, que inverte a ordem desejável por
meio do desajuste das ações, características, aparências ou palavras dos
infames, dos vulgos ou dos tiranos em relação aos valores válidos desta
mesma cultura política. Ao colocar em evidência os vícios, ao escancararem
a falta de decoro e a rudeza, os vitupérios demonstram, por inversão, as
virtudes, a discrição e a sabedoria que faltam às suas personagens e que
são familiares ao auditório. Os efeitos produzidos pelas inversões satíricas,
tais como o repúdio, o riso e a ridicularização, dependem disto: do reco-
nhecimento, por parte do público, dos valores que são contrariados pelos
“homenageados”.
24
Para muitos autores, como Giulio Carlo Argan, isso que estamos cha-
mando de propaganda política (inseparável do plano religioso) configura o
cerne de uma típica vivência sócio-cultural denominada, muitas vezes, pelo
termo sociedade barroca, historicamente localizada na Europa e nas perife-
rias européias entre fins do século XVI e meados para o final do século XVIII.
Nesta visão, tal sociedade seria fruto da dissolução das certezas religiosas
anteriores ao cisma das Reformas, que passaria a exigir uma reafirmação
constante, combativa e espetacular dos valores políticos e religiosos dos
mundos católico e protestante, por meio da mobilização dos afetos e da
profusão de imagens moralmente carregadas. Ainda que o termo barroco
nos pareça uma generalização excessivamente dedutiva, tal concepção
parece ajustar-se bem às práticas de representação e propaganda política
na América portuguesa. O que essas práticas visam produzir é a imagem,
ao mesmo tempo verossímil e persuasiva, do poder político e de sua legi-
timidade para a adesão de auditórios variados às finalidades do Estado e
da Igreja. No limite, o que eles visam é a produção afetiva da concórdia (ou
uma ordem fundada no amor) dos vassalos da coroa, distribuídos hierar-
quicamente, sem que isso se separe da sua própria razão de ser: a saúde
do corpo místico do Império.
25
A propaganda política se destina, pois, à
24 Um trabalho já bastante conhecido que explica a função da sátira e do escárnio como forma de reafirmação do
status quo da sociedade seiscentista da América portuguesa é o estudo de João Adolfo Hansen sobre Gregório
de Matos Guerra: HANSEN, J. A. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989. Também muito interessante, neste sentido, é o estudo de Adriana Romeiro a respeito
do enterro satírico de um “mal governador” nas Minas no século XVIII. Ver: ROMEIRO, A. O enterro satírico de um
governador: festa e protesto político nas Minas setecentistas. In: JANCSÓ, I. & KANTOR, I. (orgs.) Festa: cultura
e sociabilidade na América portuguesa, vol.1, p.301-309.
25 Sobre esta concepção sobre a sociedade barroca ver: ARGAN, G. C. Imagem e persuasão: ensaios sobre o Bar-
roco, São Paulo: Companhia das Letras, 2004. A crítica relativa ao uso do termo barroco para a definição tanto
da “estética” quanto das formas sociais dos séculos XVI ao XVIII é feita em: HANSEN, J. A. Colonial e Barroco.
In: América: descoberta ou invenção. Rio de Janeiro: Imago, 1992, p.347-361.
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constituição de uma comunidade em torno de certos valores, legitimando
os seus lugares hierárquicos, as suas instituições, a sua missão e a sua
justiça aos olhos daqueles que dela são partes. A propaganda política provê
o amalgama afetivo dos súditos ao Império, reduzindo as distâncias físicas
na escala de suas afinidades simbólicas, gerando sentimento de pertença
ao Império e reafirmando a sua hierarquia.
Mas mesmo a propaganda política não é algo que se impõe “de cima
para baixo”, ou seja, da realeza aos súditos. A propaganda política constrói
a concórdia em constante negociação dos lugares hierárquicos e da política
de privilégios, buscando distribuir, com justiça, aqueles que, “meritoriamen-
te”, anseiam por lugares hierárquicos condizentes com a sua função no
interior do organismo civil. De certa maneira, a produção da concórdia não
se isola daquilo que Jack Greene chamou de “autoridades negociadas”. O
mais central, nos argumentos de Greene, é o caráter centrífugo e consensual
da construção das grandes autoridades do Império, o que se dá menos de
forma violenta e coercitiva do que pela negociação com os poderes locais.
26
Poderíamos pensar, por extensão, que essas negociações não são somente
por posições de autoridade ou de lugares de mando no interior da burocra-
cia, mas por posições de prestígio, fama, dignidade e reconhecimento, o
que se articula perfeitamente com a economia da mercê. Assim, sem que
haja subversões e descontentamentos, a propaganda política prevê ajustes
constantes na auto-imagem prescritiva e pedagógica do poder, buscando
sempre evitar o choque mais traumático entre as partes do corpo.
27
Considerações Finais: os braços do Rei e a onipresença do corpo
místico
Uma das tópicas políticas recorrentes nos exemplares épico-panegíri-
cos
28
dos domínios ultramarinos portugueses é a da articulação orgânica
das ações do homenageado com a vontade do Rei. Um exemplo típico
dessa articulação pode ser retirado dos versos de Basílio da Gama em O
Uraguai, nos quais o General Gomes Freire de Andrade, dirigindo-se aos
índios que resistiam à anexação das terras às colônias portuguesas, diz:
26 Ver: GREENE, J. Negociated authorities. Essays in Colonial Political and Constitucional History. Charlottesville and
London: The University Press of Virginia, 1994.
