Content uploaded by Henrique Luiz Cukierman
Author content
All content in this area was uploaded by Henrique Luiz Cukierman
Content may be subject to copyright.
O tapete de Eudóxia
A história das ciências e a narrativa das multiplicidades
Henrique Cukierman
HCTE/UFRJ
PESC/COPPE/UFRJ
ECI/POLI/UFRJ
Publicado na revista Tempo Brasileiro – ISSN 0102-8782
Vol 189/190, 2012, pp. 155-172
1
2
Em Eudóxia, que se estende para cima e para baixo, com vielas
tortuosas, escadas, becos, casebres, conserva-se um tapete no qual se
pode contemplar a verdadeira forma da cidade. À primeira vista, nada é
tão pouco parecido com Eudóxia quanto o desenho do tapete (...) Mas,
ao se deter para observá-lo com atenção, percebe-se que cada ponto do
tapete corresponde a um ponto da cidade e que todas as coisas
contidas na cidade estão compreendidas no desenho, dispostas
segundo as suas verdadeiras relações, as quais se evadem aos olhos
distraídos pelo vaivém, pelos enxames, pela multidão. (...) o tapete prova
que existe um ponto no qual a cidade mostra as suas verdadeiras
proporções, o esquema geométrico implícito nos mínimos detalhes.É
fácil perder-se me Eudóxia: mas, quando se olha atentamente para o
tapete, reconhece-se o caminho perdido num fio carmesim ou anil ou
vermelho amaranto que após um longo giro faz com que se entre num
recinto de cor púrpura que é o verdadeiro ponto de chegada. (...) Sobre a
relação misteriosa de dois objetos tão diferentes entre si como o tapete
e a cidade, foi interrogado um oráculo. Um dos dois objetos – foi a
resposta – tem a forma que os deuses deram ao céu estrelado e às
órbitas nas quais os mundos giram; o outro é um reflexo aproximativo
do primeiro, como todas as obras humanas. Há muito tempo os profetas
tinham certeza de que o harmônico desenho do tapete era de feitura
divina; interpretou-se o oráculo nesse sentido, sem dar espaço para
controvérsias. Mas da mesma maneira pode-se chegar à conclusão
oposta: que o verdadeiro mapa do universo seja a cidade de Eudóxia
assim como é, uma mancha que se estende sem forma, com ruas em
ziguezague, casas que na grande poeira desabam uma sobre as outras,
incêndios, gritos na escuridão.
Italo Calvino, As cidades e o céu 1,
in AS CIDADES INVISÍVEIS.
cidade de Eudóxia se põe à prova no tapete. Inicialmente, é o seu princípio
ordenador que está em questão, e a sentença do oráculo fornece uma chave ao
distinguir a ordem divina da ordem humana. Entretanto, há mais sutilezas que
apenas o embate entre a lei de Deus e a lei dos Homens
2
: em seu arranjo harmonioso, que
dá-lhe ares de obra divinal, o tapete encerra em si o atributo da singularidade, pois que
basta sua trama única para representar integralmente o turbilhão que se evade aos olhos
distraídos. Ao dar conta da complexidade de Eudóxia, torna-se o tapete plenamente capaz
de explicá-la. Ao decifrar a trama urbana da cidade, a trama têxtil do tapete prova a
existência de um ponto singular, no qual a cidade mostra as suas verdadeiras proporções, o
esquema geométrico implícito nos mínimos detalhes. Este ponto é um ponto-destino,
sempre disponível, rigorosamente ali, porto seguro de qualquer consulta ao tapete, este
objeto único em sua capacidade de conduzir em seu interior, sob suas leis, ao exato lugar
que se quer alcançar na mixórdia da cidade que se espraia do lado de fora dos limites de
sua tessitura. Uma única explicação, um único fio, ainda que guardada a possibilidade da
diversidade nas cores: seja um fio carmesim ou anil ou vermelho amaranto, uma única
A
3
forma - o tapete - narra à perfeição a grande confusão de Eudóxia, cuja mancha disforme é
redesenhada no tapete segundo aquelas que seriam suas verdadeiras relações. Há uma
ordem vigente no tapete, a ordem da singularidade, que se impõe sobre ruas em
ziguezague, sobre casas que na grande poeira desabam uma sobre as outras, sobre
incêndios e gritos na escuridão. A enumeração lado a lado de objetos díspares, reforçada
pela flexão no plural – ruas, casas, incêndios, gritos –, aliada à desordem através da qual
estes mesmos objetos são apresentados – ziguezague, grande poeira, desabamento,
pânico na escuridão – revelam o embate entre singularidade e multiplicidade, que o tapete,
enquanto consagração de uma pretensa ordem, ao invés de instituir a pretendida harmonia,
resulta como expressão de um espaço de tensão. Uma idéia sobre Eudóxia, desabitada de
Eudóxia. Quem quiser conhecer a cidade, que trate de arranjar outro mapa, é o que insinua
o final do conto de Italo Calvino.
Digamos que o tapete seja uma narrativa, mas de tipo bastante especial. Trata-se de
uma espécie de ‘narrativa-continente’, cuja aspiração é representar Eudóxia, em toda sua
complexidade, reduzida à gramática geométrica e singular de seu texto-desenho.
Chamemos de ‘narrativa-tapete’ a este gênero de narração, cuja pretensão é apreender o
mundo como se o percebesse pelo olhar de Deus, que a tudo vê segundo as suas
verdadeiras relações e a tudo dispõe segundo regras distributivas que evocam a tradicional
harmonia celestial. Um tal gênero insólito como o da ‘narrativa-tapete’ constitui a questão
deste artigo: através do conceito de multiplicidade, se pretende esboçar a relação de duas
narrativas supostamente tão diferentes entre si como a da literatura e a da história das
ciências. E assim, não sem uma boa dose de transgressão de fronteiras acadêmicas, trazer
a contribuição genial de Italo Calvino ao terreno da historiografia das ciências, iluminando-o
especialmente quanto a uma de suas ‘narrativas-tapete’ fundadoras, a chamada história da
revolução científica.
Em suas reflexões posteriores à confecção do tapete de Eudóxia, Italo Calvino
registra a multiplicidade como uma das suas Seis propostas para o próximo milênio
[CALVINO,1991], reservando-lhe neste livro um capítulo exclusivo. O ponto de partida de
sua análise é o romance Quer pasticciaccio brutto de via Merulana (Aquela confusão louca
da via Merulana), de Carlos Gadda, do qual Italo Calvino cita um trecho onde o Dr.
Ingravallo, personagem do romance, expunha suas idéias:
“Sustentava, entre outras coisas, que as catástrofes inopinadas não são jamais a
conseqüência ou o efeito, como se costuma dizer, de um motivo único, de uma
causa singular: mas são como um vórtice, um ponto de depressão ciclônica na
consciência do mundo, para as quais conspirava toda uma gama de causalidades
convergentes. Dizia às vezes um rolo, uma embrulhada, um aranzel, ou um
4
gnommero, que em dialeto romano quer dizer novelo. Mas o termo jurídico
‘causalidade, as causalidades’ lhe aflorava de preferência à boca: quase contra sua
vontade. A opinião de que era necessário ‘reformar em nós o sentido de categoria de
causa’, qual a havíamos aprendido com os filósofos, de Aristóteles a Emmanuel
Kant, e substituir a causa pelas causas, era para ele uma opinião central e
persistente (...)” [in CALVINO,1991:119,grifos do autor]
A idéia da multiplicidade se aproxima, em primeira instância, ao reconhecimento do plural
por oposição ao singular e, portanto, da dificuldade, ou melhor, da impossibilidade de um
motivo único, de uma causa singular. Mas há mais no comentário de Italo Calvino: “Carlo
Emilio Gadda durante toda a sua vida buscou representar o mundo como um rolo, uma
embrulhada, um aranzel, sem jamais atenuar-lhe a complexidade inextricável - ou,
melhor dizendo, a presença simultânea dos elementos mais heterogêneos que concorrem
para a determinação de cada evento” [CALVINO,1991:121,grifos do autor]. A multiplicidade
se esclarece, já não como um simples sinônimo de pluralidade, posto que a questão agora
se coloca no terreno da inextricabilidade e da heterogeneidade ou, dito de outro modo, da
inviabilidade de manter uma certa coerência estabilizada por um tempo largo. Coerência e
singularidade deixam de ocupar o lugar no qual desfrutam o status privilegiado de atributos
indispensáveis a qualquer compreensão última, e passam a ser consideradas como efeitos
resultantes de certa estabilidade momentânea e provisória. Coerência e singularidade
deixam de identificar a ‘essência’ da matéria e dos eventos, e tornam-se contingenciais. A
depender desta caracterização, um tapete tão estável e ‘esclarecedor’ como o de Eudóxia
não poderia ter vida longa. Ao enfatizar a instabilidade de qualquer ‘esclarecimento’ deste
gênero, John Law leva o argumento às últimas conseqüências: “(...) Nenhuma visão geral.
Nenhuma resolução. Nenhum início e nenhum fim. Em seu lugar, há tensão e nenhuma
completitude. Há um senso de, e não a necessidade de, que mais está por vir. Nenhum
lugar privilegiado” [LAW,1997b].
O argumento de Italo Calvino ganha ainda mais densidade ao incorporar à sua
análise a obra de Robert Musil, O Homem sem Qualidades, da qual extrai o seguinte trecho:
“Mas ele tinha ainda outra coisa a dizer: algo sobre os problemas matemáticos que
não admitem uma solução geral, mas antes várias soluções particulares cuja
combinação nos permitiria aproximar de uma solução geral. Poderia acrescentar
ainda que considerava desse gênero o problema da existência humana. O que se sói
chamar uma época - sem saber se por isso se deva entender séculos ou milênios ou
o curto lapso de tempo que separa a idade escolar da velhice - , esse largo e livre rio
de circunstâncias, seria então uma espécie desordenada de soluções
insuficientes e individualmente falsas das quais não poderia brotar uma
solução exata e total senão quando a humanidade fosse capaz de encará-las
todas” [in CALVINO,1991:125,grifos do autor].