27 Este processo de negociação envolvido nas formas de representação e propaganda política pode ser exemplificado
na leitura realizada por Pedro Cardim a respeito das entradas solenes e festas políticas em Portugal e no Brasil
entre os séculos XVI e XVII. Ver: CARDIM, P. Entradas solenes: rituais comunitários e festas políticas, Portugal e
Brasil, séculos XVI e XVII. In: JANCSÓ, I. & KANTOR, I. (orgs.) Festa: cultura e sociabilidade na América portuguesa,
vol.1, p.97-124.
28 Por “exemplares épico-panegíricos” nos referimos a um conjunto amplo de gêneros poéticos e retóricos capazes
de serem inscritos no discurso epidítico, como as diversas formas historiográficas, a poesia encomiástica, os
poemas épicos, as dedicatórias entre outros modelos textuais. E muitos casos, esses gêneros podem gerar
formas híbridas, mistas e combinadas, o que nos leva a tratá-las em bloco no que têm em comum: o objetivo de
louvar ou vituperar figuras exemplares, demonstrando e reforçando valores éticos, políticos e religiosos a serem
salvaguardados pelas comunidades às quais se voltam.
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“Por mim te fala o Rei: ouve-me, atende, / e verás uma vez nua a verdade.”
Mais à frente, continua:
O Rei é vosso Pai: quer-vos felices. / Sois livres, como eu sou; e sereis
livres, / não sendo aqui, em outra qualquer parte. / Mas deveis entregar-nos
estas terras. / Ao bem público cede o bem privado. / O sossego da Europa
assim o pede. / Assim manda o Rei (...).
29
Como se percebe, as falas do herói têm sua autoridade emanada da
fonte de poder de que ele é “servo”: o Rei. Em muitos outros casos, essa
fonte de poder pode ser também Deus, como nos versos anchietanos dedi-
cados a Mem de Sá,
30
por exemplo. Deus ou Rei – pouco importa, pois são
ambos centrais na esfera da ordem do corpo místico – é quem atua e fala
através dos “braços” e “bocas” do herói: instrumento físico da realização
histórica da ordenação política do mundo conforme os critérios do “justo”
e do “racional”. Por isso, voltando aO Uraguai, a fala do herói é capaz de
por “nua a verdade”. Nela, o Rei manda, ensina e reafirma o seu poder, cuja
legitimidade está em preservar o “bem público” e a concórdia, no caso,
“o sossego da Europa”. Cabe ao herói tornar as ordens expressas em sua
fonte de autoridade efetivamente cumpridas, seja através do convencimento
pacífico, da administração prudente, ou do exercício das armas em guerras
justas, que, no caso, será o caminho tipicamente elogiado nas construções
historiográficas e, sobretudo, épicas, das quais O Uraguai é exemplar.
Pode-se afirmar, a partir dessas considerações, que a presença física
dos heróis na resolução dos assuntos que concernem ao bem comum visa
suprir a presença física do Rei nessas mesmas ocasiões. No herói, em
outros termos, está sempre presente a persona ficta do Rei, que lhe guia
as palavras, os gestos e as ações necessárias para o cumprimento de seu
designo. A autoridade do herói é, pois, um efeito de representação; é uma
presença que se faz na ausência e, assim, permite que o Rei se faça ouvido
e obedecido para muito além do espaço que a sua persona personalis é
capaz de alcançar. Nesse sentido, louvar as ações heróicas é uma tarefa
de formação de braços do Rei em compasso com a sua autoridade e, logo,
uma tarefa plena de significados políticos. O aedo épico, o panegirista, o
poeta satírico ou o pregador, por exemplo, é, privilegiadamente, aquele que
ensina os homens discretos como prestarem bons serviços ao Rei e ao bem
comum, deleitando-os e movendo-os com seu discurso engenhoso. Em
outros termos, ele é uma peça fundamental na mediação entre a cabeça e
os membros do corpo místico. Por um lado, seu papel é descentralizador,
por ser instrumento de uma distribuição segura do poder régio a fidalgos
de além mar e da negociação de lugares políticos para esses súditos na
29 BASÍLIO DA GAMA, J. Obras Poéticas de José Basílio da Gama. Rio de Janeiro: Livraria Garnier, s/d, p.34.
30 ANCHIETA, J. De gestis Mendi de Saa. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 1997. Edição fac-similar de:
Coimbra: Iohannem Aluarum, 1563.
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Guilherme Amaral Luz
hierarquia. Por outro, seu papel é centralizador, pois busca fazer com que as
ações notáveis dos que anseiam por posições de destaque subordinem-se
à vontade política que irradia da cabeça do organismo civil.
Sem qualquer pretensão de esgotar o assunto, procuramos, neste ar-
tigo, traçar, em linhas gerais, os princípios retórico-político-teológicos que
acreditamos nortear a propaganda imperial portuguesa no seu contexto
ultramarino da América. Mostramos que seu sentido fundamental está em
produzir a concórdia no interior do corpo místico, segundo uma hierarquia
particular em que cabe aos notáveis papéis importantes como instrumentos
da autoridade real. Não apostamos em um modelo reducionista que subs-
titua a leitura econômica do sistema colonial por outra de caráter político e
retórico. Entendemos que, caso busquemos compreender o funcionamento
dos mecanismos de manutenção e ampliação dos domínios ultramarinos
portugueses, seja importante levar em conta o modo de aprendizado
constante por parte de seus agentes do que significa, em uma orientação
teológico-política particular, ocupar uma posição socialmente destacada. Os
caminhos para isso são vários, mas um deles, sem dúvida, está no estudo
particularizado das formas de representação política do mundo colonial e
ultramarino, mais especificamente, daquelas que compõem os vestígios
retórico-poéticos que dele nos chegam.
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