5
Uma solução geral seria apenas uma aproximação, uma aparência, um efeito, reiterando a
idéia da estabilidade como contingência e reafirmando aquilo que John Law propôs como
nenhuma resolução. Ou então, uma solução geral estaria reservada a um futuro incerto e
imprevisível, quando um estágio ‘iluminado’ privilegiasse a humanidade em sua capacidade
de enfrentar todas as particularidades. Bem, esta já seria uma outra história, mas o que
importa, enquanto a humanidade ainda está afastada desta possibilidade (ou talvez nunca
dela se aproxime), é a comparação feita por Italo Calvino entre os dois escritores, Musil e
Gadda: “Um confronto entre esses dois escritores-engenheiros (...) deve registrar ainda um
dado comum a ambos: a incapacidade de concluir” [CALVINO,1991:125]. Retornamos
mais uma vez a John Law, em sua proposição por nenhuma completitude: eis aí a
dificuldade de concluir, pois que concluir seria completar, e é justamente sobre esta
inviabilidade que se forja um dos desafios epistêmicos dos modernos. Não propriamente
que seja impossível concluir, mas aquilo que está efetivamente em jogo é o limite de
qualquer conclusão, marcada que é por sua precariedade, por sua provisoriedade, por sua
particularidade, o que faz lembrar a obra de Beckett: “Eu não tenho nada a dizer, mas posso
dizer até que ponto não tenho nada a dizer” [in PENHA, 1995:24]. Há, de fato, algo a dizer,
mas quem pode dizê-lo é somente uma voz multíplice: “Hoje em dia não é mais pensável
uma totalidade que não seja potencial, conjetural, multíplice” [CALVINO,1991:131].
Esta inapreensibilidade – “(...) e para Proust o conhecimento passa pelo sofrimento
dessa inapreensibilidade” [idem,126] – do mundo encontra respaldo no reconhecimento da
multiplicidade que, uma vez consagrada como ‘marca registrada’ das mais significativas
produções literárias deste século, aponta efetivamente, segundo Italo Calvino, para uma
nova forma de conhecimento: “O conhecimento como multiplicidade é um fio que ata as
obras maiores, tanto do que se vem chamando de modernismo quanto do que se vem
chamando de pós-modernismo, um fio que - para além de todos os rótulos - gostaria de ver
desenrolando-se ao longo do próximo milênio” [idem,130]. Em seguida, o autor exibe com
clareza o vínculo entre suas preocupações mais gerais e o produto de sua pena ficcional, o
tapete de Eudóxia, ao observar que “mesmo que o projeto geral tenha sido minuciosamente
estudado, o que conta não é o seu encerrar-se numa figura harmoniosa, mas a força
centrífuga que dele se liberta (...)” [idem,131] O tapete de Eudóxia é a figura harmoniosa
fechada por excelência e, neste sentido, o embate entre singularidade e multiplicidade pode
ser igualmente compreendido como uma tensão entre o centramento e o descentramento,
entre estabilidade e instabilidade, entre uma ordenação concentrada e o movimento
centrífugo de multiplicação no mundo.
A ’narrativa-tapete‘ agora desloca-se de Eudóxia rumo à história da revolução
científica. A exemplo do conto, durante um bom tempo e sem espaço para controvérsias,
6
acreditou-se na existência de um conhecimento submetido a uma transformação
revolucionária, ocorrida entre os séculos XVI e XVII, a qual denominou-se de Revolução
Científica. Este termo não era de uso comum antes que Alexandre Koyré divulgasse-o
amplamente em 1939, e foi somente em 1954 que dois livros opostos no espectro
historiográfico utilizaram-no como título: A Revolução Científica, de A. Rupert Hall, autor
influenciado por Koyré, e A Revolução Científica e Industrial, do historiador marxista J.D.
Bernal. Entre outros, quem desestabiliza a crença na existência desta revolução é Steven
Shapin, autor de A Revolução Científica [SHAPIN,1998], cuja primeira frase já contém uma
afirmação bastante provocadora: “Não existiu coisa tal qual a Revolução Científica, e este é
um livro a seu respeito” [idem,1]. Steven Shapin propõe-se então a revelar, ao longo de seu
livro, os ‘mistérios’ deste aparente paradoxo, de forma a esclarecer ao leitor o porquê de
escrevê-lo. Sua argumentação pode alinhar-se perfeitamente àquela de Italo Calvino, ambos
unidos pela mesma preocupação em restabelecer a multiplicidade, conforme se pode
percebê-lo logo adiante em seu livro:
“Há tempos atrás, quando o mundo acadêmico oferecia mais certezas e mais
confortos, os historiadores anunciaram a existência real de um evento coerente,
cataclísmico e climático, o qual, fundamental e irrevogavelmente, mudou aquilo
que as pessoas sabiam a respeito do mundo natural e a maneira como asseguravam
o conhecimento apropriado daquele mundo. Foi o tempo em que o mundo tornou-se
moderno, foi um Boa Coisa, e que ocorreu em algum momento durante o período
compreendido entre o final do século XVI e o início do século XVIII”
[SHAPIN,1998:1,grifos do autor].
A singularidade revela-se através do fenômeno da coerência, ao mesmo tempo que fica
subentendida a idéia de uma irrevogável linearidade temporal, ou progresso, pela qual se
percorre uma trajetória contínua e inexorável, sem ziguezagues, seguindo um fio carmesim
ou anil ou vermelho amaranto, que após um longo giro faz com que se entre num recinto de
cor púrpura que é o verdadeiro ponto de chegada: o mundo moderno tornado possível pela
Boa Coisa que foi a revolução promovida pela ciência.
Todavia a historiografia da ciência já se movimentou bastante desde Bernal e Rupert
Hall:
“[Muitos historiadores] agora rejeitam até mesmo a noção segundo a qual tenha
existido, no século XVII, alguma entidade singular coerente chamada ‘ciência’ que
tenha sido submetida a uma mudança revolucionária. Mais propriamente, o que
houve foi uma ordenação de diversas práticas culturais objetivando a
compreensão, a explicação e o controle do mundo natural, cada uma com diferentes
características e cada uma experimentando modos diferentes de mudança. Somos
agora muito mais dúbios em relação a proposições acerca de algo como ‘o método
científico’ – um conjunto coerente, universal e eficaz de procedimentos destinado à
elaboração do conhecimento científico (...) ” [SHAPIN,1998:3-4,grifos do autor].
7
Não apenas sua historiografia, mas é a própria ciência que permanece em xeque nos
domínios da multiplicidade, quando sua existência enquanto entidade única, coerente e
universal dá sinais de sucumbir ante à pluralidade das mais diversas práticas culturais. A
Ciência ou as ciências?, eis a pergunta subjacente ao texto de Steven Shapin. Esta Ciência
unificada vem sendo duramente questionada, como o faz Karin Knorr Cetina em seu livro
“Epistemic Cultures: How the Sciences Make Knowledge”, no qual procura rever a velha
divisão em disciplinas – a Ciência dividida em seus vários ‘departamentos’ (não por acaso é
esta a denominação assumida pelas universidades em seus organogramas) – para propor
em seu lugar uma organização muito mais complexa e dinâmica, a das culturas epistêmicas,
entendidas como amálgamas de “(...) arranjos e mecanismos – vinculados através de
afinidade, necessidade e coincidência histórica – que definem, em um dado campo, como
sabemos o que sabemos” [1997:1, grifos do original]. Assim, para verificar a complexa
textura do conhecimento, não se deveria voltar a mirada para as disciplinas ou
especialidades como estruturas organizadoras mas sim para as maquinarias de
conhecimento das ciências contemporâneas. Para lográ-lo, é necessário deslocar o
interesse da construção do conhecimento para a construção dessas maquinarias de
construção do conhecimento, ou, dito de outra forma, o que importa é investigar não a
produção de conhecimento mas sim sua maquinaria epistêmica. Um tal deslocamento de
atenção revela “(...) diferentes arquiteturas das abordagens empíricas, construções
específicas do referente, ontologias particulares dos instrumentos, e diferentes máquinas
sociais” (idem:3). Ao seguir por este caminho, Knorr Cetina enfatiza a fragmentação das
ciências contemporâneas, uma vez que a dessemelhança das várias culturas epistêmicas,
revelada em meio a um panorama feito de variados monopólios epistêmicos, torna mais
apropriado pensar na diversidade das ciências e não mais em uma pretensa Ciência
unificada (cf. idem: 3-4).
Uma ‘narrativa-tapete’ sobrevive basicamente de um evento coerente, cataclísmico e
climático que estabelece um novo regime temporal, um antes e um depois irreversivelmente
esculpido no tempo, determinando, portanto, uma rígida separação entre o antigo e o
moderno. Esta fronteira ‘segura’ é identificada por Bruno Latour (1994:15) como uma
resposta usual, e fortemente assimétrica, à pergunta “o que é um moderno?”:
“(...) todas as definições apontam, de uma forma ou de outra, para a passagem do
tempo. Através do adjetivo moderno, assinalamos um novo regime, uma aceleração,
uma ruptura, uma revolução do tempo. Quando as palavras ‘moderno’,
‘modernização’ e ‘modernidade’ aparecem, definimos, por contraste, um passado
arcaico e estável. Além disso, a palavra encontra-se sempre colocada em meio a
uma polêmica, em uma briga onde há ganhadores e perdedores, os Antigos e os
Modernos.”
8
Porém, esta assimetria torna-se insustentável na medida em que “(...) nas inúmeras
discussões entre os Antigos e os Modernos, ambos têm hoje igual número de vitórias, e
nada nos permite dizer se as revoluções dão cabo dos antigos regimes ou os
aperfeiçoam.” [idem:15,grifos do autor]. À sua maneira, Steven Shapin retoma o mesmo
argumento ao assinalar que
“(...) as vidas de Galileu, Descartes ou Boyle eram muito pouco típicas da vida de
italianos, franceses e ingleses do século XVII, e contar histórias a seu respeito
baseadas apenas por seu papel ancestral na formulação correntemente aceita da lei
da queda livre, da ótica do arco-íris, ou da lei do gás ideal, provavelmente não
captura muito a respeito do sentido e do significado de suas carreiras e projetos no
século XVII. O passado não é transformado em ‘mundo moderno’ em nenhum
momento singular: não deveríamos nos surpreender ao descobrir que os
cientistas do século XVII freqüentemente tinham a seu respeito tanto do antigo
quanto do moderno; suas noções tiveram de ser sucessivamente transformadas e
redefinidas por gerações de pensadores para tornarem-se ‘nossas’ ”
[SHAPIN,1998:7,grifos do autor].
Portanto, a modernidade é uma construção, que depende muito menos da posição
original deste ou daquele eminente sábio da ciência, e muito mais do que tomaram em suas
mãos aqueles que vieram depois. Bruno Latour chega a enunciá-lo como um princípio: “O
destino dos fatos e máquinas está nas mãos dos que os utilizam por último; suas qualidades
são, portanto, a conseqüência, e não a causa, da ação coletiva” [LATOUR,1987:259]. O
olhar assimétrico dos ‘modernos’ sobre os ‘antigos’ realiza a entronização da Revolução
Científica enquanto cataclisma histórico, constituindo assim as bases de uma ‘narrativa-
tapete’ que distingue para a humanidade um passado mergulhado no obscurantismo de
crendices e feitiçarias de uma época áurea de racionalidade, que perdura até hoje,
sustentada pela ‘objetividade’ de verdades incontestes porque comprovadas pela Ciência.
Caracterizada por sua unidimensionalidade espacial e temporal, e por seus pontos
de ruptura logicamente dispostos de forma a reforçar dualismos do tipo antigo/moderno,
superstição/ciência, subjetividade/objetividade, a coerência da ‘narrativa-tapete’ está na
origem do mundo reduzido da singularidade, onde grandes causas e grandes efeitos
constituem o cenário grandiloqüente de uma única grande história. Entretanto, Steven
Shapin, ao retomar a crítica à coerência e à singularidade, avança mais profundamente
contra este tipo de ‘grande história’, não somente para restabelecer a multiplicidade como
também para questionar a ‘grande história’ em sua pretensão de ser contada como se fora
um testemunho neutro e isento daquele que a conta:
“Não considero que exista algo parecido a uma ‘essência’ da ciência do século XVII,
ou de reformas científicas ocorridas de fato no século XVII. Conseqüentemente, não
9
há uma história singular e coerente que pudesse, com alguma possibilidade,
capturar todos os aspectos da ciência ou de suas mudanças sobre os quais nós, os
tardios modernos do século XX, pudéssemos estar interessados. (...) Desde que, sob
o meu ponto de vista, não há uma essência da Revolução Científica, uma
multiplicidade de histórias podem ser legitimamente contadas, cada uma visando
chamar a atenção sobre algumas características reais da cultura passada. Isto
significa que a seleção é uma característica necessária de qualquer narrativa
histórica, e que não pode haver algo como uma história exaustiva ou definitiva,
por maior que seja o espaço que dispenda o historiador ao escrever sobre qualquer
passagem do passado. Aquilo que selecionamos inevitavelmente representa nossos
interesses, mesmo que o tempo todo objetivemos ‘contá-lo como realmente se
sucedeu’. Isto quer dizer que há inevitavelmente algo de ‘nós’ nas histórias que
contamos a respeito do passado. Esta é a condição do historiador, e é tolo pensar
que haja algum método, por mais bem intencionado que seja, que possa
desembaraçar-nos desta condição” [SHAPIN,1998:10, grifos do autor, sublinhado do
original].
Uma ‘grande história’, ou como denomina-a Steven Shapin, uma história exaustiva ou
definitiva, deveria ceder lugar a uma seleção em meio a tantas outras histórias legítimas,
estabelecendo assim outras possibilidades narrativas a partir da multiplicidade e, desta
forma, aproximando-se mais uma vez de Italo Calvino quando, ao comentar a respeito de O
Castelo dos destinos cruzados, afirmou que este seu livro procurava “(...) ser uma espécie
de máquina de multiplicar as narrações (...)” [CALVINO,1991:135,grifos do autor].
A multiplicação de narrativas aponta para uma nova maquinaria de construção do
conhecimento, tanto por assumir a heterogeneidade dos sujeitos, dos objetos e de suas
relações, como também por explicitar um processo de seleção da parte de quem narra e,
portanto, por situar o narrador, cuja presença se evidencia pela parcialidade de sua escolha
em meio à heterogeneidade. Steven Shapin assume-o claramente em relação à sua
narrativa da Revolução Científica: “Parte da minha síntese (...) destina-se a chamar atenção
para a heterogeneidade cultural da ciência do século XVII, mas escolhi fazê-lo
perseguindo um número relativamente pequeno de questões e temas ao longo do período
em análise. Fico contente em aceitar que este relato da Revolução Científica é seletivo e
parcial.” [SHAPIN,1998:11,grifos do autor]. Donna Haraway repisa o ponto quando propõe,
a respeito do mito da objetividade, que “a única maneira de encontrar uma visão mais
extensa é estar em algum lugar em particular” [HARAWAY,1995:187]. Este lugar em
particular, de onde o narrador opera a sua seleção e exerce sua parcialidade, constitui o que
a autora caracteriza como o privilégio do ‘conhecimento situado’. Steven Shapin reconhece-
o quando se propõe a “(...) introduzir uma sensibilidade dinâmica em direção a uma ciência
em ação e a uma ciência enquanto é feita, mais que construir a ciência como um ‘crença’
estática e desencorpada” [SHAPIN,1998:14,grifos do autor], deixando claro que há um
corpo que constrói a ciência, que este corpo está em movimento e que, portanto, este
conhecimento emerge também deste corpo em particular. Reconhecê-lo é expandir a visão,
10
é desfazer a mística de uma objetividade comprometida com a transcendência de todos os
limites e de todas as responsabilidades, para redefini-la como um ‘encorpamento’ particular
e específico. Para Donna Haraway, “a moral é simples: somente a perspectiva parcial pode
prometer uma visão objetiva” [HARAWAY,1995:181].
Por sua vez, John Law oferece elementos adicionais sobre a efetividade da
multiplicação de histórias, ao afirmar que
“ (...) é possível fazer uma grande narrativa que almeje abarcar a complexidade
desde suas bases e, assim, poder descrevê-la e dar conta dela. Esta opção é
atraente porque se presta a fornecer uma chave para a complexidade. (...) A atração
é óbvia. É que uma história compreensiva, indubitavelmente difícil de construir logo
de primeira, é facilmente expressa e aplicada uma vez que já esteja aprumada.
Como as tentações e até mesmo as recompensas são evidentes, é este, sem
sombra de dúvida, o modo dominante de contar histórias da tecnologia, ou de outra
coisa qualquer. Mas existem outras possibilidades. Por exemplo, é possível cultivar
histórias no plural, uma ao lado da outra. Se assim o fizermos, então produzimos
várias narrativas menores - várias chaves menores. Fazemos a multiplicidade. No
caminho, perde-se a grande história. Este é o custo: não temos a visão geral. Mas,
ao mesmo tempo, criamos algo que não existia antes: interferências entre as
histórias. (...) cultivar várias histórias uma ao lado da outra é alterar o caráter do
saber e do fazer. É tornar o saber e o fazer complexo e múltiplo. Para usar um
termo padrão, é ser descentrado. Se as narrativas que fornecem uma chave
resultam em arborescências - estruturas de árvore com inícios, meios e fins, onde
tudo que é importante se mantém coeso através de uma coordenação centralizada -
o contar de múltiplas histórias produz algo diferente. Produz redes rizomáticas que
difundem por todas as direções elaborações e interações que se mantêm coesas
como um tecido de fibras. As interseções são mais ou menos locais e heterogêneas.
Suas especificidades podem ser investigadas. Em síntese, produz formas
descentradas de ser e conhecer que não são singulares” [LAW, 1997:3,grifos do
autor].
Diante das proposições de Law, as quais reconhece de grande valia, Lars Risan
(2006), em seu artigo “The Duration of the Present and the Risk of Not Telling Large Stories”
declara-se todavia inseguro quanto à escolha entre uma grande narrativa e uma miríade de
pequenas histórias: “Não quero ter de escolher entre essas duas opções, quero-as ambas,
ao menos em algumas ocasiões”. A justificar sua dúvida, Risan toma para fundamentá-la a
forma como Alfred North Whitehead (1926: 158-159) compreende o tempo, não como uma
sucessão de momentos mas sim como uma sucessão de durações, como ‘blocos’ de
espaço-tempo associados a eventos, porém sempre passíveis de divisão em ‘blocos’
menores. Se esses blocos podem variar de tamanho, então podem ser grandes, e, portanto,
a depender da problematização, podem admitir uma duração de tal forma longa que sua
narrativa acabe assumindo as feições de uma grande narrativa. Por exemplo, no caso de
proposições baseadas no determinismo tecnológico, e este é o problema que Risan busca
enfrentar, seria preciso estabelecer quão longo é o presente, uma vez que a inevitabilidade
11
do futuro, tema caro aos determinismos de todos os matizes, tem de ser distinguida da
inevitabilidade do presente. O exemplo que o autor oferece não poderia ser mais simples e
elucidativo: uma viagem de trem de Lausanne a Genebra, cuja duração foi a de exatos 43
minutos, conforme o previsto pela ferrovia suíça (com os horários de partida e chegada
cumpridos rigorosamente à risca):
“Há sim alguma coisa como a inevitabilidade do presente. (...) quando se viaja em
trens suiços, o todo da viagem é parte do presente. O evento ou duração, o ‘bloco de
tempo’, que contitui-se como presente em relação a essa viagem inclui toda a
viagem. Esse presente não é dado. Ele é uma realização, uma realização do
sistema ferroviário suiço (na Inglaterra não dá-se o mesmo tipo de realização, e o
presente é algo diferente quando se viaja de trem pelo Reino Unido). Viajar de trem
de Lausanne a Genebra foi o desdobrar de um presente. E o presente tem de ser
desdobrado, porque não é um momento, mas uma duração (...) Histórias grandes e
‘descontextualizadas’ podem descrever grandes eventos, grandes desenhos
reunidos em unidades de um grande tempo presente. Mesmo se alongados no
tempo, descrevê-los é descrever um ‘aqui e agora’, e não determinar um futuro”
[grifos do autor].
Risan não descarta os problemas mobilizados pela grande narrativa, mas prefere
contribuir para a narrativa das multiplicidades problematizando a própria fronteira entre a
‘pequena’ e a ‘grande’ narrativa, trazendo questões cujas respostas só podem ser obtidas a
partir de boas razões empíricas, para as quais vale o velho chavão: cada caso é um caso.
Por vezes, conforme já havíamos assinalado, surge alguma forma de coerência e
singularidade como efeito da provisoriedade, ou como aproximação de uma solução geral,
ou como resultante de uma duração mais longa, ou até mesmo como recurso prático,
conforme assinala-o Steven Shapin, que dá mesmo a sensação de estar respondendo às
dúvidas de Risan: “Propus que não há uma essência da Revolução Científica, ainda que
critérios pragmáticos por vezes impulsionam-me em direção a um relato coerente sobre
mudanças distintivas no conhecimento da natureza (quando esta coerência artificial
aparece, o máximo que posso fazer é sinalizá-la e, de tempos em tempos, apontar os
problemas que lhe estão associados” [SHAPIN,1998:12,grifos do autor].
A viagem pela multiplicidade é muito desconfortável a princípio. Abrir mão da grande
história equivale a abrir mão da apreensão da totalidade. Equivale à sensação de trafegar
na contramão da torrente intelectual hegemônica da modernidade ocidental, que reservou à
racionalidade humana um papel central na legibilidade dos fenômenos naturais e sociais.
Uma racionalidade que pretende reconstruir a ’totalidade‘ do mundo, e que, portanto, precisa
produzir uma narrativa que dê conta dela. Como fazê-lo, quando o que se tem em mãos é
uma máquina de multiplicar narrações, quando o que se tem por apreender é “um tempo
multíplice e ramificado no qual cada presente se bifurca em dois futuros, de modo a formar
‘uma rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos’
3
”
12
[CALVINO,1991:134]. John Law propõe outra resposta, desta feita a partir da matemática
dos fractais, “(...) onde o fractal é uma linha que ocupa mais de uma dimensão, mas menos
de duas” [LAW,1997a:5]. Assim, é possível conceber um mundo fracionário, um mundo
que é “(...) mais que um e menos que muitos(...)” [idem,6]. Uma tal máquina de multiplicar
narrações refaz assim o mundo, e estabelece uma possibilidade de diálogo entre a narrativa
singular – que atende, segundo as palavras de Steven Shapin, a critérios pragmáticos – e a
narrativa das multiplicidades. Ainda segundo John Law, a metáfora do ‘mais que um e
menos que muitos’ permite emergir “ (...) uma maneira de expressar a relação entre a
tendência arborescente pela singularidade e pela distribuição homogênea, e a tendência
rizomática pelo múltiplo e pelo heterogêneo (...) É uma maneira que implica a necessidade
de desenvolver formas novas e fracionais de intervenção ética e política” [idem,12].
Ao contrário do conto tradicional, onde tapetes voadores conduzem a lugares
encantados, chega ao fim nossa fascinante viagem sem o tapete de Eudóxia. Uma viagem
por uma mancha que se estende sem forma, com ruas em ziguezague, casas que na
grande poeira desabam uma sobre as outras, incêndios, gritos na escuridão. Uma viagem
pela incerteza, pela complexidade, pela multiplicidade. A idéia do mapa seguro, correto, e
preciso desaparece na grande poeira. Talvez que a totalidade permaneça ainda uma idéia
bem mais próxima do inapreensível, daquilo que não pode ser narrado, um objeto secreto e
conjetural - o borgeano Aleph:
O diâmetro do Aleph seria de dois ou três centímetros, mas o espaço cósmico estava
aí, sem diminuição de tamanho. Cada coisa (...) era infinitas coisas, porque eu
claramente a via de todos os pontos do universo. Vi o populoso mar, vi a aurora e a
tarde, vi as multidões da América, vi uma prateada teia de aranha no centro de uma
negra pirâmide, vi um labirinto roto (era Londres), vi intermináveis olhos imediatos
escrutando-se em mim como em um espelho, vi todos os espelhos do planeta e
nenhum me refletiu, (...), vi ramos, neve, tabaco, gretas de metal, vapor d'água, vi
convexos desertos equatoriais e cada um de seus grãos de areia, (...), vi um câncer
de mama, vi um círculo de terra seca em uma calçada, onde antes houve uma
árvore, (...), vi um pôr-do-sol em Querétaro que parecia refletir a cor de uma rosa em
Bengala, vi meu dormitório sem ninguém, (...), vi as sombras oblíquas de umas
samambaias no solo de uma estufa, vi tigres, êmbolos, bisontes, marejadas e
exércitos, vi todas as formigas que há na terra, vi um astrolábio persa, (...), vi a
circulação do meu próprio sangue, vi a engrenagem do amor e a modificação da
morte, vi o Aleph, de todos os pontos, vi no Aleph a terra, vi minha cara e minhas
vísceras, vi a sua cara, e senti vertigem e chorei, porque meus olhos haviam visto
esse objeto secreto e conjetural, cujo nome os homens usurpam, mas que nenhum
homem jamais olhou: o inconcebível universo.
13
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CALVINO, Italo, 1991, Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo, Companhia das
Letras.
______, 1995, As Cidades Invisíveis. São Paulo, Companhia das Letras.
CROMBERG, Monica Udler, CUKIERMAN, Henrique, 1994, Histórias de Nasrudin. Rio de
Janeiro, Edições Dervish.
HARAWAY, Donna, 1995. “Situated Knowledges: The Science Question in Feminism and
the Privilege of Partial Perspective.” In FEENBERG, Andrew, HANNAY, Alastair (eds):
Technology and the Politics of Knowledge, Indiana, Indiana University Press.
KNORR CETINA, Karin, 1997, Epistemic Cultures: How the Sciences Make Knowledge.
Cambridge, Harvard University Press.
LATOUR, Bruno, 1987, Science in Action. Massachusetts, Harvard University Press.
______,1994, Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro, Editora 34.
LAW, John,1997a, Aircraft Stories - Decentering the Object in Technoscience. Keele, draft.
______1997b, Heterogeneities, in Eric Lefebrve (ed.), Keynote address in Proceedings of
the Conference on Uncertainty, Knowledge and Skill, Thursday 6th November to Saturday
8th November, 1997, Limburg Universitair Centrum, Limburg University, Belgium.
PENHA, João da, 1995, Wittgenstein. São Paulo, Ática.
RISAN, Lars, 2006, “The Duration of the Present and the Risk of Not Telling Large Stories”.
In: EASST Review: Volume 25(3), September 2006. Disponível em
http://www.easst.net/book/print/1142.shtml, visitado em janeiro de 2012.
SHAPIN, Steven, 1998, The scientific revolution. Chicago, The University of Chicago Press.
WHITEHEAD, Alfred North, 1953, [1925], Science and the Modern Word. Cambridge,
Cambridge University Press
1
Algumas das proposições deste artigo foram publicadas em Arquivos Brasileiros de Psicologia,
52(3), jul.-set. 2000, pp.15-27.
2
Uma versão mais tradicional deste embate aparece nas histórias de ensinamento atribuídas ao
mestre sufi Nasrudin, intitulada Segundo a Lei de Deus: “Alguns meninos encontraram uma sacola
cheia de nozes e ficaram muito felizes. Mas esta felicidade durou apenas até decidirem repartir o
conteúdo da sacola (...) recorreram a Nasrudin para que desempenhasse o papel de mediador e juiz.
Este, tomando a sacola de nozes, perguntou: ‘Que lei vocês querem que eu use para repartir essas
nozes, a lei dos homens ou a lei de Deus?’ ‘A lei de Deus’, responderam os meninos em uníssono.
Nasrudin então começou a divisão dando duas a um, um punhado a outro, três a este, quatro àquele
e aos restantes não lhes deu nada. Imediatamente, os que nada receberam começaram a queixar-se:
‘Mas Mullá, que tipo de lei você aplicou?’ ‘Meus filhos’, explicou Nasrudin, ‘reparti segundo a lei de
Deus: a uns muito, a outros pouco, e a alguns nada. Se vocês tivessem escolhido a lei dos homens,
as coisas teriam sido muito diferentes” [CROMBERG, CUKIERMAN, 1994: 131].
3
Citação do conto El jardín de los senderos que se bifurcan, do livro Ficiones, de Jorge Luis Borges.